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Observatório jurídico John Rawls: localizando o ponto de convergência do Direito com a Política, a Moral e a Economia na Lei de Arbitragem brasileira

Observatório jurídico John Rawls: localizando o ponto de convergência do Direito com a Política, a Moral e a Economia na Lei de Arbitragem brasileira

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A tecnologia civil da arbitragem ainda é pouco utilizada pela população brasileira, refletindo fatores negativos diversos, tais como ausência de informação pública; persistência de uma cultura jurídica positivista; desmotivação moral; e custos elevados para o cidadão mais pobre.

Resumo: o artigo desenvolve o conceito “véu da ignorância” na lei de arbitragem brasileira, procurando mostrar a aplicabilidade deste conceito na ordem jurídica quando especificamente os cidadãos pretendem fazer justiça privada usando o paradigma da cooperação social. Com essa perspectiva de trabalho, aproveitamos alguns fragmentos do livro “Uma teoria da justiça”, do autor John Rawls, contando criteriosamente  com a ajuda de uma metodologia inventarial do conhecimento, formada pelas categorias ontológica, metodológica, axiológica, teórica, pragmática e contextual das ideias, cujo resultado final possibilita visualizar a estrutura e a prática jurídica do conceito “véu da ignorância” na democracia contemporânea.

Palavras-chave: justiça; arbitragem; “véu da ignorância”.


INTRODUÇÃO

Na teoria da justiça, elaborada por John Rawls, a cooperação civil entre os participantes pode ocorrer no ambiente conflitivo; entretanto, para isso acontecer de forma equilibrada, são necessários alguns incentivos ou restrições legais, que estimulem publicamente os indivíduos a maximizarem a participação democrática através dos princípios constitucionais baseados na igualdade, liberdade, dignidade e eficiência econômica.

No contexto da sociedade moderna bem ordenada, imaginada por John Rawls, há diferenças e desigualdades intrínsecas. As diferenças, segundo ele, fazem parte da sociedade não estatal ou civil; têm a ver com o fato de que as pessoas possuem interesses; convicções; preferências; tipos biológicos, culturais e intelectuais que são discrepantes, constituindo na prática a ideia daquilo que classicamente denominamos de pluralismo social. Por outro lado, as desigualdades econômicas têm a ver diretamente com o que acontece no Mercado; ou seja, na estrutura econômica existem homens inseridos em regiões sociais diferentes que terão diferentes expectativas de vida e de sucesso material. Conforme ressaltou John Rawls neste sentido, é no Mercado que as desigualdades são marcadas especialmente de forma profunda (apud KRISCHKE, 1993, p.158).

Considerando essa realidade social, onde coexistem o conceito da igualdade postulado pelo Estado Democrático de Direito; o conceito da desigualdade do Mercado; e o conceito da diferença postulado pela Sociedade civil, o maior desafio para John Rawls é exatamente formalizar um modelo de contrato alternativo que seja capaz de permitir aos interessados resolverem seus conflitos adotando a cooperação como princípio social básico inserido no ambiente democrático, pluralista e desigual (ibid., p. 158). Para desenhar esse modelo contratual inovador em relação ao contratualismo moderno, e também revolucionário em relação às teorias do Utilitarismo e Intuicionismo, John Rawls desenvolveu uma releitura crítica das ideias de Kant, Locke e Rousseau. Nessa direção, ele não imaginou como os indivíduos iriam fundar hipoteticamente o Estado civil, como fizeram os pioneiros contratualistas, mas pensou agora em discutir como as pessoas poderiam reutilizar o Estado Democrático de Direito - já instituído - no momento crucial em que elas estejam tentando realizar a justiça com o máximo de respeito e cidadania.

Nesse novo tipo de contrato social, entretanto, as pessoas precisam ser livres, racionais e devem se reunir, espontaneamente, pelos mesmos interesses morais.

Os princípios básicos devem regular nesse contexto os futuros entendimentos e especificar os gêneros de cooperação social que poderão ser incluídos na associação; bem como determinar as formas de autogoverno dentro da Lei.

Nesse modelo de contrato civil, que utiliza a equidade política, as pessoas devem decidir, antecipadamente, como serão resolvidos seus problemas contenciosos e suas carências públicas, bem como a forma como utilizarão a “carta fundamental” da sociedade.

A escolha racional dos princípios constitucionais em favor de uma justiça humanizada implica o reconhecimento mútuo de que, independentemente do que acontecer no futuro, todos os participantes querem ser tratados com igualdade e respeito. Na verdade, todos os cidadãos desejam a igualdade de oportunidade para manifestarem suas opiniões, interesses e preferências. Nesse aspecto, John Rawls afirmou que: “a partir do momento em que todos se posicionam da mesma forma, ninguém seria capaz de fazer uma escolha que favoreça a sua própria posição particular e os princípios da justiça seriam o resultado de um acordo ou barganha equitativa” (ibid., p. 158).

Nota-se nesse tipo de arranjo contratual que as pessoas morais vão comportar-se como seres racionais e escolherão princípios e não regras, inicialmente. Pensando nos fins, ou seja, na realização da justiça, igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana, os indivíduos deverão agir voluntariamente; entretanto, dependerão nesse caso do consentimento de todos os participantes ligados ao contrato. Nesse contexto, as partes não são exclusivamente criaturas egoístas, nem estarão estimuladas institucionalmente para tal fim, mas por outro lado, devemos ressaltar, não serão jamais pessoas altruístas. Ou seja, os cidadãos não se reunem contratualmente nesse tipo de contrato porque apresentam interesses pela riqueza, posição ou prestígio material. Também os cidadãos não possuem interesse maior em conhecer o conteúdo ideológico do outro participante (podem ser inclusive dois religiosos de duas religiões diferentes celebrando o mesmo acordo).

A “posição original” do contrato (semelhante ao estado de natureza dos contratualistas modernos) será identificada por meio de regras que serão adotadas coletivamente (ibid., p. 159), surgindo por extensão uma identidade moral entre os participantes que reivindicam bens primários idênticos (no mínimo, liberdade, justiça, igualdade, respeito, autoestima, responsabilidade e oportunidade de participação). Na posição original e também durante o funcionamento efetivo da justiça como “equidade” política, os indivíduos serão criaturas interessadas e ontologicamente pessoas híbridas, ou seja, morais e racionais; dispostas então a participarem democraticamente na busca da solução de conflitos. Nessa filosofia contratual, tem ampla aceitação o fato de que será impossível ajustar-se os princípios às circunstâncias peculiares de cada caso particular (lembre-se que o contrato é inicialmente oficializado entre as partes falando do futuro e não do presente). Além disso, não importa saber se uma das partes é rica e a outra é pobre. O que se valoriza nesse tipo de contrato é exatamente a concordância moral mútua, ou seja, os cidadãos participantes desejam ser tratados com o máximo de dignidade no procedimento alternativo da justiça. Aqui, o desconhecimento contratual que se tem não é propriamente sobre a realidade econômica de cada um, mas a respeito da posição institucional que se ocupará no futuro. Não se sabe, exatamente, se a pessoa será credora ou devedora, vítima ou agressora. Independentemente, portanto, do que ocorrer no futuro, os contratantes esperam ser tratados com dignidade na resolução de um eventual conflito ou escassez de bens públicos.

A unidade desse contrato social alternativo procura equilibrar as desigualdades econômicas com os princípios da diferença e da igualdade constitucional do Estado; entretanto, para isso acontecer positivamente, as liberdades básicas do cidadão devem ser garantidas; como exemplo: a liberdade política; de associação; de pensamento; a liberdade de não ser preso arbitrariamente; além da garantia dos direitos fundamentais à vida e propriedade. Todas essas liberdades civis são fundamentais e precisam ser garantidas pelo Estado durante a interação dos indivíduos.

Para desenhar a estrutura do contrato da equidade, Rawls recuperou basicamente a filosofia kantiana e juntou o que foi separado pelo contratualismo moderno. Ou seja, conciliou a Moral com o Direito repetindo um procedimento típico dos neocontratualistas em geral (por exemplo, James Buchanan). Indo nessa direção, Rawls notou que a filosofia de Kant focalizou a decisão racional do ser moral considerando que o homem é um ser livre e igual no âmbito da moralidade. Agindo com “autonomia”, portanto, o indivíduo observaria princípios que no nível mais alto de abstração garantiriam a dignidade da pessoa humana, ou então nas palavras originais de Kant, da humanidade. No Direito, por outro lado, segundo Kant, o conceito fundamental a ser discutido é a “heteronomia”. Nesse caso, a pessoa agiria não por força da espontaneidade, mas sim pela obrigatoriedade externa das instituições públicas estatais.

Semelhante ao que acontece no império da moralidade, o modelo proposto por John Rawls considera que “os princípios sobre os quais o homem age não são adotados por causa de sua posição social ou dons naturais, ou em vista da particular espécie de sociedade na qual vive ou as coisas específicas às quais deseja” (ibid., p. 179). Além disso, John Rawls salientou que os imperativos categóricos kantianos são princípios de justiça, pois cada um deles é um princípio de conduta que se aplica a uma pessoa em virtude de sua natureza como um ente racional, livre e igual na sociedade.

A “posição original” definida por John Rawls é uma interpretação sintetizadora da autonomia com a heteronomia kantiana. A justiça como equidade é uma justiça humana, assim definiu o autor. Pressupõe nesse sentido que uma determinada pessoa vai reconhecer a presença do outro no mundo, com respeito e tolerância. Entretanto, os princípios adotados pensando no “eu” do outro são todos eles públicos dentro de uma determinada comunidade ética. Concretamente, a presença moral do “eu” acontece dentro da Lei ou do Estado Democrático de Direito. Por isso mesmo, é importante relembrar que a comunidade moral não está fora da ordem pública, muito menos é uma conveniência puramente individualista ou arbitrária. Em outras palavras, os princípios de justiça aplicam-se à estrutura básica da sociedade e regulam a maneira como as instituições deverão ser combinadas num determinado esquema jurídico válido. Nesse contexto, o sistema contratual tem de ser esboçado de forma que a resultante distribuição seja “justa”, mesmo que as opiniões dos contratantes se alterem no futuro.


2 Críticas negativas ao modelo de John Rawls

Do ponto de vista filosófico, o ilustre professor Cícero Araujo (2000) observou que a teoria de John Rawls traz uma nova agenda de questões para a tradição do contratualismo como um todo.  Para se ter uma ideia transparente por onde passa a contribuição de John Rawls, Araujo (op. cit.) destacou, por exemplo, que:

·  Rawls enfatizou a distinção entre legitimidade e justiça. Segundo ele, nem todos os atos legítimos de governo são atos justos; portanto, questionar a justiça das decisões não implica, necessariamente, questionar sua legitimidade.

· A partir de certo limiar, as decisões injustas contaminam a legitimidade dos atos de governo. Isto é, a partir deste limiar, a democracia e a justiça, que são, abstratamente falando, conceitos distintos, passam a estabelecer uma relação de feedback; passam a determinar-se mutuamente. Essa é a região em que as questões políticas reencontram-se com as questões éticas ou morais.

·Os procedimentos políticos não são julgados apenas pela sua correção formal, mas tanto pelos valores morais que os embebem quanto por seus resultados. A ideia do consentimento voluntário continua, certamente, a ser um elemento importante. Porém, mais importante do que a sanção da vontade é o tema da fundamentação de sua moralidade.

·  No novo contratualismo liberal as questões éticas ou morais são altamente complexas e problemáticas. Há uma profunda desconfiança do pressuposto de que as ideias morais podem ser intuídas diretamente. Daí que o contrato, o “artifício de representação”, tenha de ser deslocado do nível da constituição dos governos para o nível da elaboração das proposições morais. Elas já não são mais “axiomáticas”, mas têm de ser submetidas a exame crítico, comparadas, balanceadas e continuamente revisadas. Essa tomada de consciência da complexidade e do caráter movediço das questões morais está muito bem expressa na ideia do “equilíbrio reflexivo” de Rawls.

·Numa teoria normativa que trabalha com critérios ideais, todo processo decisório real é um procedimento imperfeito. Não há como garantir com certeza que seus resultados serão justos, ainda que houvesse total acordo a respeito das características gerais de uma decisão justa. É só enquanto um processo de argumentação racional que a justiça é um “procedimento puro”. Ou seja, se o artifício de representação com o qual se organiza o argumento é corretamente construído, então o que sai do  - no caso, os princípios de justiça - também será correto.

· O teste de validação dos princípios de justiça não é se mais ou menos pessoas votam nesses princípios, mas sim os critérios que nos fazem distinguir um bom e um mau argumento. Enfim, os critérios usuais do debate racional. É bastante compreensível, portanto, que o novo liberalismo não se satisfaça com o consentimento voluntário que sanciona um governo legítimo.

· Por isso, não só os atos dos governos eleitos, mas dos próprios cidadãos-eleitores ao consenti-los, passam agora a estarem fortemente vinculados, de uma forma que jamais estiveram no liberalismo clássico, aos seus conteúdos substantivos. Eis também por que Rawls vai lembrar, em seu debate com Habermas, que em todo procedimento político vale o lema “garbage in, garbage out”: se no processo decisório democrático algo ruim entra no início, inevitavelmente algo ruim também sairá dele, como resultado.

· O modo como os procedimentos políticos serão julgados, com base nesse método, vai variar de autor para autor. De qualquer forma, Estados democráticos podem agora ser considerados mais ou menos justos, pouco ou excessivamente igualitários; dependendo, portanto, do modo como as questões morais de fundo são articuladas e justificadas.

Do ponto de vista metodológico de acordo com outro analista, Silveira (2007), a interpretação da teoria da justiça como equidade responde às principais críticas levantadas pela interpretação comunitarista, possibilitando pensar aspectos concordantes entre os liberais e os comunitaristas visando a uma concepção de justiça que possa integrar o universalismo com o particularismo. De acordo esse autor, não há na teoria da justiça como equidade uma concepção abstrata de pessoa em função da utilização de uma concepção política de indivíduo que, por um lado, é considerado livre, igual, e racional; e, por outro lado, é considerado membro de uma sociedade da qual está inserido. Em razão disso, Silveira considerou que “não é defensável a crítica de uma concepção individualista e atomizada de justiça política em Rawls, em que não existiria uma teoria da sociedade, existindo apenas uma atomização do social”. Silveira ressaltou ainda que não é apropriado apontar um “subjetivismo ético liberal” na teoria de John Rawls, em que teríamos um Estado neutro que garantiria somente a liberdade de expressão, em função de os princípios de justiça serem utilizados como parte de uma doutrina da economia política, na qual se destaca a necessidade de efetivação da justiça com a finalidade de combater as desigualdades sociais, econômicas e políticas (ibid.). Para esse ilustre analista, a teoria de Rawls “não dista consideravelmente de uma ética comunitarista, em razão de não ser verificada uma neutralidade do Estado em relação à esfera pública, em que se identifica uma inserção de substancialidade no modelo procedimental e deontológico, no qual justo e bem são evidenciados como complementares”. Observando essas últimas considerações, concluímos, oportunamente, que a teoria de John Rawls desenvolve um sistema epistemológico intermediário ou sintético entre o individualismo e o coletivismo. Nas palavras do próprio analista Silveira, essa fronteira ou área de convergência pode ser encarada da seguinte maneira:

Os cidadãos estão envolvidos na cooperação social, escolhendo o pertencimento a uma comunidade moral e isso representa compreender as pessoas como livres e iguais do ponto de vista normativo, isto é, com duas faculdades morais: faculdade de ter um senso de justiça, que é a capacidade de compreender a aplicar os princípios de justiça que determinam os termos equitativos da cooperação e agir a partir deles e a faculdade de ter uma concepção de bem, que é a capacidade de ter, revisar e buscar alcançar uma concepção de bem de modo racional.                

Do ponto de vista teórico, Almeida (2006) destacou, por sua vez, que na teoria da justiça de John Rawls existem motivações para os indivíduos de carne e osso, além de apresentar proposições puramente de natureza moral. A referida união entre liberdade individual e igualdade social faz-se presente, segundo esse autor, nos dois princípios de justiça de Rawls que foram escritos da seguinte forma:

·  Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais. Nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido.

·  As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, segundo, devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade.

Na concepção do filósofo John Rawls, esses dois princípios seriam aceitos numa posição original de igualdade em que ninguém conheceria sua situação familiar, financeira e mesmo pessoal, pois ignoraria também qualidades e talentos. A posição original, conforme interpretou Almeida (op. cit.), seria o status quo ideal para essa decisão, pois o “véu de ignorância” garantiria que homens racionais decidissem em situação politicamente equitativa que todos estariam em situação semelhante; e ninguém poderia, portanto, estipular princípios para favorecer sua condição particular. Desse modo, uma vez garantidas as liberdades individuais e, portanto, toleradas as diferentes concepções de vida, nesse contrato buscar-se-ia o máximo de igualdade possível por meio de arranjos institucionais.

Se simularmos juridicamente uma “posição original”, em que temos o conhecimento das circunstâncias sociais, seguramente perceberíamos, de acordo com Almeida, que nossas deliberações seriam influenciadas por nossas inclinações pessoais, mas isso, de acordo com o que escreveu John Rawls, não “afeta a afirmação de que, na posição original, as pessoas racionais assim caracterizadas tomariam certa decisão” (ALMEIDA, ibid.). Segundo a explicação de John Rawls, o homem seria em parte uma criatura egoísta, em parte altruísta (pois ele fala neste caso em amor à humanidade), mas nunca o homem deixaria de ser uma criatura racional. É uma concepção otimista, considerou o ilustre analista Almeida, pois além de considerar o altruísmo, Rawls pressupôs uma excessiva racionalidade dos homens e uma capacidade de mover-se segundo princípios que os próprios participantes formularam na posição original. Segundo Almeida (op. cit.), vale relembrar nesse aspecto que o princípio de diferença resulta, na posição original, de um acordo entre pessoas egoístas.

Na sociedade, o desenvolvimento prático do “véu da ignorância” decorre não da compaixão que os mais privilegiados têm sobre os desafortunados, mas deriva de uma disposição racional de viver conforme princípios hábeis, inclusive a serviço do altruísmo. Os princípios de justiça de John Rawls são cuidadosamente construídos e coincidem com os sentimentos virtuosos de benevolência, muito embora tenham derivado do egoísmo e ignorância predominantes na posição original. Quanto ao papel motivador desses princípios em relação a pessoas de carne e osso numa sociedade bem ordenada, é certo que a menor desigualdade social e uma situação mínima razoável mudam substancialmente as disposições racionais das pessoas. Porém, a natureza humana ainda permanece a mesma, contraditoriamente egoísta e benevolente. Só não sabemos com predomínio de qual dessas características. De qualquer forma, Almeida considerou em sua crítica que os princípios de justiça de Rawls são cuidadosamente construídos e coincidem com os sentimentos virtuosos de benevolência, muito embora tenham derivado do egoísmo e da ignorância predominantes na posição original. A racionalidade dessa teoria não esconde um sentimento moral particular de John Rawls e, portanto, defende uma determinada forma de vida mais tolerante e altruísta (ibid.).

De acordo com Borges (2009), por outro lado, o objetivo principal da teoria de John Rawls é exatamente reeditar a teoria contratualista que deveria então fazer frente aos reclamos da justiça distributiva, especificamente contra o Utilitarismo. O que Rawls procurou fazer foi algo inovador, conciliando a concepção individualista de ser humano, “cujo postulado é o de que o indivíduo precede a sociedade e possui identidade independente de qualquer vínculo comunitário, possuindo uma essência desenraizada [...]”; com a concepção de sociedade “que visa a um bem comum, a maior liberdade e a maior igualdade possíveis aos indivíduos”.

Rawls pretendeu fundar uma teoria que prescinde da formulação de um bem comum substancial, uma teoria teleológica, digamos assim, pondo-se à margem do utilitarismo e do jusnaturalismo clássico. De acordo com o analista Borges (op.cit.):

Em que pese a reconhecível coerência interna da teoria de Rawls, um de seus fundamentos põe por terra sua pretensão de validade. Assim é que a antropologia de rawlsiana [não assumida pelo autor, mas existente no interior de sua teoria] é incompatível com a tentativa de igualdade distributiva interna à teoria. Ao conceber o indivíduo isolado da comunidade e, a priori, indiferente a qualquer ideia de bem comum e contexto, Rawls não tem como fundamentar uma coesão ou integração de um grupo social qualquer, ou mesmo da sociedade como um todo.

Prosseguindo em sua análise, Borges (op. cit.) considerou que “se o indivíduo autointeressado precede a sociedade, não há como ser estabelecido um vínculo social capaz de assegurar uma distribuição equitativa de bens”. Para ele, a concepção normativista de sujeito, distinguindo o "eu" de seus fins, não é capaz de engendrar uma sociedade de sujeitos reais. A terceira parte da teoria de Rawls, por exemplo, a "teoria quase ideal", é, na verdade, segundo Borges (op. cit.) a parte mais ideal e fantasiosa do autor, pois pretendeu, pela concepção atomista de sujeito, que na sociedade real os indivíduos depois de tomarem consciência de sua situação real mantivessem idealmente os princípios de justiça acordados sob o “véu da ignorância”. Nessa direção, Borges avaliou criticamente que:

Resta patente que um "sujeito radicalmente desencarnado", que não compartilha com os outros uma forma de vida, não tem porque perseguir outro fim que não seu autointeresse. O atomismo só pode conduzi-nos ao relativismo de valores e este, por sua vez, é incompatível com a observância de princípios de justiça previamente estabelecidos. Tais princípios sufocariam a liberdade que Rawls pretende manter na medida em que implicam na adesão a valores compartilhados, valores universais (liberdade, auto-interesse, propriedade privada). Rawls sofre, assim, duas críticas certeiras. A primeira, dos comunitaristas como Charles Taylor [...], Michael Sandel [...] e Alasdair MacIntyre [...], que apontam a impossibilidade do atomismo jusnaturalista em garantir um vínculo social efetivo, vez que prescinde da noção de bem comum e, assim, não possui um efetivo critério de igualdade para pôr em prática. A segunda, ilustrada pelo "Liberalismo liberal" de Ronald Dworkin, que aponta a incompatibilidade do atomismo com o contratualismo jusnaturalista. Dworkin afirma que os indivíduos reais, já que autointeressados, não têm motivos para submeter sua vontade a um acordo hipotético, mas sim somente a um acordo atual, através de um construtivismo de princípios que se opõe à ontologia que Rawls parece parcialmente preservar. Para ser coerente com o postulado da liberdade, não se pode concebê-la com base num acordo hipotético, mas sim com base na construção atual de princípios, ou seja, não há sentido no fato de um sujeito "autointeressado" (a não ser que tenha uma concepção de bem comum compartilhada, o que não é o caso), respeitar princípios que o desfavoreçam tão-somente pelo motivo de que estes foram acordados numa situação hipotética. Indivíduos coerentes em seu autointeresse buscariam rediscutir esses princípios [...].

O desdobramento do atomismo em Rawls é uma concepção de sociedade que procura prescindir de uma noção substancial do bem comum. Nesse ponto, cabem duas perguntas imediatas, segundo Borges (op. cit.):

· Pode realmente a sociedade prescindir do bem comum?

· A justiça como imparcialidade pode garantir um critério justo de distribuição de bens negando qualquer doutrina moral abrangente?

Mais uma vez, segundo Borges (op. cit.), o fantasma do atomismo atormentou John Rawls e o levou à “inconsistência”, pois onde não existe bem comum não poderá “haver igualdade pela própria falta de critério de igualdade”. Por isso, o primeiro princípio da justiça, o da liberdade individual, tem prevalência sobre o segundo, o da igualdade de oportunidades, porque de fato o que a teoria consegue assegurar, sem que com isso caia em contradições, é a liberdade do indivíduo contra a sociedade, inserindo-se, assim, na tradição liberal individualista. De resto, este parece ser o objetivo de toda e qualquer teoria que pertença à tradição liberal: “garantir que o indivíduo não sofra a interferência do Estado, seu maior inimigo”. A antropologia rawlsiana não seria capaz, portanto, de assegurar a coerência interna dos conceitos da justiça como equidade.

Ao contrário do que Rawls imaginou, a "justiça como equidade" colocou a igualdade a serviço da liberdade individual, e não possui nenhum critério substancial de distribuição de bens; consequentemente, desse modo, não cumpre a sua proposta de construir uma sociedade bem ordenada, até porque a concepção do que seja uma "sociedade bem ordenada”, segundo escreveu a crítica do autor Borges, “não pode prescindir de uma teleologia”.

Consequentemente, o máximo que a imparcialidade da teoria da justiça desse autor conseguiu sugerir foi uma arena com regras que assegurariam a liberdade individual de sujeitos autointeressados, que não compartilham uma noção de bem comum; mas tudo isso, no final, estaria longe demais de uma "sociedade bem ordenada" capaz de fornecer finalmente um critério seguro e abrangente de "equidade".


3 Críticas positivas ao modelo de John Rawls

Em brilhante estudo de caso, Silva (2005) mostra que a teoria de justiça como equidade concebida por John Rawls pode ser bem sucedida em pesquisas aplicadas no regime jurídico dos consórcios públicos estabelecido pela Lei Federal n. 11.107, de 06/04/05, apresentando claramente eventuais pontos de convergência entre “a aludida teoria e a prática estabelecida pela lei reguladora dos consórcios públicos brasileiros”. O núcleo dessa lei federal, conforme descreveu Silva (op. cit.), “carrega a ideia da conjugação de esforços dos diferentes entes federativos, visando à implementação de determinada política pública, que individualmente, nenhum deles teria condições plenas de realizar com eficácia”. Em outras palavras, trata-se aqui “da recepção no ordenamento jurídico pátrio do conhecido adágio popular que assevera que ‘a união faz a força’” (ibid.).

Silva considerou, acertadamente, que “verifica-se com facilidade que o consorciamento de entes federativos aparece no cenário jurídico como ferramenta poderosa para viabilizar as políticas públicas nos municípios pequenos e de poucos recursos”. No caso específico dos consórcios públicos, o autor destacou ainda “que o princípio da cooperação é o comando otimizador prevalente das atividades realizadas em regime de consorciamento, pois ele constitui a própria essência do instituto consorcial”. Silva chamou a atenção nesse ponto para o fato de que John Rawls desenvolveu a sua teoria considerando o estabelecimento de relações justas entre pessoas físicas; entretanto, esse autor brasileiro soube adaptar no seu estudo o modelo rawlsoniano na dinâmica das relações consorciais efetivadas por entes federativos, ou pessoas jurídicas de direito público interno. A proposta adaptativa de trabalho do autor Silva foi bem sucedida, pois “os princípios catalogados pelo eminente professor norte-americano são igualmente aplicáveis no âmbito das pessoas jurídicas, uma vez que as ações destas representam, em última análise, o consenso de vontade dos seres humanos que as dirigem”.

Recuperando o que afirmou John Rawls, Silva considerou, por exemplo, que: “uma sociedade é uma associação mais ou menos autossuficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas”. Por equivalência, Silva conseguiu visualizar que “um consórcio público é uma associação mais ou menos autossuficiente de pessoas jurídicas de direito público que pautam suas relações mútuas pelo contrato de consórcio público, agindo na maior parte das vezes, de acordo o aludido pacto”.

Segundo John Rawls, o conceito de justiça pode ser explicado pela equidade, pois na medida em que são estabelecidas condições iguais entre as pessoas de um determinado grupo social, a justiça poderá ser realizada automaticamente. Esse princípio teórico funciona perfeitamente na prática consorcial através da sua convergência com o já mencionado princípio da cooperação pública.

Ainda de acordo com a revisão teórica apresentada por Silva (op. cit.), o filósofo John Rawls defendeu a ideia de que os participantes escolheriam consensualmente um conjunto de princípios que iriam reger as relações do grupo social criado num determinado momento. Tais princípios teriam como finalidade o estabelecimento de direitos e deveres dos integrantes do grupo, bem como a definição da distribuição apropriada dos benefícios e dos encargos da cooperação social. A escolha racional desses princípios seria feita logo no início, na organização do grupo, no momento conhecido como “posição original”. Aqui, todos os interessados escolheriam os princípios de justiça que norteariam as relações do grupo envolvido. No caso específico dos consórcios públicos brasileiros, Silva encontrou esse fenômeno “por ocasião dos trabalhos preparatórios para a celebração do protocolo de intenções”.

A teoria de justiça como equidade visa ao estabelecimento de uma justiça social, tendo por objeto primário “a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social”. Quanto à própria finalidade do consórcio, que busca o estabelecimento da justiça social, é importante ressaltar, de acordo com Silva, que ela somente será obtida se a gestão associada de serviços públicos ofertada às populações dos entes federativos envolvidos, corresponder, efetivamente, à legítima expectativa daquelas comunidades. Assim, um consórcio público cumprirá seu papel de implementador de justiça social quando suas ações contemplarem serviços públicos justos (segundo a ótica da equidade defendida por Rawls), proporcionando aos seus usuários (em especial os de menor poder aquisitivo) as efetivas condições de acesso a serviços que tenham padrões de qualidade mínimos comparáveis, por sua vez, aos serviços prestados pela iniciativa privada (ibid.).

Desenvolvendo integralmente o quadro teórico estabelecido por John Raws, Silva (op. cit.) reconheceu que a relação entre os entes consorciados se caracterizaria pela existência de eventuais conflitos, porque “as pessoas não são indiferentes no que se refere a como os benefícios maiores produzidos pela colaboração mútua são distribuídos, pois para perseguir seus fins cada um prefere uma participação maior a uma menor”.  

Concluindo, o pesquisador Silva declara que o exame do instituto do consórcio público, aplicando a teoria da justiça como equidade, permite observar a existência de uma incontestável simetria conceitual entre a aludida teoria e o regime jurídico dos consórcios públicos, com especial destaque para o princípio da cooperação interfederativa, que é norteador das atividades consorciais.

Silva descobriu e fundamentou conceitualmente a convergência entre o regime consorcial e a teoria de justiça proposta por Rawls, e observou “a necessidade do estabelecimento de uma posição original no processo de criação de um consórcio público”. Ele considerou fundamentalmente que o “véu da ignorância” justifica a escolha unânime de uma concepção particular da justiça social. Esse pressuposto moral e também institucional chamado “véu da ignorância” maximiza a cooperação estabelecendo condições igualitárias de participação no processo de construção do que seja justo, sem atentar para o egoísmo de cada parte, pois no futuro cada um pode ser vítima da falta de políticas públicas. Concluiu-se, então, nesse estudo, que o “véu da ignorância” constitui uma tentativa concreta (ou legal) de superação das dificuldades e coloca todas as pessoas no mesmo nível de participação. Conforme salientou Silva (op. cit.):

Ao assumirem ficticiamente um nível de igualdade de condições, os entes federativos consorciandos, que, repita-se, [...] poderão ser Municípios, Distrito Federal, Estados e União, conforme preceitua o artigo 241 da Constituição Federal, estabelecem verdadeiro véu da ignorância, elemento imprescindível na criação de regras consorciais justas a todos os integrantes da gestão associada. Aliás, esta necessidade do estabelecimento de uma situação de igualdade de condições entre os entes federativos na criação de um consórcio público também encontra respaldo constitucional no princípio da autonomia dos entes federativos insculpido nos artigos 18 da Carta Federal. Dessa forma, naquele momento, em que todos os entes interessados no consorciamento iniciam o debate acerca das regras que regerão o futuro consórcio público, é que se deve atribuir, por ficção, igualdade de condições entre os interessados, estabelecendo-se, assim, ambiente adequado ao prosseguimento das tratativas que visam à instituição de uma gestão associada de serviços públicos.

         Em outro estudo de caso, realizado por Ghislene e Splenger (2011), somos informados novamente que John Rawls foi influenciado por Kant e Rousseau, de modo que sua teoria afirma que numa situação inicial - chamada de posição original - há igualdade e liberdade para todos os indivíduos e sob tais condições é possível formalizar-se um acordo coletivo. No contrato idealizado por John Rawls, segundo informam essas mesmas autoras, os homens ignoram automaticamente o que os demais possuem ou desejam, pois as pessoas se consideram como cidadãos iguais e racionais. Desse modo, as pessoas elegem os princípios que lhes asseguram virtuosamente as maiores possibilidades vitais, de forma que o sentido moral que têm os homens nesse momento crítico de formulação do contrato é exatamente buscar a segurança de que os princípios acordados serão obrigatoriamente respeitados para o bem de todos.

A justiça como equidade se baseia em dois princípios fundamentais legitimados pela possibilidade de escolha pública oriunda de uma posição original institucionalmente motivada. Entretanto, acima de tudo os indivíduos devem estar cobertos pelo “véu da ignorância”, que impede o conhecimento de fatos particulares sobre a situação imediata dos mesmos (profissão, classe social, situação financeira, etc.); diante disso, portanto, todos seriam considerados cidadãos iguais e teriam as mesmas possibilidades, direitos e deveres. Este é o argumento racional e lógico que embasa o desenvolvimento ou efetividade dos princípios da justiça proposto pelo filósofo John Rawls.

Segundo as autoras Ghislene e Splenger (2011), o surgimento de conflitos de interesse individuais na sociedade atrapalha a manutenção da paz social e é neste contexto que a mediação civil surge especialmente como mecanismo célere, democrático e satisfatório na resolução de litígios.

A mediação “é importante política pública solidificadora da teoria da justiça criada por Rawls, uma vez que sua utilização prevê a manutenção da liberdade dos conflitantes, primando pela sua igualdade e buscando a redução da desigualdade social oriunda da litigiosidade”. Isso ocorre porque o primeiro princípio da justiça garante as liberdades individuais; e o segundo procura diminuir as desigualdades sociais existentes, de forma que a mediação de conflitos atende a esses preceitos na medida em que visa ao restabelecimento da relação social pacífica existente entre os conflitantes.

O papel da justiça dentro do paradigma da cooperação social responde pela estrutura básica da sociedade; pode-se afirmar neste sentido que a Justiça “é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento”. Consequentemente, é preciso um conjunto público de princípios para escolher entre as várias formas de ordenação social que determinem a divisão de vantagens, bem como sirvam para sintetizar um acordo sobre as partes distributivas adequadas. De acordo com John Rawls, “esses princípios são os princípios da justiça social: eles fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social”. Conforme explicou John Rawls, o conceito de justiça se define tanto pela atuação de seus princípios na atribuição de direitos e deveres como pela definição da divisão apropriada de vantagens sociais.

A mediação é um método de produção de justiça não adversarial, uma vez que não há imposições de sentenças ou laudos, permitindo às partes, desse modo, a busca consensual de seus verdadeiros interesses, mediante algum acordo legítimo dentro da Lei. Nesses termos, pode-se verificar a importância da mediação civil como espécie democrática e, portanto, virtuosa de justiça consensual, envolvendo a intervenção do mediador diante da falta de persuasão e de conhecimento das partes que não conseguem chegar espontaneamente a uma solução coletiva diante dos seus problemas contratuais. Esse terceiro agente denomina-se mediador e exerce uma função semelhante a um conselheiro, pois ele pode aconselhar e propor meios que facilitam a comunicação jurídica entre os participantes.  

Reproduzindo o que escreveram as autoras Ghislene e Splenger (2011), estar em conflito não deve ser avaliado de forma negativa; ao contrário, trata-se de um momento especial que permite a produção de elaborações evolutivas e retroativas relacionadas com instituições, estruturas e pessoas, possuindo assim a capacidade de produzir um espaço construtivo em que o próprio conflito é um ato de reconhecimento das limitações e potencialidades constitucionais de cada um. Indo nessa direção, as autoras afirmaram que:

A mediação, além de ser um instrumento consensual de resolução de litígios, é também uma forma de concretização dos princípios da justiça idealizados por John Rawls, porquanto busca a construção democrática de uma decisão e não sua imposição, preservando a igualdade e liberdade entre os conflitantes. A participação total das partes, inclusive na solução final do conflito, torna a mediação uma política pública eficiente e restauradora das relações sociais, dotada de caráter humano e cidadão. Mediante o auxílio de uma terceira pessoa imparcial – o mediador – as partes podem se comunicar de forma equilibrada e harmônica para decidir seus problemas. Assim, com a preservação da igualdade e da liberdade individual e buscando a diminuição das desigualdades, a mediação é política pública de concretização dos princípios da justiça.


4 A lei de arbitragem brasileira e o “véu da ignorância”

Hipoteticamente, consideramos que o contrato civil pressupõe duas alternativas de escolha pública. A alternativa número um declara através da Justiça formal que “futuros conflitos serão resolvidos no Forum da Comarca deste município”. A alternativa número dois declara, por sua vez, que “futuros conflitos serão resolvidos na Câmara ou Tribunal de Arbitragem disponível na área geográfica do conflito”. Hipoteticamente, essas duas alternativas estabelecem, de fato e de direito, a possibilidade de uma escolha voluntária a ser realizada entre os indivíduos. Podemos prever neste sentido que o modelo tradicional de Justiça pode ser a melhor alternativa de escolha se as partes reconhecerem que entre elas não existe capital moral algum, ou então, se constatarem que o Estado é realmente a tecnologia mais eficiente na condução do processo judicial. De outro modo, a preferência pela arbitragem poderá ser uma escolha pública mais interessante, principalmente quando houver uma garantia expressa de que o procedimento de solução de conflitos, por esta via, será mais rápido, confidencial, democrático e eficiente entre as partes envolvidas (MONTARROYOS, 2006; 2009; 2010).

No caso de ter sido escolhida consensualmente a arbitragem, introduzindo a cláusula que prevê a possibilidade de sua utilização no lugar do Poder Judiciário, os indivíduos colocam oficialmente neste caso, sobre si, o “véu da ignorância”. Nesse momento inicial, os contratantes são diferentes e desiguais do ponto de vista econômico e nada conhecem acerca do futuro, especificamente se estarão na posição de vítimas ou na situação de beneficiários de alguma infração ou quebra contratual.

Entretanto, a incerteza não é um fator negativo que pode ameaçar a introdução da cláusula da arbitragem, pois o que está em jogo entre os indivíduos é exatamente a possibilidade de no futuro todos os contratantes serem bem tratados no procedimento humanizado da justiça.

Não é, portanto, o interesse econômico puro, nem a obediência irrestrita à Lei que estão em pauta, mas sim a possibilidade de - no futuro - todos praticarem a liberdade, a igualdade, a responsabilidade e também a dignidade humana dentro de um procedimento social formalmente equitativo.

A introdução da cláusula contratual da arbitragem, ou seja, o “véu da ignorância” antevê, na posição original do contrato, que haverá cooperação social entre as partes, caso haja algum conflito que represente interesses econômicos patrimoniais.

 A ignorância institucional é tão expressiva nesse momento que nada se especula a respeito das futuras regras do julgamento arbitral. A priori, existe apenas uma situação racional e desinteresse mútuo. Situação racional, porque é realizada uma escolha pública entre dois princípios diferentes de justiça: um baseado na coerção, o outro, na cooperação. Desinteresse mútuo, por sua vez, porque não existe um caso concreto de conflito para induzir as partes a tomarem esta ou aquela atitude nesse momento inicial.

A situação de paz e estabilidade no início do jogo civil reforça, portanto, a convergência institucional entre as partes, justamente porque todos admitem que nada conhecem a respeito do futuro, mas admitem formalmente, por outro lado, o desejo de serem tratados com dignidade em eventual conflito jurídico.

Quando é efetivada, portanto, a instalação da lei de arbitragem por força do conflito, representando direitos patrimoniais disponíveis, a equipe de árbitros deve ser eleita ou indicada pelos participantes. Também serão estabelecidos os procedimentos necessários de atuação do tribunal ou da câmara arbitral; e dependendo da complexidade do caso, será feita contratação de uma equipe de peritos para assuntos diversos relacionados com a área do litígio.

Teoricamente, por lei, qualquer cidadão pode ser árbitro, não sendo necessariamente um burocrata ou bacharel de Direito formado na faculdade. O árbitro é um agente contratado em comum acordo pelas partes e está credenciado por determinado tribunal ou agência arbitral para desenvolver esse tipo de serviço junto à sociedade.

O árbitro é juiz de fato e de direito. A sentença que ele profere tem a mesma autoridade de um juiz togado. Sendo condenatória, a sentença deve ser executada imediatamente contando com a solidariedade do devedor.

É importante ressaltar, todavia, que nem o árbitro nem os contratantes possuem força policial, nem direito algum para cancelar a cláusula arbitral – ou “véu da ignorância”, nem o contrato feito obrigatoriamente para instalação do procedimento da arbitragem no caso concreto do conflito. A lei brasileira (9.307/96) é muito clara nesse sentido e desautoriza o funcionamento desse instituto apenas: se não existir qualquer tribunal arbitral na região dos interessados; ou surgirem vícios e defeitos na composição da arbitragem; ou então, quando o litígio deixar a esfera patrimonial dos direitos econômicos disponíveis e entrar no campo do direito penal e familiar, por exemplo.

No procedimento arbitral, a expectativa é que todos participarão em igualdade de condições. Idealmente, portanto, no tempo máximo de seis meses os contratantes poderão: negociar, discutir e argumentar suas ideias num ambiente arejado, moderno e personalizado, oferecido pela estrutura física da Câmara de arbitragem.

No procedimento arbitral, textualmente segundo a lei brasileira, não é necessária a presença obrigatória de um advogado. Na melhor das hipóteses, logo no primeiro dia da sessão da arbitragem o conflito pode ser resolvido através do uso de algumas tecnologias civis auxiliares, que são a mediação e a conciliação.

Entretanto, se o conflito persistir, as partes poderão em comum acordo escolher duas alternativas de julgamento que se referem especificamente às regras operacionais da arbitragem. A primeira opção seria usar as regras de direito, que são conhecidas amplamente no ordenamento jurídico nacional ou estrangeiro, permitindo que o árbitro julgue de maneira mais objetiva possível o procedimento instalado. A segunda opção seria usar as regras de equidade; nesse caso específico, as partes delegam ao árbitro todos os poderes morais para julgar pelo “coração” ou “consciência” o caso concreto, ficando o árbitro responsável inclusive pela produção de subregras que melhor se adaptarão ao caso particular, sem jamais violar, é claro, os limites dos bons costumes e da ordem pública.

Na lei de arbitragem brasileira:

1º- Os indivíduos vestem o “véu da ignorância”, radicalizando o desejo pela igualdade, responsabilidade, liberdade e justa oportunidade no procedimento futuro do fazer justiça, através, especificamente, da assinatura do acordo final de instalação efetiva da arbitragem.

2º - Vigora o princípio da cooperação social na assinatura do acordo.

3º- A expectativa é produzir justiça humana, ou público-privada, não-estatal, onde todos possam participar e serem tratados com dignidade, envolvendo interesses patrimoniais disponíveis.

4º - Os indivíduos são pessoas morais; acreditam na imparcialidade; e depositam credibilidade máxima no árbitro, embora estejam tratando de negócios e de bens materiais.

5º - A equidade representa uma estratégia política dentro da lei de arbitragem instituída formalmente, objetivando facilitar o acordo e a solução do conflito com celeridade e autonomia entre as partes.

6º- Todos são constitucionalmente iguais na regra de equidade; entretanto, as partes apresentam diferentes personalidades e são desiguais, economicamente. Estão presentes, nessa ocasião, valores sociais relacionados com a liberdade, oportunidade, renda, com os bens e o respeito mútuo.

7º - Na regra de equidade da lei de arbitragem não se pode violar dois extremos: os bons costumes e a ordem pública. Desse modo, o Estado continua sendo uma garantia constitucional prestigiada por todos.

8º - O imperativo categórico kantiano tem espaço garantido no contrato da arbitragem, ou seja, há um compromisso declarado em respeitar o outro, como dever moral de todos. Também, neste momento, pela subregra de equidade, os árbitros são legisladores universais, assumindo, cada um deles, a responsabilidade da ordem e da justiça, dispensando o constrangimento máximo e tradicional do poder judiciário e do legalismo jurídico.


6 Discussão

A tecnologia civil da arbitragem possui quatro princípios epistemológicos interligados: unidade, logicidade, aplicabilidade e criticidade das ideias. Investigando a existência do principio da unidade, inicialmente, encontramos uma linguagem sintética garantindo a convergência das proposições que caracterizam a textualidade e o funcionamento da lei de arbitragem brasileira. Essa linguagem técnica concilia, filosoficamente, princípios comportamentais que nos contratualistas clássicos ou modernos (Hobbes, Locke, Kant) sempre foram pensados separadamente no tempo e no espaço. São eles: a razoabilidade dos fins e a racionalidade dos meios; a autonomia e a heteronomia.

Conforme sugere a interpretação de Thiebaut (apud KRISCHKE, 1993, p. 299), o razoável se refere aos elementos incondicionados de cooperação social, enquanto forma de reciprocidade e interdependência mútua. Rawls falou deles, especialmente como termos equitativos de cooperação. Em outras palavras, o Razoável, segundo Thiebaut (op. cit.) se refere às condições sociais para a racionalidade dos fins. É a expressão do interesse superior dos interesses máximos, que por sua dinâmica (nascida da cooperação moral das pessoas que subjaz ao racional), só pode ser o interesse nas condições sociais de equidade. O Racional se refere, por outro lado, à concepção das vantagens instrumentais dos diversos participantes, como indivíduos que buscam seus interesses. O Racional fica assim entendido como a racionalidade dos meios na busca de bens estabelecidos; enquanto o Razoável apontaria os limites inescapáveis e incondicionais que tornam possível o próprio Racional.

A linguagem conciliadora da lei de arbitragem brasileira sintetiza, ao mesmo tempo, os conceitos de autonomia e heteronomia kantianos. De acordo com Thiebaut (ibid., p. 287), o construtivismo ético de Rawls ligou esses dois conceitos e pressupôs que os princípios morais são objeto da escolha racional; consequentemente, esses princípios não apenas deveriam ser aceitos por todos, mas teriam de exibir a característica crucial de serem também públicos, ou seja, devem ser construídos por todos. Especificamente, a noção de autonomia kantiana foi abordada por John Rawls, sendo vinculada no seu modelo à forma com que as pessoas híbridas (seres racionais e morais) poderiam chegar a um acordo sobre os princípios que deveriam regulamentar as suas interações contratuais (THIEBAUT apud KRISCHKE, 1993, p. 288). 

Em seguida, desenvolvendo o princípio da logicidade das ideias encontramos vários parâmetros que caracterizam a coerência interna desse instituto extrajudicial representado pela lei de arbitragem brasileira. Inicialmente, a definição ontológica dessa lei considera que os indivíduos são pessoas híbridas, ou seja, morais e racionais; ao mesmo tempo, elas buscam resolver as suas adversidades dentro da Lei, contrariando o dogma institucional de que o Estado tem o monopólio eterno do Direito e da Política. Ontologicamente, os indivíduos são pessoas capazes de resolver problemas contratuais não só do ponto de vista técnico e legal, mas também do ponto de vista ético e econômico. Em consequência desse pressuposto, a metodologia civil do contrato da equidade disponibiliza oficialmente um ambiente conciliador ou sintético da autonomia com a heteronomia kantiana; conciliando também a razoabilidade ética com a racionalidade técnica.

O contrato baseado no metaprincípio da equidade deve incentivar a realização do autogoverno entre as partes, onde o individualismo é convertido automaticamente por Lei numa nova metodologia produtora do bem comum, tanto para as partes como para o restante da sociedade. O contrato da equidade através da arbitragem é, digamos assim, uma tecnologia social inteligente, programada para garantir o equilíbrio dos interesses públicos e privados.

A arbitragem proporciona autonomia, celeridade e legitimidade dos acordos. Indo mais além, do ponto de vista social a arbitragem é capaz de produzir externalidades positivas reduzindo a sobrecarga do Poder Judiciário e da máquina estatal como um todo, garantindo também a ordem social policrática, através da cooperação dos cidadãos de forma voluntária dentro da Lei, não demandando gastos adicionais com recursos burocráticos e repressivos.

Concretamente, na arbitragem o “véu da ignorância” pode ser observado através da prática de alguma escolha voluntária entre os indivíduos que projetam para o futuro, em igualdade de condições, os princípios equitativos de como fazer uma justiça cooperativa. Por extensão lógica, o ambiente contratual é participativo e respeita os limites da ordem pública e dos bons costumes. A metodologia do “véu da ignorância” reforça a crença sobre a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade, que são valores fundamentais na dinâmica contratual da equidade como instrumento de alargamento da cidadania e não exatamente do Estado ou da Sociedade em geral como se fossem criaturas orgânicas ou metafísicas. A teoria liberal que justifica todo este sistema de valores é neocontratualista, por isso mesmo, redimensiona o legado dos contratualistas modernos, dentre eles Kant, Hobbes, Locke e Rousseau; entretanto, de maneira geral, essa teoria liberal contemporânea não se preocupa em explicar a origem do Estado, mas se especializa agora em conhecer como funciona a ordem pública no cotidiano das pessoas. Mais precisamente, ela se preocupa em aperfeiçoar as instituições não governamentais, liberalizando o poder de justiça que tradicionalmente ficou monopolizado nas mãos do grande Estado Leviatã.

A aplicabilidade ou praticidade dessa teoria juspolítica destina-se a enfrentar pacificamente os conflitos contratuais que são recorrentes na sociedade democrática, pluralista e competitiva. Como solução pública, especificamente o contrato da arbitragem promete compatibilizar a igualdade, a desigualdade e a diferença, valorizando neste sentido a ética como fonte alternativa do Direito Econômico, que é uma modalidade, em última instância, dos Direitos Internacionais dos Direitos Humanos.

A tentativa de solução dos conflitos observa, particularmente, os seguintes parâmetros: deve existir uma sociedade liberal, bem ordenada, composta por uma economia avançada, democratizada, e fundamentalmente, concentrando agentes morais que reivindicam procedimentos de justiça mais humanizados, personalizados e participativos na sociedade.

Na arbitragem constatamos, basicamente, que os indivíduos variam porque apresentam diferentes interesses, preferências e convicções. Os fatos sociais informam claramente nesse sentido que existem pessoas diferentes e desiguais reivindicando a mesma demanda moral, que é a justiça humanizada ou cidadã. Os valores sociais que fazem parte dessa demanda pública recusam a interferência do Estado-máximo, ou Poder Judiciário, e invocam, por outro lado, o mínimo de intervenção do Estado através da instalação de um procedimento extrajudicial. O discurso construtivista apresentado pela lei da arbitragem produz nesse quadro uma releitura filosófica das ideias kantianas, juntando a autonomia com a heteronomia dentro de um novo arcabouço jurídico representado pelo princípio da equidade, valorizando basicamente a participação moral dentro da Lei. As normas jurídicas da arbitragem brasileira caminham nessa direção, oferecendo uma estrutura variável de direitos e deveres onde as regras são flexíveis e podem ser adaptadas ao caso concreto como se estivéssemos numa loja de conveniência constitucional.

Oportunamente, a história política mostra que o Estado ficou sobrecarregado com as demandas democráticas e sua burocracia falha na produção da Justiça em larga escala. Pesquisas de opinião atuais revelam também que o cidadão brasileiro não confia significativamente na Justiça pública. Nesse contexto, a arbitragem oferece uma alternativa de justiça e colabora diretamente no desenvolvimento da ordem político-constitucional, tentando remediar a insatisfação da opinião pública, sem perder de vista a importância da legalidade e da autoridade constitucional do Poder Judiciário. Na filosofia institucional da arbitragem, o “véu da ignorância” inicialmente confronta o ideal com o real, desenvolvendo o princípio da criticidade que produz, por sua vez, alguns “links” ou estratégias que tentam aumentar o diálogo entre essas duas dimensões filosóficas. No estudo da ordem jurídica brasileira, por exemplo, reconhecemos que a tecnologia civil da arbitragem ainda é pouco utilizada pela população brasileira, refletindo fatores negativos diversos, tais como ausência de informação pública; persistência de uma cultura jurídica positivista; desmotivação moral; e custos elevados para o cidadão mais pobre entre outros agravantes. Por outro lado, de acordo com o que sugerem, construtivamente, as proposições do neocontratualista John Rawls, o aperfeiçoamento da cultura jurídica da equidade na sociedade atual deve ter relação direta com uma série de medidas públicas a ser implementada. Por exemplo (cf. KRISCHKE, 1993):

· A estrutura social básica deve ser regulada por uma constituição justa e assegurar as liberdades da igual cidadania, de consciência e também de pensamentos, que são pressupostos indispensáveis para a justiça como equidade.

·  Deve existir uma justa igualdade de oportunidade. Isto significa que além de manter os tipos usuais de capital social avançado, o governo deve assegurar oportunidades iguais de educação e cultura para pessoas similarmente dotadas e motivadas, seja subsidiando escolas privadas ou estabelecendo um sistema de escola pública.

·O governo deve aplicar e subscrever a igualdade de oportunidade nas atividades econômicas e na livre escolha de ocupação. Isso é conseguido policiando a conduta das firmas e das associações privadas e evitando o estabelecimento de restrições e barreiras monopolísticas às posições mais desejáveis.

·  O governo deve garantir, além disso, o mínimo social, seja por dotações familiares, e pagamentos especiais, por doença e emprego, seja mais sistematicamente através de recursos tais como um suplemento de renda.


Conclusão

Na obra “Crítica da razão prática” e também na “Fundamentação da metafísica dos costumes...” Kant separou a Moral do Direito. De um lado, segundo esse filósofo, existiria o conceito ontológico de “autonomia”; de outro lado, encontrar-se-ia o conceito de “heteronomia”. Para fundamentar essa distinção clássica, Kant percebeu, inicialmente, que nas festas de salão se conversa de tudo um pouco: são comuns as brincadeiras e as piadas. Entretanto, o que realmente ganha maior atenção e perdura mais tempo nas conversas são exatamente os juízos morais sobre o comportamento das outras pessoas. Segundo Kant, o homem mais humilde está sempre pensando sobre os atos morais praticados por ele e pelos outros no cotidiano; ele pensa em termos de máximas e dependendo da sua origem intelectual pode, inclusive, pensar de maneira ainda mais complexa e também praticar a moralidade de maneira mais transcendente. Entretanto, para praticar a sua moralidade, o homem tem que ser livre para pensar, e a sua consciência deve estar aberta para decidir os meios que o levarão ao bem-estar e à felicidade. Esses meios devem estar a serviço dos desejos interiores de cada pessoa, isoladamente.

A pessoa moral no dia a dia elabora as suas próprias máximas; adota princípios que orientam e justificam suas ações; e todos os princípios adotados são práticos, porque tentam governar a sua conduta no dia a dia.

Segundo Kant, existem vários conceitos morais empregados pelo cidadão no senso comum. Por exemplo, o conceito de liberdade; de felicidade; de causalidade, que é a vontade da pessoa pensante; e de comunidade, que recorda o sujeito de que existem outras pessoas vivendo ao seu lado.

Todos esses conceitos são experimentados pelo homem comum e pressupõem que o sujeito tem consciência de que precisa ser livre e que suas máximas precisam funcionar.

Como resultado, emerge na consciência do indivíduo um conceito sintético que representa a dinâmica de suas ações no reino da Moral: o conceito de “autonomia”. Através deste conceito, percebe-se que existe uma força interior governando os atos e deveres de cada um. Descobre-se, igualmente, através da reflexão moral, que a liberdade é fundamental para se praticar o livre-arbítrio.

Nos limites da moralidade subjetiva, entretanto, o indivíduo está preso aos sentimentos morais e também às intuições. Mesmo assim ele percebe que existe uma necessidade automática de transformar em lei prática as suas máximas.

Para isto acontecer, as ideias são canalizadas na direção do “dever”, que conduz efetivamente o desejo à realidade exterior do ato moral. O “dever” é um conceito ligado com a ação. Não é resultado de nenhuma obrigação pública, nem jurídica, mas cumpre aquilo que a consciência individual declarou para si e para os outros. Passamos, então, da moralidade subjetiva para a moralidade objetiva quando usamos o conceito prático do “dever”.

De acordo com Kant, as atitudes humanas estão direcionadas para o bem ou para o mal. Acumulamos costumeiramente infinitas experiências com esses dois objetos. Desejamos e tocamos os objetos morais por meio de relações estabelecidas conceitualmente pela vontade imaginativa do próprio sujeito. Como consequência, na relação metafísica das ideias as pessoas experimentam sentimentos derivados na forma de prazer e dor moral.

Necessariamente, no contato com os objetos morais são aplicados conceitos empíricos, ou seja, conceitos sensíveis que representam conteúdos da experiência e da liberdade através da aproximação intelectiva do sujeito com os objetos ideais.

No reino da Moral, o sujeito utiliza categorias; máximas; princípios; regras e critérios que estão prontos para absorver a experiência no mundo. Os princípios são estruturas pensantes; as regras são estruturas determinantes; os critérios são estruturas praticantes; enquanto as máximas são estruturas opinativas.

Especificamente, pelo imperativo categórico o homem deve agir imaginando que a própria ação é tão boa e válida universalmente. A pessoa acaba descobrindo, através desse princípio, que ela tem o papel de legislador no mundo; ou seja, a ordem não depende só do Estado, mas inclui também o indivíduo que tem capacidade, se assim quiser, para governar suas atitudes em harmonia com o outro ser moral na sociedade. Também pelo imperativo categórico aparece a ideia de que o homem é um fim e não um meio de exploração, portanto, o abuso moral não é desejável racionalmente por nenhum indivíduo em sã consciência. Na verdade, buscamos a dignidade do viver e não queremos ter vergonha de declarar como vivemos, ou então, de como somos tratados pelos outros neste mundo. Tratamos aqui, neste ponto, do princípio da diferença entre os homens e também do princípio da dignidade.

Concluindo. Ninguém é obrigado no reino da moralidade a fazer nada além de si e de sua vontade. Se isto acontecer, não estamos falando de autonomia, mas sim de heteronomia. No conceito da autonomia kantiana, exteriormente posso até obedecer a uma ordem, mas no interior de minha consciência pode haver uma resistência subjetiva, ou seja, a negação da ordem instituída, não se atribuindo assim qualquer legitimidade aos fatos e aos comandos exteriores emitidos pelo mundo e autoridades fora do meu sentimento moral.

Infelizmente, fato é que os seres humanos se distanciam no cotidiano com grande facilidade da Moral e dos direitos naturais universais. É por isso que precisamos formalizar o Direito, segundo Kant, que é um mal necessário, uma externalidade social, cujo poder coativo deve cuidar que o arbítrio de um não prejudique ou tiranize o arbítrio ou a liberdade do outro. Isso pode ser feito através da imposição de leis formais; desse modo, enquanto na moralidade existe o imperativo categórico do dever; no Direito, a sagacidade e a habilidade reportam-se aos melhores meios de sobrevivência através dos “imperativos hipotéticos”, que dizem respeito sobre o que é bom para algo definido, possível e real. Através dos imperativos hipotéticos, as ações humanas são tidas como legais ou ilegais; aceitas e não aceitas.

No direito kantiano, dominam as leis objetivas que são redigidas pelo Estado, embora continuem sendo leis morais, uma vez que elas se reportam ao grande projeto dos direitos naturais que é manter a vida, a liberdade e a igualdade de cada um. A base de preenchimento das lacunas do Direito, por exemplo, são os direitos naturais; da mesma forma, eles servem como fonte de inspiração racional para os juristas.

No direito positivo, existe o reino das regras que determinam o que pode ou não ser feito pelo cidadão comum. Determina-se, no Direito, o que é permitido, proibido e obrigatório. As sanções figuram como estratégias nesse contexto, visando ao bem-estar geral. Em outras palavras, as normas estipulam os melhores meios a serem usados para se buscar a satisfação individual na meta transcendente da liberdade, responsabilidade e felicidade. No direito positivo, o imperativo dominante deriva da “heteronomia”, que declara o seguinte mandamento: “se quer este ou aquele objeto, deve-se proceder de tal ou qual forma; e não pela moral, ou seja, categoricamente”.

Concluindo, podemos afirmar que ao contrário do que fez o contratualista Immanuel Kant, que separou o Direito da Moral como duas categorias dicotômicas, o neocontratualista John Rawls desenvolveu o oposto, isto é, juntou essas duas categorias tendo em vista os problemas históricos do Estado que não consegue produzir justiça com eficiência e, sobretudo, com dignidade humana em larga escala, numa sociedade de massa e também democrática no acesso ao Poder Judiciário.

Nessa perspectiva, John Rawls construiu a sua filosofia pública considerando a existência de uma sociedade pluralista; bem ordenada; com pessoas desiguais no Mercado; diferentes na sociedade civil; e iguais do ponto de vista constitucional. De acordo com John Rawls, sua teoria é “construtivista”, porque tenta desenhar um novo modelo de contrato civil para o dia a dia das pessoas baseado no paradigma da cooperação. Esse modelo político de contrato equitativo parte do princípio de que os cidadãos apresentam o mínimo de capital moral entre si; portanto, considera-se que os indivíduos estão, a priori, motivados a buscar justiça aplicando um outro paradigma no cotidiano que não é mais condicionado à cultura da litigância. Em outras palavras, no modelo da justiça como equidade as pessoas são criaturas híbridas (ou morais-econômicas) pretendendo realizar contratos civis e fazer justiça com dignidade, embora seja incluída a incerteza que caracteriza o futuro, onde os contratantes podem falhar por algum motivo, não só pelo mau caráter das pessoas ou inveja, mas muitas vezes por causa de acidentes de percurso da vida econômica, incluindo perda de investimentos, doenças, desemprego, tragédias, etc. Por esse motivo, as pessoas híbridas estão nesse modelo preocupadas com o futuro, mas por antecipação declaram que não pretendem resolver os seus conflitos pela força física ou malandragem copiando o modelo do estado de natureza hobbesiano; muito menos pretendem reproduzir o despotismo burocrático do Estado de Direito, através do tribunal judiciário, que é lento; burocratizado em excesso; autoritário; tecnicista; impessoal, e nem sempre imparcial.

Na sociedade bem ordenada, as pessoas de bem precisam encontrar um modelo de contrato que não seja hobbesiano, onde o indivíduo desconfia da palavra do outro; mas ao contrário, pretende-se neste modelo contratual alternativo confiar na conduta ética dos jogadores. A solução encontrada por John Rawls busca exatamente nessa direção ligar, dentro da Lei, a autonomia com a heteronomia. Essa mistura, segundo o autor, implica nexos recíprocos que têm começo, meio e fim. A primeira regra é vestir o “véu da ignorância”, ou seja, no momento de celebrar qualquer contrato econômico não se pode acabar com a individualidade; nem com a desigualdade; nem com a diferença natural existente entre as pessoas, mas simplesmente deve-se deixar claro que as partes possuem a mesma demanda constitucional: elas querem justiça objetivando ganhar bens sociais primários do tipo igualdade, liberdade, oportunidade e respeito mútuo. Essa possibilidade se encaixa perfeitamente na agenda contemporânea das pessoas morais que desejam escolher entre dois princípios extremos da ordem político-constitucional: ou fazer justiça pelo princípio da força, coerção, litigância, antagonismo, obediência e objetividade máxima; ou então, empregar um modelo de justiça baseado no principio da cooperação, consenso, paz e confiança recíproca. O primeiro modelo - da litigância - pode ser expresso através da seguinte afirmação: “futuros conflitos deste contrato serão dirimidos no forum da comarca deste município”; o outro modelo - do consenso - pode projetar os seguintes argumentos: “futuros conflitos serão resolvidos não por processo judicial, mas por algum tipo de procedimento extrajudicial”. Ainda neste segundo modelo, os indivíduos poderão anunciar que no futuro seus conflitos serão resolvidos necessariamente através da cooperação democrática entre as partes. Consequentemente, é formalizada em documento especial a disponibilidade dos participantes tanto para assumir a responsabilidade civil como também para serem legisladores e fiscalizadores da ordem pública, valorizando uma metodologia jurídica policrática, baseada na equidade política.

De acordo com Thiebaut (apud KRISCHKE, 1993, p. 283-312), o modelo do contrato equitativo propõe a conciliação de dois princípios básicos que foram separados inicialmente por Kant: a racionalidade dos fins e a racionalidade dos meios. Na moralidade definida por Kant, a racionalidade vira especificamente razoabilidade dos fins; o que quer dizer, em outras palavras, que os indivíduos escolhem os melhores princípios visando alcançar a máxima do bem através da autonomia, diante de casos concretos que lhe afetam diretamente. Por outro lado, a racionalidade instrumental ou legal dos meios escolhe os melhores critérios objetivos, através da sagacidade e habilidade, visando alcançar interesses particulares através da “heteronomia”, ou seja, empregando a legalidade.

Na síntese do modelo de justiça como equidade, apresentado pelo filósofo neocontratualista John Rawls, a razoabilidade é aparentemente superior aos interesses materiais. Repita-se, aparentemente. As pessoas, na verdade, empregam meios de forma coletiva pretendendo produzir justiça, que é uma virtude moral como já salientou Aristóteles em sua obra “Ética a Nicômaco”. A meta política deste contrato, proposto por John Rawls, é exatamente garantir simultaneamente as demandas moral e econômica em favor de uma justiça humana praticada com dignidade e com maior participação em igualdade de condições institucionais. Nesse tipo de contrato, os participantes saem ganhando diretamente, e a sociedade, indiretamente, com a prática racional da legalidade formando gradativamente uma rede de ações individuais livres e responsáveis na sociedade, uma espécie de laissez-faire não mais no Mercado, mas agora no terreno da Justiça.      


Referências

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Abstract: the paper develops the concept of “veil of ignorance” in Brazilian arbitration law, trying to show the applicability of this concept in law when specifically citizens want to do private justice using the paradigm of social cooperation. With this approach work, we take a few fragments of the book “A Theory of Justice”, author John Rawls, counting carefully with the help of a methodology inventarial knowledge, formed by the ontological categories, methodological, axiological, theoretical, pragmatic and contextual ideas, whose final result allows to visualize the structure and legal practice of the concept “veil of ignorance” in contemporary democracy.

Keywords: Justice; arbitration; “veil of ignorance”.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. Observatório jurídico John Rawls: localizando o ponto de convergência do Direito com a Política, a Moral e a Economia na Lei de Arbitragem brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3202, 7 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21444. Acesso em: 30 abr. 2024.