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O grito silencioso da criança diante da violência sexual intrafamiliar

O grito silencioso da criança diante da violência sexual intrafamiliar

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Analisa-se o problema da violência sexual intrafamiliar contra crianças, promovendo discussões para ajudar todos os envolvidos nessa problemática familiar.

INTRODUÇÃO

A violência sexual intrafamiliar é um problema grave e ascendente na nossa sociedade. Ela viola gravemente os direitos humanos e deixa marcas profundas no desenvolvimento físico, psicológico, emocional e social da vítima, mormente quando esta se trata de criança.

O núcleo familiar fica destruído, marcado pela revolta e pelo sentimento de culpa por não ter sido capaz de perceber, a tempo, o problema e evitar danos mais graves. Percebe-se, por sua vez, que a maior barreira da violência sexual intrafamiliar contra crianças encontra-se no medo das vítimas em denunciar o agressor e na escassez de diálogo entre os familiares.

O tema proposto reveste-se de relevante discussão acadêmica acerca da possibilidade de buscar meios urgentes para amenizar o problema, iniciando-se com a necessidade de divulgação da problemática, estimulando-se a ocorrência de denúncias e uma reestruturação jurídico-social, no atendimento às vítimas, para que estas sejam preservadas e atendidas por profissionais habilitados.

O tema é controverso e polêmico, especialmente porque fere o conceito de “família feliz” que permeia a sociedade, fazendo com que os agressores se escondam e levem o crime à impunidade, afinal poucos irão acreditar na palavra da vítima, que em sua maioria são tidas como fantasiosas e mentirosas.

A presente pesquisa científica tem, portanto, como objetivo principal analisar o problema da violência sexual intrafamiliar contra crianças bem como promover discussões em torno do tema de modo a buscar meios para ajudar a todos os envolvidos nessa problemática familiar.

O trabalho está estruturado de modo a se fazer uma análise do tema numa abordagem acerca da formação social da família, buscando melhor compreender essa instituição, perpassando pelas Idades Média e Moderna até os dias hodiernos, enfatizando-se os principais crimes sexuais cometidos contra crianças, previstos tanto no Código Penal – incluindo as alterações ocorridas neste com o advento da lei 12.015/2009 – como no Estatuto da Criança e do Adolescente. Aborda-se conseguintemente a violência sexual intrafamiliar contra crianças em seus aspectos sociais e jurídicos, trazendo à discussão o problema da dificuldade em se apurar o delito e elenca, ainda, sugestões de possíveis medidas protetivas a serem adotadas ante esse tipo de violência.


1. ASPECTOS HISTÓRICOS DA FORMAÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA: A CRIANÇA COMO DETENTORA DE DIREITOS

Ao longo da história, observa-se uma imensa falta de proteção jurídica em relação à violência praticada contra crianças. São muitos os casos de agresão – física e moralmente – tais como abandono, espancamento, violência sexual e psicológica. Ressalta-se que tais agressões, muitas vezes, são cometidas pelos próprios familiares.

Vale salientar que, na antiguidade, esta violência recebia apoio das leis, quando se destaca o Código de Hamurabi, elaborado há cerca de 1700 a.c, no primeiro império Babilônico, por determinação do imperador Hamurabi. Esse Código tem, como base, a Lei de Talião “olho por olho dente por dente“, quando reza em seu artigo 192 que “se o filho de um dissoluto ou de uma meretriz diz a seu pai adotivo ou a sua mãe adotiva: "tu não és meu pai ou minha mãe", dever-se-á cortar-lhe a língua”. Podemos observar, pois, que estas violências eram autorizadas por lei em nome da obediência à hierarquia e às regras impostas, sem que houvesse uma preocupação em proteger os direitos humanos e garantir a preservação da sua integridade física e psicológica.

Em Roma, a família ficava sob a absoluta autoridade de seu chefe, o pater famílias, cuja influência só cessava com a morte. Ele exercia um poder de vida e de morte sobre seus descendentes. Os filhos tinham que se curvar a esta autoridade independentemente, da idade e, caso adquirissem qualquer direito, o adquiriam para o pater famílias. Segundo Maior (1975 p. 153), “o pater era, ao mesmo tempo, o juiz de todas as questões domésticas, o sacerdote do culto no lar e o único senhor do patrimônio familiar”.

No aspecto legal, observa-se que as leis romanas também estimulavam o poder paterno e, em determinadas ocasiões, contribuíam para as práticas violentas contra as crianças, haja vista que a Lei das XII Tábuas, em sua tábua Quarta, permitia que o pai matasse o filho que nascesse disforme, mediante julgamento de cinco vizinhos.

Vale destacar que as relações incestuosas ganharam maiores proporções na Idade Média, pois não se tinha o devido cuidado em preservar a pureza e inocência das crianças, levando-as a estimular sua sexualidade através dos discursos e brincadeiras. Fhilippe Áries (1981, p. 126), traz vários relatos que confirmam essa assertiva:

Era uma brincadeira comum e muitas vezes repetida às pessoas lhe dizerem: “Monsieurs não tem pênis”. Ele respondia: “É, olha aqui”! e alegremente levantava-o com o dedo” Essas brincadeiras não eram restritas à criadagem ou a jovens desmiolados ou a mulheres de costumes leviano.

Ao se levantar, de manhã, não quis nem por nada vestir a camisa e disse: camisa não, primeiro quero dar a todo mundo um pouco de leite do meu pênis, as pessoas estenderam a mão e ele fingiu que tirava leite, fazendo pss... pss; deu leite a todos e só então deixou que lhe pusessem a camisa.

Áries assegura, ainda, que a valorização excessiva da sexualidade mediante esta prática de brincar com o sexo das crianças perdura até os dias hodiernos, nas sociedades mulçumanas.

Com o advento do Cristianismo, os relacionamentos familiares tornaram-se um pouco mais humanizados, uma vez que os filhos passaram a ser objeto de amor dos pais, contudo havia uma preocupação intensiva em torno da disciplina. Para tanto, os pais passaram a enviar seus filhos à escola e internatos de modo que fossem devidamente educados.

Em nome dessa educação e disciplina houve uma forte valorização dos castigos, punições físicas e espancamentos sempre com a intenção de educar, conforme preleciona Azambuja (2004 p.31): “Acreditavam que as crianças poderiam ser moldadas de acordo com os desejos dos adultos, sendo que a estrita obediência era o único modo de escapar às punições”

Somente em meados de 1850, na Europa, é que se pôde perceber relações mais afetuosas entre pais e filhos, ocupando estes últimos importante papel no seio familiar, havendo, destarte, um maior investimento nos laços de família. Esse fato se deu, principalmente, por alguns fatores: o despertar para a importância da educação, a concepção de que a criança seria moldada pelos adultos e as ideias de alguns pensadores que contribuíram em larga escala para o entendimento da nova concepção de infância.

Apesar desses avanços, verifica-se um crescente aumento na violência contra a criança, o que levou os governos a criarem meios de proteção às mesmas.

Em 1921, no Rio de Janeiro, foi criado o Serviço de Assistência e Proteção à Infância Abandonada e Delinquente. Passou-se, então, a discutir a necessidade de criação do primeiro código de Menores, através do projeto de Mello Matos que vetava aos delinquentes menores de quatorze anos a possibilidade de responder processo penal e limitava em doze anos a idade mínima para o trabalho.

Somente em 1959, foi instituída a Declaração dos Direitos da Criança, que lhes garantia o direito à igualdade, sem distinção de raça, religião ou nacionalidade. Devotou-se especial proteção para o seu desenvolvimento físico, mental e social, passando a haver uma preocupação em torno dos maus tratos sofridos pelas crianças, tornando-as objeto de investigação.

Com a Constituição de 1988, a criança passa a ser vista como sujeito de direitos e elevados à categoria de prioridade absoluta, como bem assegura a nossa Carta Magna em seu art.227 in verbis:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A Constituição brasileira é tida como uma das mais democráticas do mundo. Ela traz em seu bojo princípios salutares para a formação de uma sociedade mais justa e igualitária, dentre eles o Princípio da Dignidade Humana e a proteção especial à criança e adolescente, como bem destaca o procurador de Justiça do Rio Grande do Sul “Lênio Streck, em entrevista ao site CONSULTOR JURÍDICO, em 15 de março de 2009: “A nossa Constituição é a mais democrática do mundo e a que mais possui mecanismos de acesso à Justiça. É a mais adequada a países de modernidade tardia, como o Brasil”.

Em 1990, foi instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que provocou mudanças radicais na política de atendimento à criança e ao adolescente, no que tange a garantia dos seus direitos, como consta em seu artigo terceiro:

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Em conformidade com Azambuja (2004), o Brasil ocupa posição de vanguarda no cenário internacional, sendo um dos primeiros a adequar o ordenamento jurídico às novas diretrizes lançadas pela Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança.

O Brasil, dessa forma, busca garantir à criança e ao adolescente maior segurança, no intuito de diminuir os casos de violência contra os mesmos, assegurando-lhes também o cumprimento dos seus direitos constitucionais.

Faz-se mister destacar que, nas diversas culturas e classes sociais, apesar de todas estas medidas adotadas, as crianças continuam sendo alvos de violências físicas, psicológicas, sexuais, bem como negligenciadas no que concerne à educação, moradia, assistência à saúde. Continua, também, sendo submetidas às diversas situações de abuso de poder disciplinador, causando-lhes profundas marcas no seu desenvolvimento físico e emocional, o que as torna, muitas vezes, adultos com incapacidades de construir relações de confiança e familiaridade.


2. CRIMES SEXUAIS CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE

O art.1º da Lei de Introdução ao código Penal define crime como: “Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa”.

Greco (2011 p.141) colabora com a Lei Penal, definindo crime como uma transgressão a uma norma social e ao direito de outrem, quando diz que “crime é um fato típico, antijurídico ou ilícito e culpável. O fato típico englobará: a) a conduta dolosa ou culposa, b) o resultado, c) o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado e d) tipicidade (formal e conglobante)”.

Dentre os tipos de crime, existem os de ordem sexual que, de acordo com Fonseca (2001), são os que transgridem a integridade física e psicológica do indivíduo, trazendo consequências, muitas vezes, irreparáveis. Esses delitos encontram sua tipificação no Código Penal Parte Especial, intitulada como “Crimes contra a dignidade sexual”, bem como no Estatuto da Criança e do Adolescente, em sua seção II que trata dos “Crimes em Espécie”.

Salienta-se que a lei Penal não interfere diretamente nas relações sexuais do indivíduo, contudo coíbe as condutas que venham a violar gravemente a moral destes e da sociedade.

No que diz respeito aos crimes de ordem sexual cometidos contra crianças, optamos por abordar o estupro por ser o mais comum e grave.

 2.1 Estupro na nova concepção dos crimes contra a dignidade sexual

A moral social, sob o ponto de vista sexual do indivíduo, encontra-se disposta na Parte Especial do Código Penal, editado através do Decreto Lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940, em seu capítulo V, denominado “Crimes contra os costumes”, modificado pela lei 12.015/2009 de 07 de agosto de 2009, sob o título “Dos Crimes contra a dignidade sexual”.

 O Estupro, tipificado no art, 213, recebia a seguinte tipificação: “Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão de 06 (seis) a 10 (dez) anos”. Com o advento da nova lei, houve uma mudança substancial na referida tipificação, cujo teor passa a ser como descrito a seguir:

Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: 

Pena - reclusão de 6 (seis) a 10 (dez) anos. 

§ 1º  Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: 

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. 

§ 2º  Se da conduta resulta morte: 

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

O legislador, com base na igualdade entre homens e mulheres previsto na Constituição em seu art.5º, inciso I, possibilitou que o homem figurasse como vítima do estupro, saindo da condição de apenas sujeito ativo para ativo ou passivo, conforme o caso, corrigindo-se dessa forma a antiga desproteção jurídica do homem no delito em contento.

Outro ponto importante na nova tipificação é que o legislador unificou o crime de estupro e atentado violento ao pudor figurando agora, ambos, no art.213, cujas condutas passam a ter denominação de estupro.

Nos casos de estupro, mediante violência moral ou tentativa de estupro sem agressão física que deixe vestígio, torna-se difícil a comprovação delitiva, restando tão somente a palavra da vítima e das testemunhas, quando houver, para que se possa comprovar o delito.

Nesses casos, deve-se buscar de forma mais criteriosa possível a apuração dos fatos, de modo a que se chegue à realidade destes.

Noronha apud Capez (2008, p.12) faz a seguinte elucidação:

 É natural que a palavra do ofendido seja recebida, em princípio, com reservas. Interessado no pleito, porfiando por que sua acusação prevaleça, cônscio da responsabilidade que assumiu, podendo até acarretar-lhe processo criminal (denunciação caluniosa, art.339 do Código Penal) e, por outro lado, impelido pela indignação ou o ódio e animado do intuito de vingança, suas declarações não merecem, em regra, a credibilidade do testemunho. Isso, entretanto, não impede seja ele fonte de prova, devendo seu relato ser apreciado em confronto com os outros elementos probatórios, podendo, então conforme a natureza do crime, muito contribuir para a convicção do juiz.

Ante a impossibilidade da coleta de provas mediante perícia médica, o magistrado deverá utilizar-se o máximo possível de cuidados na apuração dos fatos. Uma vez tratando-se de depoimento de vítima menor, essa também será tida como importante para comprovação dos fatos, devendo o referido depoimento encontrar amparo nos demais elementos probatórios. A dificuldade em se comprovar a existência desses delitos tem levado muitos casos de crimes contra o costume ao rol da impunidade.

Como forma de coibir um pouco mais essa impunidade, o legislador acabou por revogar o art.244 do código Penal que previa as hipóteses de presunção de violência que passam a ser elementos do crime de estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A, in verbis:

Estupro de vulnerável

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: 

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º  Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. 

§ 2º  (VETADO)

§ 3º  Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.

§ 4º  Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

O referido dispositivo além de cominar pena mais grave no delito praticado contra vulneráveis não abre discussão sobre a ocorrência ou não de violência ou grave ameaça. Uma vez configurado o crime contra vulnerável, já se tipifica a conduta como estupro.

Destaque-se ainda que as qualificadoras pelo resultado passaram a integrar o próprio art.213 com penas mais altas, conforme comenta Jairo José Gênova em seu artigo “Novo crime de estupro”:

A qualificadora pelo resultado morte teve a pena máxima aumentada de 25 para 30 anos (213, § 2º), enquanto idênticas qualificadoras do estupro de vulnerável (art. 217-A, §§ 3º e 4º) tiveram penas fixadas em patamares mais elevados (reclusão de 10 a 20 anos para a hipótese de lesão grave e reclusão de 12 a 30 anos para a hipótese de morte da vítima).

Além disso, alterou-se a redação da qualificadora pelo resultado lesão corporal de natureza grave, substituindo-se a expressão "violência", contida no artigo 223, pela expressão "conduta" (artigos 213, § 1º e 217-A, § 3º).

Essa modificação torna o tipo mais abrangente e permite a sua aplicação na hipótese de as lesões graves decorrerem de grave ameaça (a título de exemplo, a vítima, aterrorizada pelas ameaças, pode sofrer um enfarte que lhe acarrete paralisia de parte do corpo), o que não era possível antes da nova lei.

É importante destacar que os casos de aumento de pena previstos no art. 226 do código penal permaneceram inalterados:

Art. 226. A pena é aumentada:

I - de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas;

II - de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela;

O inciso II prevê pena mais severa ao agressor que, se aproveitando da sua condição de autoridade, pratica o delito, quando, na realidade, a sociedade espera deste uma postura de proteção e orientação, jamais de total desrespeito à dignidade humana daqueles a quem lhe são confiados. Este agressor deve ser, portanto, duramente punido.

Essa permanência é importante uma vez que o crime de estupro em meio à violência sexual intrafamiliar é um dos que possui maior incidência, conforme Dias (2007 p. 23): “Em 90% das denúncias, o autor é membro da família da vítima, é alguém que ela ama, conhece e respeita, sendo que em 69,6% dos casos o autor é o pai biológico, em 29,8% o padrasto em 0,6% o pai adotivo”.

A Lei 12.015/09 fez importante reforma na titularidade para interpor ações no âmbito dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes contra vulnerável, retirando do ordenamento jurídico a ação privada, segundo preceitua o art. 225:

Art. 225.  Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.

Parágrafo único.  Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.

Sabiamente, o legislador assegurou que a ação penal tramitasse mediante ação pública incondicionada, quando as vítimas forem menores de dezoito anos, uma vez que, em se tratando de crime praticado contra a criança e o adolescente, tornar-se-ia muito difícil a representação por parte da vítima. Piora-se ainda mais quando o agressor faz parte do núcleo familiar da criança e com ele convive diretamente, dependendo, inclusive, materialmente do mesmo para sobreviver. Neste caso a vítima fica mais passiva às ameaças.

Embora já estivesse praticamente pacificada nas doutrinas e nos tribunais, a nova lei veio, de forma expressa, tipificar como crimes hediondos os estupros de natureza simples, qualificada e o estupro de vulnerável.

Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:

V - estupro (art. 213, caput e §§ 1º e 2º); 

VI - estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1º, 2º, 3º e 4º).

Considerados como hediondos, os crimes de estupro não são passíveis de anistia, de graça, de indulto, de liberdade provisória ou de fiança. O cumprimento da pena dar-se-á no regime fechado.

Saliente-se que vem sendo concedida a progressão de regime nos crimes hediondos, em nome do Princípio da Individualidade da Pena, nos crimes cometidos até março de 2007, com base no percentual de 1/6 de cumprimento da pena. Tal feito levou a criação da lei nº 11.464/2007, de 28 de março de 2007, que regulamentou o instituto das progressões nos crimes hediondos, exigindo-se para tanto o percentual de cumprimento de 2/5.

Recentemente, o STF havia decidido que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor não são crimes continuados. Por seis votos a quatro, os ministros, no dia 18 de junho de 2009, decidiram que quem pratica estupro e atentado violento ao pudor deve ter as penas somadas, uma vez que se trata de crimes de espécies diferentes.

Com a unificação dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor na mesma figura delitiva prevista no art.213 do código penal, vislumbra-se que uma nova discussão, englobando essa temática, será travada nos tribunais e pelos doutrinadores, uma vez que a lei acabou por tratar os delitos como crimes de mesma espécie. O comentário de Jairo José Gênova (2009, p.2) diz:

Estava pacificado que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor eram crimes de espécies diferentes e deveriam ser punidos de forma autônoma. Assim, quem praticasse conjunção carnal e outro ato libidinoso (coito anal, p.ex.) contra a mesma vítima, deveria responder pelos dois crimes. A divergência residia na espécie de concurso de crimes. Ora se sustentava que se tratava de concurso material e as penas deveriam ser somadas (STF, HC 94714/RS, rel. Min. Carmen Lúcia, j. 28.10.2008), ora se sustentava que se tratava de crimes continuados, aplicando-se a exasperação prevista no artigo 71 do Código Penal (STF, HC 89827/SP, rel. Min. Carlos Britto, j. 27.02.2007).Com a nova lei, os atos libidinosos diversos da conjunção carnal passaram a integrar a descrição típica do crime de estupro e, doravante, quem praticar, em um mesmo contexto fático, conjunção carnal e outros atos libidinosos contra a mesma vítima, responderá por um único delito: o de estupro.Nesse aspecto a nova lei é mais benéfica e, nos expressos termos do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, deve retroagir para alcançar fatos ocorridos antes de sua vigência, inclusive as decisões já transitadas em julgado, que deverão ser revistas em sede de Execução Penal.Assim, aqueles que foram condenados ou estejam sendo processados pelos dois crimes praticados, no mesmo contexto e contra a mesma vítima, devem ser responsabilizados unicamente pelo crime de estupro.

Nesse ponto a lei foi mais benéfica, cabendo ao magistrado, por ocasião da sentença, fixar pena em patamar mais alto, quando o agressor acabar por praticar as duas condutas, usando, dessa forma, bom senso e justiça.

Nesse sentido, já se pronunciou o Tribunal de Justiça da Paraíba:

APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PALAVRA DA VÍTIMA. ESPECIAL RELEVÂNCIA NESTE TIPO DE INFRAÇÃO. HARMONIA COM AS DEMAIS PROVAS COLHIDAS NO CADERNO PROCESSUAL. CONDENAÇÃO. MANUTENÇÃO. LEI 12.015/2009. REVOGAÇÃO DO ART. 224, DO CÓDIGO PENAL. NOVA DEFINIÇÃO JURÍDICA PARA O DELITO PRATICADO COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA CONSTANTE NO ART. 217-A DO CP – CRIME ÚNICO. NOVA DOSIMETRIA. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA. PROVIMENTO PARCIAL AO APELO. Como os crimes de atentado violento ao pudor e estupro, após o advento da Lei 12.015/2009, não constituem mais delitos distintos, integrando, agora, o mesmo tipo penal, in casu, o tipo do art.217-A, posto que praticado contra menores de 14 anos, embora tenham sido perpetrado vítimas diferentesm deve-se aplicar a regra do crime continuado, posto que cometido nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e modo de execução. (APELAÇÃO 0132009000870-0/001 –2ª vara – Cajazeiras. Relator Dr. Eslu Eloy Filho. Tribunal de Justiça da Paraíba. Julgado em 17/06/2010.

No caso supra mencionado o apenado havia sofrido uma condenação de 32 anos de reclusão, face o concurso material. Com a nova tipificação trazida pela Lei 12.015/2009 e consequente julgado de apelação, a pena foi modificada para 18 anos de reclusão. Percebe-se, dessa forma, que a lei, nos referidos casos, acabou favorecendo o agente criminoso. 

Os índices de violência sexual contra meninos são bem inferiores aos das meninas. Contudo, constata-se que esses índices também vêm crescendo a cada ano, conforme relata a psicóloga Valéria Brahim, gerente de projetos sociais da ONG, “Terra dos Homens”, por ocasião do 3° Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, realizado no dia 25 de novembro de 2008, no Rio de Janeiro. Revelou a psicóloga que, no Brasil, a idade das vítimas de abuso e de exploração sexual é cada vez menor e que a idade tem diminuído – crianças de 9 a 12 anos já são vítimas da prática ilícita. Os índices entre crianças da idade de 12 a 15 anos são maiores. Ainda segundo Valéria, o número de meninos violentados também é crescente e existe um contingente cada vez maior de meninos entrando nessa relação comercial com o sexo.


3 VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR

A violência é um fenômeno universal que ataca indistintamente homens, mulheres e crianças de todas as classes sociais e faixas etárias de desenvolvimento.

Detecta-se um aumento no índice da violência sexual, porém não se sabe se essa violência tem se tornado mais frequente ou se esse aumento ocorreu em função do maior número de denúncias que chegam atualmente com mais facilidade aos meios de proteção: os disque-denúncia, disponíveis em várias cidades do país; Conselhos Tutelares; Promotorias e,ainda, as delegacias especializadas a qual a vítima pode ter acesso de forma direta.

A revista Veja, edição de 18 de março de 2009, traz, por Laura Diniz, no artigo “Silêncio Rasgado”, informações acerca do aumento de casos de violência sexual nos últimos cinco anos. O número de casos de violência sexual (denunciadas) contra crianças de classe média subiu de zero para 22% nos últimos cinco anos, segundo registros médicos oficiais de São Paulo. Esses dados foram colhidos através de uma pesquisa pelo Núcleo de Estudos de Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (Nufor) do Hospital das Clínicas de São Paulo. Foram analisados 118 casos de vítimas de pedofilia.

Segundo esse estudo a violência sexual é vivenciada principalmente dentro dos lares, onde a vítima recebe agressões físicas, psicológicas e sexual, bem como fica sujeita a abandono e negligência por partes dos seus “responsáveis”.

A Constituição prevê em seu Art. 227:

 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A família falta gravemente com o seu dever, e se mostra não somente incapaz de assegurar à criança e ao adolescente os direitos a eles garantidos por lei, como também se torna os próprios algozes dessas vítimas, aproveitando-se da sua confiança e fragilidade para saciar seus desejos mais vis.

A problemática da violência sexual intrafamiliar ganha, hoje, papel de destaque na sociedade por demonstrar a fragilidade da instituição familiar. A criança abusada sexualmente por um dos membros do seu núcleo familiar vê destruir diante de si toda a concepção de família e de civilização. Essa violência constitui-se em grave violação aos direitos humanos.

Maria Berenice Dias (2008), em seu artigo Incesto: uma questão de família, faz, com grande sapiência, o seguinte destaque:  “É preciso que todos se dêem conta de que este é o crime mais hediondo que existe, pois tem origem em uma relação afetiva e gera como conseqüência a morte afetiva da vítima”.

3.1 A revelação do Segredo

Além da grave lesão física e psíquica, um dos principais problemas encontrados na violência sexual intrafamiliar é a dificuldade em se levar à tona o problema, uma vez que a vítima convive diretamente com o seu agressor. Dentre as barreiras encontradas para exteriorização do ocorrido destaca-se o medo, a falta de credibilidade no sistema jurídico, a dificuldade de se comprovar a denúncia e o sentimento de culpa por não ter tido condições de evitar o ocorrido.

Dessa forma, as estatísticas não são capazes de expressar a realidade da violência sexual. Braun (2002 p. 16) preleciona:

As estatísticas indicam, infelizmente, que certos lares são verdadeiras ditaduras familiares em violência sexual doméstica, permitindo, desta forma, que os abusos se perpetuem imunes às intervenções externas.

Um dos fatores preponderantes para esta realidade mascarada é o medo do agressor, das consequências advindas com a revelação, e ainda, o risco de ser desacreditada pela família e pela sociedade, fazendo assim com que ocorra entre vítima e agressor um verdadeiro “pacto” de silêncio.

Azambuja (2004, p. 101) destaca:

Fatores externos assim como fatores psicológicos contribuem para a manutenção do segredo no abuso sexual intrafamiliar. Entre os externos, é possível citar a inexistência de evidências médicas, o que leva a família a não ter como comprovar o fato; ameaça contra a criança vítima e suborno; falta de credibilidade na palavra da criança, o que pode induzi-la a não revelar o abuso com medo de ser castigada pela “mentira”; temor pelas conseqüências da revelação, com a concretização das ameaças que recebeu. Entre os fatores psicológicos destacam-se a culpa; no mecanismo de defesa conhecido como dissocialização, a vítima separa o abuso sexual (fato real) dos sentimentos que o ato lhe provoca.

O sentimento de confiança e o diálogo nas relações familiares poderiam romper esse “pacto”. Assim a vítima, sentindo-se segura, ficaria mais confiante para fazer a revelação.

Segundo revela a revista Veja (edição nº 2104, 18 de março de 2009), a disseminação das informações não atingiu apenas adultos. Segundo a revista, no site de relacionamentos Orkut, já existem diversas comunidades formadas por vítima de abuso sexual. A SOS Abuso Sexual, por exemplo, já reúne, até a presente data, 2.126 membros que trocam mensagens e relatos de abusos sexuais.

Se por um lado a rede de computadores reúne comunidades vítima de violência numa troca de informações, orientações e ajuda, por outro, estimula os pedófilos a divulgar e disseminar os seus desejos mais sórdidos, numa troca de “experiências” e relatos das suas relações pervertidas.

A vítima exterioriza indiretamente, através de seu comportamento, a violência sofrida. Pais, familiares, professores, amigos e demais pessoas que convivem diretamente com elas, poderiam perceber o problema ocorrido através da exteriorização comportamental das mesmas.

Extrai-se de Braun (2002) e Diniz (2009) alguns indicadores dessa violência:

             Indicadores físicos

    Indicadores psicológicos

Dificuldades no caminhar;

Vergonha e medo excessivos

Infecções urinárias constantes

Autoflagelação

Secreções vaginais

Comportamento sexual inadequado para sua idade

Sangramentos inesperados

Fugas constantes de casa

Roupas rasgadas ou com manchar de sangue

Masturba-se excessivamente

Dor ou coceira na área genital

Desenha órgãos genitais

Cérvice, vulva, períneo, pênis ou reto edemaciados ou hiperemiados

Depressão constante

Doenças sexualmente transmissíveis

Queda repentina no rendimento escolar

 

Evita despir-se na frente das pessoas

Álvaro Morales e Fermin Schramm (2002, p.267) evidenciam:

O menor, vítima desse tipo de abuso, entra num estado de angústia porque em função de sua estrutura psicológica, não consegue contar para terceiros, ou porque, quando consegue contar, ninguém a sua volta dá crédito ao que ele diz e quando finalmente, o menor consegue conversar com alguém que o leva a sério, já transcorreu muito tempo, e previsíveis consequências daninhas do ponto de vista emocional e da estrutura da personalidade já aconteceram.

Uma vez que a criança não consegue externar o problema, é possível, através da atenção e vigilância ao comportamento da vítima, perceber que algo está errado e merece atenção e cuidados. Essa atenção pode contribuir muito para a elucidação do ocorrido.

3.2 Consequências da violência sexual intrafamiliar

A violência sexual repercute gravemente nos universos mental e físico da vítima, porém a violência sexual intrafamiliar deixa marcas ainda mais profundas, já que o agressor é uma pessoa de “confiança” com quem possui fortes vínculos afetivos.

As consequências variam muito de pessoa para pessoa e levam em consideração os seguintes aspectos: grau de maturidade, apoio recebido, tanto a nível familiar como profissional (psicólogos, assistentes sociais) e o tipo de agressão.

Azambuja (2004, p. 124/125) aponta algumas consequências advindas da violência sexual:

Entre as consequências do abuso sexual, as crianças podem apresentar em seu desenvolvimento as seguintes manifestações: automutilações e tentativas de suicídio adição a drogas, depressão, isolacionismo, despersonalização, isolamento afetivo, hipocondria, timidez, distúrbio de conduta, impulsividade e agressões sexuais, assim como é frequente a presença de síndromes dissociativas, transtornos severos de personalidade e transtorno de estresse pós-traumático. As crianças maltratadas apresentam grande dificuldade para reconhecer seus sentimentos e para falar deles, especialmente de seus desejos, sua solidão, sua angústia e suas satisfações.

Esses fatores causam um impacto severo à estrutura psicológica da vítima, que deveria ser fortalecida na infância e adolescência.

O agressor destroi os sonhos e ilusões da infância/adolescência, fazendo a vítima amargar cruéis desilusões, modificando quase que completamente a estrutura psicológica da vítima. 

3.3 É possível proteger a criança e o adolescente?

Tirar o véu do preconceito, encarar o problema e compreender o fenômeno da violência sexual contra a criança e o adolescente são os primeiros passos a serem galgados para a solução do problema. Por outro lado, esforços por parte dos poderes públicos e privados, dos Conselhos Tutelares, do Ministério Público, dos profissionais da saúde e da educação e uma articulação entre familiares da vítima e sociedade ajudariam muito na identificação e combate à violência sexual.

Com o intuito de melhor assegurar os direitos da criança e do adolescente foi criado, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, através da lei 8.069/90, cuja finalidade consiste em zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente.

O referido Estatuto prevê em seu artigo 13 que, havendo suspeita ou confirmação de maus tratos contra a criança ou adolescente, o Conselho Tutelar da localidade deverá ser comunicado para que sejam tomadas as providência legais. Fica, ainda, estabelecida, em seu artigo 56, a obrigatoriedade dos dirigentes de estabelecimentos de ensino a imediata comunicação ao Conselho sobre os casos de maus tratos, faltas e evasão escolar e os elevados índices de repetência dos educandos.

Azambuja (2004 p. 129) afirma: “A compreensão do fenômeno da violência sexual intrafamiliar praticada contra a criança facilita e oportuniza a realização do diagnóstico precoce e da notificação aos órgãos competentes”. Contudo, um dos fatores preocupantes nesse diagnóstico é o despreparo de muitos agentes de saúde para identificar os sintomas e chegar à conclusão da violência sofrida. Esse fato é agravado pelo medo da vítima que insiste em negar a ocorrência. 

O Conselho Federal de Medicina, através do Parecer nº 13/1999[1], explica que o médico tem o dever de comunicar às autoridades competentes os casos de abuso sexual e maus tratos, autorizando, para tanto, a quebra do sigilo profissional.

As entidades educacionais, por sua vez, devem também estar atentas ao indício de ocorrência de violência sexual contra crianças na escola, pois, acontecendo um fato como este com um/a de seus/suas discentes, tais entidades terão condições de contribuir, através do diálogo com os/as mesmos/as e contactando, de imediato, com os responsáveis para a elucidação do caso, mesmo porque o comportamento dessas crianças violentadas passam a diferir das atitudes de outrora. 

Esse acompanhamento não deve limitar-se à vítima isoladamente, e sim, a um acompanhamento a nível familiar, posto que o problema repercute em todo o núcleo familiar. O agressor deve também receber esse acompanhamento, pois não se concebe que um ser em estágio normal de personalidade seja capaz de praticar um ato tão repugnante, ainda mais contra um ente do seu próprio núcleo afetivo.

O investimento financeiro e as campanhas de esclarecimento e combate à violência sexual intrafamiliar, bem como a capacitação dos profissionais que compõem os sistemas de proteção e de justiça são medidas necessárias e urgentes para o combate à violência sexual.

A Fundação das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) vem realizando um trabalho valoroso no enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes. As propostas de trabalho são, entre outras:

·                    Combater o abuso físico e sexual de crianças em casa;

·                    Prevenir a violência contra adolescentes, em especial, homicídios e exploração sexual, considerando as questões de raça e gênero;

·                    Promover reformas na justiça juvenil e nas políticas e práticas de proteção à criança, com finalidade de reduzir a institucionalização e a violência contra a infância e a adolescência.

·                    Conhecer a realidade local pode ser também uma forma de ajudar nesse combate.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

   Este trabalho científico intencionou promover a oportunidade de se conhecer um pouco da evolução histórica da família que, outrora, surge marcada pelas desigualdades entre seus membros, onde a mulher e a prole não tinham voz ativa, limitando-se a obedecer às ordens do “chefe” da família, o homem.

A criança não era respeitada como detentora de direitos, tampouco era criada dentro da sua realidade psicológica, uma vez que na época não se tinha a compreensão das fases de desenvolvimento do indivíduo. Este fato levava a ocorrência de absurdos dentro do núcleo familiar como, por exemplo, considerar as crianças como adultos em miniaturas e cobrar-lhes comportamentos incompatíveis com a sua fase de desenvolvimento.

Progressivamente, apesar de acontecerem mudanças de ordem econômica, política, psicológica e social, sentia-se, por outro lado, uma grande falta de proteção jurídica em relação à violência sofrida pela criança, o que levou à criação de Serviços de Assistência e Proteção à Infância e ao primeiro Código de Menores.

Com a Declaração dos Direito da Criança, os menores passaram a ser vistos com igualdade e surge uma maior preocupação em garantir a sua proteção.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, foram quebrados velhos paradigmas e preconceitos, concomitantemente se reconheceu o menor como sujeito de direito e garantiu-lhe uma proteção jurídica mais efetiva.

Outro avanço importante foi a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que este ano comemora 19 (dezenove) anos de existência, numa busca constante pela proteção e preservação dos direitos da criança e do adolescente. Na teoria, observa-se que a criança possui um amparo legal condizente às condições necessárias de vida social e cultural, contudo, de acordo com as investigações feitas, na prática ainda há muito o que se fazer.

O problema da violência sexual intrafamiliar é grave e merece atenção especial, pois ele demonstra claramente o quanto o conceito de família está prejudicado e que as pessoas desconhecem os seus direitos e deveres, ferindo consequentemente o direito dos outros, numa completa demonstração de desrespeito ao princípio da dignidade humana, princípio este basilar de toda sociedade justa e equilibrada.

Percebe-se ainda a ausência de confiança, atenção e diálogo nos grupos familiares, onde os sintomas da violência passam despercebidos diante dos olhos dos conviventes, seja por desconhecimento, ou quiçá, pela própria falta de compromisso para com estes.

Outro fator que merece destaque é o medo presente no núcleo familiar das vítimas, fazendo com que se calem, num verdadeiro “pacto de silêncio” com o agressor, o que contribui imensamente para a impunidade, mascarando a realidade e demonstrando que os índices de violência podem ser bem maiores do que os detectados.

Por fim, é preciso que providências sejam tomadas. A primeira delas é divulgar para a sociedade a gravidade do problema, fazendo-a ver que o problema existe e faz parte da realidade de muitas famílias, independentemente da classe social e cultural.

Outras medidas imediatas podem ser tomadas como: a implementação da disciplina educação sexual na escola, campanhas de divulgação do problema, maior investimento nos Conselhos Tutelares, ciclos de palestras e divulgação por panfletos, e orientação aos profissionais de saúde de modo que deem cumprimento ao Parecer nº 13/1999, do Conselho Nacional de Medicina, procedendo exames detalhados nas vítimas de maneira a averiguar a existência de abusos sexuais e maus tratos, fazendo a imediata comunicação as autoridades.

Saliente-se ainda que medidas protetivas devem ser tomadas, afastando-se o agressor do seio familiar, assegurando às vítimas que estes permanecerão distantes e, ainda, garantido-lhes uma estrutura de acompanhamento, através de assistentes sociais e psicólogos que devem buscar meios de reestruturação psicológica das vítimas e seus familiares, inclusive para o agressor, que é o mais doente de todos eles.

As reformas advindas com a Lei 12.015/2009 foram importantes, principalmente no tocante ao aumento de penas previstas, à criação da figura do estupro de vulnerável e acabando-se com a presunção de inocência nos casos de vítimas menores de 14 anos, onde não se discute mais a participação da vítima. Uma vez existente essa relação imediatamente configura-se o delito.

Importante destacar que, com a titularidade da ação para o Ministério Público, principalmente nos casos de vítimas menores de 18 anos em que a ação penal será pública incondicionada, tutelam-se, de forma mais concreta, os direitos da vítima que não mais precisará expressar a sua vontade de ver processado o seu agressor, deixando-a mais segura diante da situação. Dessa forma, a insegurança e o medo do agressor diminuirão, visto saberem que a ação será impetrada independentemente da sua vontade.

Destaque-se ainda que, apesar de algumas alterações legais, os crimes de violência sexual intrafamiliar permaneceram sem tipificação própria, a exemplo do crime de incesto, que permanece, ainda, apenas como caso de aumento de pena.

Percebe-se que as mudanças foram importantes e que muito se tem ainda a fazer para que esses crimes sejam, se não extirpados da sociedade, pelo menos tenham uma incidência menor. Isso somente será possível com um trabalho de base familiar, cultural e, sobretudo moral, principalmente em nosso País que possui uma tradição de desrespeito à legislação, o que torna ainda mais difícil a conquista de uma justiça efetiva. Buscar o cumprimento dessas normas é imprescindível.

O grande desafio é, pois, fazer com que os direitos da criança e do adolescente sejam respeitados, fazendo-se necessário, para tanto, uma maior atuação do Estado e de toda a Sociedade.


REFERÊNCIAS

AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violência sexual intrafamiliar: é possível proteger a criança? Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004.

_________, Lei nº 8.036/90, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http:// www.presidencia.gov.br> Acesso em 10 out. 2009.

_________, Código Penal. Decreto Lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http:// www.presidencia.gov.br> Acesso em 10 out. 2009.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol.3. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

DINIZ, Laura. Silêncio Rasgado. Revista Veja, edição nº2104 de 18 de março de 2009.

DIAS, Maria Berenice. Incesto e Alienação Parental: Realidades que a Justiça insiste em não ver. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2207.

FONSECA, Antonio Cezar Lima. Crimes contra a criança e o adolescente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

GÊNOVA, Jairo José. Novo crime de estupro. Breves anotações, agosto 2009. Disponível. em http://jus.com.br/artigos/13357 . Acesso em 10 ago. 2009.

GREGO, Rogério. Curso de Direito Penal, parte geral, Vol. I. 13. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.

MORALES, Álvaro; SCHRAMM, Fermin Schramm. A moralidade do abuso sexual intrafamiliar em menores, 2002. Disponível em. www.scielo.br/pdf/csc/v7n2/10246.pdf . Acesso em 8 ago. 2011.

MAIOR, Armando Souto. História Geral para o ensino de 2º grau. 15. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975.

STRECK, Lenio. http://www.conjur.com.br/2009-mar-15/entrevista-lenio-streck-procurador-justica-rio-grande-sul. Acesso em 8 nov. 2011.

VERONEZE, Josiane Rose Petry (org). Violência e exploração sexual infanto-juvenil: Crimes contra a humanidade. Florianópolis: OAB/SC, 2005.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Cristiana Russo Lima da. O grito silencioso da criança diante da violência sexual intrafamiliar . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3231, 6 maio 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21688. Acesso em: 25 abr. 2024.