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Os dez anos da vigência do Estatuto da Cidade no processo dialético da práxis da regularização fundiária urbana

Os dez anos da vigência do Estatuto da Cidade no processo dialético da práxis da regularização fundiária urbana

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A regularização fundiária passou à pauta nacional, fundamentada no direito subjetivo gerado pelas ocupações que é invocado por uma nova ordem jurídica urbanística, consolidada a partir do efetivo reconhecimento ao direito de moradia.

SUMÁRIO: 1. Evolução da legislação urbana brasileira; 2. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: um novo marco legal; 3. A Lei 10.257, de julho de 2001, “O Estatuto da Cidade”; 4. Plano-diretor; 5. Norma Ambiental Urbana; 6. Problemas e obstáculos para a regularização fundiária urbana no Brasil; 7. Considerações Finais.


 

Resumo: Este trabalho analisou a situação contemporânea da regularização fundiária urbana a partir do Estatuto da Cidade e da legislação urbanística brasileira. Justifica-se o estudo em face de o Estatuto da Cidade ter completado 10 anos de vigência em julho de 2011 ainda com aplicabilidade tímida principalmente e em especial no campo do uso de seus instrumentos para a regularização fundiária urbana. Objetivou-se com o estudo propor um debate sobre o Estatuto da Cidade e a legislação urbana brasileira sob o enfoque dos principais problemas e obstáculos para a regularização fundiária urbana. A metodologia do estudo consistiu na revisão de literatura, análise bibliográfica, experiência prática na elaboração de Plano de Regularização Fundiária Sustentável. Concluiu-se que os municípios não estão aplicando os instrumentos deste novo arcabouço jurídico em face da forte influência política orquestrada pelo setor imobiliário e em virtude do conservadorismo do judiciário, ainda reticente ao relativismo do direito à propriedade. 

Palavras-chave: Estatuto da Cidade, Regularização Fundiária, Mercado Imobiliário, Direito Urbanístico, Plano-diretor.


1. Evolução da legislação urbana brasileira

No Brasil, os registros de normas sobre assuntos urbanos remontam o período colonial. Destacam-se as Ordenações Filipinas que, pela sua importância, estiveram vigentes no Brasil até 1916 e tratavam de matéria edilícia, da organização da cidade e das atribuições das autoridades locais relacionadas às deliberações sobre as questões urbanas (DI SARNO, 2004a).

A cronologia do atual debate sobre a função social da propriedade no contexto histórico brasileiro remonta 1808. Ano este considerado como divisor de águas entre a propriedade absoluta e relativa. Instituiu-se nessa época o princípio do “poder de polícia” que fundamenta a aplicabilidade dos institutos jurídicos urbanísticos, além de nascer, na ocasião, a cultura jurídica da função social da propriedade urbana criada pela jurisprudência. Essa nova cultura em questão estabeleceu a prerrogativa ao Estado, por razões intrínsecas, de arbitrar sobre os interesses comuns (DIAS, 2000a).

Desta feita, a temática urbana brasileira, que era tratada de maneira fracionada, ganha definitivamente status de marco regulatório urbanístico a partir da Constituição do Império de 1824, século XIX, que ameniza o tratamento do direito de propriedade, antes com caráter quase que absolutista. A Carta Política de 1824 dispõe, por previsão legal do instituto da desapropriação, autêntica intervenção estatal. Esse instrumento possibilitaria ao Estado lançar mão de áreas de seu interesse, com a retenção de propriedade privada, contrariando, assim, o dito princípio absolutista (DI SARNO, 2004b).

Mas somente no final do século XIX a legislação urbanística brasileira mostrou sua evolução com o registro de parcerias entre o poder público municipal e a iniciativa privada. Tais parcerias ocorreram pela necessidade de melhorias urbanísticas nas cidades portuárias, chamadas de cidades de fluxo. Essa intervenção possibilitou a realização de obras públicas nas cidades pelas empresas privadas que recebiam, em contrapartida, concessões para a exploração de serviços públicos na área portuária (DIAS, 2000b).

A primeira Constituição Republicana de 1934 ratifica e contempla definitivamente a função social da propriedade, grafada no texto de maneira explícita no artigo 133, item 17, mas foi interpretada de maneira implícita quanto à sua aplicabilidade.

[...] item 17 - É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social e coletivo, na forma que a lei determinar, assegurando a defesa prévia e justa nos casos de desapropriação por necessidade de utilidade pública.

A referida Lei Magna destacou em seu bojo a ordenação urbana e as atribuições do município. Estabeleceu, assim, a sua competência de legislar sobre os assuntos de interesse local (DI SARNO, 2004c).

Surgiram novas intervenções, ainda modestas no campo jurídico, somente na década de 60, dentre elas a implantação da Política Nacional de Habitação e Planejamento Territorial. Nessa década, os holofotes se concentraram na aprovação da Constituição Federal de 1967, que instituiu o planejamento urbano e incluiu a capacidade legislativa ao município na organização urbano-territorial (DI SARNO, 2004d).

Porém, mesmo com este arcabouço à disposição somente no final dos anos 70, nossos legisladores admitiram a existência de considerável parcela da população sem acesso ao mercado formal de solo. A excessiva informalidade fundiária provocou a criação da Lei nº 6766, de 1979, denominada “Lei de Loteamento” ou “Parcelamento do Solo”. Os legisladores inseriram o chamado espaço legal, correspondente a 35% da área total loteada, nos projetos dos empreendimentos, área destinada ao interesse social (DIAS, 2000c).

Surgiu, a partir de então, a cultura de projetos que objetivaram integrar as populações de áreas socialmente excluídas. Todavia, essas ações de integração dependiam de recursos estatais disponíveis que iriam além da especificação cartográfica de zonas especiais ou da destinação de áreas para a habitação social nos planos-diretores. Por esse motivo, o resultado desse processo não registrou respostas significativas que pudessem refletir na melhoria da qualidade de vida da população excluída (DIAS, 2000d).

A década de 70 foi marcada pela concepção da cultura de restrições às atividades imobiliárias e ao uso do solo, sob o auspício do princípio do “poder de polícia”. Nesse contexto, a cidade assumiu o papel de reserva de valor de terras, motivo do desenvolvimento de mecanismos de preservação e de regulação do mercado de solos, voltados aos empreendimentos imobiliários, e não à regulação social da produção da cidade (DIAS, 2000e).

A norma sobre o parcelamento do solo serviu para segregar em razão do lucro e poder; a possível regularização fundiária. A “legalidade urbana” provoca a valorização antecipada no mercado de solo, na dinâmica capitalista do espaço urbano.

O Direito urbanístico através daquilo que se convencionou chamar "legalidade urbana" é regido por uma racionalidade instrumental, voltada para a otimização do lucro e do poder no espaço urbano, produzindo como uma das principais seqüelas: a segregação urbana, pois os processos de decibilidade das cidades em sua imensa maioria possuem como objetivo apartar os ricos dos pobres, por isto propugnamos por uma virada paradigmática no direito urbanístico brasileiro, para que o mesmo busque a sua fundamentação na vontade discursiva dos cidadãos, com o objetivo de produzir padrões de desenvolvimento sustentável das cidades. (DIAS, 2000. p. 224).


2. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:um novo marco legal

Finalmente, para consolidar o papel relevante da política urbana, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, traz em seu bojo, pela primeira vez, dispositivos específicos, um capítulo sobre a temática urbanística. 

O artigo 182 da Carta Política estabeleceu que o Plano-diretor seja o instrumento técnico legal definidor de cada municipalidade. Esse instrumento tem o objetivo de orientar todas as atividades da administração e dos administrados nas realizações públicas e particulares, que interessem ou afetem a coletividade.

O mesmo artigo estabeleceu, ainda, que a propriedade urbana deva cumprir o princípio da função social e atenda às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano-diretor.

O Plano-diretor é considerado como um instrumento básico da política de desenvolvimento urbano e deve ser executado pelo poder público municipal, a fim de garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade.

Segundo Harada (2004a), a função social da propriedade, quando expressa no Plano-diretor, evita a especulação imobiliária e possibilita a aplicação das medidas previstas no artigo 182 da Constituição Federal, que foi regulamentado pela Lei nº 10.257, de 2001, Estatuto da Cidade.

Intervenções urbanísticas nas periferias da cidade, onde predomina população de baixa renda, podem acarretar valorização imobiliária de tal ordem, produzindo efeitos não desejados pelo Poder Público municipal, quais sejam, o deslocamento da população humilde para locais cada vez mais distantes do centro urbano. Nessas hipóteses, cabe ao Poder Público local ficar atento para evitar a especulação imobiliária, exigindo o cumprimento da função social da propriedade, expressa na lei do seu plano diretor, utilizando-se, gradualmente, das medidas previstas no § 4º do art. 182 da CF (HARADA, 2004. P. 79).

Para Mukai (2001), o artigo 183 da Carta Magna reforçou e consolidou a questão do princípio da função social da propriedade, quando instituiu a chamada reforma urbana. Cria-se a figura da usucapião especial que possibilita à pessoa que detém a posse de imóvel urbano, com área de até duzentos e cinquenta metros quadrados, pelo período de cinco anos ininterruptos, sem ser molestado, adquirir o seu domínio por meio desta figura jurídica. A usucapião especial é a aquisição de imóvel pela posse e uso de forma pacífica.

Entende Harada (2004b) que o artigo 145 da Carta Política assumiu importante papel na legislação urbanística brasileira, pois aborda o princípio da justa distribuição do ônus e dos benefícios, referenda o desdobramento do princípio da igualdade de todos perante a lei e especifica questões relativas à própria valorização imobiliária.

A execução de qualquer plano urbanístico, a reurbanização de um bairro deteriorado, por exemplo, traz benefícios à população em geral. Porém alguns serão direta e especificamente beneficiados com a execução de obras e serviços públicos, com a valorização de seus imóveis. Outras terão suas propriedades desvalorizadas pela ação do Poder Público. As valorizações diretas e específicas devem ser compensadas mediante pagamento da contribuição de melhoria por parte dos beneficiados. As propriedades esvaziadas de seu conteúdo econômico devem ser indenizadas mediante regular processo expropriatório (HARADA, 2004. p. 97).

Mesmo com o avanço da legislação urbanística, permitida pela Constituição de 1988, foram verificadas, durante a assembleia constituinte, inúmeras ações de lobbies do mercado imobiliário, que dominaram principalmente a Subcomissão da Política Urbana e Transportes. No intuito de pontuar algumas intervenções, no artigo 182 do capítulo de política urbana, foi acrescida, na redação do texto final, a condição de o Plano-diretor ser o principal instrumento para definição da função social da cidade. Esse artigo foi vinculado a um projeto de lei para a sua regulamentação, que demorou 11 anos para sua aprovação e ainda depende, para sua eficácia plena, da aprovação dos Planos-diretores pelas Câmaras de Vereadores (QUINTO JR, 2003a).

Nem todos os municípios brasileiros, que por definição legal seriam obrigados a aprovar os seus Planos-diretores, elaboraram o documento. Os municípios que não cumpriram a lei, constitucionalmente, ficaram impossibilitados de aplicar todos os instrumentos do Estatuto da Cidade. Alguns destes, por previsão legal, somente poderão ser aplicados se estiverem definidos no Plano-diretor, substancialmente a definição da função social da cidade e da propriedade, objeto para a aplicação no ordenamento do espaço urbano.


3. A Lei 10.257, de julho de 2001, “O Estatuto da Cidade

Após uma longa tramitação no legislativo federal, exatamente onze anos, foi aprovada a Lei nº 10.257, de 2001, chamada de "O Estatuto da Cidade", a qual serviu para regulamentar o artigo 182 da Constituição Federal do Brasil, de 1988, (QUINTO JR, 2003b).

O projeto de lei nº 5.788, de 1990, ao ingressar no Senado Federal, recebeu o nº PL/ 181, de 1989, por ser um aperfeiçoamento do projeto pioneiro de nº 2.191, de 1989, que originou o Estatuto da Cidade (QUINTO JR, 2003c).

Esse trabalho elaborado estrategicamente pelo Senador Pompeu de Souza foi aprovado pelo Senado Federal em julho de 2001. Por não ser comum o ingresso de projetos de lei pelo Senado Federal, acabou por desarticular as ações dos empresários imobiliários, que, após a aprovação da referida lei, ficaram numa posição defensiva (QUINTO JR, 2003d).

Segundo Quinto Jr. (2003e), o Estatuto da Cidade, se comparado às experiências europeias, estaria ao menos com um século de atraso, considerando-se o uso dos instrumentos urbanísticos, o qual possibilitaria regular socialmente o mercado imobiliário e estabelecer mecanismos de compensação social por meio da política urbana.

O Estatuto da Cidade surgiu como uma nova lei para ordenar o crescimento do setor imobiliário e estabelecer as diretrizes gerais da política urbana nacional. Tem a finalidade de regulamentar as questões da ordenação do território e da participação comunitária, e objetiva promover a inclusão social. Também estabelece as regras referentes ao uso e a ocupação do solo urbano e ao controle da expansão do território urbano, e propõe a definição da função social da cidade e da propriedade, a ser especificada no Plano-diretor Participativo.

A Lei coloca à disposição, no seu capítulo segundo, ferramentas e instrumentos de Política Urbana para uso contra os abusos ao direito à propriedade, como a especulação imobiliária derivada da retenção fundiária. A especulação imobiliária objetiva a valorização viciosa do imóvel e em regra é provocadora dos vazios urbanos nas regiões centrais das cidades. Esse procedimento de retenção fundiária, pela nova Lei, poderá ser punido com o Imposto Predial Territorial Urbano progressivo, em face de a propriedade não cumprir a função social.

Entre as medidas indutoras para cumprimento da função social da propriedade, destacam-se: a possibilidade de desapropriação do imóvel não utilizado ou subutilizado; a usucapião de imóvel urbano; a outorga onerosa do direito de construir; as operações consorciadas, com estabelecimento de parceria entre o setor público e privado; a transferência do direito de construir; o impacto de vizinhança; a preempção, e o direito de superfície.

O Estatuto da Cidade dispõe que a municipalidade fixará as condições e prazos para o cumprimento da obrigação de parcelar, edificar ou utilizar terra urbana mantida em ociosidade, assegurados prazos não superiores há um ano para protocolização de projeto de parcelamento, utilização ou construção. O contribuinte tem dois anos, a partir da aprovação do projeto, para a utilização, parcelamento ou dar início às obras de edificação.

É importante notar que a norma legal ressalta a obrigação de utilização da terra urbana de forma independente do parcelamento ou edificação. Não cumpridas as obrigações estabelecidas, o município procederá à aplicação do Imposto Predial e Territorial Urbano progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota em até 3% anualmente, pelo prazo de cinco anos consecutivos, respeitado o limite máximo de 15%.

Nessa cobrança do imposto, poder-se-á aplicar a alíquota máxima de 15% ou, se assim entender a prefeitura, proceder à desapropriação-sanção do dito imóvel, obviamente com a obrigação do seu uso social.

Em caso de o poder municipal optar pela desapropriação-sanção do imóvel, deverá pagar o valor da indenização, que corresponde ao valor venal do imóvel (valor encontrado na planta de valores genéricos e utilizado para a cobrança do imposto predial), na forma de títulos públicos. O avanço na sistemática desse pagamento pode ser verificado na previsão legal que possibilita a dedução da valorização do imóvel, em função de obras realizadas pelo poder público no local (pavimentação, iluminação pública, rede de esgoto, etc.). Portanto, encontrado o valor correspondente à indenização do imóvel, caberá a dedução da valorização atribuída entre o período da certificação do recebimento da notificação ao proprietário que impôs o aproveitamento do imóvel, e a efetiva desapropriação.

Nesse viés, foi considerada também como grande avanço do Estatuto da Cidade, a determinação da dedução, no pagamento da desapropriação-sanção, de quaisquer expectativas de ganhos, lucros cessantes e juros compensatórios, relativos ao imóvel desapropriado.

Com essa medida fica caracterizada a expropriação da “mais valia[1]”, objeto do lucro resultante da valorização do imóvel, por conta de melhorias na localidade onde está inserido, realizadas pela prefeitura e pagas por todos os contribuintes. Dessa maneira, a destinação dessa valorização, atualmente apropriada pelo agente privado, toma outra direção, vai para os cofres públicos municipais e retorna para os contribuintes em forma de prestação pública.

Em análise aos instrumentos instituídos pelo Estatuto, pela importância da sua influência na gestão da cidade, destaca-se o direito de preempção, que conceitualmente equivale ao direito de preferência pelo poder público municipal para aquisição de imóvel objeto de alienação onerosa entre particulares. É permitida sua aplicabilidade somente em áreas previamente circunscritas por lei municipal, instrumento que se vincula obrigatoriamente à necessidade de áreas pelo poder público para regularização fundiária, execução de programas e projetos de interesse social, implantação de equipamentos urbanos e comunitários, proteção ambiental e outros fins similares.

O poder público dispõe também da outorga onerosa, outro instrumento que já vem sendo colocado em prática em diversas localidades brasileiras, regulamentado por meio de lei municipal. Esse instrumento, conhecido como outorga onerosa do direito de construir, impõe a prestação de contrapartida por quem exercer o direito de construir acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado pelo plano-diretor. O plano-diretor poderá propor um único coeficiente para toda a cidade (integral) ou especificar coeficientes diferenciados para áreas específicas da cidade (parcial).

Finalmente, considerado como um instrumento contemporâneo, por sua busca de equilíbrio ao meio ambiente, o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) foi inspirado no estudo prévio de impacto ambiental, mas que dele se diferencia por sua aplicação. Esse instrumento democratiza as decisões locais e possibilita a realização de consulta pública como um requisito para as licenças urbanísticas e edilícias municipais; acima de tudo, centra-se em análise de questões essencialmente urbanas, quando da reprodução do espaço, como: o adensamento populacional; o impacto sobre os equipamentos urbanos e comunitários; a geração de tráfego; a demanda por transporte público, e outras questões que afetem o meio ambiente artificial e natural.

O Estatuto da Cidade cria instrumentos de gestão e sugere diretrizes norteadoras para ações concretas relativas à política urbana. Por previsão constitucional e desse novo marco regulador, ficaram instituídas garantias ao direito às cidades sustentáveis, que devem ser entendidas como: o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte urbano coletivo, aos serviços públicos com qualidade, ao trabalho e ao lazer. Para fortalecer a gestão pública, o Estatuto propõe um conjunto de diretrizes, estabelecidas por: cooperação entre o poder público e a iniciativa privada e demais setores da sociedade no processo de urbanização; a justa distribuição dos benefícios e dos ônus do processo de urbanização, com a finalidade de dar sustentabilidade às cidades. Esse processo objetiva sensibilizar a geração presente para a preservação do meio ambiente como garantia do uso do espaço urbano também pelas gerações futuras.

Neste contexto foi publicada em outubro de 2011 a Medida Provisória de nº 547, que acrescenta o artigo 42-A ao Estatuto da Cidade, objetivando de maneira clara conter a expansão urbana desordenada. Embora a medida provisória não acrescente instrumentos mais efetivos, como a obrigatoriedade de reserva de lotes para habitação social em novos empreendimentos, na Europa em torno de 20%, mas cria a figura do Plano de Expansão Urbana. A normativa estabelece às cidades que possuam áreas de Expansão Urbana a obrigatoriedade de elaborar um Plano, seguindo os requisitos que garantam o desenvolvimento sustentável. Evidente que não haverá obrigatoriedade aos municípios que não possuam zona de expansão em criá-las, pela própria essência do regulamento em conter a existência de parcelamentos sem a possibilidade de receber os benefícios propiciados pela urbanização. Destacam-se pontos importantes desta regulamentação, como a sua aplicabilidade na contenção de parcelamentos do solo urbano. O município que possua ou crie a sua zona de expansão urbana não poderá condicionar a aprovação de projetos de parcelamento ao Plano de Expansão Urbana pelo período de dois anos, condição esta preocupante, que poderá contribuir para um crescimento destes empreendimentos, ao invés de contê-los. Um ponto inovador a destacar é que o município receberá incentivos com transferências de recursos para a aquisição de terrenos destinados a programas habitacionais de interesse social.

Segundo Arruda (2001), “o Estatuto da Cidade não vai, por si só, garantir cidades mais justas. A nova lei traz o instrumental cirúrgico, que pode ser bem usado, ou não, de acordo com a habilidade do cirurgião, no caso as municipalidades”. O grande risco desse instrumental regulador é de se tornar “lei que não pegou”.


4. Plano-diretor

A velocidade do crescimento das cidades resultou na falta da acomodação espacial da população. A solução para a questão espacial com o uso de processos arcaicos, como os planejamentos de gabinete e decisões à custa de interesses da classe dominante, mostraram-se ineficazes. Percebe-se, nesse contexto, haver indicação da construção de um novo paradigma, com base no planejamento urbano que objetive o desenvolvimento sustentável das cidades.

O Plano-diretor efetivamente criado pela Constituição Federal, de 1988, emergiu da dialética “ocupação do espaço e indissociabilidade entre o urbano e rural”. Conhecido como plano estratégico, por traçar os objetivos e fixar seus prazos, estabelecer as atividades e definir sua execução, e como diretor, por fixar as diretrizes do desenvolvimento urbano do Município (SILVA, 1997).

O Plano-diretor deve considerar, para sua concepção, o município como um todo, traçar os objetivos para a área urbana e rural; essencialmente deve definir a função social da propriedade e ser concebido a partir de ampla participação popular.

A cidade, afinal, atinge o patamar constitucional; a Carta Magna, de 1988, prevê em seu capítulo que trata da política urbana a obrigatoriedade da elaboração, pelos municípios, do Plano-diretor Participativo e a sua remessa à casa legislativa municipal, para a aprovação, efetivamente se transformando em Lei Urbanística Municipal. (LIRA, 1997).

Este foi o motivo que levou 1.700 municípios brasileiros a elaborarem os seus Planos-Diretores, em 2006, e encaminharem-nos às respectivas Câmaras Municipais, para sua aprovação.

O Estatuto da Cidade, mesmo após 10 anos de vigência, ainda se mostra em fase de discussão hermenêutica. Embora tenha surgido como um instrumento que regulamenta os preceitos constitucionais que tratam da temática urbana, não apresentou ainda resultados efetivos, até pela dependência da aprovação dos Planos-Diretores nos municípios, que definirão de maneira mais específica os instrumentos utilizados pela municipalidade e as punições aplicadas aos especuladores imobiliários.

A questão central emergida do bojo desse novo conjunto de leis é o contradito ao paradigma dominante sobre a propriedade absoluta. Nesse aspecto, o debate é remetido à titularidade do domínio dos imóveis, exercido por membros da própria comunidade onde estes se inserem. Dessa maneira, a atitude dos próprios membros da comunidade, na relação do uso de suas propriedades, deveria ser cidadã, o que não condiz com a atividade especulativa de retenção de terrenos, resultante nos vazios urbanos das cidades.

Como explica Borges (1994), “o titular do domínio tem a obrigação com sua comunidade, ou seja, tem de cumprir na condição de titular do domínio a função social da propriedade”. Esta é destinada a servir a todos, embora pertença a um só. Assim, verifica-se que a propriedade privada, com base individualista, cedeu definitivamente o espaço para a propriedade com finalidade social. A propriedade somente se justifica quando cumpre a sua função social, hoje por imposição legal, definida no Plano-diretor. (HARADA, 2004c).

Nesse contexto, a essência da discussão é a questão epistemológica da cidadania enquanto essência da cidade.

Os antigos planejamentos urbanos concebidos em gabinete, sem participação popular e tendo como resultado cartas temáticas delimitadoras dos espaços de uso e ocupação do solo, deram margem a uma nova concepção didática de formulação, ou seja, o estabelecimento de um novo paradigma. Este novo paradigma possibilita que a população participe efetivamente da discussão dos Planos-Diretores e influenciem no seu resultado; como consequência se observam nos dias atuais o avanço para a politização da massa, a reafirmação da cidadania e o respeito à função social da cidade. (HARADA, 2004d).


5. Norma Ambiental Urbana

Para tratar de normas ambientais brasileiras, necessita-se de uma breve introdução sobre a Agenda 21 Global. Referida agenda é o resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992 na cidade do Rio de Janeiro, e traduz a tensa relação entre a espécie humana e a natureza, na sua pretensão de buscar o equilíbrio por meio do crescimento econômico duradouro, tendo como espinha dorsal o desenvolvimento sustentável. Esse documento consensual, concebido num processo, que durou cerca de dois anos, recebeu contribuição de governos e de instituições da sociedade civil de cento e setenta e nove países.

A Agenda 21 Brasileira, resultante da global, trata da questão dos vazios urbanos nas cidades. Enfoca o paradoxo entre a necessidade de áreas verdes nas cidades, em especial nas zonas densamente ocupadas, e a otimização do uso da infraestrutura existente nas cidades, pelo elevado custo da urbanização e impacto ambiental, ou seja, propõe o debate acerca da cidade compacta e dispersa.

Na abordagem ambiental sobre o meio urbano brasileiro, destaca-se o crescimento urbano horizontal, resultado da dispersão da cidade pela partilha de espaços de antigas chácaras, sítios e fazendas, ao redor da cidade, para fins especulativos, estabelecendo, por analogia, uma mancha de óleo em expansão urbana.

O uso desse mecanismo de expansão, com parcelamento de glebas situadas em posições descontínuas da mancha urbana, ou seja, a quilômetros de distância da área central, em locais anteriormente utilizados para funções agrárias, termina por eliminar essas funções iniciais, que respondem pelo crescimento e riqueza da própria cidade.

Embora se constate uma tendência global de redução do crescimento demográfico, os diagnósticos que abordam o meio urbano não são animadores, o último censo constatou que dos 190.732.694 brasileiros, 84,35% vivem nas cidades (IBGE, Censo 2010). Verifica-se que no período de setenta anos, entre 1940 a 2010, a população urbana passou de 12,8 milhões para 160 milhões de habitantes (IBGE, Censos 1940 e 2010). Projeções não mostram retrocesso ou estabilidade neste processo, ao contrário, constatam que a população urbana no País atingirá a cifra de 88,94% em 2025 (PNUD, 2009). Outro aspecto relevante é o fato de que 50% desta população viverão em áreas de ocupações irregulares ou clandestinas. (MARICATO, 2001). O crescimento urbano se detecta também pelo número de municípios criados nesse mesmo período, isto é, foram de 1.574 para 5.565, trazendo problemas como: crescimento desordenado; ausência de planejamento; carência de recursos e serviços; obsolescência da infraestrutura e dos espaços construídos; padrões atrasados de gestão e agressões ao ambiente, e estão longe de serem solucionados.

Historicamente, após a Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em 1972, realizada em Estocolmo, com duras críticas pela participação brasileira, desenvolveu-se a legislação ambiental brasileira. Como resultados dessa participação criaram-se, no país, a Secretaria Especial do Meio Ambiente e algumas normas ambientais.

Mas efetivamente nada de significativo ocorreu antes do início da década de 80, somente nessa ocasião estudos buscaram consolidar o arcabouço legal que tratava das questões ambientais e estava fracionado na Política Nacional do Meio Ambiente.  A Lei 6938, de 1981, foi criada em decorrência do clamor dos movimentos ecológicos e por imposição internacional de políticas de meio ambiente.

O Estado, na década de 80, acreditava, equivocadamente, que poderia gerir as desigualdades sociais e controlar a degradação do meio ambiente, em conturbada caminhada que resultou na criação e extinção de secretarias e ministérios (BANUNAS, 2003a).

A consciência ambiental se fortaleceu finalmente a partir da Constituição Federal de 1988, quando em seu artigo 225 prevê os princípios gerais em relação ao meio ambiente, e estabelece punições exemplares, penais e administrativas, para as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, para a pessoa física, e como grande novidade estende a punição à pessoa jurídica.

Cabe ressaltar que a Política Nacional de Meio Ambiente, a partir da sua edição, em 1981, com sua base política apoiada na legislação ambiental internacional, foi adaptada várias vezes e recepcionada em parte pela referida Constituição Federal. (BANUNAS, 2003b).

A legislação ambiental de 1981, com o respaldo da Constituição Federal de 1988, instrumentou a esfera municipal, que, integrada ao Estado e à União, passou a deliberar sobre as questões relacionadas ao meio ambiente, como a realização de Estudos de Impacto Ambiental e da regulamentação de áreas de relevante interesse ambiental; instrumentos estes que incidiam mais sobre os grandes projetos e empreendimentos.

Em época recente e de maneira modesta, os governos municipais vêm criando seus órgãos ambientais, em casos sem status de secretaria e muitas vezes agregados aos setores desarticulados com a temática ambiental, e, ainda, boa parte com abrangência nas áreas de limpeza pública e de parques e jardins, com pouca interface com o planejamento físico-territorial das cidades, propriamente dito.

O município no uso da sua atribuição de gestor ambiental não tem conseguido sequer transpor a grande barreira de controlar a expansão urbana, ora por omissão, pela falta de aparato para manter uma fiscalização rigorosa, e, na maioria das vezes, por pressão do mercado imobiliário, no sentido de formar estoque de áreas urbanizáveis.

Os conflitos advindos do avanço do processo de urbanização, quando ocorrem sobre as áreas rurais ao entorno das cidades, com relevante frequência sobre terras férteis, e obviamente interferem na economia local, pela influência nas atividades agrícolas produtivas, são provocados pelos enfrentamentos com o mercado imobiliário. Em outras situações, quando esse avanço atinge áreas ambientalmente frágeis, não recomendadas para usos urbanos, em especial o parcelamento para fins habitacionais, são provocados pelos enfrentamentos com as classes menos favorecidas, que estão nestes locais justamente por não haver interesse pelo mercado imobiliário.

Nesse processo, não há controle sobre os locais agricultáveis a as áreas ambientalmente frágeis.  A expansão da cidade torna locais agricultáveis em espaços vazios com infraestrutura no interior do perímetro urbano e possibilita assentamentos em áreas ambientalmente frágeis, que não oferecem condições mínimas para a sobrevivência das pessoas instaladas nestes locais. Essa condição é provocada pela baixa capacidade de suporte do poder público em atender demandas por infraestrutura e serviços públicos.

Para integrar o meio ambiente natural às questões urbanas, criou-se, em 2003, o Ministério das Cidades, que tem como proposta lançar um olhar ambiental no tratamento da questão habitacional do país, e considerar o ambiente natural como parte integrante do desenvolvimento urbano, garantindo à população o direito à infraestrutura, mobilidade e transporte coletivo, equipamentos e serviços urbanos e sociais. Porém o seu objetivo precípuo é o direito à cidade sustentável e a inclusão da sociedade nas decisões governamentais, com a criação de instâncias de participação popular por meio de conselhos.


6. Problemas e obstáculos para a regularização fundiária urbana no Brasil

Os setores públicos tratam a informalidade como exceção e criam programas isolados e distintos de regularização fundiária, não integram o contexto das cidades. Os títulos dos imóveis ainda são objetos de troca de votos, portanto, a sua dinâmica de relação com os programas fundiários estão ligados a situações políticas, tanto temporais (épocas eleitorais), como publicitária (entrega com objetivo quantitativo). Não há conjunção de programas, como emprego e renda, saúde e outros, para garantir a permanência da população em condições dignas de habitação, assim, automaticamente as áreas regularizadas são segregadas. Os programas se colocam muito mais como protetores institucionais do que como respostas às demandas sociais. A insistência na limitação dos direitos nos programas de regularização gera novas informalidades. Não há cadastramentos, criação de mecanismos de recuperação de custos e de valorização; enfim, as pessoas são amontoadas em regiões segregadas. 

A visão histórica da situação denota que esse tipo de ocupação em regiões segregadas é parte de uma estratégia da população, haja vista existir um menor risco de remoção e uma probabilidade maior de acender aos serviços públicos e os benefícios da regularização da posse. 

Sabe-se que a regularização, regra geral, fomenta o mercado imobiliário informal, possibilitando aos beneficiários dos programas usarem o capital realizado, resultado da venda do imóvel, para sua sobrevivência ou para outras finalidades. Esse fenômeno é constatável em toda a América Latina, pois não há controle do Estado, pós-regularização. Assim, caberia à municipalidade criar mecanismos para assegurar a permanência das famílias nos locais regularizados e uma fiscalização rígida dificultando a transferência dos imóveis, condições não constatadas na práxis da execução dos programas de regularização fundiária urbana.

Em todo o País, a tolerância pelos órgãos fiscalizadores fomenta ocupações descontroladas de áreas urbanas, embora seja de conhecimento geral que o tempo de permanência nas ocupações configure direitos. Ainda assim, o governo, nas três esferas de poder, não tem conseguido exercer um competente controle sobre o território.

Como enfrentamento ao passivo existente, responsável pela cidade ilegal e excludente, a Regularização Fundiária passou à pauta nacional, fundamentada no direito subjetivo gerado pelas ocupações que é invocado por esta nova ordem jurídica urbanística, que passou a se consolidar a partir do efetivo reconhecimento ao direito de moradia.

A abordagem do tema habitacional remonta ao artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Organização das Nações Unidas, 1948), mas a Emenda Constitucional de nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que modificou o artigo 6º da Constituição Federal; o Estatuto da Cidade – Lei 10.257/2001 –, e a Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001, permitiram alguns avanços na ordem jurídica brasileira aplicável ao tema fundiário, ou seja, essencialmente esses institutos reconheceram o direito de moradia como um direito fundamental.

Ressalte-se, porém, que o Estatuto da Cidade, como precursor para o avanço dos debates fundiários urbanos, por tratar das questões urbanas em várias dimensões, consolidou a noção da função social e ambiental, da propriedade e da cidade, sendo reconhecido como um marco conceitual jurídico-político para a aplicação do Direito Urbanístico.

Contudo, ainda não há amplo entendimento do impacto dessa nova ordem jurídico-urbanística na gestão das cidades. A regularização fundiária, por exemplo, é vista como ação discricionária do Poder Público, não como um direito subjetivo do cidadão. Portanto, é salutar a estratégia da criação de um programa específico pelos municípios, que trate desse importante tema.

Convém salientar que o país conquistou avanço na urbanização das ocupações irregulares, mas os procedimentos esbarram na regularização jurídica; os resultados na emissão de documentos garantidores da posse, quando comparados com a necessidade da população, são ínfimos, em face da enorme burocracia e da legislação urbanística e de registro imobiliário serem elitista.

Importantes ingredientes ampliam as dificuldades para a solução das questões fundiárias urbanas, dentre elas a superação de um falso conflito existente entre a preservação ambiental e a regularização fundiária; a falta de percepção da indissociabilidade entre o direito e a gestão pública, e outros.

Nesse viés, é necessário o enfrentamento do problema fundiário com a construção de argumentos consistentes que validem essa nova ordem jurídica, por meio da pacificação da doutrina e jurisprudência no campo do Direito Urbanístico.

Os processos de regularização fundiária devem se preocupar em centrar na garantia ao exercício do direito de moradia, isto é, com o olhar na ampliação do marco legal que verse sobre o tema.

Tabela 1: Quadro geral da legislação relacionada à regularização fundiária urbana

INSTRUMENTO LEGAL

FUNDAMENTAÇÃO

ASSUNTO

Lei de Introdução ao Código Civil

Artigo 5º

Serão atendidos aos fins sociais e às exigências do bem-comum na aplicação da lei

Declaração Universal dos Direitos do Homem

Artigo 25.

Assegura ao ser humano o Direito à Moradia

EC 26/2002 – Constituição Federal

Artigo 6º

Assegura a moradia como Direito Fundamental

Constituição da República Federativa do Brasil

Artigo 182, § 2º

Função social da propriedade urbana

Constituição da República Federativa do Brasil

Artigo 183, § 1º

Assegura a concessão de uso de imóvel para moradia ao homem ou à mulher, ou a ambos

Constituição da República Federativa do Brasil

Artigo 23, incisos I, IX e X

Estabelece a competência administrativa comum da União dos Estados e dos Municípios para promover programas de construção de moradias, melhoria das condições habitacionais, saneamento básico e a integração social dos setores desfavorecidos

Estatuto da Cidade

Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001

Artigo 2º, inciso IV

Estabelece os objetivos para ordenar o desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana e, entre as diretrizes gerais, trata da regularização fundiária sustentável

Estatuto da Cidade

Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001

Artigo 4º, inciso V, alínea “q”

Estabelece os institutos jurídicos e políticos utilizados pela lei, dentre eles a regularização fundiária

Estatuto da Cidade

Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001

Artigo 4º, inciso V, alíneas “f”, “g”, “h” e “j”

Estabelecem os instrumentos passíveis de utilização na regularização fundiária: zonas especiais de interesse social; concessão de direito real de uso; concessão de uso especial para fins de moradia, e usucapião especial de imóvel urbano

Estatuto da Cidade

Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001

Artigo 4º, inciso V, alínea “t” inserida pela Lei 11.977, de 7 de julho de 2009 – PMCMV

Possibilita a demarcação urbanística para fins de regularização fundiária

Lei nº 11.977 de 7 de julho de 2009 – PMCMV

Artigo 49

Estabelece que o Município possa dispor sobre o procedimento de regularização fundiária em seu território

Lei nº 11.977 de 7 de julho de 2009 – PMCMV

Artigo 54, § 1º

Estabelece que o Município possa regularizar áreas em APPs ocupadas até 31/12/2007, inseridas em áreas urbanas consolidadas, desde que haja melhoria das condições ambientais existentes

Resolução CONAMA 369, de 28 de março 2006,

Conselho Nacional de Meio Ambiente

Artigo 9º

Estabelece que a intervenção ou supressão de vegetação em APP para a regularização fundiária sustentável de área urbana poderá ser autorizada pelo órgão ambiental competente

Resolução CONAMA 412, de13 de maio de 2009,

Conselho Nacional de Meio Ambiente

Artigo 1º

Estabelece que os procedimentos de licenciamento ambiental de novos empreendimentos destinados à construção de habitações de interesse social com pequeno potencial de impacto ambiental em área urbana ou de expansão urbana sejam realizados de modo simplificado

Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979,

Parcelamento do Solo Urbano

Artigo 53-A e parágrafo inserido pela Lei nº 9.785, de 29 de janeiro de 1999

Estabelece o tratamento diferenciado aos parcelamentos vinculados a planos ou programas habitacionais de iniciativa das Prefeituras, em especial as regularizações de parcelamentos e de assentamentos

Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973,

Registros Públicos

Artigo 221, inciso V, inserido pela Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009.

Dispensa reconhecimento de firma aos contratos ou termos administrativos, assinados com a União, Estados e Municípios no âmbito de programas de regularização fundiária

Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973,

Registros Públicos

Artigo 290., inciso I, inserido pela Lei nº 11.481, de 31 de maio de 2007.

Dispensa custas e emolumentos ao primeiro registro de direito real constituído em favor de beneficiário de regularização fundiária de interesse social em áreas urbanas e em áreas rurais de agricultura familiar, com renda mensal de até 5 SM

Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993,

Licitações

Artigo 17, inciso I, alíneas “f” e “h”, redação dada pela Lei nº 11.481, de 31 de maio de 2007.

Embora dependa de autorização legislativa, a alienação gratuita ou onerosa e concessão de direito real de uso de bens imóveis residenciais ou comerciais (até 250m²) destinados a programas de regularização fundiária de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública, dispensam processo licitatório

Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946,

Bens da União

Artigo 6º, Seção III-A, redação dada pela Lei nº 11.481, de 31 de maio de 2007.

Institui a demarcação de terrenos para Regularização Fundiária de Interesse Social destinada a atender famílias com renda familiar mensal não superior a 5 (cinco) salários mínimos

Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009,

Regularização fundiária em terras da União na Amazônia Legal

Artigo 21

Estabelece que seja passível a regularização fundiária em terras da União, situadas em áreas urbanas, mediante doação ao município

Legislações Estaduais

 

Estabelecem diretrizes relativas ao desenvolvimento urbano do Estado e Municípios, entre elas o atendimento à regularização fundiária das áreas ocupadas pela população de baixa renda, garantindo o direito de uso aos seus moradores, salvo onde as condições importem em risco de vida

Planos-Diretores

 

Estabelecem a promoção da regularização fundiária rural e urbana e a urbanização de áreas ocupadas, atendendo a população de baixa renda e a instituição, em caráter permanente, da Comissão de Regularização Fundiária

Fonte: Tabela elaborada pelo autor com base na legislação urbanística vigente

Tabela 2: Instrumentos para a regularização fundiária

OBJETO

INSTRUMENTO UTILIZADO

CONCEITO

Assentamentos habitacionais surgidos espontaneamente, caracterizados por irregularidades jurídicas ou urbanísticas na ocupação do solo urbano

Zonas (ou áreas) Especiais de Interesse Social (Mais conhecidas como ZEIS ou AEIS)

Flexibilização dos parâmetros urbanísticos quanto ao uso, ocupação e parcelamento do solo, a partir do reconhecimento das tipicidades locais, para facilitação da regularização fundiária do assentamento.

Posse de Terras Públicas

Concessão do Direito Real de Uso

Contrato feito pelo poder público com os moradores de terrenos de propriedade pública, para utilização dos mesmos com a finalidade de moradia.

Posse de Terras Privadas

Apoio à Usucapião especial urbana

Aquisição de direito real de propriedade em relação à área privada sobre a qual se tem a posse, durante 5 anos contínuos, para moradia, em lote não superior a 250m ². (individual e coletivo)

Loteamentos irregulares ou clandestinos

Lei federal nº 6766/79 e leis municipais de regularização de loteamentos.

Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009.

Regularização do loteamento e posterior titulação dos lotes, assumidos pelo município, sem prejuízo de ação regressiva contra o loteador.

Demarcação Urbanística

Fonte: Tabela elaborada pelo autor com base na legislação urbanística vigente


7. Considerações Finais

Estudo do Ministério das Cidades (2009), que considerou a soma de famílias de baixa renda vivendo em domicílios irregulares com inadequações de infraestrutura básica, constatou um quadro fundiário caótico que apresenta 5,5 milhões de pessoas que precisam de moradia, delas 83,5% na área urbana, e mais de 13 milhões de domicílios irregulares, equivalentes a 44% dos domicílios do País. Entretanto, a informação não é exata, e o quadro pode ser muito superior se considerarmos que existem vários assentamentos irregulares com a infraestrutura instalada, não computados no estudo. Apesar da expressividade dos números, esses dados, no entanto, dão-nos um panorama geral da irregularidade, sem muita precisão, especificidades, e sem a visibilidade que a questão merece. De qualquer maneira, trata-se de um problema que atinge todo o país e reflete até hoje a falta de políticas públicas de regularização fundiária e habitacionais, principalmente voltadas para a população de baixa renda.

A irregularidade fundiária é uma questão estrutural das cidades brasileiras, caracterizada por um desenvolvimento urbano desordenado. Fala-se, com razão, na dimensão acentuada do “problema” da irregularidade no Brasil, chegando-se a percentuais que variam em torno de 40 a 70% do parque imobiliário existente. Esses números, no entanto, devem ser utilizados de forma cuidadosa, já que se referem a situações e a problemas diferenciados.

O termo irregularidade estabelece uma “definição pela negação” (CARDOSO, 2003), ou seja, a irregularidade se define por tudo que não é regular. Isso dificulta a identificação do objeto a ser estudado, pois este, num primeiro momento, é somente um ‘fato’ que está em desacordo com a legislação ou com os procedimentos de controle urbanísticos. Neste momento, definir a irregularidade pressupõe uma classificação, ou uma tipologia, que permita orientar a análise, considerando-se as diferenças significativas entre as formas de irregularidade encontradas. Essa classificação, no entanto, pode, num primeiro momento, ser meramente descritiva, mas deve, num segundo momento, dialogar com as questões subsequentes (população afetada, causas e processos de produção), de forma a se construir um modelo com capacidade explicativa dos fenômenos e com capacidade de orientar a ação política.

A regularização fundiária poderia contribuir para a inserção plena do cidadão à cidade; viabilizar a sustentabilidade da cidade, porque reduziria os passivos urbanísticos e ambientais, e propiciar a transformação da economia informal em economia legal.

A política urbana deveria focar a regularização fundiária, mas ter mecanismos de controle da irregularidade para cortar o círculo vicioso que gera elevado dispêndio ao erário municipal na posterior correção do problema. 

Outro aspecto relevante nas questões fundiárias é a eficácia plena conferida às normas e princípios do Direito Urbanístico, fator que atribui segurança jurídica na aplicação dos instrumentos que possibilitem o controle urbano.

A legislação urbanística da cidade legal desconhece a cidade real que mostra os conflitos desta incompatibilidade posta. Com a flexibilização dessas normas, haveria o reconhecimento da pluralidade e diversidade da produção social.

O caminho para pacificar esses conflitos nasce da relativização da propriedade com a utilização dos meios legais para a garantia da posse, além do domínio. Importante pontuar que a regularização fundiária requer a análise do caso concreto, pois existem diversas possibilidades para a solução do problema.

Embora se detecte avanço no tratamento do tema fundiário, pode-se afirmar que não há muito a se comemorar pelos 10 anos da promulgação do Estatuto da Cidade. Poderíamos citar o exemplo da aplicação da edificação compulsória e IPTU progressivo no tempo, um dos importantes instrumentos para o controle da especulação imobiliária, que tem efeito insignificante devido à elasticidade nos procedimentos burocráticos, que pode chegar, entre a notificação inicial e a desapropriação, a 8 anos, refletindo, durante este período, em penalidade insignificante, estimando-se o valor máximo de 15% sobre o valor venal do imóvel, considerada muita branda em relação à valorização do imóvel ao se comparar com o mercado imobiliário.

Finalmente a medida provisória de nº 547 editada em outubro de 2011, poderá ser um instrumento importante no equilíbrio fundiário das cidades, por um lado evitando a expansão desordenada e por outro disponibilizando recursos da União para os programas habitacionais de interesse social.

Constata-se na prática que os municípios não estão aplicando os instrumentos desse novo arcabouço jurídico em face da forte influência política orquestrada pelo mercado imobiliário, e em virtude do conservadorismo do judiciário, ainda reticente ao relativismo do direito à propriedade. 


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[1] Mais valia é a diferença entre o valor da mercadoria produzida e a soma do valor dos meios de produção e do valor do trabalho, que seria a base do lucro no sistema capitalista.

  Karl Marx. O Capital, Volume I, Parte III, Capítulo VII, Processo de Trabalho e Processo de Produção de Mais Valia, Secção 2, O Processo de Produção de Mais Valia.


ABSTRACT

This paper analyzed the present situation of urban land regularization from the Statute of the City and urban legislation in Brazil. The study is justified because the Statute of the City have completed 10 years of application in July 2011 but it still has few applicability particularly and especially in the field of use of their instruments for urban land use regulation. The objective of the study is to propose a debate on the Statute of the City and urban Brazilian legislation from the standpoint of the main problems and obstacles for urban land use regulation. The methodology consisted of literature review, literature analysis and practical experience in the drafting of Sustainable Land Regularization Plan. It was concluded that municipalities are not applying the tools of this new legal framework in the face of strong political influence governed by real state department because and because the conservatism of the judiciary, still reluctant to relativism of the right to property.

Keywords: City Statute. Regularization. Real Estate Market. Urban Right. Director Planning.


Autor

  • João Aparecido Bazolli

    Professor Adjunto da Universidade Federal do Tocantins (Direito Urbanístico). Mestre em Ciências do Ambiente (UFT). Doutor em Geografia (UFU). Pós-Doutorando em Ordenamento Territorial pela Universidade de Lisboa (IGOT)<br>

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAZOLLI, João Aparecido. Os dez anos da vigência do Estatuto da Cidade no processo dialético da práxis da regularização fundiária urbana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3297, 11 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22189. Acesso em: 7 maio 2024.