Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/2145
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A responsabilidade patrimonial e o sistema legal de proteção aos credores.

Teoria e efetividade

A responsabilidade patrimonial e o sistema legal de proteção aos credores. Teoria e efetividade

|

Publicado em . Elaborado em .

I - INTRODUÇÃO : O PROBLEMA DA FRAUDE

O Direito não tolera fraudes. Esta máxima, tão repetida e utilizada por diversos juristas nos mais variados contextos e nas mais diferentes épocas, pode ser considerada como um princípio que emana de nosso ordenamento jurídico; como uma regra de resolução de controvérsias; como norma de natureza programática; como lei não escrita; como interferência indevida da Moral no campo estritamente jurídico.

Mas, na realidade, todas esta visões totalizantes acabam por ser vazias já que não expressam a natureza íntima do dizer acima insculpido; não dão conta de compreender o quid est que se esconde nas sombras das aparências. Pois bem, para nós, esta máxima é um desdobramento de uma regra de justiça, sendo assim a própria alma do Direito. Ora, o Direito nasceu para resolver os conflitos de interesse, mas não de qualquer forma, pois assim faz o forte, o violento : resolve o conflito subjugando o mais fraco economica, técnica ou fisicamente. Não. O Direito resolve o conflito de interesses de modo justo. Mas, o que é a Justiça ? O próprio Hans Kelsen admite em uma obra que tem exatamente esta pergunta como título que não há um conceito de justiça que seja absoluto, somente vários conceitos relativos a diversas circunstâncias espaço-temporais.

Não entraremos nestas quimeras, já que este não é o tema de nosso trabalho. A justiça material tem seu lugar no campo da filosofia e da ciência do Direito. Aqui, queremos saber de uma outra justiça, pressuposto da justiça material e passo necessário, embora não suficiente, para a concretização da mesma. Estamos nos referindo à justiça formal, que encontra sua fomulação máxima na instituição do processo, que com as figuras básicas do contraditório, do devido processo legal e do terceiro neutro configura o básico da heterocomposição estatal, figura contraposta à autocomposição/autotutela exercida em tempos menos "delicados " que os nossos. A heterocomposição estatal é uma técnica que visa resolver o conflito de interesses de forma justa e isenta, tratando as partes como iguais, afastando assim o arbítrio e a violência, que deste primeiro sempre deriva.

Para que o Estado alcance seus fins – quais sejam – a paz social e a segurança jurídica, ele cria o processo, que se reparte em três grandes vertentes : cognição, acautelamento e execução. Em um primeiro momento o Estado-juiz conhece o direito a ser aplicado, sendo que somente após esta fase serão tomadas medidas efetivas no sentido de dar àquele que merece o seu " ius suum ", o seu "algo devido", nos dizeres de Edgar de Godói da Mata-Machado. Tal somente é possível após a cognição do fato (e mesmo do direito a ser aplicado).

Pois bem, iniciado o processo de execução, busca-se ressarcir o credor dos prejuízos que teve de suportar, já que não podendo recorrer à autotutela, foi até o Estado-juiz para que este dissesse o Direito (jurisdicere, vocábulo latino : dizer o Direito : jurisdição). O processo de execução desenvolve-se com fins à satisfazer o titular de direito, buscando por todas as formas arrancar da esfera de disposição do devedor aquele " quantum " necessário à satisfação das legítimas pretensões do credor. Tal não é missão fácil, pois além da morosidade que caracteriza qualquer processo judicial (mesmo o de execução), existem diversos entraves que a própria lei põe para que evitem-se situações antijurídicas, v. g., levar o devedor ao estado de miserabilidade ou cometer erros graves, v.g., executar alguém que não participou do processo de conhecimento, ou tendo participado, não foi regularmente citado na execução.

Existem outros elementos diferentes destes acima esboçados que alguns caracterizam como formalismos desnecessários, que apenas alongam a discussão que já teve fim com a sentença de mérito cognitiva (em alguns casos, nem é preciso que haja sentença de mérito ou mesmo que haja sentença para a execução, como na hipótese de títulos extrajudiciais), enquanto outros neles enxergam a garantia de padrões mínimos civilizatórios de segurança e justiça. No entanto, existe um pressuposto que é insidioso: a lei reconhece sua existência, mas trata-o de forma extremamente tímida, dado o poder e extensão deste misterioso pressuposto.

Não queremos parecer dramáticos, mas o tal pressuposto nada mais é que a malícia, a má-fé, a "esperteza ", o " jeitinho ", que de todas as formas imagináveis busca frustrar a execução, ainda que o dever de sujeitar-se à ordem jurídica interna seja claríssimo. A má-fé do devedor que anseia fugir aos seus deveres é realmente a maior razão pela qual atualmente uma maioria inegável das execuções resulta em nada, tornando o processo de execução uma perda de tempo e dinheiro; fazendo do processo de conhecimento e sua pomposa sentença (ou dos seguros títulos extrajudiciais) verdadeiras brincadeiras de mal-gosto; e transformando a jurisdição, que é tão nobremente definida por Chiovenda como a promessa de que a Lei será cumprida, em repugnante meio de controle social formal, desprovido de qualquer conteúdo ínfimo que seja de eticidade e justiça.

Tal é o drama do Direito moderno : ver-se reduzido a uma grosseira imitação da vida prática dos homens, que não resolve coisa alguma, que para nada serve, como um bizarro e aterrador desentortador de bananas universal. Do que serve sabermos que temos o direito se não podemos exercê-lo ?

Esta situação desde há muitos séculos preocupou as mais insignes cabeças pensantes do Ocidente. Não pode a Humanidade dar-se ao luxo de inutilizar e esquecer o mais formidável meio de pacificação social, solução de conflitos e mantenedor da ordem vigente – status quo – por mero capricho e egoísmo daqueles que, fazendo tabula rasa da Lei, escapam sempre pela tangnte, pelo beco mal iluminado, fraudando o direito.

Legem habemus, e desde há muitos séculos. Em Roma, a solução era provavelmente a mais eficaz. Quando um cidadão celebrava um contrato – em Roma o Direito era sobretudo o Direito Civil, e o Direito Civil era antes de mais nada o estudo dos contratos – e uma das partes contratantes não cumpria suas obrigações, seu patrimônio era atacado, com a anuência do representante da justiça estatal, o pretor (tempos depois, o judex) de forma a satisfazer as pretensões daquele que tinha o direito assegurado pelo manusear da actio. Até aqui nada que diferencie o grande Direito Romano de nosso pequeno Direito Brasileiro. Mas a diferença existe, e é, literalmente, fatal. Está lá, na Lei das XII Tábuas de 453 aC. : caso o devedor não tivesse patrimônio suficiente para saldar suas obrigações, seria despedaçado e suas partes divididas entre os credores. A execução era pessoal. Alguns sustentam que esta lei não tinha aplicabilidade, sendo antes uma forma de "terrorismo social". O que acontecia, segundo os doutos, é que o devedor, sendo insolvente, perdia o seu maior bem, a última fração de seu patrimônio, a saber, o seu status libertatis. Desse modo, o devedor era convertido em objeto do direito de propriedade de seus credores; transformado em escravo, era vendido, sendo que seu pretio seria a paga devida aos credores; ainda que não fosse vendido, estaria juridicamente obrigado a trabalhar para seus credores até que com as riquezas advindas de sua lida como cativo pudesse reaver sua antiga liberdade, o que era, de resto, dificílimo. Assim, o ser humano, expropriado daquilo que verdadeiramente o difere dos animais – a liberdade, seu bem mais precioso (Kant/Hegel) – tornava-se mera res, sujeita aos percalços do mercado de escravos romanos.

Bem se vê que a execução romana se frustrava muito raramente. Tal procedimento tem suas vantagens, pois incute o medo nos corações daqueles que sentem-se propensos a transgredir os ditames legais, mas suas desvantagens e os prejuízos que acarreta são muito maiores, já que antes de mais nada é um atentado contra o processo civilizatório, a dignidade, a liberdade e mesmo a vida humana. Há de se pesar os valores. E a vida, a liberdade de um só homem vale indubitavelmente mais que a propriedade de toda Terra. Desse modo, já em plena Idade Média, a Idade das Trevas, que neste ponto não nos pareceu tão escura assim, este procedimento não era utilizado, sendo definitivamente banido do mundo Ocidental na Idade Moderna/Contemporrânea, sendo que neste ínterim foi de capital importância a Grande Revolução de 1789 ocorrida em terras de França, que com a Declaration positivou uma série de valores éticos que já faziam parte da herança da cultura Ocidental desde há muitos séculos, segundo o prof. Joaquim Carlos Salgado.

Entre estes valores, está o princípio da dignidade do ente humano, que tendo como corolário lógico-jurídico o princípio de que toda execução é real (Humberto Teodoro Júnior), moldou a feição dos sistemas jurídicos civilizados, limitando a execução até os bens do indivíduo, não podendo extrapolar tal barreira.

É neste campo, porém, que se põem os problemas, pois sendo a execução real, a possibilidade e principalmente a coragem para fraudá-la ganham dimensões assuatadoramente grandes. Com efeito, os modernos sistemas jurídicos contam com institutos e técnicas de proteção ao credor, sendo que em nosso sistema optou-se por uma colocação tripartite da quaestio; primeiramente define-se a responsabilidade patrimonial do devedor, ou seja, os limites objetivos da execução, em seguida, em um momento simultâneo, mas de dupla face, o direito material e o direito processual cuidam mais pormenorizadamente do fenômeno da fraude e das formas de combatê-la. No ordenamento jurídico pátrio tratam-se dos capítulos referentes à fraude contra credores e à fraude contra a execução, respectivamente. É isto que estudaremos de agora em diante, sendo que ao fim destas meditações ansiamos poder responder a duas questões da maior importância filosófica e de não menor relevância prática, quais sejam :

A-) O sistema brasileiro de proteção contra à fraude, seja em seu momento material, seja em seu momento processual, é eficaz, isto é, está apto a alcançar os fins aos quais se propõe ?

B-) Quais sugestões poderiam ser tecidas para melhorar o sistema aludido, caso a resposta acima seja positiva, ou para reformulá-lo e adequa-lo às comoções sociais que clamam por justiça, caso a resposta à questão supramencionada seja negativa ?

Sem mais embargos, vejamos o que há para ser analisado, pois, bem ou mal, como dissemos linhas atrás, legem habemus.


II – A RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL

Agora há de se falar sobre a responsabilidade patrimonial, que para o brilhante prof. Humberto Teodoro Júnior é o campo onde propriamente atua a execução forçada. Deveras, o crédito é um dever para o devedor e uma responsabilidade para seu patrimônio.

Antes de mais nada, devemos notar que o próprio termo "responsabilidade patrimonial " demonstra-nos que a mesma só se estende aos bens do devedor, jamais à sua pessoa, como vimos de ver acima (salvo exceções legais de prisão civil – dívida de pensão alimentícia e depositário infiel – Código de Processo Civil, arts. 733, parágrafo 1º e 804, parágrafo único). O Direito moderno não compatibiliza-se com idéias que possam vir a anular a liberdade, a personalidade e a dignidade do homem, transformando-o em simples coisa, tal como ocorria no Direito Romanno primevo.

A obrigação, salienta o indigitado processulista, é uma noção de direito material, enquanto a responsabilidade, como sujeição dos bens do devedor à sanção, que atua pela submissão à expropriação executiva, é uma noção eminentemente processual :

" Para o direito formal, por conseguinte, a responsabilidade patrimonial consiste apenas na possibilidade de algum ou de todos os bens de uma pessoa serem submetidos à expropriação executiva, pouco importando seja ela devedora, garante ou estranha ao negócio jurídica substancial. " (Humberto Teodoro Júnior, 1995, p. 103.)

O Códex Processual Pátrio coloca as regras a serem seguidas nesta matéria. Assim, a responsabilidade patrimonial atinge todos os bens presentes e futuros do devedor (art. 591 do CPC), não importando se os bens foram adquiridos antes ou depois da constituição da dívida executada. Tal é decorrente do princípio da universalidade do patrimônio, que, sendo um todo, responde irrestritamente pelas dívidas do devedor. É de notar-se ademais que este patrimônio é constituído apenas de valores pecuniários (v.g., não se pode executar a honra pessoal de alguém), sendo que mesmo alguns bens patrimoniais, em determinadas hipóteses legais, não podem ser executados, graças a relevantes motivos de ordem religiosa, moral, pública etc. (art. 649)

Mas sobre quem recai a execução ? Posto está o problema da legitimação passiva nas execuções. Normalmente é o vencido ou o devedor do título extra-judicial, existindo, no entanto, outras pessoas que podem sujeitar-se à execução (art. 568, II a V), não sendo consideradas como terceiros, pois, em verdade, suscedem o devedor ou assumem voluntariamente a responsabilidade solidária pelo cumprimento da obrigação; são eles : o espólio, os herdeiros, o assuntor da dívida, o fiador judicial e o responsável tributário. A defesa de tais pessoas deve dar-se através de "embargos de executado" ou "de devedor" (art. 736), o que prova serem os mesmos considerados partes legítimas na execução.

Entretanto, existem casos em que a conduta de terceiros, sem que assumam a condição de devedor ou de partes no processo de execução, torna-os suscetíveis de suportar os efeitos do mesmo. A regra geral é :

" Bens de ninguém respondem por obrigação de terceiros se o proprietário estiver inteiramente desvinculado do caso do ponto de vista jurídico " (Alcides de Mendonça Lima, p. 471)

Entretanto, há situações nas quais

" bens que não são do devedor, mas de terceiro, que não se obrigou e, mesmo assim, responde pelo cumprimento das obrigações daquele " (Alcides Mendonça Lima, p. 472)

Tais terceiros, na acertada expressão de Liebman, são portadores de responsabilidade executória secundária, sendo que as hipóteses desta modalidade estão expressas no art. 592 do Código de Processo Civil.

Vejamos detalhadamente estas espécies.

2.1 – BENS DO SUCESSOR SINGULAR

Somente ocorre nos casos de sentença proferida em ação fundada em direito real e somente atinge o bem que foi objeto da decisão. Se a coisa pereceu sem culpa do adquirente não subsiste a responsabilidade. Isto decorre da eficácia erga omnes do direito real, cujo corrolário é o direito de sequela :

" Não há (...) necessidade de anular-se previamente, nem de citar-se o adquirente como litisconsorte do executado. Para alcançar o bem indevidamente alienado, o credor nem ao menos tem o ônus de provar a irregularidade da alienação. Basta-lhe a situação objetiva da sentença reconhecendo em seu favor o direito real sobre o objeto transferido em desrespeito à eficácia do decisório. " (Humberto Teodoro Júnior, 1995, p. 104)

2.2 – BENS DO SÓCIO

A personalidade e o patrimônio das pessoas jurídicas são distintas das de seus sócios, mas por força da lei (material) existem situações em que os mesmos responderão pelas dívidas da primeira, v.g., nas sociedades em nome coletivo (Código Comercial, art. 316). É mais um caso de responsabilidade sem dívida.

É claro que esta responsabilidade é excepcional, secundária como sugere a expressão acima aduzida de Liebman, de sorte que prevalece unicamente quando não se puder executar bens da própria sociedade.

Para os sócios a responsabilidade é sempre subsidiária e a da sociedade principal, segundo o festejado processualista Alcides de Mendonça Lima, para quem vigora o benefício de ordem em favor dos sócios : estes podem exigir que sejam executados os bens da sociedade antes dos seus próprios (art. 596), devendo para tanto nomear à penhora, no prazo legal, os bens da sociedade que sofrerão a constrição judicial. O sócio que sofrer a execução ficará sub-rogado nos direitos do credor, e poderá executar a sociedade nos autos do mesmo processo (art. 596, parágrafo 2º).

Devemos lembrar que o benefício de ordem e a subsidiariedade da obrigação não valem para as sociedades irregulares ou de fato, pois as mesmas não existem juridicamente. Os sócios são obrigados diretos e solidários neste caso.

2.3 – BENS DO DEVEDOR EM PODER DE TERCEIROS

A posse ou detenção de outrem sobre os bens do devedor não constitui problema para a execução, mas se esta posse é legítima, a execução contra o terceiro não poderá excluir a continuidade do exercício dos direitos que estão legalmente assegurados, como, por exemplo, em caso de existir locação (Código Civil, art. 1.197), onde não poderá configurar-se o despejo do locador simplesmente porque o imóvel alugado não mais pertence ao locador original. Mas

" (...) quando o terceiro possuir o bem do devedor em nome próprio, e não em nome do executado, não poderá haver penhora direta sobre o bem, mas apenas sobre o direito e ação do proprietário contra o possuidor " (Humberto Teodoro Júnior, 1995, p. 107)

2.4 – CÔNJUGE CASADO : A QUESTÃO DA MEAÇÃO

É o direito material que define os casos em que os bens de um dos cônjuges respondem pelas dívidas do outro (v.g., Código Civil, arts. 253, 254 e 263), sendo que como regra geral tem-se o art. 3º da Lei nº 4.121/62, in verbis :

" Pelos títulos de dívida de qualquer natureza, firmados por um só dos cônjuges, ainda que casados pelo regime de comunhão universal, somente responderão os bens particulares do signatário e os comuns até o limite da meação. "

Tal incomunicabilidade cessa no caso das dívidas do cônjuge singular advirem " em benefício da família ". (Código Civil, art. 246)

Neste caso, a defesa do cônjuge prejudicado deve dar-se através dos embargos de terceiro (art. 1046 do CPC), ainda que o mesmo tenha sido intimado da penhora que recaia sobre, v.g. um imóvel.

Cumpre distinguir, conforme faz o prof. Humberto Teodoro Júnior :

" (...), a mulher pode agir tanto como parte da execução, como na condição de terceiro. Se pretender discutir a validade ou a eficácia do título firmado pelo marido, estará agindo como parte e suas arguições só poderão ser feitas através de embargos de devedor (art. 736). Se, porém, o que se vai discutir é a matéria pertinente à exclusão de sua meação, a condição da mulher é a de terceiro, em face da dívida do marido e da relação executiva que em torno dessa obrigação se instaurou. Essa questão portanto, terá de ser debatida nos embargos de terceiro (art. 1046, parágrafo 3º) (Humberto Teodoro Júnior, 1995, p. 107-108)

            2.5 – BENS ALIENADOS EM FRAUDE DE EXECUÇÃO

O item IV do art. 592 põe o último caso de responsabilidade executiva secundária, que é exatamente aquela referente aos bens alienados ou gravads com ônus real em fraude de execução. Conforme expusemos em nossa introdução, esta matéria será tratada em capítulo separado, graças à sua complexidade e importância, oportunidade na qual versar-se-á acerca da fraude à execução e a fraude contra credores, diferenciando-as e anotando as peculiaridades destes interessantes institutos jurídicos

            2.6 – OUTRAS SITUAÇÕES CONTEMPLADAS NO CÓDEX PROCESSUAL PÁTRIO

Existem algumas outras regras aplicáveis em matéria de responsabilidade patrimonial constantes do CPC, como aquela do art. 594, que expressa um benefício de excusão invocável pelo executado através de embargos à penhora. É o caso que ocorre quando existem bens sujeitos à retenção, de modo que se tem que executar primeiro a coisa que o credor retém ou possui. Somente se houver saldo remanescente nesta operação será lícito penhorar-se outros bens do devedor, já que não é moral nem jurídico ao mesm somar duas garantias : a da retenção e da penhora de outros bens que não os retidos. Caso contrário, haverá insofismavelmente ocorrido excesso de execução.

O art. 595 do CPC garante ao fiador que tiver saldado dívida sub judice execução regressiva contra o devedor nos próprios autos em que se efetuou o pagamento. Ocorre aí uma subrrogação de pleno direito do fiador nos direitos do credor, segundo Amílcar de Castro.

Acontece que na fiança há a dissociação entre a dívida e a responsabilidade, sendo que é mais um caso de responsabilidade secundária ou subsidiária. Daí o beneficium excussionis personalis consagrado no próprio art. 595 ser aplicado na excusão de bens do fiador. Este benefício é renunciável de forma tácita ou expressa. Será expressa quando constar do contrato de fiança e tácita quando iniciada a execução contra o fiador, est não invocar a exceção no prazo de nomeação de bens à penhora, conforme ensina-nos o ilustre Amílcar de Castro.

No que concerne à sub-rogação do fiador nos direitos do credor, o prof. Humberto Teodoro Júnior defende que

" Igual faculdade deve ser reconhecida, também ao avalista ou coobrigado cambiário, pois este quando solve a dívida exequenda torna-se sub-rogado no direito do credor-exequente, e nessa qualidade pode assumir sua posição processual, voltando-se contra o avalizador. " (Humberto Teodoro Júnior, 1.995, p. 113)

Por fim, resta salientar que morto o devedor, seu espólio permanece responsável por suas dívidas, consoante o art. 597 do CPC

Enquanto não há a partilha, somente os bens correspondentes ao espólio serão excutados pelas dívidas da herança, conforme ensinamento de Pontes de Miranda.

Observa-se, in casu, que a regra do direito material que prescreve que as dívidas da herança executam-se nos bens da herança, e não nos outros bens dos herdeiros (Código Civil, art. 1.587)

Feita a partilha do acervo hereditário, cada herdeiro responderá unicamente pelas obrigações do de cuius na proporção de seu quinhão hereditário.

É de extrema importância atentar para o fato de que na relação processual o espólio é representado pelo inventariante não dativo (art. 12, V do CPC), havendo casos em que os herdeiros estão autorizados a agirem como litisconsortes no processo.


III- SISTEMA DE PROTEÇÃO AOS CREDORES

A carta constitucional de 1988 declina em seu art. 5º uma série de direitos individuais consagrados como fundamentais ao homem. Dentre tais direitos está o direito a propriedade, que por sua vez tem seus elementos definidos legalmente no art. 524 do Código Civil nos seguintes termos:

"Art.524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua."

Desde já, percebe-se que o direito de propriedade se desdobra em quatro facetas essenciais: o uso (ius utendi), o gozo (ius fruendi), a disposição (ius abutendi) e o reivindicar. Todas estas facetas, numa relação de complementariedade, conformam a propriedade enquanto direito.

Daí, percebe-se, como denota o essencialíssimo Humberto Theodoro Júnior, que

" um dos atributos do direito de propriedade é a o poder de disposição assegurado ao titular do domínio" (Curso de Direito Processual Civil, pág.108).

Porém, o direito de propriedade, enquanto parcela do patrimônio do devedor , representa para o credor, nos dizeres de Liebman,

"garantia de poder conseguir, em caso de inadimplemento, satisfação coativa pelos meios executivos" (Processo de Execução, pág. 105).

Ora, a partir desse confronto percebe-se que a disposição indiscriminada dos bens por parte do devedor representa, potencialmente, um prejuízo às pretensões do credor. Pode pairar sob a garantia fundamental do direito de propriedade atribuída ao que deve a negra sombra da fraude, prejudicando a Responsabilidade Patrimonial já discutida neste trabalho.

Assim, como corolário da Responsabilidade Patrimonial, o ordenamento pátrio desenvolveu um sistema de proteção aos credores. Tal sistema tenta conciliar entes aparentemente antagônicos, como a liberdade de contratar e dispor do devedor e os anseios legítimos do credor, evitando sempre a fraude e buscando a justiça em sua completude.

Esta concatenação de ordem protetiva desenvolvida pelo sistema jurídico pátrio possui essencialmente duas esferas: a) material, vislumbrada primordialmente na figura da fraude contra credores; b) processual, consubstanciada no repúdio à fraude de execução.

Expostas preliminarmente, passemos à análise destas duas esferas constituintes do Sistema de Proteção ao Credor.

            3.1. FRAUDE CONTRA CREDORES

Tratada nas palavras de César Fiuza como "manobra engenhosa levada a efeito, com fito de prejudicar credores"(Direito Civil- Curso Completo, pág. 116), a fraude contra credores é matéria de Direito Civil, ou seja, refere-se a esfera material do Direito, sendo tratada entre os artigos 106 a 113 do Código Civil. Possui como pressuposto o dano (eventus damni) e a fraude em si (consilium fraudis). Aquele, de caráter objetivo, é entendido como a redução a insolvência do devedor em virtude de tal manobra. Este, de cunho subjetivo, é a voluntariedade do dano, a insolvência ardilosamente planejada, com a previsão do dano causado (Amilcar de Castro).

Tal expediente repudiado pelo Direito, ocorre necessariamente antes de intentados quaisquer procedimentos judiciais para a cobrança do crédito por parte do credor, como bem ensina o professor Humberto Theodoro Júnior (Curso de Direito Processual Civil, pág. 109). Neste sentido também ministra o professor Sálvio de Figueiredo Teixeira, que diz que "a alienação feita na iminência de execução ou após protesto não constitui caso de fraude de execução, mas fraude contra credores "(Código de Processo Civil Anotado, pág. 355). Daí, percebe-se que o objeto prejudicado por esta fraude é apenas a pretensão do credor em torno do recebimento do devido.

Majoritariamente, a fraude contra credores ocorre através da alienação de bens, ora a título gratuito, ora a título oneroso, importando que tal negócio reduza o devedor a insolvência, estado este patentemente prejudicial ao almejado pelo credor. Nas alienações a título gratuito, a fraude, mesmo que sem conhecimento do adquirente, em regra vicia o ato. Já nas alienações a título oneroso, se observada a boa-fé do que recebe o bem alienado, ou seja, seu desconhecimento da possível insolvência do alienante, a fraude não vicia o ato.

Liebman, em seu "Processo de Execução", postula, com razão, que a fraude contra credores, apesar de vislumbrada com maior freqüência nas operações de alienação, pode se dar através de meios análogos, como, por exemplo, o processo fraudulento. Muito comum na Justiça do Trabalho, vertente jurisdicional em que prepondera o princípio de proteção ao empregado, o processo fraudulento é aquele em que o devedor e um "testa de ferro" simulam uma lide, que, por fim, terá a sucumbência do primeiro, reduzido através desta a uma falsa insolvência. È notória a presença do dano e do ânimo fraudulento, caracterizando assim fraude contra credor.

Maculado o ato por tal vício, pode o credor lesado lançar mão da ação revogatória, denominada Pauliana, conforme preceitua o Código Civil. Feito autônomo, a Ação Pauliana possui como efeito precípuo a anulação do ato fraudatório em questão. Neste ponto tem-se uma cisão doutrinária quanto a natureza e efeitos formais da presente ação. Em um pólo, vemos parcela da doutrina, representada por Humberto Theodoro Júnior, postular uma natureza reipersecutória e real dos efeitos produzidos, ou seja, teria esta ação a capacidade de " fazer retornar ao acervo patrimonial do alienante o objeto indevidamente disposto, para sobre ele incidir a execução" (Curso de Direito Processual Civil, pág. 108). A garantia do credor é restaurada através de um restabelecimento do patrimônio do devedor. Em posição diametralmente oposta, vemos alguns processualistas, representados por Liebman, refutar a natureza real produzida na Ação Pauliana. O próprio Enrico Tullio Liebman trata a questão nos seguintes termos:

"Não é pois, completamente exata a afirmação comum, segundo a qual a Ação Pauliana faz reverter os bens alienados para o patrimônio do alienante. Se olharmos para seus efeitos sem deixar influenciar pela tradição histórica, veremos que eles consistem simplesmente em permitir que a execução recaia nos bens alienados em fraude, na medida que for necessário evitar prejuízo aos credores, e isso não por que esses bens tenham voltado ao patrimônio do alienante, ora executado, e sim, apesar de se encontrarem no patrimônio de terceiro adquirente"(Processo de Execução, pág. 106).

Não obstante a relevância da questão doutrinária levantada, importante é fixar-se que o principal instrumento de direito material no sistema de proteção ao credor é a Ação Pauliana, na medida em que seu efeito busca sempre afastar a mácula fraudatória pré-judicial que tombe sobre pretensão legítima de credor.

Como ação própria, a Ação Pauliana deve atender a todas as condições da ação, bem como aos pressupostos processuais. Deve ela, como já foi dito, fundar-se em dano efetivo, ou seja, insolvência em virtude da alienação, e no ânimo de fraudar, respeitando sempre a boa-fé do adquirente quando esta for pertinente.

            3.2. FRAUDE CONTRA A EXECUÇÃO

Enfaticamente vislumbrada no art. 593 do Código de Processo Civil, é manobra de aspecto processual inegavelmente mais grave que a fraude contra credores, sendo inclusive passível de sanção penal. Isso por que a fraude a execução não atenta apenas contra a pretensão dos credores, mas também é danosa ao desenvolvimento normal da atividade jurisdicional, transformando esta em letra morta. Neste sentido são as palavras de Moacir Amaral dos Santos, aqui expostas:

"Ademais, na fraude contra credores, alienação ou a oneração, apenas prejudica o credor como particular (uti singulis), enquanto na fraude de execução, além de prejudicar o credor, também prejudica a função jurisdicional pelas dificuldades que lhe cria." (Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, pág- 251)

Portanto, para que ocorra, é necessário que a máquina estatal, através de seu aparato jurisdicional, já tenham sido provocada, seja em mero processo condenatório, seja no processo executório. Importante: não há fraude de execução com sustentação em meros protestos, pois estes ainda não adentraram a esfera da jurisdição. Mas não basta o mero ajuizamento de feito para que a alienação fraudatória se configure contra a execução; necessário se faz que seja o devedor seja citado do feito para que ,daí, recaiam sobre o ato as medidas da fraude contra a execução. Tem sido este o entendimento jusrisprudencial, aqui expresso in verbis:

" Penhora. Embargos de terceiro. Alegação de fraude à execução. I – Para que se considere a alienação em fraude de execução não é suficiente o ajuizamento da ação. Há, para tanto, necessidade da citação válida do executado para demanda com possibilidade de convertê-lo à insolvência. II – Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. III- Recurso especial de que, à unanimidade, se conheceu, mas a que se não atendeu" (Resp 2573-RS, Rel. Min. Fontes de Alencar, DJU de 11-06-90).

Como manobra mais grave, atentatória à dignidade da Justiça, a fraude a execução é reprimida, dentro do sistema de proteção aos credores, com mais vigor pelo ordenamento jurídico. Tal severidade é vista em todo tratamento dispensado contra fraude em apreciação.

Primeiramente, a fraude contra a execução prescinde do elemento subjetivo do consilium fraudis, sendo dispensável a prova de má-fé. Como denotou Liebman, " a intenção é re ipse"(Processo de Execução, pág. 108). Já o elemento objetivo consubstancia-se na insolvência do devedor ou no prejuízo do objeto de ações versantes sobre direitos reais.

Em seguida, nota-se maior severidade contra a fraude de execução através da dispensa de ação própria para reconhecimento do ato fraudulento e a sobreposição de seus efeitos. Como diz Sálvio de Figuiredo Teixeira, " na fraude de execução, basta uma petição do interessado" (Código de Processo Civil Anotado, pág. 355), não se falando em questões tais como condições da ação e pressupostos processuais . Além disso, como atentatória ao poder jurisdicional, pode ser afastada de ofício pelo juiz competente. A jurisprudência também consagra tal visão, conforme trechos abaixo:

"O reconhecimento da fraude e da consequente ineficácia da alienação pode ser declarada incidentalmente no processo de execução, independente de ação específica." (RE 92236, Rel. Rafael Mayer, STF, Juriscível 89/183; RTJ 94/918)

"Pendente demanda que poderá levar o réu à insolvência, reputa-se em fraude a alienação de bens do seu patrimônio, podendo a ineficácia da alienação em face do exequente ser declarada, independentemente de ação e, até, de ofício, no próprio processo." (Resp 7712-RS, Rel. Min. Dias Trindade, DJ de 27-05-91)

O efeito precípuo da medida que afasta a fraude a execução é não a anulação do ato, mas sim a ineficácia deste frente ao credor. O ato de alienação, embora válido entre as partes, não subtrai os bens à responsabilidade executória, continuando estes a responder pelas dívidas do alienante como se ficcionalmente nunca tivessem abandonado seu patrimônio. A alienação tem pleno efeito entre alienante e adquirente. Apenas não pode ser oposta ao exequente. O bem responde até o valor suficiente para, se possível, dar cabo a insolvência. Porém, na maioria dos casos tais bens são insuficientes para tal.

A fraude à execução é tratada no art.593 do Código de Processo Civil. No inciso I de tal dispositivo vemos a nossa codificação processual considerar como fraude a execução a alienação de bem objeto de ação fundada em direito real, tutelando o direito de seqüela. Este dispositivo é , em síntese , uma antecipação da seqüela em relação a possível sentença proferida na ação em curso. Assim, o elemento insolvência não é imprescindível, pois está o objeto determinado, podendo configurar-se a fraude a execução nos casos em que o devedor aliene o bem pendente em ação de direito real, mesmo sendo seu patrimônio superior ao valor da coisa alienada. No que se refere a bens imóveis, a doutrina tem entendido que a inscrição da citação da ação real gera publicidade e faz presumir, iure et de iure, a publicidade de terceiros. Assim, a fraude independe de prova quanto ao conhecimento do adquirente. Porém se falta tal inscrição, cabe ao exequente provar o conhecimento da citação. Note-se: provar o conhecimento; não o consilium fraudis. O mesmo é válido para os bens que sofram constrições ou gravames judiciais, tais como a penhora, o sequestro, etc. Neste sentido aponta Sálvio de Figueiredo, dizendo que "inexistindo registro da citação ou do gravame judicial, ao credor cabe o ônus de provar a ciência, pelo terceiro, adquirente ou beneficiário, da existência da demanda ou do gravame. Dispensável é a prova da má-fé."(Código de Processo Civil Anotado, pág. 356). A jurisprudência também tem se posicionado neste sentido, conforme decisões trazida à cola:

"Fraude à execução – Penhora - Falta de inscrição – Ônus da prova. A falta de inscrição da penhora não impede a alegação de fraude contra a execução e, sim, somente tem significação de ficar o exequente no ônus de provar que o adquirente tinha conhecimento ou de que sobre os bens estava sendo movido litígio fundado em direito real, ou de que pendia contra o alienante demanda capaz de lhe alterar o patrimônio, de tal sorte que ficaria reduzido a insolvência." (Ap. 56387, TJMG, Rel. Oliveira Leite).

"Fraude de execução. Registro de penhora. Desnecessidade. Não se exige o registro da penhora para fins de caracterização de fraude de execução. Recurso provido"(Resp 2597-RS, Rel. Cláudio Santos, DJU de 27-08-90).

Já no inciso II, vemos o Código de Processo Civil tratar como fraude contra a execução a alienação que ocorreu ao tempo em que corria contra o devedor demanda capaz de levá-lo a insolvência. Enquanto no caso do inciso I fala-se de um bem determinado, seja pelo fato de ser objeto de lide versante sobre direito real, seja em virtude de gravame judicial, aqui vislumbra-se claramente a insolvência como elemento objetivo, ou seja, a aplicação plena da responsabilidade patrimonial. Neste inciso não se fala de um determinado bem, mas sim da responsabilidade que o patrimônio de alguém possui em relação a pretensão de outro. O ato de disposição patrimonial deve ser suficiente para que esteja configurada a insolvência e consequentemente a fraude à execução.

Por fim, o inciso III, determina que também devem ser consideradas fraude de execução aqueles atos que afrontem os demais casos expressos em lei, tais como o do art. 672 do CPC, na hipoteca judicial do art. 824 do Código Civil, no art. 185 do Código Tributário Nacional, entre outros. Este último inciso dá ao sistema de proteção ao credor, no que toca a fraude contra credores, mais amplitude e maior possibilidade de se modernizar.

Em todos os casos apontados pelo art. 593 do CPC, a defesa do terceiro, em respeito ao princípio do contraditório, faz-se através de Embargos de Terceiro.


IV- CONCLUSÃO

O homem é bom e a propriedade privada o desvirtua : eis a idéia que Rousseau, explanado seu Jusnaturalismo Romântico, defendeu no auge do Iluminismo. E, não obstante as críticas severas a que as teorias contratualistas estão sujeitas, um elemento de verossimilhança pode ser extraído de tal ícone: o grau degenerativo que a propriedade privada traz às relações humanas.

A propriedade privada é um elemento essencialmente dialético da vida humana. Ao mesmo tempo em que é marco de união de esforços dos homens, é ponto de discórdia dos mesmos. Serve tanto para gerar conforto e dignidade para uns, quanto miséria e indignidade para outros. É ponto de igualdade e desigualdade entre os homens.

Dentre um dos pontos negativos e desagregadores incutidos na propriedade privada, está a enorme força anti-ética que ela possui, traduzida na má-fé, na malícia dos que por ela lutam a qualquer custo. Os homens tornam-se escravos dela e por ela vestem-se com a manta de um individualismo exacerbado. A justiça deixa de ser uma constante nos hábitos humanos, ganhando um status de utopia.

È justamente nesta perda de referencial sobre o valor do justo que a propriedade privada imprime no cotidiano humano, que se insere a análise prática da Responsabilidade Patrimonial e o Sistema de Proteção aos Credores delineados no presente trabalho.

A má-fé humana tem ocasionado um hiato entre a lei teoricamente considerada e a sua aplicação em termos reais.

Em um plano teórico, percebeu-se que o sistema de responsabilidade patrimonial e proteção aos credores é bom. Atento às pretensões do credor, ao mesmo tempo em que garante a defesa do devedor, tal sistema traz um rol amplo de responsáveis patrimonialmente, bem como elastece as possibilidades de aplicação do sistema protetivo (v.g., vide o art. 593, III do CPC). Em uma concatenação lógica, o sistema atribui aos atos maculados pela má-fe contra a responsabilidade patrimonial, aqui representada pela fraude, as conseqüências da anulabilidade ou da ineficácia.

Porém em termos práticos este sistema de proteção dos credores e da responsabilidade patrimonial tem sido letra morta, quase uma piada consagrada pelo ordenamento jurídico,conforme iivemos ocasião de sugerir na introdução deste trabalho. Apesar de todo arcabouço instrumental trazido pela lei, o " calote " é " instituição " quase impune, situação demonstrada pelo grande grau de verdade atribuído ao jargão " Dívida Civil só paga quem quer", pronunciado até nas mais augustas academias jurídicas. O que se tem é que, apesar de todo esforço proposto no texto legal, a fraude não tem sido afastada em virtude das mais ardilosas e complexas operações. A fraude é tão bem orquestrada, inclusive com a ajuda de profissionais do Direito, que os efeitos de anulação e ineficácia não tem atingido o ato fraudulento. É a má-fé suplantando a justiça; é a lei do mais esperto, da "rasteira" bem dada ou não.

Mas o Direito não deve se acomodar com isso, pois como ente deontológico, deve ele, constatando a inaplicabilidade de uma norma reflexiva de princípio, lançar mão de instrumentos que aos menos tentem diminuir consideravelmente este hiato. E é justamente nesta perspectiva, não de acabar, mas pelo menos diminuir a vantagem que a má-fé tem a favor de si, que viemos apresentar algumas humildes sugestões de melhoria no sistema de proteção ao credor e da responsabilidade patrimonial.

A primeira, refere-se a uma ampliação substancial da própria responsabilidade patrimonial. Um exemplo dessa ampliação é a maior utilização da desconsideração da pessoa jurídica, hoje consagrada apenas no Código de Defesa do Consumidor. Muitos fraudadores utilizam-se da fantasia de uma Pessoa Jurídica para manterem-se impunes. Se a desconsideração da pessoa Jurídica for consagrada não apenas no que se refere a responsabilidade por relações de consumo, mas sim em todo sistema de responsabilidade patrimonial, diminuiria-se uma das alternativas de fraude, na medida em que sumiria seu escudo. Assim, o encampamento legal deste instituto na responsabilidade patrimonial seria bem vindo.

Outra medida seria dar maior celeridade aos feitos judiciais, pois diminuindo o tempo para prestação jurisdicional, menor seria o tempo hábil para a construção da fraude.

Medida também bem vinda seria a maior severidade jurisdicional quando constatada a efetiva fraude, seja contra o credor, seja contra a execução. Os efeitos não devem resumir-se apenas a anulação ou ineficácia, mas devem conter elementos que tornem a fraude um mau negócio ao fraudador. Nesse sentido, a instituição automática de perdas e danos substancialmente elevadas, aderidas aos efeitos precípuos do sistema protetivo do credor inegavelmente coibiria parte dos que ensejam fraudar a responsabilidade patrimonial. Neste ponto, sem adentrar no mérito da questão, merece lembrete a posição jurisprudencial, principalmente dos Tribunais Superiores, de refutar a prisão civil. Apesar de consagrada na lei, tal prisão tem sido considerada extrapolação da responsabilidade patrimonial, atingindo pessoalmente o corpo do devedor. Mas poderia o limite da responsabilidade patrimonial ser a própria " sentença de morte" desta? Inegavelmente a questão merece maior debate em outra oportunidade.

Mas faz-se mister salientar: tais medidas não acabarão com a fraude. Apenas serão meio de difucultá-la e de proporcionar maior eficácia a responsabilidade patrimonial. A reformulação do sistema protetivo de credores, através de medidas que talvez transcendam as aqui postuladas, é ponto de vida ou morte para responsabilidade patrimonial, quiçá, da própria função jurisdicional do Estado em matéria civil.

É apenas uma questão de abrirmos os olhos e enxergarmos a realidade com coragem para mudá-la, atributo este que vem sendo cada vez mais raro no espírito de nossos juristas.


V- BIBLIOGRAFIA

FIUZA, Cesar – Direito Civil – Curso Completo – Editora Del Rey, 3ª Edição, Belo Horizonte, 2000.

LIEBMAN, Enrico Tullio – Processo de Execução – Editora Saraiva, 4 ª Edição, São Paulo, 1980.

LIMA, Alcides de Mendoça – Comentários ao Código de Processo Civil – Série RT, v. VI, tomo II , Rio de Janeiro, 1974.

SANTOS, Moacir Amaral – Primeiras Linhas de Direito Processual Civil – vol. 3 Editora Saraiva, 8ª Edição, São Paulo, 1985.

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo – Código de Processo Civil Anotado – Editora Saraiva, 5ª Edição, São Paulo, 1993.

THEODORO JÚNIOR, Humberto – Curso de Direito Processual Civil – vol. 2, Editora Forense, 13ª Edição, Rio de Janeiro, 1994.

THEODORO JÚNIOR, Humberto – Curso de Direito Processual Civil – vol. 2, Editora Forense, 13ª Edição, Rio de Janeiro, 1995.


Autores


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa; PIMENTA, Gustavo Trindade. A responsabilidade patrimonial e o sistema legal de proteção aos credores. Teoria e efetividade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2145. Acesso em: 28 mar. 2024.