Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/20621
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A aplicação processual do instituto da prescrição

A aplicação processual do instituto da prescrição

Publicado em . Elaborado em .

Serão estudados a prescrição total e parcial, a prescrição intercorrente no cumprimento da sentença e a pronúncia de ofício da prescrição, com suas consequências na aplicação do efeito translativo dos recursos, no prequestionamento e na vedação à "reformatio in peius".

Índice: Resumo. Introdução. I. Noções gerais do instituto da prescrição: a prescrição total ou do fundo do direito e a prescrição parcial ou quinquenal. II. O tradicional regramento da aplicação processual da prescrição: a prescrição sujeita ao regime da preclusão e o atual entendimento da matéria no processo trabalhista. III. O novel regramento da aplicação processual da prescrição: a prescrição decretável de ofício no atual processo civil. IV. Limites na aplicação oficiosa do instituto da prescrição: a aplicação do efeito translativo dos recursos, a questão do prequestionamento e a vedação à reformatio in peius. V. Notas sobre a incidência da prescrição na execução do julgado: a prescrição intercorrente na fase de cumprimento de sentença. Conclusão. Referências doutrinárias.

Palavras-chave: Prescrição. Preclusão e Coisa julgada. Prescrição de ofício. Prescrição parcial e prescrição total. Prescrição intercorrente.


Resumo

O presente ensaio busca destacar os principais aspectos (muitos deles polêmicos) que circunscrevem a aplicação do instituto da prescrição no direito processual. Nesse diapasão, procurar-se-á dissertar a respeito da aplicação diferenciada da prescrição total (ou do fundo do direito) e da prescrição parcial (ou quinquenal); a utilização tradicional da prescrição pelo juiz mediante provocação do réu (acatando matéria de defesa ventilada expressamente), destacando o atual entendimento, a respeito, no especializado processo trabalhista; a utilização contemporânea, no atual processo civil, da prescrição pelo juiz (de ofício) sem provocação das partes (prescrição sem sujeição ao regime da preclusão); os limites desse poder oficioso no processo civil (até o acesso à "terceira instância" jurisdicional); bem como os contornos do possível reconhecimento da prescrição intercorrente a atingir a fase de execução definitiva (cumprimento de sentença).


Introdução

O instituto da prescrição possui vasta aplicação no direito processual, em maior ou menor escala dependendo especialmente do ramo do direito material discutido e do próprio procedimento judicial a ser seguido. Em período próximo vem sendo discutida a sua aplicação de maneira mais acentuada, em razão da entrada em vigor da Lei n° 11.280/2006 e da consequente possibilidade de reconhecimento ex officio do instituto, ao menos no âmbito do processo civil (já que maiores dúvidas, como veremos, são constituídas quando da análise da aplicação da prescrição de ofício no processo trabalhista).

Debates em relação a essas circunstâncias contemporâneas, com explicitação das espécies de prescrição (total ou parcial), da sua aplicação oficiosa no processo civil e trabalhista, como também os limites dessa aplicação nas instâncias jurisdicionais superiores e ainda a atuação da prescrição (intercorrente) na execução definitiva são cenários relevantes e que compõem o objeto central de investigação no presente ensaio.

À luz da mais abalizada doutrina e de atuais/paradigmáticos julgados, buscaremos explicar essas diferenciações, sugerindo outros conflitos de difícil resolução, aproximando, de qualquer forma, o estudo da prescrição (como instituto do direito material) com o da preclusão (instituto próprio do direito processual) – temáticas recorrentes na prática do foro, que constantemente geram incidentes e controvérsias entre os operadores do direito.


I-Noções gerais do instituto da prescrição: a prescrição total ou do fundo do direito e a prescrição parcial ou quinquenal

1. A prescrição é instituto de direito material, mas que progressivamente vem ganhando espaço no cenário processual, especialmente após a publicação da Lei n° 11.280/2006 – que tornou possível a decretação de ofício do instituto, equiparando-o a decadência [01].

Seu escopo é impedir o exame meritório, caso tenha a parte autora retardado em demasia o tempo para ingresso com demanda judicial. Não impede propriamente o ajuizamento da demanda, mas sim impede a pretensão a um juízo de mérito, em razão do reconhecimento de uma prejudicial, a qual determina a extinção do feito como se o mérito houvesse sido enfrentado (art. 269, IV do CPC) [02].

Embora os institutos da prescrição e da preclusão digam respeito à sistemática de utilização de prazos para ser tomada determinada medida pela parte interessada, por certo confusão entre elas não pode se suceder. A preclusão extingue o direito de praticar certo ato ou faculdade no processo, enquanto que a prescrição extingue a pretensão, inviabilizando o êxito de ação proposta para reconhecimento e realização do direito – embora não se dê, com a prescrição, "a perda da ação no sentido processual, pois, diante dela, haverá julgamento de mérito, de improcedência do pedido, conforme a sistemática do Código" [03].

Em outros termos, a prescrição, direta ou indiretamente, trata de inviabilizar a corporificação do próprio direito material, a pretensão que alguém almeja deduzir em juízo; [04] a preclusão, por seu turno, significa apenas a perda do direito à prática de um determinado ato processual. [05]

Trata a prescrição, como a decadência, de verdadeira sanção oposta ao beneficiário da utilização de um direito material, não podendo realmente se falar em sanção quando da análise do instituto da preclusão processual. A priori, complemente-se por oportuno, a prescrição assume caráter sancionatório menos grave do que a decadência, já que esta fulmina incontinenti o próprio direito, e aquela não mais do que a pretensão em juízo – podendo se cogitar, assim, de satisfação extrajudicial da pretensão na hipótese, v.g., de o devedor espontaneamente vir a quitar dívida com o credor (não obstante então, no caso, restar "prescrito o crédito"); o pagamento seria válido e não poderia ser repetido. Ademais, comprovando-se se tratar de sanção menos grave, tão somente a matéria sob a qual incidiu a prescrição pode ser suscitada pelo réu, em matéria contestacional (exceção substantiva indireta, art. 326 do CPC) – exigindo-se do demandado, por exemplo, eventual compensação de crédito líquido e certo (embora "prescrito"); ou seja, a perda da capacidade de exigir a pretensão em juízo não implicaria a perda da capacidade defensiva do direito dentro do processo movido por outrem, [06] o que não se dá com a decadência.

2. Expostas em breves linhas as diferenças da prescrição para o grande instituto de direito processual (a preclusão) e para o outro grande instituto de direito material (a decadência), devemos seguir para diferenciar a prescrição total (ou do fundo do direito) da prescrição parcial (ou quinquenal).

Dependendo do campo do direito material que tivermos tratando, identificaremos a possibilidade de utilização dessas duas modalidades. A prescrição total determina a completa extinção da pretensão (e não parte dela), representando medida extremamente agressiva, penalizadora da demora do demandante na propositura de medida judicial. Daí por que se diz que tal prescrição é do "fundo do direito", já que a sua decretação implica em pulverização absoluta da repercussão financeira que a demanda judicial poderia reverter ao demandante.

É a regra no direito civil [07], em que, v.g., tem a parte autora o prazo de três anos para requerer eventual ressarcimento de danos (materiais/morais/estéticos) em desfavor de quem agiu em desconformidade com a lei (art. 206, § 3°, V do CC/02); ou, no direito laboral, o prazo limite de dois anos da extinção do contrato de trabalho para discutir eventual descumprimento das normas trabalhistas em desfavor do empregador (art. 7°, XXIX da CF/88); ou mesmo, no direito consumeirista, o prazo de um ano da prova inequívoca do sinistro para se requerer eventual indenização securitária devida pela seguradora privada em favor de quem tenha formalizado a contratação da apólice (art. 206, § 1°, II, ‘b’ do CC/02 c/c CDC/1990) [08].

Já a prescrição parcial, é modalidade menos agressiva, em que não se dá a prescrição integral das cifras relacionadas ao direito adquirido do demandante, mas sim se opera a perda de determinadas parcelas pretéritas em razão da mesma demora no ajuizamento da demanda judicial. Na verdade, as parcelas perdidas circunscrevem-se ao período de cinco anos anteriores ao ajuizamento da demanda, razão pela qual essa modalidade mais branda é também denominada de "prescrição qüinqüenal" [09].

Trata-se de típica modalidade prescricional aplicável às demandas previdenciárias (art. 103 da Lei n° 8.213/91). Na hipótese, se aplica a prescrição parcial ou qüinqüenal, justamente porque a aplicação do instituto no caso concreto não impede a percepção de benefício, independentemente da demora no ajuizamento da ação previdenciária, mas determina que sejam somente pagas as parcelas vencidas anteriores ao ajuizamento, em lapso não superior a cinco anos.

Em síntese, não se fala em prescrição total para a percepção de benefícios previdenciários junto ao INSS, mas tão somente da sua modalidade parcial, conforme previsão da Súmula 85 do STJ, a qual, ao tratar genericamente das relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda Pública figure como devedora, registra que a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior à propositura da ação [10].

Em termos práticos, temos que se um determinado segurado tivesse grave acidente típico em ambiente de labor em 1980 com perda total dos membros superiores e não requeresse o benefício aposentadoria por invalidez acidentária imediatamente, poderia ingressar em juízo posteriormente, por exemplo, no ano 2000 e ter direito, nesse cenário, as parcelas vincendas bem como as parcelas vencidas, mas essas últimas limitadas a 1995 (parcelas integrantes do quinquenio anterior à propositura da ação acidentária). As parcelas entre 1980 e 1995 restariam prescritas, representando esse período a de prescrição parcial a ser reconhecida em juízo [11].


II-O tradicional regramento da aplicação processual da prescrição: a prescrição sujeita ao regime da preclusão e o atual entendimento da matéria no processo trabalhista

3. Historicamente a prescrição foi instituto criado para ser exclusivo objeto de defesa pelo réu (exceção), descabendo o seu exame de ofício pelo magistrado – já que se não alegado pela parte interessada, restaria preclusa a matéria dentro do processo, devendo-se deduzir que era do seu interesse o exame do mérito propriamente dito da contenda (art. 269, I CPC), com a prolação de sentença (de improcedência) favorável aos seus interesses.

O art. 219, § 5°, do CPC, na forma determinada pela Lei n° 5.925/73, dispunha que a prescrição poderia ser reconhecida e decretada de ofício caso se tratasse tão somente de direitos não patrimoniais. Com o advento do novo Código Civil, as regras de reconhecimento da prescrição ex officio tiveram relativa alteração, à medida que passou a poder ser reconhecida pelo julgador só quando aproveitasse incapaz (art. 194); podendo, no entanto, toda e qualquer matéria prescricional ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveite (art. 193).

Agora, com a chegada da Lei n° 11.280/2006, alterando o § 5° do art. 219 CPC, o juiz pode reconhecer a prescrição, mesmo sem provocação da parte interessada, em qualquer grau de jurisdição – e para que não pairem dúvidas e eventuais conflitos aparentes entre as normas do Código Civil e do Código de Processo Civil, a Lei n° 11.280/2006 revogou expressamente o art. 194 do código civilista, que tratava diretamente da matéria sobre prescrição [12].

De qualquer maneira, como entendimento tradicional em relação ao tema prescricional, tem-se que seria matéria propriamente de defesa, a constar expressamente na peça contestacional, daí exigindo-se o seu enfrentamento pelo magistrado, decorrendo a preclusão da matéria quando não ventilada pelo réu ou, mais corriqueiramente, quando não mais cabível recurso da decisão interlocutória que resolvesse o incidente suscitado pela parte demandada.

Nesse sentido, a clássica e precisa lição de Sérgio Pinto Martins, ao dispor que prescrição é matéria de defesa, na qual o réu deve alegar todos os motivos de fato e de direito com que impugna a pretensão do autor (art. 300 do CPC), o que incluiria a prescrição: "logo, a prescrição não pode ser alegada após ser oferecida a defesa, pois viola o contraditório e suprime instância" [13].

4. Esse entendimento tradicional dos limites no reconhecimento da prescrição (a exigir prévia e expressa manifestação do réu no interesse do seu reconhecimento) teve grande ápice justamente no campo do direito do trabalho, já que a prescrição (sempre) é reconhecida em desfavor da parte hipossuficiente (empregado). Falando em tradição histórica da prescrição no nosso ordenamento, registrava o magistrado trabalhista Cláudio de Menezes, no início da década de 90, que a prescrição sempre foi enfrentada como matéria de defesa e elencada como questão de mérito, devendo ser invocada pelo réu com a contestação, sob pena de se tornar preclusa a arguição [14].

A partir da alteração da temática prescricional pelo art. 219, § 5° do CPC, conforme defende Victor Hugo Nazário Stuchi, não haveria maiores dúvidas de que a regra da declaração de ofício da prescrição é plenamente aplicável ao processo do trabalho, uma vez que o diploma trabalhista consolidado é omisso e não há qualquer incompatibilidade entre este diploma e o Código de Processo Civil [15].

Em semelhante direção, Gustavo Filipe Barbosa Garcia também destaca que é "inevitável" a aplicação do art. 219, § 5° do CPC no processo trabalhista, sendo que "as argumentações em sentido contrário, na verdade, estão a discordar do próprio Direito objetivo ora em vigor, situando-se assim, com a devida vênia, no plano da crítica ao Direito legislado" [16].

No entanto, é de se registrar que o tema prescricional, nos estritos limites da esfera laboral, não parece ser tão simples. Ocorre que sob diversa perspectiva, Manoel Carlos Toledo Filho observa que no âmbito do processo laboral, a decretação da prescrição virá sempre em prol do empregador; será uma vantagem diretamente vinculada à parte mais forte do conflito de interesses submetido à apreciação do órgão jurisdicional – logo, parece claro que seu reconhecimento de ofício pelo magistrado irá colidir, de forma impostergável, com o princípio de proteção [17].

Justamente ao encontro desse último entendimento, vem defendendo mais recentemente o TST que não se mostra compatível com o processo do trabalho a nova regra processual inserida no art. 219, § 5º, do CPC, que determina a aplicação da prescrição, de ofício, em face da natureza alimentar dos créditos trabalhistas: "Há argumentos contrários à compatibilidade do novo dispositivo com a ordem justrabalhista (arts. 8º. e 769 da CLT). É que, ao determinar a atuação judicial em franco desfavor dos direitos sociais laborativos, a novel regra civilista entraria em choque com vários princípios constitucionais, como da valorização do trabalho e do emprego, da norma mais favorável e da submissão da propriedade à sua função socioambiental, além do próprio princípio da proteção" [18].

Portanto, embora ainda a questão não esteja devidamente cristalizada na justiça do trabalho, há evidente tendência atual de desconsideração, nesse especializado procedimento, da inovação legal inserida no art. 219, § 5º, do CPC – sendo sedimentado pelo TST que a prescrição continua sendo matéria de defesa do réu, sujeita ao regime preclusivo, não podendo as Superiores Instâncias dela tratar, caso a questão não tenha sido invocada pelo réu ou já tenha sido solucionada em decisão da origem não mais passível de recurso.


III-O novel regramento da aplicação processual da prescrição: a prescrição decretável de ofício no atual processo civil

5. O atual posicionamento no direito processual pátrio (a partir da citada Lei n° 11.280/2006) é de que a prescrição pode ser reconhecida de ofício, a qualquer tempo, desinteressando se houve expressa manifestação do réu a respeito. Se no campo trabalhista, há ainda grandes dúvidas sobre qual o posicionamento a ser seguido – destacando-se contemporaneamente a tese da manutenção da regra tradicional de aplicação da prescrição –, no campo do processo civil ao menos, há disposição legal (novel) a respeito e vem sendo seguida.

Assim, tem-se que com a nova disposição legal, aumenta-se o poder de comando/mobilidade judicial, ao passo que o magistrado terá direito de reapreciar a questão prescricional, vindo a declarar a pretensão em juízo extinta com base no art. 269, IV, do CPC, mesmo que já tenha se manifestado anteriormente no processo, v.g. no saneador, pela inexistência da prescrição parcial ou total. O mesmo se dará para o Tribunal, em que a qualquer tempo, antes de eventual exame de recurso sobre o mérito, poderá o magistrado revisor, ex officio, vir a enfrentar a prejudicial de prescrição – extinguindo o feito, caso vislumbre prescrição do fundo de direito.

Ocorre que se admitirmos que a prescrição é matéria de ordem pública, reconhecível de ofício, forçoso também se concluir que pode ser invocada mesmo que já tenha sido proferida decisão contrária nos próprios autos. Equipara-se, pois, a outras matérias não sujeitas ao regime da preclusão, como as condições da ação/pressupostos processuais, juízo de admissibilidade recursal, nulidades, matéria probatória e erros materiais [19].

E o posicionamento atual do Superior Tribunal de Justiça, levando-se como parâmetro o paradigmático Resp n° 836.083/RS (Rel. Min. José Delgado, 1ª Turma, j. em 03/08/2006), inclina-se exatamente para o sentido de reconhecer a prescrição como típica matéria de ordem pública no processo civil. [20]

São, no entanto, inúmeras as críticas de boa parte da doutrina pátria em relação à atual redação do § 5° do art. 219 CPC. Em linhas gerais, reconhece-se, ab initio, que "no afã de cumprir o preceito da efetividade, o legislador subverteu o sistema, dando-lhe inadequado tratamento". [21]

Mais especificamente, o descontentamento com a inovação processual recai sobre a viabilidade de o julgador, em matérias de direito patrimonial, vir a decretar a prescrição mesmo que a parte privilegiada (réu) desejasse ter apreciado o mérito da causa – o que o levou a não ter ventilado a matéria prescricional nas oportunidades processuais anteriores (especialmente em matéria preliminar contestacional). Sim, pois haveria um substrato ético (questão moral) que indicaria para o interesse do réu de ver analisado o mérito da causa pelo Poder Judiciário, a fim de ter publicada uma sentença de improcedência (art. 269, I, versus art. 269, IV, CPC).

Daí por que abalizada doutrina, à luz de alguns precedentes do Superior Tribunal de Justiça, entende que a prescrição não deva ser decretada de ofício pelo magistrado sem que seja dada vista ao réu, a fim de colher eventual renúncia à prescrição [22]. A questão é que quando não se dá tal renúncia expressa, poderia o magistrado, de acordo com a disposição infraconstitucional, reconhecer a qualquer tempo a prescrição, o que inegavelmente distorce, mesmo que indiretamente, o conceito histórico do instituto.

Adroaldo Furtado Fabrício em instigante palestra proferida na Faculdade de Direito da UFGRS em 05/05/2006 alertou para esse ponto, bem como para a desestruturação histórica do instituto (moldada pela jurisprudência e doutrina) e incompatibilidade da malfadada novidade com as regras outras do código civilista ainda vigentes (v.g. arts. 191 e 882), as quais justamente mantêm a tradição da prescrição como matéria típica de defesa que pode interessar exclusivamente à parte (ré) invocá-la ou não – fato esse que indicaria para uma exegese restritiva do § 5° do art. 219 CPC. [23]

Do mesmo modo, estabelecendo uma linha nítida de diferenciação da prescrição perante a decadência (matéria reconhecidamente de ordem pública), Arruda Alvim em ensaio específico sobre as alterações incrementadas pela Lei n° 11.280/2006 comenta: "em relação à modificação do § 5° do art. 219, parece não haver um genuíno interesse público que explique porque a prescrição deveria deixar de ser objeto de exceção. O interessado na prescrição pode não desejar que essa seja decretada, e, esse desejo deve ser respeitado pelo Direito. Diferentemente se passa com a decadência, reconhecidamente matéria de ordem pública, seja quanto à sua existência, seja quanto à atividade oficiosa do seu reconhecimento". [24]

Também criticando a inovação legislativa, Alexandre Freitas Câmara destaca que outros ordenamentos jurídicos persistem vedando categoricamente o reconhecimento ex officio da prescrição. [25]

Voltando-se novamente os olhos a nossa estrutura processual, em outra interessante palestra proferida por Adroaldo Furtado Fabrício, desta vez em 04/07/2006, [26] acresceu-se que a decretação da prescrição ex officio pelo julgador, especialmente antes de ser estabelecido o contraditório (o que é devidamente permitido pela novel norma), poderia ser uma atitude temerária e contrária à própria efetividade na solução do litígio, à medida que poderiam existir causas suspensivas/extintivas da prescrição ainda não bem delineadas na demanda, diante da forma como proposta na exordial a conjectura fático-jurídica e em face da (in)existência de documentos acostados – em momento procedimental, é bom frisar, em que ainda ausente o pólo passivo.

Tal raciocínio, aliás, bem se coaduna com as ideias já expostas no sentido de que mesmo em matérias de ordem pública, invocáveis de ofício, importante que seja estabelecido o prévio contraditório entre os litigantes, não só para serem prestados melhores esclarecimentos quanto à matéria a ser objeto de imediata ponderação, mas também para se evitar que sejam as partes surpreendidas por decisão relevante envolvendo tema até então não debatido.

Este aspecto, ainda não devidamente consolidado no atual estágio do processo civil brasileiro, está, ao menos, contemplado no Projeto n° 166/2010 (para um novo Código de Processo Civil) [27], existindo previsão no art. 469, parágrafo único de que a prescrição e a decadência não serão decretadas sem que antes seja dada às partes oportunidade de se manifestar. Tal sistemática, conforme o Projeto, está inserida também nos Princípios e Garantias Fundamentais a serem seguidas, já que de acordo com o propedêutico art. 10 "o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício" [28].

De qualquer forma, por ora, em face da atual disciplina do nosso diploma processual civil e do posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (como no paradigmático decisum supraventilado), tem-se que a prescrição passa a se aproximar ainda mais do instituto da decadência, corporificando-se ambas como matérias prejudiciais do mérito, contempladas no art. 269, IV, do CPC (objeto, portanto, de sentença definitiva), e que podem ser reconhecíveis de ofício pelo diretor do processo a qualquer tempo [29].

A sedimentação dessa concepção, ao que parece, ainda está longe de se suceder (ainda mais pelas incompatibilidades evidentes entre a natureza do instituto da prescrição, como posto na codificação civilista, e sua visão como matéria de ordem pública, na forma como engendrada pela novel alteração processual), sendo vital para tanto as posições reiteradas da jurisprudência, especialmente do STJ, que venham a transitar em julgado num futuro próximo; bem como a redação final dos artigos que circundam o tema no Projeto 166/2010 para um Novo Código de Processo Civil, já aprovado no Senado Federal e atualmente em tramitação na Câmara Federal.


IV- Limites na aplicação oficiosa do instituto da prescrição: a aplicação do efeito translativo dos recursos, a questão do prequestionamento e a vedação à reformatio in peius [30]

6. Se a prescrição, como matéria de ordem pública a partir da Lei n° 11.280/2006, pode ser invocada a qualquer tempo pelo magistrado, no processo civil, desde que conserve aquele a jurisdição, pergunta-se se tal sistemática é válida mesmo nas instâncias extraordinárias (STF, STJ), em face da alegação de ausência do necessário prequestionamento – já que a matéria prejudicial do mérito poderia até então não ter sido diretamente discutida no processo pelas partes e pelo próprio Estado-juiz.

Há quem entenda, como José Rogério Cruz e Tucci, que se deve interpretar que o juiz conhecerá de ofício das condições e dos pressupostos processuais (e de qualquer outra relevante matéria de ordem pública, como a prescrição) em qualquer tempo, mas tão só nas instâncias ordinárias, ou seja, em primeiro ou segundo grau de jurisdição. [31]

Não nos parece, todavia, que essa seja a melhor solução.

Ocorre que o prequestionamento é exigência tão somente para efeitos de admissibilidade da irresignação excepcional (recurso especial ou extraordinário), em nada, portanto, interferindo na análise de todo o tema vergastado, a ser realizada após a formalidade relativa ao conhecimento do recurso. Assim, tendo sido admitido o recurso excepcional, em face do prequestiomanento da matéria objeto do recurso (superado esse primeiro estágio bem definido), nada impede que ao proferir decisão meritória (segundo estágio) o Ministro relator entenda pela existência de prescrição da pretensão, e venha a partir daí a extinguir o feito com base no art. 269, IV do CPC, reformando o julgado lavrado pelo Tribunal a quo em favor da parte recorrente (efeito translativo decorrente do art. 516 c/c 515, caput, ambos do CPC).

Nesse sentir, Amir Sarti destaca que não se pode conceber que justamente o Tribunal encarregado de zelar pela integridade do ordenamento jurídico federal se veja impedido de aplicar o direito incidente no caso concreto, por omissão ou erro das instâncias inferiores. [32]

E mesmo Teresa Arruda Alvim Wambier, que defende a tese contrária no sentido de que "como regra geral, se o recurso tiver passado pelo juízo de admissibilidade, nem por isso as portas estão abertas para o Tribunal examinar a matéria devolvida em sua profundidade", [33] reconhece que há decisões do STJ que autorizam, após a admissibilidade, ser reconhecidos vícios relativos a matérias de ordem pública que não teriam sido devolvidos propriamente, porque não impugnados, mas que poderiam ser conhecidos de ofício.

Rodrigo da Cunha Lima Freire, da mesma forma ao encontro do nosso posicionamento, critica especificamente passagem de Nelson Nery em que afirma se operar o efeito translativo tão somente nos recursos ordinários (apelação, agravo, embargos infringentes, embargos de declaração e recurso ordinário constitucional), com exclusão dos recursos excepcionais (recurso extraordinário, recurso especial e embargos de divergência). Enfatiza, com acerto, que: "(...) as questões de ordem pública, sobre as quais não existe preclusão, podem ser apreciadas pelo tribunal, desde que o recurso – qualquer recurso – seja conhecido, preenchendo todos os requisitos para a sua admissibilidade (cabimento, interesse recursal, legitimidade recursal, tempestividade, regularidade formal, preparo e inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer)". [34]

Portanto, a decretação ex officio da prescrição pelo STJ ou STF seria possível no segundo estágio de atuação dessas altas Cortes, superado o momento procedimental de admissibilidade do recurso, razão pela qual não há de se falar em vedação à atuação oficiosa, reconhecedora da prescrição na "terceira instância", em face da exigência do prequestionamento.

Aliás, tal raciocínio aqui deduzido vale, da mesma forma, para se afastar veementemente qualquer afirmação no sentido de que o Superior Tribunal de Justiça por ser guardião das normas infraconstitucionais não pode proferir julgamento pela análise e ponderação das normas (regras e princípios) contidas na Lei Maior: o óbice existente à matéria constitucional é tão só para efeitos de admissibilidade do recurso, sendo certo que uma vez conhecida a irresignação, por violação de lei federal, deve o STJ adentrar a fundo no mérito da questão, valendo-se para solver o tema de todo o arcabouço jurídico existente – inclusive as disposições constitucionais. Nesse contexto, conforme se extrai de estudo de Athos Gusmão Carneiro, [35] deve ser interpretada a Súmula n° 456 do Pretório Excelso a prever que "o Supremo Tribunal Federal, conhecendo do recurso extraordinário, julgará a causa, aplicando o direito à espécie" – sendo tal preceito constante igualmente no regimento interno do STJ, art. 257. [36]

7. Se, como visto, mesmo em sede recursal excepcional pode o julgador, superada a fase de admissibilidade, vir a enfrentar de ofício as matérias preliminares/prejudiciais (pressupostos processuais e condições da ação/prescrição, v.g.) a fim de reformar a decisão (de mérito) do Tribunal a quo a favor da parte recorrente (efeito translativo decorrente do art. 516 c/c 515, caput, ambos do CPC), indaga-se, por fim, se teria o julgador a mesma liberdade no exame dessas matérias não preclusivas (de ordem pública) se a decisão que daí adviria viesse, no outro extremo, a prejudicar a única parte recorrente – acarretando verdadeira reformatio in peius, diante de preclusão do ato de recorrer produzido perante a parte não objeto de irresignação recursal.

Pensa-se no seguinte exemplo: a parte autora sai-se vitoriosa, em sede de apelação, reformando a sentença de mérito do primeiro grau, com o reconhecimento de ser devido pelo réu determinada cifra a título de danos morais. Tão só o demandante recorre da decisão ao STJ alegando, em recurso especial, ser irrisória a verba arbitrada, objetivando a consequente majoração razoável da indenização. Superada a fase de admissibilidade, poderia a mais alta Corte infraconstitucional, vir a reconhecer a prescrição, extinguindo a partir daí a demanda com julgamento de mérito em desfavor da única parte que recorreu?

Corrente defendida por Alcides de Mendonça Lima [37] e Nelson Nery Jr., [38]posta-se no sentido de que o Tribunal (seja o Superior Tribunal de Justiça, em recursos excepcionais; seja o Tribunal de Justiça, em sede de recursos ordinários) poderá conhecer de ofício, mesmo que em desfavor do único recorrente, questões de ordem pública.

Também é esse o entendimento acolhido por Maria Lucia L. C. Medeiros que, em estudo do RE n° 100.034/PE, acaba por adotar posição contrária ao julgado: "Sob tais questões (as de ordem pública), alegáveis pelas partes a qualquer momento, não há preclusão pro judicato, isto é, pode o Juiz singular sobre elas novamente se manifestar mesmo que já tenha se pronunciado anteriormente e mais, pode o Tribunal delas conhecer, reformando a decisão de primeira instância, mesmo que não tenha havido provocação expressa das partes". [39]

No mesmo caminho, o magistério de Teresa Arruda Alvim Wambier: "Por se tratar de matéria de ordem pública, não há que se falar em reformatio in pejus. Assim, nada obsta que a parte que obteve oitenta, dos cem que pleiteou, ao embargar infringentemente com o escopo de fazer prevalecer o voto vencido que lhe concedia os cem, tenha como resultado do seu recurso a extinção do processo por ser considerada parte ilegítima, por haver coisa julgada, litispendência, enfim, por falta de quaisquer dos pressupostos genéricos de admissibilidade de apreciação do mérito". [40]

Diversamente da tese supraexternada, temos que o respeito à preclusão (de questão final ou recursal, e o consequente trânsito em julgado da matéria irrecorrida), bem como ao princípio da reformatio in peius – vinculado ao princípio da demanda, impedem seja reconhecível de ofício matéria preliminar sem recurso da parte que se poderia beneficiar desta medida judicial. Trata-se, no nosso entender, de limite intransponível ao efeito translativo do recurso, a inviabilizar a instauração de completa desordem e insegurança no processo.

A solução parece ter sido bem captada por Vicente Greco Filho: "se é certo que há decisões irrecorríveis e que, portanto, não precluem no curso do processo, bem como decisões que, por tratarem de ordem pública, podem ser sempre reexaminadas enquanto não transitar em julgado a sentença que provoca a preclusão máxima, cabe ao recurso (da parte a ser beneficiada) manter a decisão em condições de ser modificada". [41]

No caso prático externado linhas acima, seguindo-se o nosso entendimento, o STJ não poderia de ofício, mesmo sendo requerida tal medida em peça avulsa encaminhada pelo réu diretamente ao Ministro-Relator, julgar outra coisa senão o pedido do autor de majoração da verba indenizatória a título de dano moral. Essa é a corrente sustentada, dentre outros, por Barbosa Moreira, Dinamarco e Bedaque, ao deixarem claro que a parte não abrangida pela extensão do efeito devolutivo do recurso do autor, ausente irresignação do réu, estaria imune ao julgamento a ser realizado pela superior instância – parte inimpugnada essa do julgamento que passaria a ser coberta imediatamente pela res judicata, e só com ação rescisória poderia ser atingida. [42]

Atento às lições dos ilustres juristas acima anunciados, Maurício Giannico bem finaliza: "O capítulo da sentença não impugnado transitada em julgado imediatamente, independente da continuidade do processo em relação à matéria efetivamente impugnada em sede de apelação. Embora a apelação seja por regra recebida do duplo efeito, nem por isso o efeito suspensivo se estende por toda a decisão, no caso de sua impugnação parcial. Portanto, a parte autônoma da decisão de mérito não recorrida transita materialmente em julgado, podendo ser objeto de execução definitiva". [43]

Em linhas jurisprudenciais, percebe-se que o Superior Tribunal de Justiça adota a posição mais conservadora ora defendida – como, v.g., no Resp n° 172263/SP (2ª Seção, j. em 09/06/1999), de que participaram acompanhando o Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, os Ministros Carlos Alberto Menezes Direito, Nilson Naves, Eduardo Ribeiro, Waldemar Zveiter e César Asfor Rocha, restando como voto vencido o do Min. Ari Pargendler. [44] No entanto, no Tribunal de Justiça gaúcho, a posição contrária a aqui sustentada parece ser a majoritária, conforme encaminhamento adotado no julgamento dos Embargos de Declaração n° 70011098332, pela 15ª Câmara Cível (Des. Rel. Ângelo Maraninchi Giannakos, j. em 06/04/2005), no qual se faz menção a arestos da 6ª e da 10ª Câmaras Cíveis do mesmo Tribunal [45] – se bem que o 3° Grupo Cível, em mais recente julgado de 05/10/2007, por maioria, entendeu diversamente, em especial observância ao princípio da reformatio in peius. [46]

8. Portanto, admitindo o enquadramento proposto ao tema, no processo civil, a partir da publicação da Lei n° 11.280/2006, alterando o § 5° do art. 219 do Código Buzaid,há de se cogitar da viabilidade do reexame da questão (de ordem pública) mesmo nas instâncias excepcionais – antes do exame do mérito no recurso especial e extraordinário, superado o momento de admissibilidade recursal (em que exigido o prequestionamento); mas há de se defender, s.m.j., a inviabilidade de reconhecimento da prescrição em desfavor da única parte que eventualmente recorra às Superiores Instâncias, já que há também limites para aplicação do efeito translativo do recurso – impedindo-se que haja, como nesse último problema discutido, reconhecimento ex officio da prejudicial de mérito quando em confronto com o princípio da coisa julgada e da reformatio in peius.


VI_ Notas sobre a incidência da prescrição na execução do julgado: a prescrição intercorrente na fase de cumprimento de sentença

9. Um derradeiro tópico, a respeito da prescrição, que merece precisas linhas gira em torno da sua atuação na fase de cumprimento de sentença. Não obstante inexistir previsão legal categórica/explícita a respeito, indaga-se se podemos falar em "prescrição intercorrente" em razão da demora do credor no processamento da fase processual (pós trânsito em julgado) que visa à satisfação do crédito [47].

A espelho da fase de conhecimento, tem-se que cabe ao procurador do exeqüente determinar o impulso da demanda em determinado lapso de tempo, sob pena de reconhecimento do instituto da prescrição – aqui denominada de "prescrição intercorrente", por se dar em meio à tramitação processual [48] (e em razão de inércia do próprio titular da pretensão [49]). Mesmo que haja para o título executivo judicial a lógica do sincretismo processual, já que não mais existentes processos autônomos de conhecimento e de execução (após as reformas processuais executivas, principalmente a partir da Lei n° 11.232/2005 [50]), entendemos que permanece sólido o verbete n° 150 do Supremo Tribunal Federal, a explicitar que "prescreve a execução no mesmo prazo da prescrição da ação".

Assim transitada em julgado a demanda judicial e não cumprido o comando pelo réu no prazo de quinze dias da sua intimação na origem, conforme prescreve o art. 475-J, caput do CPC, inicia o prazo para o exeqüente dar impulso à fase de satisfação do crédito, sob pena de reconhecimento da prescrição intercorrente. Tanto é verdadeira a assertiva que o art. 475-L,VI prevê que a impugnação ao cumprimento de sentença, oposta pelo executado, trate de tema prescricional, desde que esta causa extintiva da obrigação seja superveniente à sentença (transitada em julgado) [51]