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A gratuidade de Justiça para a pessoa jurídica como direito constitucional fundamental

A gratuidade de Justiça para a pessoa jurídica como direito constitucional fundamental

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O direito à gratuidade de justiça por parte das entidades sem fins lucrativos e filantrópicas deveria ter sido tratada de forma mais ampliativa pelo STJ, que, através da Súmula 481, equiparou tais instituições às lucrativas.

1. Trata-se de artigo que tem por escopo analisar o direito de pessoas jurídicas à gratuidade de Justiça como sendo um direito constitucional fundamental.

2. De início, importante ressaltar que a gratuidade de Justiça tem por objetivo efetivar princípios constitucionais de extrema relevância, tais como igualdade, contraditório e ampla defesa, devido processo legal e, notadamente, o acesso à Justiça.

3. Acesso à Justiça, que vai além de mero acesso à jurisdição, não pode ser encarado de outra forma senão como direito individual inerente ao homem e que se situa no mesmo patamar do direito à liberdade, à vida, à propriedade, à livre expressão, dentre outros.

4. Desta maneira, a efetivação do acesso à Justiça por meio da gratuidade de Justiça direcionada aos que comprovarem insuficiência de recursos é prerrogativa essencial dos modernos Estados Democráticos de Direito.

5.Cabe ressaltar por curiosidade histórica que a primeira previsão de acesso gratuito à Justiça aplicável em nosso território foi veiculada pelas Ordenações Filipinas, em seu livro III[1]. Tal diploma, sancionado em 1595, previa que determinado indivíduo, caso fosse pobre, deixasse de pagar as custas de então, bastando para tanto jurar e rezar em favor do rei.

6.A primeira constituição do Brasil, datada de 25 de Março de 1824 e que a seguiu, de 1891, eram silentes no que se refere à gratuidade de Justiça. Alguns juristas da época, notadamente José Thomaz Nabuco de Araújo, presidente do Instituto dos Advogados do Brasil de 1866 até 1873, foram os responsáveis por incluir de forma inovadora esta questão na pauta do Poder Legislativo. Tais esforços acarretaram a publicação de alguns diplomas infraconstitucionais que atendiam ao menos parcialmente os reclames destes juristas, notadamente o Decreto n. 1.130, de 1890[2] e o Decreto n. 2.547, de 1897[3].

7. O primeiro texto constitucional a abordar de forma expressa a gratuidade de Justiça foi o publicado em 16 de Julho de 1934, que previa no inciso 32 de seu Art. 113 que a União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais assegurando, a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos. A inclusão deste direito na Constituição Federal foi fundamental para alterar a natureza do acesso gratuito à Justiça de mero benefício concedido por lei ordinária para direito garantido pelo texto máximo do país.

8. Em um retrocesso imperdoável, o direito à gratuidade de Justiça foi suprimido pela Constituição de 1937 e reintegrado de forma tímida pelo diploma constitucional de 1946, que delegava à lei ordinária a assistência judiciária e isenção de custas judiciais aos pobres e necessitados[4] e que motivou a veiculação da Lei n. 1.060, de 5 de Fevereiro de 1950, até hoje em vigor. A previsão da Constituição de 1946 foi reiterada em 1967[5] e pela emenda de 1969[6].

9. Como em diversos outros pontos do direito positivo pátrio, a grande evolução legislativa que tornou o acesso à Justiça item fundamental da organização e funcionamento do Estado brasileiro veio com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Além de instituir a Defensoria Pública como elemento essencial à função jurisdicional, o novo texto constitucional assim dispunha em seu Art. 5º. inciso LXXIV:

Art. 5º.  LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

10. Para os fins a que se propõe o presente artigo, Importante analisar a impessoalidade da previsão constitucional acima delimitada. Não há qualquer diferenciação entre pessoas naturais e pessoas jurídicas, de forma que qualquer limitação no gozo deste direito por conta unicamente desta diferenciação afronta diretamente a Constituição Federal.

11. Ademais, destaca-se que o termo assistência jurídica integral é mais abrangente do que até então utilizado, assistência judiciária, incluindo não só a isenção custas e taxas judiciais, como também atos jurídicos extrajudiciais, aconselhamento jurídico, patrocínio de causa, dentre outros elementos inerentes às modernas relações jurisdicionais. Comentando este importante dispositivo, destacamos abaixo ensinamentos de José Afonso da Silva:

Esta é a cláusula que contém uma imposição constitucional. Não se diz que o Estado poderá prestar ou deverá prestar. Diz-se que ele tem a obrigação de realizar a prestação determinada na norma constitucional. Aqui temos uma daquelas prestações positivas do Estado, que há de traduzir-se em uma ação afirmativa, mediante políticas adequadas ao cumprimento da imposição constitucional.


I. A gratuidade de justiça na jurisprudência dos Tribunais Superiores

II.1 A questão da gratuidade de justiça no âmbito do Superior Tribunal de Justiça

12. Tanto o Supremo Tribunal Federal, como o Superior Tribunal de Justiça, cientes de seus papéis delineados pela Constituição Federal 1988 possuem jurisprudência dominante no sentido de que pessoas jurídicas que comprovem a impossibilidade de arcar com custas e despesas decorrentes dos processos judiciais possuem direito à gratuidade de Justiça.

13. No âmbito do STJ, desde a década de 1990, os precedentes admitindo a concessão da gratuidade de Justiça às pessoas jurídicas, com ou sem fins lucrativos, são numerosos. Destacamos abaixo alguns destes entendimentos:

PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO DA GRATUIDADE. CONCESSÃO À PESSOA JURIDÍCA. ADMISSIBILIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE O BENEFÍCIO RETROAGIR PARA LIVRAR O BENEFICIÁRIO DE CAPÍTULO CONDENATÓRIO DE SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO.

I - É perfeitamente admissível, à luz do art. 5º, LXXIV, da CF/88, a concessão do beneficiário da gratuidade à pessoa jurídica, que demonstre, cabalmente, a impossibilidade de atender as despesas antecipadas do processo, o que vedaria seu acesso à Justiça. Porém, e inadmissível conceder, também para pessoas físicas, o benefício retroativamente, com o fito de livrar o beneficiário de capítulo condenatório de sentença transitada em julgado, a teor do art. 9º da Lei nº 1.060/50, caso em que, de resto, a medida se revela inócua, pois, inexistindo bens, a execução se mostrará infrutífera".

II - Recurso não conhecido. 

Processo REsp 161897 / RS RECURSO ESPECIAL 1998/0000572-2 Relator(a)Ministro WALDEMAR ZVEITER (1085 )Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA Data do Julgamento 12/05/1998 Data da Publicação/Fonte DJ 10/08/1998 p. 65

ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. FUNDAÇÃO MANTENEDORA DE HOSPITAL. ALEGAÇÃO DE SITUAÇÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA PRECÁRIA. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO.

- É possível conceder-se às pessoas jurídicas o benefício da assistência judiciária, desde que, porém, demonstrem a impossibilidade de arcar com as despesas do processo sem prejuízo da própria manutenção. Precedente do STJ.

Recurso especial não conhecido.

Processo REsp 431239 / MGRECURSO ESPECIAL2002/0047700-3 Relator(a) Ministro BARROS MONTEIRO (1089) Órgão Julgador T4 - QUARTA TURMA Data do Julgamento 03/10/2002 Data da Publicação/Fonte DJ 16/12/2002 p. 344

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO PELA LETRA “C” DO AUTORIZADOR CONSTITUCIONAL. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. PESSOA JURÍDICA

COM FINS LUCRATIVOS. LEI N. 1.060/50. APLICABILIDADE, EM TESE. CONCORDATA. EXAME DO ESTADO DE NECESSIDADE. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO CARACTERIZADA, NO PONTO. CONHECIMENTO PARCIAL. IMPROVIMENTO.

I. A pessoa jurídica, independentemente de ter fins lucrativos, pode ser beneficiária da gratuidade prevista na Lei n. 1.060/50, art. 2o, parágrafo único, desde que comprove, concretamente, achar-se em estado de necessidade impeditivo de arcar com as custas e despesas do processo.

II. Reconhecimento, pelo Tribunal estadual, de tal situação, por cuidar-se de empresa concordatária, matéria a cujo respeito não foi demonstrado o dissídio jurisprudencial, impedindo o exame da procedência daquele entendimento pelo STJ.

III. Recurso especial conhecido em parte e improvido.

Processo REsp 512335 / SP RECURSO ESPECIAL 2003/0027045-0 Relator(a)Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR (1110) Órgão JulgadorT4 - QUARTA TURMA Data do Julgamento 21/10/2004 Data da Publicação/Fonte DJ 09/02/2005 p. 194

SINDICATO. PESSOA JURÍDICA SEM FINS LUCRATIVOS. GRATUIDADE DE JUSTIÇA. NECESSIDADE DE PROVA DA MISERABILIDADE. INSUFICIÊNCIA DE

DECLARAÇÃO DE POBREZA.

I - As pessoas jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos, para obter os benefícios da Justiça gratuita, devem comprovar o estado de miserabilidade, não bastando simples declaração de pobreza. 

Precedentes: EREsp nº 1.185.828/RS, Rel. Min. CESAR ASFOR ROCHA, CORTE ESPECIAL, DJe de 01/07/2011 e AgRg no AgRg no REsp nº 1.153.751/RS, Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe de 07/04/2011.

II - Agravo regimental improvido.

Processo AgRg no AREsp 130622 / MGAGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL2012/0027112-9Relator(a)Ministro FRANCISCO FALCÃO (1116)Órgão JulgadorT1 - PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento17/04/2012Data da Publicação/Fonte DJe 08/05/2012

14. Para fins de comparação, colacionamos abaixo alguns entendimentos exarados pelo STJ declinando o acesso gratuito à Justiça por pessoas jurídicas com fins lucrativos:

PROCESSUAL CIVIL - ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA - BENEFÍCIO NÃO EXTENSIVO ÀS PESSOAS JURÍDICAS QUE VISAM A ATIVIDADE LUCRATIVA - ART. 2º DA LEI Nº 1.060/50 - INTELIGÊNCIA – PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS.

1 - O ordenamento jurídico pátrio permite que a gratuidade da Justiça alcance não só as pessoas físicas, mas também as pessoas jurídicas de fins tipicamente filantrópicos ou de caráter beneficente; desde que comprovada, nos termos da lei, a sua impossibilidade financeira para arcar com as custas do processo.

2 - O pressuposto da pobreza jurídica, definido na Lei nº 1.060/50, não se coaduna com a atividade lucrativa perseguida pelas sociedades comerciais limitadas; e também por outras espécies de pessoas jurídicas voltadas para o auferimento de lucro. 3 - Recurso especial conhecido e improvido.

Decisão unânime.

Processo REsp 111423 / RJRECURSO ESPECIAL1996/0067022-6 Relator(a)Ministro DEMÓCRITO REINALDO (1095)Órgão JulgadorT1 - PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 09/03/1999 Data da Publicação/Fonte DJ 26/04/1999 p. 47

CIVIL - RECURSO ESPECIAL - LOCAÇÃO - JUSTIÇA GRATUITA - LEI Nº 1.060/50 - PEDIDO AUTUADO EM APARTADO - FALTA DE PREQUESTIONAMENTO EXPLÍCITO - SÚMULA 356/STF - CONCESSÃO DO BENEFÍCIO À PESSOA JURÍDICA - FINS LUCRATIVOS - IMPOSSIBILIDADE.

1 - Não enseja interposição de Recurso Especial matéria (art. 4º, § 2º da Lei nº 1.060/50) que não tenha sido ventilada no v. julgado atacado e sobre a qual a parte não opôs os embargos declaratórios competentes, havendo, desta forma, falta de prequestionamento. Aplicação da Súmula 356, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

2 - A gratuidade da Justiça, sendo um direito subjetivo público, outorgado pela Lei nº 1.060/50 e pela Constituição Federal, deve ser amplo, abrangendo todos aqueles que comprovarem sua insuficiência de recursos, não importando ser pessoa física ou jurídica. Entretanto, os arts. 2º, 4º e 6º, da Lei nº 1.060/50, não se coadunam com as pessoas jurídicas voltadas para atividades lucrativas, como no caso concreto da recorrente, pois não se incluem estas no rol dos necessitados. O auferimento de lucro, prima facie, afigura-se incompatível com a situação de miserabilidade descrita na norma legal. A extensão do benefício deve ocorrer somente às pessoas jurídicas pias, filantrópicas, consideradas por lei socialmente relevantes, ou ainda, sem fins lucrativos.

3 - Precedente (REsp nº 111.423/RJ).

5 - Recurso parcialmente conhecido e, neste aspecto, desprovido.

Processo REsp 300113 / RJRECURSO ESPECIAL2001/0005304-1Relator(a)Ministro JORGE SCARTEZZINI (1113)Órgão JulgadorT5 - QUINTA TURMA Data do Julgamento13/03/2002Data da Publicação/Fonte DJ 20/05/2002 p. 177

15.Com as devidas vênias aos julgadores responsáveis pelos acórdãos acima, o entendimento de que pessoas jurídicas com fins lucrativos não podem gozar da gratuidade de Justiça unicamente por auferirem lucro é insustentável. Não nos parece que a melhor exegese neste caso seja a interpretação literal de lei ordinária de 1950, colocando este diploma em um patamar superior até mesmo à Constituição Federal de 1988. S.M.J, esta seria a única forma de validar o posicionamento destes julgados, já que a Carta de Outubro não faz qualquer diferenciação entre os pleiteantes à gratuidade de Justiça.


II.2 A Súmula n. 481 do STJ e a questão das Entidades sem Fins Lucrativos

16.  Em que pesem eventuais entendimentos contrários e isolados, a virtual pacificação do entendimento do Superior Tribunal de Justiça admitindo a possibilidade acesso gratuito resultou na publicação da Súmula de n. 418, que assim dispõe:

Súmula 481 de 01/08/2012[7] - Faz jus ao benefício da Justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais.

17.  O texto desta súmula foi inspirado em diversos acórdãos proferidos desde o advento da Constituição Federal de 1998. Dentre eles, temos o RESP n. 431.239-MG, que destaca ensinamentos do Desembargados Wilson Marques, publicado na Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Doutrina e Jurisprudência, abaixo reportado:

Mas, ao menos de forma categórica, a lei não exclui a possibilidade de concessão do benefício às pessoas jurídicas e às chamadas pessoas formais, como o condomínio do edifício de apartamentos, a massa falida, a herança jacente, etc. etc., os quais podem perfeitamente carecer de meios para prover às despesas do processo, sem sacrifício da sua própria estabilidade e manutenção. A presunção de pobreza, no entanto, não socorre as pessoas jurídicas eas formais, as quais, segundo o id quod plerumque accidit, somente em situações excepcionais podem ser consideradas 'pobres', no sentido da lei, a justificar, nessas situações excepcionais, e somente nelas, a concessão do benefício da assistência judiciária gratuita. Como o ordinário se presume, mas o excepcional precisa ser provado, tais pessoas, ao contrário do que ocorre com as pessoas físicas, somente podem obter gratuidade de justiça se provarem que, fugindo ao que ordinariamente ocorre, não estão em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado sem prejuízo de sua própria manutenção (vol. 38, pág. 22).

18.  Entendemos que não há qualquer incongruência em se exigir a comprovação de hipossuficiência das pessoas jurídicas com fins lucrativos que desejam acessar o Poder Judiciário de forma gratuita. A necessidade de comprovação é veiculada de forma expressa pelo texto constitucional e, desta feita, é requisito essencial para o gozo do direito fundamental transcrito no Art. 5º. inciso LXXIV da CFRB.

19.  Não obstante, no caso das pessoas jurídicas sem fins lucrativos, acreditamos que, tal como no caso da pessoa física, sua hipossuficiência deveria ser presumida, já que todo o montante aplicado em fins diversos que os não os previstos em seus estatutos representam potenciais recursos desviados da população carente atendida por estas instituições.

20.   O próprio Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já reconheceu este direito em diversos julgados.

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. PESSOA JURÍDICA SEM FINS LUCRATIVOS. SINDICATO. COMPROVAÇÃO DE MISERABILIDADE. PRESCINDIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. 1. O Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão no sentido de que as pessoas jurídicas sem fins lucrativos - entidades filantrópicas, de assistência social e sindicatos - gozam de presunção juris tantum de miserabilidade, razão pela qual, para a concessão do benefício da gratuidade de justiça, é prescindível a comprovação de sua condição. 2. Agravo regimental improvido (Processo AGRESP 200802503487AGRESP - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL - 1103391Relator(a)ARNALDO ESTEVES LIMA Sigla do órgão STJ Órgão julgador QUINTA TURMA FonteDJE DATA:10/05/2010)

PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL. FUNGIBILIDADE. LEI N. 1.060/50. JUSTIÇA GRATUITA. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. PESSOA JURÍDICA. (...) A concessão do benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica sem fins lucrativos prescinde de prévia comprovação da necessidade, pois, nesse caso, há presunção relativa de que a entidade não possui condições financeiras de arcar com as custas do processo (Corte Especial, EREsp n. 1.055.037/MG, relator Ministro Hamilton Carvalhido). (Processo RCREAG 200901587842RCREAG - RECONSIDERAÇÃO DE DESPACHO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - 1196639Relator(a)JOÃO OTÁVIO DE NORONHA Sigla do órgão STJ Órgão julgador QUARTA TURMA Fonte DJE DATA:05/04/2010)

21.  Desta forma, o entendimento sumulado do STJ é bastante rigoroso com relação às entidades sem fins lucrativos e filantrópicas, que são igualadas às pessoas jurídicas com fins lucrativos, devendo comprovar seu estado de miserabilidade financeira.

22. Este posicionamento contrasta frontalmente não só com a realidade destas instituições, já que todo o resultado financeiro eventualmente obtido deverá ser reinvestido nas próprias entidades e em suas atividades assistenciais, mas também com outras previsões constitucionais, tais como o Art. 204[8] e as imunidades tributárias previstas pelo Art. 150[9] inciso VI alínea “c” e 195 §7º.[10], que visam justamente desonerar estas instituições para que as suas políticas assistenciais sejam maximizadas e ampliadas.

23. Esta questão ganha contornos ainda mais dramáticos quando se verificam as consequências da ânsia arrecadatória dos três níveis de governo, que motivam a distribuição de inúmeros processos judiciais, notadamente execuções fiscais, em total desrespeito às imunidades e isenções das entidades sem fins lucrativos e filantrópicas.

24. Além de dificultar a defesa deste tipo de instituição, a necessidade de comprovação de estado de miserabilidade muitas vezes impedirá que entidades bem administradas e com fluxo de caixa positivo possam gozar do benefício da gratuidade de justiça, acarretando a já mencionada retirada substancial de recursos de seus projetos e políticas assistenciais.


II.3 A questão da gratuidade de justiça no âmbito do Supremo Tribunal Federal

25. Apesar de não ter sumulado entendimento, o que seria salutar, já que entendemos ser o acesso à Justiça uma questão de nobreza constitucional, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou por diversas vezes pela possibilidade da concessão da gratuidade de justiça às pessoas jurídicas que comprovem seu estado de necessidade. Abaixo alguns destes entendimentos:

BENEFÍCIO DA GRATUIDADE. PESSOA JURÍDICA DEDIREITO PRIVADO. POSSIBILIDADE. NECESSIDADE DECOMPROVAÇÃO DA INSUFICIÊNCIA DE RECURSOSFINANCEIROS. INEXISTÊNCIA, NO CASO, DEDEMONSTRAÇÃO INEQUÍVOCA DO ESTADO DEINCAPACIDADE ECONÔMICA. CONSEQÜENTEINVIABILIDADE DE ACOLHIMENTO DESSE PLEITO.RECURSO IMPROVIDO.- O benefício da gratuidade - que se qualifica como prerrogativa destinada a viabilizar, dentre outras finalidades, o acesso à tutela jurisdicional do Estado- constitui direito público subjetivo reconhecido tanto à pessoa física quanto à pessoa jurídica de direito privado, independentemente de esta possuir, ou não, fins lucrativos. Precedentes.- Tratando-se de entidade de direito privado - com ou sem fins lucrativos -, impõe-se-lhe, para efeito de acesso ao benefício da gratuidade, o ônus de comprovar a sua alegada incapacidade financeira (RT 787/359 - RT 806/129 - RT 833/264 - RF343/364), não sendo suficiente, portanto, ao contrário do que sucede com a pessoa física ou natural (RTJ 158/963-964 - RT828/388 - RT 834/296), a mera afirmação de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários advocatícios. Precedentes.(AgRg no RE 192.715/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJ 9/2/07).

ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA - PESSOA JURÍDICA. Ao contrário do que ocorre relativamente às pessoas naturais, não basta a pessoa jurídica asseverar a insuficiência de recursos, devendo comprovar, isto sim, o fato de se encontrar em situação inviabilizadora da assunção dos ônus decorrentes do ingresso em juízo. Rcl 1905 ED-AgR / SP - SÃO PAULO  AG.REG.NOS EMB.DECL.NA RECLAMAÇÃO Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO Julgamento:  15/08/2002 Órgão Julgador:  Tribunal Pleno

RECURSO. Embargos de declaração. Caráter infringente. Embargos recebidos como agravo. Justiça gratuita. Denegação. Pessoa jurídica. Prova de insuficiência de recursos. Falta. Precedente do Pleno. Decisão mantida. Agravo regimental improvido. Não basta, à pessoa jurídica, alegar, sem prova, insuficiência de recursos para obter os benefícios da gratuidade de justiça. 2. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Questão infraconstitucional. Matéria fática. Agravo regimental improvido. Súmula 279. Não cabe recurso extraordinário que teria por objeto alegação de ofensa que, irradiando-se de má interpretação, aplicação, ou, até, de inobservância de normas infraconstitucionais, seria apenas indireta à Constituição da República, nem tampouco que dependa de reexame de provas. RE 556515 ED / RJ - RIO DE JANEIRO  EMB.DECL.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO Julgamento:  05/08/2008           Órgão Julgador:  Segunda Turma

RECURSO. Extraordinário. Admissibilidade. Ausência de preparo. Objeto do recurso. Embargos de declaração. Caráter infringente. Embargos recebidos como agravo regimental. Improvimento. Precedente. Às pessoas jurídicas não basta alegar insuficiência de recursos para obtenção da gratuidade de justiça, devendo comprovar a impossibilidade econômica para litigar em juízo. AI 716294 ED / MG - MINAS GERAIS EMB.DECL.NO AGRAVO DE INSTRUMENTO Relator(a):  Min. CEZAR PELUSOJulgamento:  31/03/2009           Órgão Julgador:  Segunda Turma

26.  Em 2010, o STF parece ter delegado totalmente a análise das questões envolvendo gratuidade de justiça concedida às pessoas jurídicas para o STJ, já que não reconheceu a existência de repercussão geral neste tipo de demanda.

EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. GRATUIDADEDE JUSTIÇA. PESSOA JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. Esta Corte, ao apreciar o RE 589.490, de relatoria do ministro Menezes Direito, reconheceu a inexistência de repercussão geral de matéria relativa aos requisitos para concessão e gratuidade de justiça a pessoas jurídicas. Nos termos do art. 543-A, § 5º, do CPC, e dos arts. 326 e 327, do RISTF, a decisão do Supremo Tribunal Federal relativa à inexistência de repercussão geral valerá para todos os casos que versem sobre questão idêntica. Agravo regimental a que se nega provimento. AI 689690 ED / RJ - RIO DE JANEIRO EMB.DECL. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA Julgamento:  23/03/2010           Órgão Julgador:  Segunda Turma


II.  Disposições Finais

27. Como visto acima, o direito à gratuidade de justiça previsto pela primeira vez em território brasileiro no ano de 1595 foi reforçado nos últimos anos com a pacificação jurisprudencial da sua extensão às pessoas jurídicas que não tenham condições de arcar com estas despesas sem por em risco a manutenção de suas atividades. Este reconhecimento efetiva um plexo de princípios constitucionais e direitos sociais que não se restringe ao acesso à justiça, mas engloba também a livre iniciativa, valor social do trabalho, contraditório e ampla defesa, dentre outros. 

28.  Evidentemente esta proteção é igualmente salutar do ponto de vista econômico e social, já que com a dispensa de pagamento de despesas judiciais por empresas e entidades em difícil situação financeira, temos a potencial preservação de empregos e da necessária concorrência nas modernas economias de mercado.

29. Em que pese os avanços verificados, pensamos que o direito à gratuidade de justiça por parte das entidades sem fins lucrativos e filantrópicas deveria ter sido tratada de forma mais ampliativa pelo Superior Tribunal de Justiça, que através do entendimento sumulado de n. 481 equiparou tais instituições às pessoas jurídicas com fins lucrativos.

30.  A presunção de miserabilidade neste caso, além de estar em sintonia com a mens legis da Constituição Federal quando o assunto é beneficência e políticas privadas de bem-estar social, traria mais segurança e facilitaria a gestão do passivo judicial deste tipo de instituição que, nunca é demais lembrar, cumprem o fundamental papel de atuar onde muitas vezes o poder público não atua.

31.  Como já mencionado, por uma questão eminentemente constitucional, uma manifestação sumulada pelo Supremo Tribunal Federal, até mesmo de forma vinculante, seria de extrema importância para sedimentar o entendimento no Poder Judiciário que as pessoas jurídicas em estado de miserabilidade possuam direito inexorável à gratuidade de justiça.


Referência Bibliográfica

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. 7ª. Ed. São Paulo: Ed. Jurídico Atlas, 2007.

Da SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. 2ª. Ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2ª. Ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008.


Notas

[1] 10. E sendo o agravante tão pobre, que jure que não tem bens móveis, nem de raiz; nem por onde pague o agravo, e dizendo na audiência uma vez o “Pater noster póla alma delRey” Dom Diniz, ser-lhe-há havido, como que pagasse os novecentos reis, com tanto que tire dentro no tempo, em que havia de pagar o agravo”.

[2] Art.175. O Ministério da Justiça é autorizado a organizar uma comissão de patrocínio dos pobres no crime e no cível, ouvindo o Instituto da Ordem dos Advogados, e dando os regimentos necessários.

[3] Criou o precursor serviço público de Assistência Judiciária para o pobre no Distrito Federal (Rio de Janeiro na época), que era toda pessoa que, tendo direitos a fazer em juízo, estiver impossibilitada de pagar ou adiantar as custas e despesas do processo sem privar-se de recursos pecuniários indispensáveis para as necessidades ordinárias da própria manutenção ou da família.

[4] Art. 141 § 35. O Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados.

[5] Art. 150 § 32 - Será concedida assistência Judiciária aos necessitados, na forma da lei.

[6] Art. 153 § 32. Será concedida assistência jurídica aos necessitados, na forma da lei.

[7] Precedentes: REsp 431239, EREsp 1185828, EREsp 690482, EREsp 603137, EAg 1245766, AgRg no AREsp   130622, AgRg no AREsp 126381 e AgRg nos EAg   833722

[8] Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;

II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.

Parágrafo único. É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a programa de apoio à inclusão e promoção social até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

I - despesas com pessoal e encargos sociais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

II - serviço da dívida; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

[9] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

VI - instituir impostos sobre:

c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;

[10] Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

§ 7º - São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.


Autores

  • Thiago Graça Couto

    Thiago Graça Couto

    Advogado Associado a Covac Sociedade de Advogados e a American Bar Association, membro da YLD/ABA, Young Lawyers Division, Litigation Comittee, e Taxation Comittee, especialista em Processo Civil pela PUC-Rio, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET e com extensão em Direito da Tecnologia da Informação pela FGV-Rio. Associado Fundador da Associação Brasileira de Jovens Advogados - ABJA e Instituto Brasileiro de Jovens Advogados - IBJA

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  • Kildare Araújo Meira

    Kildare Araújo Meira

    Sócio e Advogado do escritório Covac sociedade de advogados, Pós-Graduado em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Ensino e Pesquisa – IBEP e Instituto Brasileiro de Direito Processual –IBDP, Pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília – UCB, sócio e membro da Associação Brasileira de Direito Tributário; Secretário Geral da Fundação de Assistência Judiciária da OAB/DF; Professor da ESA-OAB/DF: Curso Questões atuais de defesa Tributária. Diversos artigos publicados.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Thiago Graça; MEIRA, Kildare Araújo. A gratuidade de Justiça para a pessoa jurídica como direito constitucional fundamental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3345, 28 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22504. Acesso em: 28 mar. 2024.