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A crise do direito processual e o neoprocessualismo.

Uma alternativa complexa ao poder criador dos magistrados

A crise do direito processual e o neoprocessualismo. Uma alternativa complexa ao poder criador dos magistrados

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A processualística sistêmica assume a complexidade do mundo e das coisas e convida o direito a um diálogo interdisciplinar, inserindo o conceito de direito num contexto bem mais amplo e complexo, reconhecendo como partes integrantes da ciência jurídica as diversas propostas disciplinares conhecidas.

1. Introdução

A partir da evolução jusfilosófica por que passou o Direito, em necessário corte gnosiológico, da gênese do pensamento moderno à contemporaneidade, se estabelecerá as bases conceituais do direito contemporâneo, apontando pelos novos direcionamentos da ciência jurídica, em especial do Direito Processual Civil Brasileiro.

Estabelecendo um diálogo crítico-construtivo com os mais variados ramos do conhecimento humano, se pretende questionar a ciência jurídica enquanto fruto de um sistema fechado, possuidor de fundamentos exclusivamente baseados em sistemas racionais, que utiliza como método tão somente a causalidade analítica, para, ao final, apontar para uma nova direção, um pouco mais cética e mais complexa.

Estabelecidas as bases conceituais do pensamento moderno, apontando suas incongruências, imperfeições e incompletudes, se construirá um esboço da inquietação intelectual da contemporaneidade, que tem como ponto cume, na tradição jurídica, a recente teoria Neoconstitucionalista. É a partir deste paradigma que se estabelecerão os avanços e retrocessos da teoria da supremacia dos direitos fundamentais, apontando as mudanças ocorridas no mundo jurídico neste recente processo de adaptação. Como conseqüência desta metamorfose, desta “evolução”, se discutirá acerca da reformulação do sistema processual, implementada não só pelas novas alterações legislativas, mas também pela cultura jurídica mais recente, influenciada pela teoria da supremacia dos direitos fundamentais, que atribui ao judiciário uma esfera de poderes muito além do que previra Montesquieu em sua célebre teoria da tripartição dos poderes.

É com base em uma nova análise conceitual, em uma nova dimensão normativa e não normativa do Direito, que se pretende estabelecer os novos pontos de partida, os novos desafios da ciência jurídica, em especial do Direito Processual Civil Brasileiro, trazendo à baila, à reflexão, a teoria do pensamento complexo, complementada, no campo jurídico, pela processualística sistêmica.

Levando em conta esta nova dimensão do Direito, este novo direcionamento, esta nova alternativa, mais cética e mais complexa, se pretende discutir acerca do poder criador atribuído ao magistrado contemporâneo pela tradição jurídica mais recente, pondo em evidência a característica contraditória entre os fundamentos de justificação da nova tradição jurídica (que partem de uma redução ôntica causal-analítica – justificação juspositiva) e suas conseqüências (poder criador justificado pela nova hermenêutica constitucional).

A missão deste trabalho, pois, trata-se de identificar as incongruências da ciência jurídica da atualidade, que continua se utilizando do paradigma metodológico moderno (objetividade de um diálogo racional e não distorcido, avançando para obtenção da verdade plausível – racionalismo cientificista) mesmo diante de uma nova perspectiva: a noção de Direito como um fenômeno de múltiplas representações, de infinitos significados, de muitos modos de aplicação, enfim, de variáveis mais amplas e mais complexas.

Mas este trabalho não adentrará em questões técnico-jurídicas, nem terá um viés conclusivo. Utilizar-se-á, isto sim, de uma hermenêutica sistêmica dialética capaz de elucidar os problemas estruturais do Direito para, ao final, apontar por uma solução, por uma alternativa.


2. A construção do pensamento moderno: as bases do Direito Contemporâneo

2.1. O paradigma medieval

O pensamento moderno não surgiu como em passe de mágica, não emergiu do nada. Ele é fruto de um longo e gradativo processo de negação que culminou, nas palavras de Sérgio Paulo Rouanet[1], em um novo “projeto de civilização”. Seguindo as bases hegelianas e sua filosofia da história, a humanidade passou por infindáveis processos dialéticos de constante afirmação, negação e ressurgimento, podendo, a modernidade, ser entendida, desta forma, como a síntese da negação de uma afirmação. Mas que afirmação era esta e qual foi a negação capaz de desestabilizar o antigo regime, culminando na modernidade? Resumindo em poucas palavras, a afirmação pode ser entendida como a tradição medieval, e a negação como o Iluminismo. Deste choque, nos ensinamentos de Nicola Abbagnano, surge o “Renascimento” do espírito que já fora próprio do homem da época clássica, ou seja, “um espírito de liberdade, pelo qual o homem reivindica sua autonomia de ser racional e se reconhece intimamente ligado à natureza e à história, apresentando-se a fazer de ambas o seu reino” [2]. O embrião da era moderna fora semeado.

Em grosseira síntese, mas de fundamental necessidade aos fins a que se propõe este trabalho, algumas considerações sobre estas fases de “desenvolvimento”, de “evolução” do pensamento humano merecem ser declinadas, para, compreendida a noção de pensamento moderno, sermos capazes de identificar suas incongruências e insuficiências, apontando para um novo paradigma, um pouco mais cético e mais complexo.

Seguindo este intuito de demonstrar a construção do pensamento moderno, começamos pela tradição que antecede o novo regime: a Idade Média. Em seu viés gnoseológico, a tradição medieval pode ser entendida como uma etapa em que o conhecimento humano estava voltado, cingido, limitado, guiado pelas revelações divinas obtidas através da intermediação da igreja. O conhecimento, a verdade, era, por assim dizer, uma construção pré-estabelecida, pronta e acabada, que era revelada pelo poder divino através da interpretação “oficial” das escrituras sagradas, realizada pelas autoridades religiosas. Além de absoluto, o conhecimento tinha um intermediador que ditava as regras de verdade. E não era diferente com o Direito, que recebia como fundamento de validade a “Lei Divina” revelada pelas autoridades eclesiásticas.

João Maurício Adeodato bem nos apresenta esta idéia no primeiro capítulo do “Ética e Retórica”, intitulado “Positividade e conceito de Direito”, quando tece alguns comentários acerca da evolução filosófica por que passou o Direito:

O jusnaturalismo teológico, desenvolvido sob o respaldo do Cristianismo medieval, chega ao ápice na obra de Thomás de Aquino, que classificou as leis em eternas, naturais e humanas e fixou o direito natural como base do conceito de direito. [3]

De fato, Santo Thomás de Aquino é um dos maiores nomes da tradição jusfilosófica medieval, evidenciando em seus escritos sua tendência a usar a moral divina como fonte e argumento justificador do Direito. Mas a teoria jurídica da Idade Média não teve apenas o jusnaturalismo como expressão única de sua experiência. Muito mais que isso, a tradição jurídica medieval tinha um método bastante claro e bem definido de produção e aplicação do Direito, tendo a linguagem e suas formas de significação um papel interessante na formação deste método. E mais uma vez, São Thomás serve de exemplificação: a escolástica aristotélica foi o método utilizado pelo ilustre pensador medieval, em que se acreditava que a reunião e discussão dos vários argumentos de diversas fontes e autoridades era o meio mais seguro para se obter a verdade, sendo a confrontação argumentativa o único meio de acessibilidade à justiça daquela época.

Outro grande pensador medieval que merece menção neste escrito é Guilherme de Ockham. Jusnaturalista de forte apelo à retórica, também é característico do método medieval, mas em direção contrária às conclusões de Thomás de Aquino. Guilherme de Ockham nos apresenta uma teoria nominalismo em oposição ao universalismo tomista. E essa discussão nos evidencia a preocupação da época com os institutos lingüísticos e suas formas de representação, evidenciando a preocupação retórica de outrora, mas que, pelas finalidades deste trabalho, não serão esmiuçadas nestas linhas.

O método medieval, pois, procurava a solução dos conflitos através da disputa retórica, em que se buscava apontar as contradições e falácias dos discursos dos opositores. E isso tem uma razão de ser bastante clara, vez que o jusnaturalismo era a corrente dominante da época. Ora, a legitimidade e fonte do Direito não provinham de um sistema estatal normatizador, típico dos tempos atuais, em que a justiça é aquela que esta posta nos textos legais formulados pela autoridade delegada. A justiça da época era uma espécie de sentimento interno provocado pela perfeição divina e revelado pelas autoridades eclesiásticas, únicos que possuíam as escrituras sagradas e o conhecimento para lê-las, interpreta-las e traduzi-las aos fiéis. O poder de convencimento, então, era crucial.

Seguindo os ensinamentos de José Reinaldo de Lima Lopes, a tradição jurídica medieval pode ser apresentada da seguinte forma:

Se um método pode ser definido como um conjunto de categorias em operação e se toda ciência se articula em torno de paradigmas, a verdade é que a primeira experiência de ensino do direito no Ocidente medieval está articulada em torno de uma idéia de direito natural. No método, o direito medieval subordina-se a um enfoque filosófico-metafísico, de corte aristotélico. (...) Por outro lado, o próprio regime de debates torna o direito casuístico. Ele é um todo, mas um todo dialético.[4]

Esta realidade perdurou por séculos, mas encontrou na inquietação intelectual do século XV e XVI um grande opositor. Embora já se constatasse algumas fissuras do pensamento medieval já nos séculos XIII e XIV, foi por volta dos séculos XV e XVI que as idéias inquietantes e contrárias à tradição medieval tomaram corpo e robustez. Da filosofia à reforma religiosa, passando pela política e ciência, todos os campos do conhecimento da era medieval foram sendo lentamente implodidos a ponto de não mais se sustentarem.

 Os impérios construídos pelas guerras e invasões, sufocados pelo inchaço clerical, mas estabilizados pelas autoridades religiosas, começaram a ruir lentamente diante das evidências denunciadoras de Maquiavel. O poder político, legitimado e estruturado segundo leis divinas, é explicado por Nicolau Maquiavel através da objetividade histórica e realismo político.

A vida religiosa toma novos horizontes pela reforma protestante de Lutero, Zwingli e Calvino, que eliminam a intermediação da autoridade religiosa para o exercício da fé, libertando os fiéis das revelações eclesiásticas do divino, aproximando-os dos textos religiosos traduzidos para várias línguas. O divino, a fé, a religiosidade passa a ser defendida como um sentimento individualizante de um todo, como um sentimento de um, mas vivido por todos. O exercício da fé passa a prescindir de um intermediador, possibilitando a cada um dos fiéis construir sua própria noção de moralidade, desde que o faça com base nas escrituras sagradas.

 Giordano Bruno, Nicolau de Cusa e Bacon, dentre outros, abrem novas possibilidades filosóficas, garantindo o fundamento do novo direcionamento renascentista. Eles não garantem um novo fundamento para o afloramento da racionalidade moderna, para o desenvolvimento das ciências, mas incutam, semeiam uma filosofia mais aberta, menos dependente da metafísica medieval, mas não suficiente para criação de um novo paradigma. A nova perspectiva racionalista só aparece no pensamento de René Descartes.

Seguindo a tendência iluminista, a ciência toma novas proporções com as descobertas de Copérnico, Kepler e Galileu que, através de um novo método, o da observação objetiva e mensurável da natureza, conseguiram demonstrar o modelo heliocêntrico, introduzindo a ciência à sua fase adulta.

A tradição medieval estava, pois, em cheque.

2.2. O ressurgimento da subjetividade

Diante de todo este turbilhão de novas idéias e acontecimentos, a modernidade, ou melhor dizendo, o pensamento moderno, a transposição do paradigma medieval, pode ser considerado inaugurado com afloramento das idéias de Descartes. Considerado o pai da filosofia moderna, e, via de conseqüência, fundador da nova forma de pensar e ver o mundo, Descartes cria um sistema garantidor das novas descobertas, que, pela importância e originalidade, merece maior destaque.

Ele parte do pressuposto de que os homens teriam algo de comum entre eles e que isto os diferenciaria dos outros animais, concluindo que esta igualdade humana seria a razão, a capacidade de pensar e compreender-se pensante. A partir daí ele se percebe diante de uma realidade tão florescente e fértil, mesmo comparando-a com épocas passadas, que supôs poder tomar a liberdade de julgar por si próprio tudo o que lhe aprouvesse, criando ele mesmo sua própria doutrina, ausente da disputa retórica e da vaidade dos doutos que obscureciam, segundo Descartes, a verdade.

Esta foi a razão e o fundamento para tentar construir algo de novo, algo seu, sem influências. Soltar-se das amarras dos estudos letrados, das verdades reveladas, ir diretamente à fonte: o mundo e o seu próprio espírito. Para ele, a eloqüência da retórica dos doutos podia sustentar tantas e diversas opiniões que sentiu a necessidade de uma premissa primeira, ausente de questionamentos e capaz de distinguir certo de errado, pelo que concluiu dever começar do zero, sem influências pré-concebidas. Essa premissa primeira, como se vê na segunda e terceira parte de “Discurso do Método”, parte da idéia de “Penso, logo existo”[5], da idéia de cógito, de ser pensante, e assim semeia o ressurgimento da subjetividade clássica.

O filósofo francês passa então a fundamentar todos os seus pensamentos e idéias a partir do uso da razão. Pelo questionamento racional e dialético (dialético, mas emoldurado nas características de um monólogo) ele consegue clarear e tomar para si uma verdade inteiramente sua, destituída de qualquer influência pregressa (se absteve do eruditismo em que foi letrado para iniciar uma “doutrina” própria, sua), posto que só se utilizou da razão para concluir seus pensamentos. A partir dessa verdade primeira, inabalável, incólume; fincando este pilar, esta coluna, a base de sua filosofia; utilizando como mão-de-obra unicamente a sua premissa absoluta e observando como dogma unicamente o seu método, Descartes passa a declinar outras “verdades” que, derivadas tão somente do incontestável, do irrefutável, devem assumir a qualidade de seu gênero, sendo aceitas necessariamente como verdades. Através de suas idéias, Descartes abre ao homem a possibilidade de construir conhecimento através do próprio homem, da subjetividade humana, da racionalidade.

A verdade com Descartes passa a ter fundamento na própria razão do homem, excluindo a noção de verdade revelada, possibilitando, desta feita, o crescimento e a autonomia do conhecimento científico. Em passagem interessante do “Discurso do Método”, ele transfere a legitimidade do conhecimento da revelação divina à revelação racional, afirmando:

Com efeito a razão não nos dita em absoluto, que o que assim vemos ou imaginamos seja verdadeiro, mas, ao contrário, que todas as nossas idéias e noções devem ter um fundamento de verdade, pois de outra forma não seria possível que Deus, sendo absolutamente perfeito e verdadeiro, as tivesse posto em nós.[6]

O desenvolvimento destas idéias cartesianas colimou na criação de um método que, como será visto mais adiante, configurará, tempos depois, o próprio método científico, merecendo, desta forma, algumas considerações.

Influenciado pelos raciocínios lógicos e matemáticos, Descartes tenta assegurar o uso da razão humana como irrefutável e reveladora de verdades partindo de quatro preceitos metodológicos básicos:

(...) nunca aceitar como verdadeira uma coisa que não que se apresentasse evidentemente como tal, só incluindo nos meus juízos o que se apresentasse de modo tão claro e distinto ao meu espírito, que eu não tivesse ocasião alguma para dele duvidar; (...) dividir cada uma das dificuldades que devesse examinar em tantas partes quanto possível e necessário para resolve-las; (...) conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para chegar, aos poucos, gradativamente, ao conhecimento dos mais compostos, e supondo também, naturalmente, uma ordem de precedência de uns em relação a outros; (...) fazer, para cada caso, enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de não ter omitido nada. [7]

Libertando o homem das amarras religiosas que legitimavam todo o conhecimento da época, embutindo um sentimento de subjetividade através do uso metódico da razão, reconciliando o homem com a natureza, não mais como mero expectador, mas como agente atuante e transformador desta natureza, Descartes cria a base de todo pensamento moderno, possibilitando ao homem o desenvolvimento das ciências, em especial as ciências naturais. Seu sistema racional, do ponto de vista jurídico, elimina a vontade divina como fundamento, transformando o jusnaturalismo teológico em racional, assegurando ao direito uma base sólida para desenvolver-se.

A partir de então é relatado pela história uma mudança radical de comportamento que se seguiu pelos séculos XXVII e XXVIII, tendo sido detectado um movimento cultural desenvolvido na Inglaterra, Holanda e França, caracterizado pela inovação intelectual, dando origem a idéias de liberdade política e econômica, defendidas pela burguesia.

A Europa daquela época experimentou algumas inovações que determinaram o caminho a ser seguido pela história desde então: o surgimento das máquinas, da energia motriz e do sistema de produção fabril, em substituição às ferramentas, à energia humana e ao sistema de produção artesanal, proporcionou um processo de transformação tão intenso que ainda hoje pode ser sentido. O Sistema Feudal foi substituído pelo Sistema Capitalista, com a acumulação de capital sobressaindo à mão-de-obra e à produção. Essas alterações, mais profundamente de cunho econômico, surtiram efeito em todas as ramificações sociais, transformando a vida política e cultural da época. A sociedade antigamente concentrada em centros rurais, passa a formar grandes conglomerados urbanos, divididos em duas grandes castas: a burguesia e o proletariado. A ciência e o desenvolvimento tecnológico passam a ser o centro das atenções. A fidalguia absolutista cede lugar ao crescente prestígio da burguesia, suscitando mais participação política. Estado e Igreja se divorciam lentamente.

Enfim, eis o pano de fundo que se tem para o desenvolvimento do pensamento moderno, calcado pelo ideário renascentista e iluminista.

Essa inversão de valores foi determinante para a mudança de ideário. E é aqui que surge a idéia de renascimento, de ressurgimento, de nova vida ideológica. A busca do conhecimento como condição de liberdade (racionalismo), a crença em verdades universais (universalismo), a transposição do homem para o centro das atenções e preocupações (antropocentrismo), a crença na existência de um deus fruto da atividade racional do homem, justificado pela razão humana (deísmo), posições políticas difundidas sob um ideário liberal (antiabsolutismo) e a hostilidade ao mundo clerical, à influência da igreja, ou das religiões em questões de estado (anticlericalismo) fundam o pensamento iluminista, assim denominado em alusão ao “tempo das luzes”, determinando a marcha do pensamento moderno.

No Direito a realidade não era outra. Marcado pelo ideário iluminista-renascentista da época, o saber jurídico se desenvolve seguindo os seus moldes, em clara busca pela autonomia e fundamento científicos, até chegar, séculos depois, ao objetivismo positivista de Kelsen. Mas até lá, longa foi a jornada.

John Locke e Jean-Jacques Rousseau, seguidos por Montesquieu, nas suas teorias contractualistas, permitiram uma reviravolta política, até então subordinada ao absolutismo da época. Sai o súdito e entra o indivíduo que deve ser tido não só como objeto de políticas públicas, mas também como sujeito ativo dessas políticas. Aqui surgem as bases do sistema democrático. Através desse “contrato” o homem abre mão de direitos e prerrogativas para viver em sociedade e para a sociedade. Só depois, já sob as diretrizes de Montesquieu, é que surge a noção de repartição dos poderes sob convivência harmoniosa, lastreada como dogma ainda hoje, sendo sua obra um modelo de ciência política justificadora do positivismo jurídico.

O final do século XVIII desponta com as idéias de Immanuel Kant, as principais publicadas nos textos “Crítica da razão pura”, “Crítica da razão prática” e “Crítica do Juízo”, tendo sido o primeiro deles um grande marco na especulação filosófica racional. Mas para declinar o pensamento kantiano, que foi capaz de sedimentar e estruturar o pensamento racional cartesiano, faz-se necessário, obrigatoriamente, tecer alguns comentários sobre a filosofia de Hume, grande opositor do sistema racional cartesiano, embora tivesse como projeto universalizar a ciência newtoniana.

Filósofo escocês do século XVII, mas indiscutivelmente atual, principalmente depois da especulação e agito intelectual da contemporaneidade, Hume põe em cheque todo o raciocínio cartesiano. Para ele, o conhecimento, ao invés de partir da razão e por ela ser conduzida, provém dos sentidos, da empiria, organizados em raciocínios dedutivos e indutivos. Através desta formulação ele discute a possibilidade do homem conhecer através da concepção de relação lógica e necessária de causa e efeito, demonstrando, através de seus argumentos, que é apenas pelo método empírico, da experiência, que o homem pode conhecer a natureza. Desta forma, Hume assegura a eficiência da ciência, em especial a da natureza, mas aponta para primeira barreira da razão humana. O racionalismo estaria limitado aos ditames dos sentidos, à experiência.

 É diante deste precipício que Kant restabelece o poder da razão, declinando ter acordado do sono dogmático:

Confesso francamente: a lembrança de David Hume foi justamente o que há muitos anos interrompeu pela primeira vez meu sono dogmático e deu às minhas pesquisas no campo da filosofia especulativa uma direção completamente nova.[8]

O filósofo alemão, intimamente influenciado por Hume, delineia os limites e as possibilidades da razão cartesiana, sistematizando a racionalidade através de uma estrutura arquitetônica da razão. Estética, Analítica e Dialética Transcendentais são as etapas de conhecimento da razão pura, que retira da intuição sensível (Faculdade da Intuição) todo conhecimento empírico fornecido ao entendimento (Faculdade das Regras), possibilitando que a razão trabalhe as idéias na Faculdade dos princípios. Assim, para Kant, a razão só conheceria abstratamente, nunca se aproximando do “númeno”, da coisa em si.

Apesar de não ter se concentrado no logos jurídico, a segunda crítica kantiana, a “Crítica da razão Prática”, dá boa contribuição à área ao aproximar a moral da razão, ao integrar um conceito no outro, ao atribuir à razão o exercício da moralidade. Da análise desta idéia os juristas passaram a ter a possibilidade, o fundamento, de agregar ao direito a análise moral das questões suscitadas, percebendo-se um estreitamento mais sensível entre direito e justiça. A justiça deveria, então, nos regramentos de Kant, influenciar e justificar diretamente as decisões e apontamentos jurídicos.

Aqui abro um parêntese para apontar a influência kantiana, ou pelo menos neokantiana, nos novos rumos do direito contemporâneo, mas detidamente através da teoria neoconstitucionalista da supremacia dos direitos fundamentais, justificando, ou melhor dizendo, exemplificando a junção entre justiça e direito, mantida no porão do positivismo kelseniano até pouco atrás. A aplicação efetiva dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente na solução de litígios práticos, inclusive em controvérsias em que há previsão legal infraconstitucional, contrariando o ímpeto legislativo derivado, é um exemplo claro da incompletude do positivismo e da necessidade de reavaliar a junção entre justiça e direito. Mas essas questões merecem um maior e mais profundo debate, e, para não fugir à metodologia deste trabalho, serão esmiuçadas com mais propriedade em tópico próprio.

Mais adiante, Hegel também tenta assegurar a supremacia da razão, mas o faz em constante combate às idéias kantianas. Para Hegel, nas palavras do professor Paulo Meneses,

(...) o racional não está em alguma utopia, mas existe no íntimo da realidade. Não é um sonho abstrato, mas é o concreto na riqueza de seus múltiplos aspectos e contradições. O real, por sua vez, não é uma história contada por um idiota, mas está impregnado de razão, que o estrutura e lhe dá significação.[9]

Hegel abre sua filosofia em sentido diverso da dada por Kant e seu idealismo crítico. Para Hegel o saber absoluto é possível e, para tanto, o espírito tem como principal função tornar-se objetivo para si mesmo e de reconhecer-se nesta objetivação, evoluindo neste processo de reconhecimento. O saber absoluto é o fim colimado, mas também é recomeço. E esta travessia tem uma metodologia própria: a dialética. Para Hegel, enquanto que a natureza é um ciclo que sempre se repete, o espírito, o homem, está em constante processo de evolução, em busca da perfeição. Hegel abre a possibilidade de renovação constante, de evolução necessária, conferindo à historicidade o destaque que lhe fora renegado até então. Necessário entender, destarte, que o filósofo alemão, embora tenha introduzido a noção de dialética, de constante evolução em busca da perfeição, negando a estática histórica, o fez tão somente voltado ao espírito, ao homem, garantindo, desta forma, a exatidão das leis naturais e, via de conseqüência, a continuação do projeto racionalista cientificista.

Seguindo na construção do pensamento moderno, outro personagem importante que surge é Marx. Ele reconhece a importância do pensamento de seu antecessor no que se refere a concepção de dialética na construção da história do homem, mas readapta o conceito hegeliano para uma concepção mais pragmática. Enquanto que para Hegel a consciência é que determina a vida, para Marx a vida é que determina a consciência. Arnaldo Godoy[10] assenta que Marx é a versão de esquerda da filosofia hegeliana, que é o dileto filho do iluminismo, tendo como principais pilares de seu universo conceitual temas como dialética, ideologia, luta de classes, marcha da história, ditadura do proletariado, crítica da sociedade burguesa, alienação, mais-valia e reitificação. Observe que este universo conceitual, aliado à dialética, foi responsável pela revolução socialista, grande marco ideológico da modernidade.

Apesar de ter construído um modelo quase que dicotômico de ideologia econômica, centrados, basicamente, no capitalismo e no socialismo, importante ressaltar que da descentralização e decorrência prática desses modelos a modernidade desenvolveu outros modelos ideológico-políticos, tais como o liberalismo, o intervencionismo, o totalitarismo, a democracia, dentre outros.

O pensamento moderno ainda assentou, nas idéias de Rousseau, a individualidade humana, a igualdade, a soberania do povo, e, como conseqüência prática, semeou a idéia de democracia, importantes fundamentos do desenvolvimento sócio-político da modernidade:

E assim, o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo lhe produziu o primeiro movimento de orgulho; assim, mal sabendo ainda distinguir as ordens e contemplando-se como o primeiro por sua espécie, preparava-se já para pretender o mesmo como indivíduo.[11]

A tradição do pensamento moderno, então, continuando com a lição de Arnaldo Godoy[12], acredita na objetividade de um diálogo racional e não distorcido, guiado pelo próprio homem, sem intervenções, avançando para obtenção da verdade plausível que aguarda ser descoberta. A natureza, humana e não humana, seria, para a tradição moderna, um conjunto de leis naturais e certas, um conjunto de fórmulas matemáticas capazes de estruturar tudo que é, mas sempre tendo como fundamento justificador de suas descobertas a própria racionalidade humana, o ser humano como sujeito ativo dessas criações. A modernidade cogita a libertação do homem através da conquista dessas verdades pelo método da razão. Ciência e razão seriam os meios para essa libertação, buscando-se critérios objetivos e universais que pudessem de forma infalível descobrir, revelar, desvelar, demonstrar as verdades e os princípios morais universais.

2.3. A racionalidade como método e o método racional

Visto este esboço, esta construção sumária e bastante resumida do pensamento moderno, nos incumbe agora tratar do método resultante desta construção que fundamenta todo modelo científico pós-moderno. A atitude racional foi capaz de restabelecer a subjetividade há muito perdida, reaproximando o homem de si mesmo, mas trouxe consigo um método bastante definido, perfeito para encerrar as necessidades e anseios da época.

 Para bem entender este método nada melhor que voltar ao arquiteto, ao primeiro delineador das idéias racionalistas, que definiu com precisão alguns preceitos metodológicos básicos capazes de dar azo à racionalidade cientificista da idade moderna. René Descartes mais uma vez surpreende pela originalidade, apontando como precursor não só da nova forma de pensar e ver o mundo, mas também como idealizador do novo método, descrevendo pormenorizadamente cada passo a ser tomado para se obter a verdade, para se decodificar o mundo, para se decifrar a natureza. Descartes assegura a autonomia do sujeito que conhece com relação ao objeto a ser conhecido. Esse objeto passa ser identificado, isolado e decodificado. A verdade era então esta fórmula matemática decifradora do objeto estudado.

O filósofo francês chegou a esboçar e tentar aprofundar o método racionalista na inacabada obra “Regras para a direção do espírito”, mas foi muito mais eficiente e direto na “Segunda parte” do “Discurso do método”, quando elencou quatro preceitos básicos para se tomar como firme e constante toda e qualquer verdade.

O primeiro deles seria nunca aceitar como verdadeiro nada que não se apresentasse evidentemente como tal, só incluindo nos seus juízos o que conhecesse de modo tão claro e tão distinto dentro de seu próprio espírito que não houvesse razão alguma para dele duvidar. Percebe-se, então, que a verdade para Descartes deveria ser o resultado de uma construção minuciosa e indubitável, incapaz de provocar quaisquer questionamentos posteriores, servindo como base sólida para o desenvolvimento da razão. A verdade seria, desta forma, algo perfeito e acabado que espera ser revelado pela razão humana. Uma vez descoberta, a verdade asseguraria o desenvolvimento do conhecimento humano, atestando a razão como único meio revelador, como centro epistemológico do homem.

Apesar de ser o primeiro preceito metodológico cartesiano, poderia ser o último, já que capaz de resumir a noção de verdade cartesiana. Mas justificando sua precedência, os demais preceitos servem quase que como meios assecuratórios da não violação do primeiro preceito metodológico, orientando a forma de se atestar verdades.

Neste ínterim, Descartes enumera como segundo preceito metodológico da razão dividir cada uma das dificuldades que devesse examinar em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las. Preocupado com a complexidade das coisas a conhecer, Descartes se propõe a torná-las tão simples quanto fosse possível a fim de reduzir as complicações ao desvelamento da verdade. Reduzir a realidade às simplificações da mente foi a alternativa encontrada pelo filósofo francês para direcionar a busca pela verdade. Mas não foi só. Tornar as coisas mais simples para poder conhecê-las era só o começo.

Depois de simplificar os objetos de conhecimento, Descarte descreve o terceiro preceito metodológico como sendo o de conduzir por ordem os seus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para chegar, aos poucos, gradativamente, ao conhecimento dos mais compostos, e supondo também, naturalmente, uma ordem de precedência de uns em relação aos outros. Resta clara a intenção de sistematizar a simplificação dos objetos a serem conhecidos, evidenciado no segundo preceito, pondo o conhecimento em ordem cronológica: conhece-se primeiro o mais fácil e mais simples para então se conhecer o mais difícil e mais complexo.

Por fim, Descartes propõe como quarto preceito metodológico fazer, para cada caso, enumerações tão completas e revisões tão gerais, que tivesse a certeza de não ter omitido nada. Este quarto direcionamento deixa evidente a intenção de catalogar o conhecimento tanto quanto possível, enumerando e descrevendo as verdades reveladas no afã de confrontá-las, de verificá-las, impedindo, por consectário lógico, a violação do primeiro preceito metodológico cartesiano.

Apesar de ter servido como base de criação e sustentação do modelo racional cientificista desenvolvido nos séculos seguintes, a metodologia cartesiana não encerrou e definiu o método moderno. Com o passar dos anos este método foi sofrendo acréscimos e divagações que foram compondo sua atual identidade.

Embora Descartes tenha bem nos servido com suas idéias, para ele, tudo partia do cógito, do eu pensante. A razão era base e limite de todo conhecimento. Alguns estudiosos, no entanto, começaram a questionar suas conclusões, o que nos faz lembrar de uma corrente de pensamento denominada empirista, para quem o conhecimento adviria dos sentidos, das experiências. Mas como isso já foi objeto de debate no tópico antecedente, advertidos pelo dever da não prolixidade, nos ateremos às conseqüências metodológicas da inclusão da advertência empirista ao método racional cientificista da modernidade.

Assim, o método cunhado por Descartes ganha novo relevo com a advertência humeniana e uma nova descrição nas obras de Immanuel Kant. A razão passa a ser uma unidade que conhece, que unifica a multiplicidade das experiências reais em idéias. Em outras palavras, o homem conhece em três níveis diferentes definidos por Kant como a estética transcendental, a analítica transcendental e a dialética transcendental. O conhecimento parte do objeto dado pela experiência que é captado pela intuição sensível. Esta multiplicidade sensível é canalizada em conceitos pelo entendimento. O entendimento, através de seus conceitos, reduz à unidade a multiplicidade sensível dada na intuição. Essa unidade pode então ser trabalhada na faculdade dos princípios, pode ser especulada através das idéias. Isso tudo é a razão, um complexo único, mas que se dá em níveis diferentes, diversos.

Através da arquitetônica da razão, Kant eleva o método racional aos tribunais da ciência, compatibilizando razão e experiência. A partir de então o método racionalista cientificista só ganha em relevo, passando a integrar os anais dos mais letrados. A ciência se devota a constatação ôntica-causal-analítica. Tudo passa a ser uma busca incessante pela revelação da verdade última garantidora do desenvolvimento do conhecimento humano.

As idéias de Hegel apenas ratificam o método criado pela razão cartesiana. Para Hegel o saber absoluto, além de possível, é o fim colimado. E esta travessia tem uma metodologia própria: a dialética. A eterna negação do que fora afirmado para negar-se então a negação, necessariamente reafirmando uma nova afirmação. O espírito é sempre, neste ínterim, reflexo de uma evolução constante, uma evolução historicamente representada.

É a partir desta noção histórica e evolutiva do conhecimento que Hegel assegura à ciência a capacidade de se regenerar, de ter uma tese negada por uma antítese, mas sempre criando uma nova síntese. Com essa capacidade de auto-regeneração a ciência passa a ser o fundamento último de todas as coisas. A verdade está garantida, mesmo que ela seja temporária, fugaz, a síntese produzirá uma nova tese que assegurará a nova verdade.

Embora pudéssemos dissertar uma infinidade de laudas acerca do método racional, levando em conta os fins a que se destinam este trabalho, entendemos bastarem as características já declinadas nestas breves linhas, incumbindo-nos tão somente uma última citação de Edgar Morin capaz de descreve com perfeição o fim último do método racionalista desenvolvido ao longo dos séculos:

Partiria da idéia de que nossa atividade cognitiva, nossa pesquisa de conhecimento, é, no fundo, uma procura de certeza, seja em filosofia, seja em ciência. Buscamos o fundamento absolutamente garantido sobre o qual poderemos desenvolver o conhecimento e o pensamento.[13]

O método racionalista cientificista descrito nestas breves linhas, então, pode ser entendido como uma busca pela verdade que espera ser revelada, como um desvelamento dos enigmas da natureza e do homem, sempre sendo assegurada por uma relação de causa e efeito. Simplifica-se a multiplicidade do real, divide-se esta realidade em partículas mínimas capazes de eliminar as contradições aparentes, conhecendo-se parte à parte. O todo, assim, seria a reunião destas inúmeras e microscópicas partes, não integrando a construção deste conhecimento.

O discurso moderno, então, elimina a complexificação do real em busca de uma verdade emoldurada na fórmula causa x efeito. Qualquer alternativa contrária ao modelo de verdade criado não era considerada como proposta epistemológica. O isolamento e simplificação do objeto a ser estudado (não só com relação ao sujeito, mas também em relação aos demais objetos de um referido sistema) foi tão eficaz que esta alternativa foi capaz de levar as ciências ditas naturais por caminhos e descobertas surpreendentes, elevando o modelo racional cientificista ao mais alto grau de acúmulo de conhecimentos. Qual seria a fissura, então? Qual a insuficiência do método moderno?

Um problema bem identificado no modelo de cientificidade moderno foi constatado nas ciências ditas humanas, mas esta discussão será retomada nas últimas páginas deste escrito, pelo que se adentrará pormenorizadamente e à contento na busca pela solução desta problemática.

Em se falando de direito, de ciência jurídica, o método racional cartesiano não se exime da influência exercida. Foi a exigência metodológica moderna que levou o jurista austríaco Hans Kelsen a desenvolver uma das mais importantes obras jurídicas de todos os tempos: a teoria pura do direito. O jurista, seguindo os preceitos epistemológicos modernos, procurou elevar o direito à categoria de ciência, excluindo do conceito de seu objeto (o próprio direito) quaisquer referências estranhas, especialmente aquelas de cunho sociológico e axiológico. Kelsen isolou e simplificou o objeto a ser conhecido, integrando o direito às exigências da cientificidade da época. Por meio de uma linguagem precisa e rigidamente lógica, ele abstraiu do conceito do direito a idéia de justiça, termo que sempre e invariavelmente está imbricado com os valores (sempre variáveis) adotados por aquele que a invoca, não cabendo, portanto, pela imprecisão e fluidez de significado, num conceito de direito universalmente válido.

José Manoel de Sacadura Rocha, ao tecer algumas considerações acerca da teoria de Kelsen, assevera:

Kelsen, na tentativa de fazer do Direito uma ciência, nos leva a ‘abrir’ outras discussões sobre um sistema normativo com base em uma lógica jurídica formal. Se essa norma é formal, podemos dizer que é direito posto (feito pelo homem para o homem). Kelsen tem o desejo de elaborar uma teoria pura para uma base científica jurídica, e é por esse motivo que o Direito de Kelsen deixa de ser uma ciência humana para ser uma ciência quase exata (Direito Positivo). E a ciência do Direito se transforma em puro normativismo, fundamentada em uma extrema lógica formal jurídica.[14]

Eis, pois, algumas características do método racional capazes de traçar as linhas gerais do paradigma metodológico moderno, com base nas quais nos ateremos com mais afinco capítulos adiante, isto para apontar incompletudes e imperfeições suficientes para sustentar uma proposta de mudança de paradigma.

2.4. A inquietação intelectual da contemporaneidade

Construída esta noção de pensamento moderno, e, via de conseqüência, racional e cientificista, incumbe-nos agora demonstrar, clarear, apontar alguns pontos de incongruência e insuficiência desta forma de pensar, para, mais adiante, definir as conseqüências práticas do uso desta racionalidade no Direito, tomando atenção especial com o Direito Processual. Para tanto, tomaremos como base crítica do racionalismo cartesiano a inquietação intelectual, o agito filosófico desenvolvido a partir de meados do século XX.

Nietzsche abre essa inquietação, centrada em verdades possíveis e idealizadas, anunciando a morte de Deus e rejeitando o direito natural e racional modernista, desconstruindo os modelos normativos. Seus escritos nos condenam à transmutação dos valores éticos fundados na cultura judaico-cristã, relativizando a moral, em “Além do bem e do mal”, “Humano, demasiadamente humano” e “Genealogia da moral”. “A Gaia Ciência”, quase um tratado crítico à epistemologia, provoca aversão aos métodos científicos, à sistematização do cientificismo positivista construído ao longo dos séculos anteriores. As noções de super-homem e de eterno retorno reforçam sua crítica. Em contrapartida, não declara novo direcionamento, não nos impõe “sua verdade”, não nos indica como pensar. Apenas nos suscita dúvida, estranhamento, inquietação. Provoca-nos um sentimento de incredulidade diante das “verdades” modernistas, negando a existência de neutralidade e objetividade destas verdades.

Martin Heidegger segue a mesma linha crítica ao suscitar a vida como uma interpretação espontânea da realidade de si mesma e de todas as coisas. Para ele, a linguagem, o discurso, é a maior preocupação, defendendo ser impossível universalizar verdades racionais e científicas, posto que estas são demonstradas através da linguagem, e a própria linguagem é mutante e de infinitas variáveis. Seria impossível então conceber uma idéia iluminista da Europa Ocidental como única e universal, desconsiderando as mais infinitas possibilidades ao redor do globo. A ciência, expressão de um diálogo racional e universal, estava, desta forma, condenada às possibilidades e limitações da comunicação. Em instigante passagem do texto “A caminho da linguagem”, Heidegger consegue exprimir bem a base de sua filosofia:

Há algum tempo, com muita timidez, chamei a linguagem de casa do ser. Se, pela linguagem, o homem mora na reivindicação do ser, então nós europeus, pelo visto, moramos numa casa totalmente diferente da oriental (...) Assim a conversa de uma casa para outra torna-se quase impossível.[15]

Em contínuo exercício crítico da racionalidade, observando o leque de possibilidades criado por Heidegger, Saussure desenvolve a semiótica, a ciência dos signos. A visão descritiva da linguagem, uma linguagem segura e que possibilitasse o desenvolvimento do conhecimento científico, de descrição do mundo de forma causal-analítica, semeada pela lógica formal moderna, foi quebrada com o desenvolvimento da semiótica, que incluiu o pragmatismo à análise sintática e semântica dos textos.

Ludwig Wittgenstein, um dos maiores representantes desta filosofia analítica, em sua segunda fase, a fase das “Investigações Filosóficas”, nos apresenta uma noção de jogos de linguagem, possibilitando uma crítica aos conceitos fechados. Ele acreditava que o significado das coisas não podia ser isolado de sua relação com o sujeito da comunicação, mas sim analisado e refletido de acordo com o contexto situacional. A dimensão pragmática da linguagem estava assegurada. A descrição do mundo sob a perspectiva fria e desinteressada, objetiva, racional, descritiva, característica do cientificismo, começa a ruir.

Ao perceber esta instabilidade, Jacques Derrida cria uma doutrina de desconstrução, de desconfiança, fulminando com a ingenuidade do discurso, da leitura de mundo, vinculando-os sempre a um interesse determinado. Os discursos, para Derrida, então, se amoldariam aos interesses mais evidentes, não tendo uma significação única, correta, incumbindo ao leitor, sempre, uma atitude de determinar seu interesse, de manter-se guiado pelas suas intenções. A linguagem, o sistema simbólico de viabilização da comunicação, criado e desenvolvido por determinada organização social, passa a ser entendida, desta forma, como um sistema arbitrário e instável, incapaz de sustentar verdades unas e universais.

A crítica ao racionalismo continua com as idéias de Karl Popper, para quem a ciência não abrangeria todas as hipóteses possíveis. Para ele, a linguagem, a nova forma de formulação de problemas, o surgimento de novas situações problemáticas, o confronto de teorias conflitantes, a crítica mútua por meio da argumentação, são elementos que, apesar de indispensáveis ao desenvolvimento da ciência, não são considerados como deveriam. As liberdades teriam sido ofuscadas, renegadas, esquecidas em nome da ciência e do desenvolvimento técnico apontados pelo iluminismo renascentista.

As idéias de Michel Foucalt seguem a mesma linha crítica. Ele nos apresenta a “Microfísica do poder”, afirmando ser a verdade construída pelas relações de subordinação, de supremacia intelectiva e discursiva. A verdade passa a ser uma construção intelectiva, uma interpretação imposta pelos mecanismos de poder. Os fatos humanos passam a ser arbitrários e o conhecimento absoluto cada vez mais distante e impossível: “É evidente que não se pode descrever exaustivamente o arquivo de uma sociedade, de uma cultura ou de uma civilização; nem mesmo, sem dúvida, o arquivo de toda uma época”[16]. Nas vielas da Filosofia do Direito, declara uma teoria circular que reputa ser o poder o produtor do direito, que por sua vez produz a verdade, que inexoravelmente produzirá poder, que novamente produzirá novo direito e assim por diante. Foucalt critica a criminologia iluminista e a justiça convencional, entendida como privilegiadora, arbitrária e arrogante. Característica também interessante do pensamento de Foucalt, e que, talvez, nos sirva de embasamento à crítica do cientificismo pelo pensamento complexo, é

(...) o método, a transgressão, o livre trânsito em todos os campos dos saberes, uma epistemologia que pretendo um certo agenciamento global das ciências humanas no interior daquilo que ele chama de triedro dos saberes, e que lhe permite definir um espaço epistemológico da constituição das ciências humanas de caráter racional e científico.[17]

Em suma, essas são algumas representações da insuficiência da razão como modelo único de estruturação e estabilização de toda uma civilização, que, apesar de fundante, de imprescindível ao “desenvolvimento” do conhecimento humano, tem se mostrado deficiente, insuficiente, falha, incompleta para dar conta do atual estágio civilizatório, incumbido a nós pesquisadores apontar por novo paradigma, novo horizonte representativo das aspirações humanas.

A ciência do Direito, até então construída e estruturada seguindo todos os ditames racionalistas, influenciada pelo método cientificista da demonstração causal-analítica, guiada pelo escopo de atingir verdades absolutas e universais, quando confrontada com o agito intelectual contemporâneo começa a revelar incongruências e dissonâncias. O Direito, este fenômeno humano e social, se apresenta hoje como um fenômeno de múltiplas representações, de infinitos significados, de muitos modos de aplicação, enfim, de variáveis tão amplas e tão complexas que simplesmente se torna incompatível com o sistema racionalista cartesiano, e mais que isso, incompatível com as várias formas de racionalidade desenvolvidas pelo pensamento moderno ao longo dos anos. Mas isso não implica imputar caráter niilista ou ausência de possibilidade de desenvolvimento de uma ciência capaz de satisfazer os novos anseios. Implica sim em apontar para novo paradigma, para novo olhar sobre as ciências em geral, e com mais propriedade para as ciências humanas, em particular, para o Direito, assegurando terreno fértil para desenvolvimento de novas idéias. Se houvesse simplesmente a crítica sem apontamento de novo rumo, perderíamos o sentimento essencial às especulações humanas: a vontade de evoluir, de ultrapassar novas barreiras. Mas onde estaria a resposta deste problema, o novo apontamento, o novo paradigma?

Não existe resposta pronta ou certa para este questionamento. Esta nova direção terá de ser construída lentamente pela nova tradição jurídica que despontará, além de que a própria contemporaneidade não tem autoridade histórica de se definir além de seu tempo. No entanto, nos incumbe dar início, ou, melhor dizendo, dar continuidade às especulações e inquietações intelectuais desta contemporaneidade, apontando por alternativas que comportem as novas dificuldades.

Mas antes disto, antes de apontar por um novo paradigma, para uma nova direção, antes de especular respostas aos problemas da atualidade, nos incumbe entender um pouco mais acerca das conseqüências práticas e conceituais desta mudança de pensamento no Direito, e, por via de conseqüência, no arcabouço procedimental jurídico.


3. O Direito contemporâneo

3.1. O movimento Neoconstitucionalista

É claro que o Direito não ficou imune a toda essa mudança de ideário, a todo este agito intelectual observado a partir do século XX. Seguindo a direção do novo horizonte especulativo a ciência jurídica desenvolveu um interessante movimento considerado hoje como cume, como ponto centro, como força motriz das novas mudanças no campo do direito: o movimento Neoconstitucionalista.

A intenção é, a partir de agora, desvelar que movimento é este, como surgiu, em que circunstâncias, quais seus anseios, para então estabelecer seus pressupostos conceituais de conseqüências múltiplas em todos os ramos do Direito, principalmente e de forma mais detida no que atine ao processo.

Para esta tão árdua tarefa tomaremos emprestada a lição de Luís Roberto Barroso[18], um dos maiores expoentes do movimento Neoconstitucionalista no Brasil, para quem o movimento teve como marco histórico a reconstitucionalização da Europa logo após a segunda grande guerra e, em terras tupiniquins, o renascimento constitucional sentido com a convocação, elaboração e promulgação da Constituição de 1988. Mas para bem compreender este movimento o simples contexto histórico, o simples marco de seu surgimento não é suficiente.

Atento às dificuldades, no esforço de reconstruir a trajetória constitucional recente da Europa e do Brasil, Barroso instituiu três marcos fundamentais capazes de bem identificar as idéias contidas na mudança de paradigma neoconstitucionalista: o marco histórico, o marco filosófico e o marco teórico. Eduardo Cambi[19], intimamente influenciado pela doutrina de Roberto Barroso, ensina ainda que “as alterações mais importantes, na compreensão constitucional, a que se denomina de neoconstitucionalismo, podem ser sistematizadas em três aspectos distintos: o histórico, o filosófico e o teórico”.

Assim, historicamente, o movimento neoconstitucionalista tem como pano de fundo o fim da 2ª grande guerra, que fez clarear a necessidade de postulação de direitos e garantias fundamentais incólumes para assegurar aos governados garantias mínimas contra possíveis abusos por quaisquer dos detentores do poder.

Este é um reflexo claro das atrocidades que eram cometidas sob a insígnia da legalidade na Alemanha de Adolf Hitler, líder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, que ficaram conhecidas como o holocausto. Esta suposta legalidade foi combatida em um dos mais famosos julgamentos da história: o julgamento de Nuremberg, que aponta para abertura dos processos contra os 24 principais criminosos de guerra da Segunda Guerra Mundial, dirigentes do nazismo, ante o Tribunal Militar Internacional, em 20 de novembro de 1945, na cidade alemã de Nuremberg. O sentimento que restou evidenciado no julgamento foi um só: garantir direitos fundamentais mínimos em face de qualquer poder, seja ele revolucionário ou constituído, positivado ou não.

Diante disto, deste novo sentimento, desta nova forma de pensar, não tardou para se iniciar um grande movimento de reconstitucionalização em toda Europa, tendo a Lei Fundamental de Bonn (Carta Magna alemã) e as Constituições italiana e portuguesa aberto a nova tradição constitucional. A junção entre o sentimento constitucional e o sentimento democrático faz surgir então uma nova forma de organização política que será observada e seguida por quase todos os países do ocidente europeu: o Estado Democrático de Direito.

A nova tradição jurídica logo chegou ao Brasil. A luta contra a ditadura militar desenvolvida a partir das eleições de 1974 evidenciava a quebra do silogismo no binômio autoritarismo-democracia. A ideologia democrática difundida na Europa em nada convergia com a idéia de democracia defendida pelo poder militar, o que acirrou ainda mais a luta pela queda do regime no Brasil. As “diretas já” e a constituição de 1988 foram as conseqüências deste processo, fincando o marco histórico do renascimento do sentimento constitucional no Brasil.

Visto este aspecto do movimento neoconstitucionalista, o marco histórico, passemos agora a tratar do viés filosófico. Segundo Antônio Cavalcanti Maia[20], as transformações percebidas após a segunda grande guerra impuseram à dogmática constitucional a necessidade de uma nova referência, de descrever, compreender e melhor operacionalizar a aplicação efetiva dos materiais normativos positivados nas constituições, pondo em cheque o guia metodológico da ciência jurídica da modernidade. Diante das incongruências e dificuldades de se encontrarem respostas convincentes aos problemas contemporâneos, tendo como base o positivismo kelseniano, tornou-se imperioso a intelecção de novo paradigma jusfilosófico.

A estrutura normativa, antes idealizada por Kelsen em sua célebre pirâmide normativa hierarquizada, tomou outro direcionamento. Agora além das regras positivadas também fazem parte da estrutura normativa dos sistemas jurídicos ocidentais os princípios. Foram incorporados, desta forma, conteúdos substantivos no ápice das estruturas legais, estabelecendo uma relação necessária entre direito e moral, implicando em abandono de uma das principais características do paradigma positivista: a não conexão necessária entre direito e moral.

Pietro Sanchís bem define a mutação de paradigma, aduzindo:

A Constituição já não é mais uma norma normarum à moda de Kelsen, encarregada somente de distribuir e organizar o poder entre os órgãos estatais, mas é uma norma com amplo e denso conteúdo substantivo que os juízes ordinários devem conhecer e aplicar a todo conflito jurídico.[21]

Assim, as bases conceituais positivistas foram relativizadas, fazendo surgir um sentimento pós-positivista, situando o pensamento jurídico contemporâneo para além da estiolada querela jusnaturalismo x positivismo jurídico, quase que unindo parte das duas teorias. O direito a partir de então passou a ser encarado como um instrumento efetivo de pacificação social através da aplicação coercitiva dos direitos e garantias fundamentais. Surgiu uma noção intrínseca de justiça atrelada ao exercício do direito, afastando a visão positivista de equiparação do direito à lei.

O pós-positivismo, então, visto sob a luz da obrigatoriedade de aplicação fática dos direitos fundamentais, sob a perspectiva de entrelaçamento de direito e moral, sob a ótica do reconhecimento da normatividade dos princípios e da essencialidade dos direitos fundamentais, prega uma noção de justiça intrínseca à aplicação do direito. Retoma-se então a idéia clássica de Kant que pensava na moralidade como princípio fundamental. Eis o caráter filosófico do Neoconstitucionalismo: a junção de justiça e direito, a união das questões morais às questões políticas, a complexificação do fenômeno jurídico.

O terceiro aspecto elencado por Luís Barroso é o elemento teórico, subdividido em três linhas distintas: o reconhecimento da força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e a nova hermenêutica constitucional.

Os dois primeiros aspectos do Neoconstitucionalismo (histórico e filosófico) – em divisão temporal meramente para fins didáticos, reconhecendo-se que os três aspectos estão intimamente ligados e foram observados simultânea e paulatinamente – clarearam a necessidade de reconhecimento e aceitação da normatividade constitucional, de sua força imperativa. Aqui a Constituição deixa de ser uma mera declaração de intenções políticas, definidora de normas programáticas e passa a ter caráter de observação e aplicação obrigatórias.

Juntamente com o reconhecimento da normatividade da constituição criam-se os tribunais constitucionais, fazendo emergir o fenômeno da expansão da litigiosidade, decorrente da ampliação do acesso à justiça, caracterizando a segunda linha do aspecto teórico: a expansão da jurisdição constitucional.

Mas essa expansão não é tida só sob o aspecto do acesso mesmo à justiça. O judiciário passa a ser mais ativo também do ponto de vista jurídico. Ao Poder Jurisdicional foi concebido, em última análise, verificar a observação dos requisitos constitucionais essenciais mínimos, personalizados sob a titulação dos Direitos Fundamentais e do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Compatibilizando toda essa engenhosa construção, surge a nova hermenêutica jurídica, que permite ajustar a Lei Fundamental às circunstâncias dos casos práticos, possibilitando encontrar soluções ajustadas às pretensões sociais legítimas. Seria uma noção de direitos vinculantes, mas flutuantes e flexíveis, permitindo solucionar as complexas colisões entre direitos fundamentais.

Os elementos tradicionais da interpretação do direito (histórico, gramatical, sistemático e teleológico) não são descartados, continuam a ser utilizados para estabelecer os critérios (hierárquico, temporal e o da especificidade) de solução dos eventuais conflitos normativos. Mas a nova hermenêutica constitucional traz novos elementos interpretativos que passam a vincular obrigatoriamente este exercício de interpretação. Os preceitos especiais de interpretação constitucional são descritos por Luís Roberto Barroso[22] como sendo pressupostos lógicos, metodológicos ou finalísticos de aplicação das normas constitucionais. Ele cita os princípios da supremacia da constituição, da presunção da constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, da interpretação conforme a constituição, da unidade, da razoabilidade e da efetividade como sendo os mais adequados à situação brasileira.

Este é, em grosseira síntese, um sumário acerca da teoria neoconstitucionalista tratada por Roberto Barroso e complementada por alguns autores também citados ao longo destas breves linhas, e que servirá, aos fins deste trabalho, como ponto cume da mudança de ideário “pós-moderno”, como força motriz das novas especulações jusfolisóficas, como projeto de reestruturação de uma nova ciência jurídica.

3.2. Neoconstitucionalismo e Processo: o Neoprocessualismo

Com o surgimento e supremacia da teoria neoconstitucionalista várias foram as conseqüências observadas na ciência jurídica, dentre as quais, levando em conta os fins a que se destinam este trabalho, se destaca a imediata e rápida irradiação de suas bases conceituais aos mais variados ramos do direito. A ciência jurídica renovou suas forças e passou a elaborar novos fundamentos, a articular novas finalidades, a elucubrar novos métodos de racionalização do direito, usando como força matriz a normatividade constitucional.

A constitucionalização de todos os ramos do direito é bem evidenciada por Barroso na obra “Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora”, ao distinguir as noções de superlegalidade formal e material:

A superlegalidade formal identifica a constituição como fonte primária da produção normativa, ditando competências e procedimentos para elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlegalidade material subordina o conteúdo de toda atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da Constituição. A inobservância dessas prescrições formais e materiais deflagram um mecanismo de proteção da Constituição, conhecido na sua matriz norte-americana como judicial review, e batizado entre nós de “controle de constitucionalidade”.[23]

Assim, o direito processual seguiu os novos apontamentos e logo foi influenciado pela doutrina da supremacia dos direitos e garantias fundamentais, sistematizando e direcionando a teoria neoconstitucionalista aos seus fins. Tomando como base conceitual o marco teórico neoconstitucionalista, cingido na normatividade, expansão e nova hermenêutica constitucional, o direito processual tratou de elaborar uma nova teoria, dita neoprocessualista, adequando e remodelando alguns de seus conceitos clássicos aos novos direcionamentos.

A nova sistemática processual iniciou sua peregrinação mutacional em concomitância com o movimento neoconstitucionalista, surgindo como conseqüência óbvia da atribuição de força normativa aos preceitos constitucionais fundamentais. A normatividade constitucional atribuída ao art. 5º da CF, por exemplo, elevou algumas normas processuais à categoria de princípios que passaram a ter observância prática obrigatória. Normas ditas programáticas ganharam efetividade normativa e passaram a reger faticamente as relações jurídicas processuais. O que era um mero norte, mero guia, meros fins desejáveis, passou a ter vinculação coercitiva aos olhos dos operadores do direito.

Diante desta nova realidade, deste novo apontamento, surgiram várias construções teóricas que tiveram como escopo estabelecer e explicitar as garantias processuais mínimas, fazendo insurgir um novo campo de investigação do direito processual. Não bastava mais utilizar-se do processo apenas como instrumento de mediação de conflitos capaz de estabelecer normas instrumentais garantidoras da aplicação da norma material. O processo a partir de então devia ser encarado como instrumento positivo de efetivação dos anseios sociais, não só servindo como instrumento de aplicação da norma, mas também de conformação e adequação do direito material ao caso concreto.

Investigando o processo à luz da normatividade constitucional, nos salta aos olhos alguns preceitos normativos que foram capazes de estabelecer solo fértil à nova concepção jurídica do procedimento judicial, tendo Eduardo Cambi bem explicitado a questão ao assentar que:

A supremacia da constituição sobre a lei e a repulsa à neutralidade da lei e da jurisdição encontram, no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal um importante alicerce teórico. Ao se incluir no rol do artigo 5º da CF a impossibilidade da lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito, consagrou-se não apenas a garantia de inafastabilidade da jurisdição (acesso à justiça), mas um verdadeiro direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, célere e adequada (acesso à ordem jurídica justa). [24]

O processo passa a ser visto como um instrumento de efetividade jurisdicional, de promoção de um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva do Estado. Quebrando a noção de norma diretiva, de carta de intenções políticas, a constituição passa a exigir sua aplicação efetiva e o processo perde um pouco da inatividade, passando a ser utilizado como mais um instrumento de promoção dos valores constitucionais.

Segundo Marinoni:

O juiz não é mais a boca da lei, como queria Montesquieu, mas sim o projetor de um direito que toma em consideração a lei à luz da Constituição e, assim, faz os devidos ajustes para suprir as suas imperfeições ou encontrar uma interpretação adequada, podendo chegar a considerá-la inconstitucional no caso em que sua aplicação não é possível diante dos princípios de justiça e dos direitos fundamentais.[25]

Essa mudança de paradigma, aliada às novas técnicas processuais, deixou evidente a expansão da jurisdição constitucional, atribuindo aos operadores do direito uma maior flexibilidade normativa, adequando a lei aos novos valores. A criação dos tribunais constitucionais, a ampliação do rol de legitimados a propor as ações de controle constitucional, a possibilidade de controle constitucional já em primeira instância, a interpretação conforme a constituição e a declaração parcial de nulidade sem redução de texto são só alguns exemplos das transformações trazidas com a mudança de ideário.

A nova noção de processo, o novo ângulo de visão acerca da jurisdição trouxe consigo muitas implicações. Hoje se fala em caráter publicístico do processo, que estaria voltado a uma gama superior de princípios, não mais se limitando aos interesses controvertidos das partes; em quebra da dicotomia clássica entre direito e processo, concretizando o princípio da instrumentalidade do processo; em cláusulas gerais de processo, permitindo ao juiz ampla discricionariedade para verificação da efetividade jurisdicional, etc.

Todas essas mudanças, todavia, não ocorreram como em passe de mágica, sem fundamentos capazes de lhes assegurar legitimidade. Elas foram resultado da utilização prática, da construção dogmática do terceiro aspecto teórico neoconstitucionalista: a nova hermenêutica constitucional.

Através da ponderação de valores, da adequação argumentativa das normas abertas aos casos práticos insurgentes, da utilização da hermenêutica jurídica para vincular os princípios e flexibilizar as normas, foi possível ajustar a Lei Fundamental para solução dos conflitos, tornando possível atribuir ao processo a flexibilidade desejada.

O caráter publicístico do processo o liberou a buscar os fins públicos, aproximando jurisdição e democracia e evidenciando a transmutação do Estado Liberal ao Estado Social; o processo se uniu ao direito material no afã de dar-lhe efetividade; a atribuição do caráter instrumental ao processo lhe reforçou a efetividade e lhe garantiu uma maior celeridade, sem falar que a própria constituição consagrou o princípio da duração razoável do processo, deixando claras as suas intenções. Enfim, vários foram os sintomas capazes de indicar a nova orientação do processo, aproximando-o ao conceito de direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, célere e adequada, sempre utilizando-se da nova hermenêutica constitucional.

Apesar das dificuldades a hermenêutica constitucional foi capaz de sistematizar e controlar as instabilidades da nova teoria processual, assegurando terreno fértil para as transformações que se seguiram na tentativa de adequar o processo aos novos anseios neoconstitucionalistas. Mas é claro que, em se tratando de complexa realidade social, de declarada secularização de pensamentos, de multiculturalidade evidente, este pode não ser o direcionamento último. Valores e razões podem mudar, transformando a forma de sentir e ver as coisas, traçando-se novos direcionamentos, o que não tirará a autoridade das razões utilizadas à época.

Em suma, a maturação do pensamento jurídico moderno, influenciado pelos agentes de perturbação e inquietação do pensamento jurídico pós-moderno, propiciou o surgimento de nova linha de raciocínio, de nova forma de pensar: o Neoconstitucionalismo. Com o surgimento desta nova teoria e sua irradiação aos mais variados ramos do direito, tratamos neste tópico acerca do Neoprocessualismo. Emergirá a partir de agora, é natural, diria até que é desejável, novos problemas a serem encarados, novos enlaces discursivos, novas críticas; tais como o poder “criador” dos magistrados, a discricionariedade exarcebada, etc. E estas conseqüências, estes problemas emergentes da mudança de paradigma é que será tratado nos tópicos seguintes.

3.3. O poder “criador” dos magistrados

Como vimos no tópico anterior, ao Poder Judiciário foi concebido, em última análise, verificar e observar os requisitos constitucionais essenciais mínimos, o que lhe atribuiu força renovada. Aliás, esta verificação última do Poder Judicante ganha relevo e poder ao se observar que estes preceitos e garantias fundamentais são normalmente explicitados constitucionalmente sob a roupagem de normas jurídicas abertas, de difícil conceituação e limitação. Como assevera Ana Carolina Lôbo, os princípios possuem um “elevado grau de abstração e ‘indeterminabilidade’, impossibilitando sua aplicação imediata, pelo que necessitam de ‘atividades concretizadoras’.”[26] Assim, a conformação dos princípios e normas abertas são, em última análise, de responsabilidade dos magistrados, que lhes dita seu sentido e abrangência através da argumentação e da nova hermenêutica jurídica.

Dissertando acerca da obra de Ronald Dworkin, Ruy Alves justifica a necessidade e legitimidade do poder criador do juiz, aduzindo:

A insuficiência do modelo legal abre oportunidade para a mediação que poderá ser desenvolvida pelo próprio juiz. O direito é uma mediação entre o poder e a cidadania, funcionando como um amortecedor social que não pode deixar de agir nas situações colocadas ao Poder Judiciário. (...) A legitimação de fato e formal se dá por intermédio da atividade jurisdicional fundamentada. (...) O ponto de partida é o texto da lei, mas haverá uma construção a partir de um diálogo multidisciplinar, conforme declara Ronald Dworkin.[27]

Diante desta constatação se verifica que o exercício de aplicação efetiva dos direitos e garantias processuais fundamentais é uma construção retórica mais ou menos perfeita, que inculta à esta ou àquela norma seu sentido e abrangência, sendo inevitável a constatação de que, em última análise, quem dita a abrangência e limitações destas normas são os magistrados. É por esta razão que conceitos e definições destas normas abertas se encontram hoje em amplo e avançado processo de discussão argumentativa, não se podendo ainda atribuir quaisquer ônus ou bônus às correntes divergentes.

Roberta Fragoso Menezes Kaufmann descreve com clareza essa dificuldade de apontar direcionamentos inequívocos ou ao menos não conflitantes ao asseverar que a:

(...) constituição, como sistema aberto de regras e princípios, possui em seu bojo normas que traduzem idéias aparentemente conflitantes, cuja concretização depende sobremaneira da atuação mediadora do Poder Público, a partir de uma hermenêutica harmonizadora relativa aos direitos fundamentais em conflito. Dessa forma, lança-se ao hermeneuta constitucional o desafio de realizar a ponderação de valores, nos casos concretos, para solucionar a colisão de princípios, para tanto se utilizando do contexto histórico, social, econômico e cultural do qual aquele princípio fundamental faz parte e observado o povo a que se destina.[28]

O neoconstitucionalismo e, via de conseqüência, o neoprocessualismo, desta forma, ao estabelecerem novos rumos à ciência jurídica, imputando aos aplicadores do direito a tarefa de compatibilizar a norma aos novos anseios, relativizando a teoria positivista kelseniana, trouxeram consigo uma nova complicação, um novo dilema a ser maturado pelos estudiosos do tema. Evidenciada esta nova prerrogativa judicante, o poder de aplicar efetivamente as normas e preceitos fundamentais nos moldes já evidenciados linhas atrás, ou seja, conformando os princípios constitucionais aos casos concretos, inclusive contra legem, se necessário, em claro controle de constitucionalidade difuso, não estaria o Poder judiciário criando norma, fazendo lei? Como evitar o excesso de subjetividade, a linha tênue entre discricionariedade e arbitrariedade? Como estabelecer limites aos excessos interpretativos?

Estas questões trazem consigo tantas outras variáveis que a digressão intelectiva é quase uma obrigação. Podia se incluir como temas obrigatórios para boa intelecção do novo paradigma jurídico pós-moderno, por exemplo, a quebra de representatividade democrática ou a aniquilação da tripartição dos poderes. Mas é intenção deste escrito tratar de momento anterior ao surgimento destes questionamentos, de ir na raiz do problema: a questão do método. Se complexifica a ciência jurídica, mas se mantém o mesmo método racionalista cientificista moderno. A questão é justamente apontar um novo método aos novos anseios, o que se pretende com o desenvolvimento dos últimos capítulos desta monografia.

Este tópico foi criado justamente para evidenciar as novas prerrogativas dos magistrados, fazendo insurgir, necessariamente, as dúvidas e questionamentos expressamente consignados nos parágrafos anteriores. Mas como já dissemos, este trabalho não pretende ser conclusivo, não tem intenção de indicar respostas ou direcionar pensamentos. Muito pelo contrário, tem afã de apresentar novos enlaces discursivos, de manter a crítica, de elevar à complexidade as discussões triviais.

Importante frisar, todavia, que esta tarefa é árdua e muitas vezes conflituosa. Há muito que se discute os rumos da humanidade e do pensamento humano, não tendo, todavia, os protagonistas desta histórica, quer pela própria natureza do saber (ruminante, fugaz, mutável), quer pela ironia de interesses contrapostos, logrado êxito em chancelar direcionamentos comuns, ou ao menos não conflitantes.

3.4. As recentes reformas processuais

Assim como a nova teoria jurídica neoconstitucionalista foi criada pelo agito intelectual pós-moderno, ainda em processo de sedimentação, alheia a questões procedimentais e metodológicas, o Código de Processo Civil Brasileiro, influenciado pelas novas orientações doutrinárias, sofreu inúmeras alterações legislativas esparsas ao longo destes últimos anos, não tendo observado, entretanto, que seu todo codificado foi criado em janeiro de 1973, época em que ainda não se falava, pelo menos no Brasil, em aplicação efetiva dos direitos fundamentais, instrumentalidade e efetividade do processo.

É que hoje se debate acerca do novo direcionamento processual, corporificado pelas alterações legislativas mais recentes, imputando a elas (as modificações) o caráter de grande solução aos problemas do Direito, de descontinuidade do projeto processual clássico, de novo paradigma, caracterizado pela implantação de propostas que se dizem garantir a efetividade da justiça.

Humberto Theodoro Júnior bem explicita as etapas de transformação por que passou o Caderno Processual Pátrio:

Nos últimos anos do século passado e nos primeiros do século atual, o legislador brasileiro procedeu a profundas reformas do Código de Processo Civil (...) Num primeiro momento, a Lei nº 8.952, de 13.13.94, alterou o texto do art. 273 do CPC, acrescentando-lhe vários parágrafos (que viriam a sofrer adições da Lei nº 10.444, de 7.05.2002), com o que se implantou, em nosso ordenamento jurídico, uma verdadeira revolução, consubstanciada na antecipação da tutela.[29]

Em busca da realização desses direitos substanciais, a primeira alteração legislativa processual é sentida com a implementação da atual redação do art. 273 do CPC. A cognição exaustiva do processo, fundamentada sob a insígnia da segurança jurídica, abre espaço à cognição sumária que busca muito mais a efetividade e celeridade processuais.

Em prol da efetividade processual, outras técnicas preventivas e assecuratórias tomam forma e os artigos 461 e 461-A, ambos do Caderno processual Pátrio, são editados pelas Leis nº 8.952/94 e nº 10.444/2002. Ao juiz é concedido o poder de efetivar sua decisão, conferindo ao litigante vencedor o direito de receber a tutela específica de seu direito, seja ela uma obrigação de dar, fazer ou não fazer. Acrescente-se o que o §5º do art. 461-A ainda atribui ao juiz ampla discricionariedade na efetivação deste direito, conferindo-lhe interpretação e concreção da dicção aberta “meios necessários” à realização do direito material. A estiolada conversão em perdas e danos perde apreço. Como conseqüência, perdemos o aporte teórico da classificação trinaria das sentenças.

A necessidade de se distribuir o ônus do tempo do processo, tomou muito mais força com a implementação da Emenda Constitucional nº 45 que incluiu no rol exemplificativo de garantias fundamentais mínimas a duração razoável do processo. Isso foi fundante para a criação de novas técnicas processuais implementadas pelas alterações legislativas que se seguiram. Mas talvez a alteração legislativa mais significativa e mais profunda tenha sido a consubstanciada pela Lei nº 11.232/2005, abolindo-se de um vez por todas o processo autônomo de execução de sentença.

As alterações não se restringem a procedimentos executivos, primando a efetividade das decisões judiciais. Outras modificações são efetivadas pensando em problemas pontuais da nossa realidade sócio-jurídica. As súmulas vinculantes, o novo requisito de admissibilidade recursal da repercussão geral, a sentença sumária de improcedência do artigo 285-A, dentre outras, restringem a acessibilidade à justiça em nome do desafogamento dos tribunais.

Talvez o grande desafio que se tem hoje, em se falando de processo, como conseqüência clara dos enfrentamentos argumentativos acerca das novas mudanças legislativas, seja a compatibilização entre instrumentalidade e garantismo processual. O primeiro, relativizando as noções de direito material e de procedimento, permite a construção de técnicas processuais que aceleram e adéquam o processo à realização e efetivação dos direitos. O segundo busca o respeito aos direitos e garantias fundamentais do réu, do demandado, no afã de evitar os abusos cometidos em épocas passadas. A medida certa entre as duas vertentes talvez consiga diminuir os constantes atritos discursivos entre elas. Nem excesso de garantias de defesa, nem desmesurada inquisitoriedade processual.

Entenda-se, porém, que não é intenção deste trabalho discutir questões estritamente técnicas ou apontar possíveis erros legislativos, razão pela qual não desenvolvemos à exaustão as inúmeras implicações das modificações mais recentes. Não se discute as várias benesses trazidas com as inovações aqui comentadas, dentre as quais se destacam a maior celeridade e efetividade processuais. O ponto de real interesse do discurso desenvolvido nestas breves páginas é discutir a forma como estas inovações foram implementadas no nosso ordenamento e as conseqüências conceituais e metodológicas impostas à ciência jurídica. O que o Direito, enquanto ciência, sofre com essas inovações.

De fato, em se falando do Código de Processo Civil Brasileiro, o que se tem hoje é uma colcha de retalhos. Ao invés de se pensar em um novo projeto de código capaz de compatibilizar os atuais anseios em um todo não contraditório, mantendo a integridade metodológica de uma suposta ciência jurídica, se faz uma adaptação frankensteiniana, lapidando o CPC, aresta por aresta, como se ele ainda fosse matéria bruta, primária.

Ao se proceder desta forma se concebe uma verdadeira anomalia jurídica, se perdendo a raiz de sustentação, o pilar estrutural de uma área do conhecimento que se pretende científica. Não se pode confundir mudança de ideário jus-filosófico com anarquismo científico. Proceder a mudanças práticas no direito sem o devido alicerce metodológico é quase que suicídio científico. Esta é a verdadeira intenção deste labor: identificar os ranços e avanços da nova sistemática pós-moderna para a partir de então lhe direcionar um sentido, um caminho menos arenoso e mais suscetível de sucesso e desenvolvimento.

O legalismo moderno, o positivismo kelseniano assegurara ao direito uma matriz metodológica firme capaz de elevá-lo aos rigores da ciência. Mas uma ciência ainda moderna, racionalista, cientificista, buscando critérios objetivos e universais que pudessem de forma infalível descobrir, revelar, desvelar, demonstrar as verdades universais. O positivismo pecou no seu engessamento pragmático, na burocracia paralisante já desvelada há anos por Franz Kafka, no clássico literário “O processo”.

O paradigma pós-moderno trouxe consigo novo ideário, novos enlaces argumentativos, novos problemas, desta vez muito mais preocupado com o pragmatismo jurídico, com a efetividade do direito, proporcionou inúmeras e profundas mudanças, algumas vistas ao longo deste escrito. Por sua vez, esqueceu-se do rigor metodológico, quis obter a legitimação de sua doutrina mais pelos efeitos do que pelas causas.

A técnica e a pesquisa processual da atualidade têm, hoje, como meta essencial dar celeridade aos processos judiciais, que fundamentaria uma efetividade da tutela dos direitos. Mas esta efetividade não se restringe ao tempo de duração dos processos. Vai além. Engloba uma camada muito maior de princípios e direitos, não se limitando a técnicas pragmáticas de rápida solução de litígios. A efetividade processual deve ser encarada sob os mais variados ângulos de observação, não se devendo substituir o rigorismo legal por técnicas retóricas de pragmatismo. A efetividade deve ser assegurada, mas não se pode negar os princípios que fundam o Direito.

Parece-nos, então, que algo não se encaixa na atual estrutura do direito, da “ciência” jurídica. O dogmatismo perde espaço à retórica utilitarista num profundo abismo niilista. Como ressuscitar a legitimação científica do direito sem retirar-lhe a efetividade? Eis uma pergunta que ainda circundará por vários anos os centros de pesquisas jurídicas. Nos resta então iniciar a crítica construtiva em busca de, senão respostas, pelo menos novos olhares, novas fontes.


4. Os novos desafios do Direito contemporâneo

Evidenciadas algumas conseqüências conceituais e metodológicas da nova prática jurídica, pondo em cheque a própria cientificidade do estudo do direito, passemos agora a clarear os horizontes, a especular uma saída aos labirintos da nova juridicidade.

Como visto no desenvolver deste trabalho monográfico, uma saída, talvez, seja compatibilizar um método, um novo método, que não o racionalista cientificista moderno, ao pragmatismo utilitarista das novas práticas jurídicas, assegurando ao direito, à ciência jurídica, solo fértil para desenvolver-se.

Desta forma, pretendemos tratar primeiro do paradigma epistemológico, assegurar rigor metodológico ao direito, para a partir de então traçar seu aparato justificador, legitimador da atual práxis. É neste intuito que dividimos este capítulo em dois tópicos distintos: a complexidade, tida como o novo paradigma; e a processualística sistêmica, representando a doutrina justificadora de um novo método jurídico.

4.1. A complexidade

Neste ínterim, trago valiosas contribuições de um filósofo francês, de nome Edgar Morin, que, na visão deste trabalho, consegue compatibilizar com um mínimo de justeza as complicações da ciência atual, trazendo noções de um pensamento complexo, não fechado, não compartimentado, multidimensional, que não elimina as contradições internas, não reduz a importância da incerteza, do irracional, da ambigüidade. Ele não pretende trazer a ordem através de um sistema simplificador, lógico, racional, reducionista, rejeitando os dados incoerentes ou anulando a diversidade em prol de uma ciência exata, demonstrativa.

Enquanto na ciência clássica o conhecimento científico tem como missão revelar a simplicidade escondida por trás da aparente multiplicidade e desordem dos fenômenos, muito além disso,

A dificuldade do pensamento complexo é que ele deve enfrentar o emaranhado, o jogo infinito das inter-retroações, a solidariedade dos fenômenos entre eles, a bruma, a incerteza, a contradição. Mas podemos elaborar algumas das ferramentas conceituais, alguns dos princípios para esta aventura, e podemos entrever o semblante do novo paradigma de complexidade que deveria emergir... Assim, no paradigma de disjunção/redução/unidimensionalização, seria preciso substituir um paradigma de distinção/conjunção, que permite distinguir sem disjungir, de associar sem identificar ou reduzir. Este paradigma comportaria um princípio dialógico e translógico, que integraria a lógica clássica sem deixar de levar em conta seus limites de facto (problemas de contradição) e de jure (limites de formalismo).[30]

Morin intenta construir um método capaz de implicar uma reorganização em cadeia do que entendemos pelo conceito de ciência: “uma mudança fundamental, uma revolução paradigmática, parece-nos necessárias e próximas”.[31] Para o filósofo francês estamos em uma fase de transição em que sabemos o ponto de partida, mas não o de chegada.

Inicialmente, duas brechas no quadro epistemológico da ciência clássica são identificados por Morin: o sujeito do conhecimento e o objeto a ser conhecido se entranham num emaranhado difícil de dissolver, o que se repete com as noções de espaço e tempo. Tudo se choca. Nada mais parece são tão asséptico quanto desejara Descartes. A simplicidade mórbida das coisas se quebra diante da vastidão das possibilidades.

A partir da identificação das rachaduras da epistemologia moderna, complexificando o conhecimento, Edgar Morin tenta encontrar um paradigma estabilizador dos novos enlaces, das novas dificuldades, das recentes contradições. Para tanto, elabora um teoria dita sistêmica, com base na qual tudo e todas as coisas podem ser concebidas e entendidas através de sistemas, de associações combinatórias de elementos diferentes, distintos, diversos. Os elementos isolados em si mesmos só possibilitam um conhecimento limitado, simplificador, unidimensional, reto, fechado, compartimentado. Mas uma epistemologia vista através de sistemas, de interelações, de combinações, uma epistemologia múltipla, complexa, multidimensional, aberta, proporcionaria um conhecimento com estas mesmas características.

Atente-se, desta forma, que o sistema de Morin se pretende aberto, em constante troca fluida com o exterior. Os sistemas morinianos devem se fechar ao mundo externo para manterem suas características internas, mas para se manterem fechados devem se abrir em uma eterna troca dinâmica estabilizadora. Os elementos distintos em sua essência se associam reciprocamente, combinando-se em uma troca mútua mantenedora deste mesmo sistema, o que proporciona a eliminação da simplificação.

Esta noção de sistema aberto, então, antevê uma mudança paradigmática:

O conceito de sistema aberto tem valor paradigmático. Como o observa Maruyama, conceber todo objeto e entidade como fechado implica em uma visão de mundo classificadora, analítica, reducionista, numa causalidade unilinear. Foi exatamente esta visão que se instaurou na física do século XVII ao XIX, mas que hoje, com os aprofundamentos e os avanços rumo à complexidade, vaza por todos os lados. Trata-se de fato de operar uma reversão epistemológica a partir da noção de sistema aberto.[32]

Seguindo uma teoria sistêmica, o filósofo francês dá uma idéia de integração, de junção entre ordem e desordem, entre a parte e o todo, entre o ambíguo e o absoluto, entre equilíbrio e desequilíbrio, entre as mais variadas formas de saber e conhecer o mundo, um mundo transdiciplinar, complexo.

Seguindo seu intento de demonstrar a necessidade de um pensamento complexo, garantindo a teoria sistêmica como ponto de partida, Morin passa a se preocupar com a estabilização, ou melhor, com a compatibilização entre as relações de sujeito e objeto. A dualidade entre sujeito e objeto foi inaugurada, em tempos modernos, pela filosofia cartesiana que identificou e separou o cogito, o “eu pensante”, a alma, do corpo, do que existe, do material. Desde então foi incessante a luta em busca pela autonomia do objeto, pela expulsão da subjetividade na ciência.

Cerne da cultura científica ocidental clássica, a eliminação do sujeito a partir de uma noção de existência independente do objeto, que podia ser observado e explicado enquanto tal, permitiu o desenvolvimento acelerado da ciência moderna. A possibilidade de descrição do universo através de fatos objetivos, ausente da subjetividade humana, demonstrado através da empírica redução ôntica-causal, foi a força motriz da ciência Newtoniana. O sujeito foi renegado de seu papel fundante no desenvolvimento deste conhecimento.

Segundo Morin:

(...) expulso da ciência, o sujeito assume sua revanche na moral, na metafísica, na ideologia. Ideologicamente, ele é o suporte do humanismo, religião do homem considerado como sujeito reinante ou devendo reinar sobre um mundo de objetos (a possuir, manipular, transformar). Moralmente, é a sede indispensável de toda ética. Metafisicamente, é a realidade última ou primeira que dispensa o objeto como um pálido espectro, ou no máximo, um lamentável espelho das estruturas de nosso conhecimento.[33]

A implacável luta e desmesurado esforço de separar sujeito e objeto criou, então, termos disjuntivos, que se repelem, antagônicos. Mas ao mesmo tempo, em claro contrasenso, estes dois elementos sempre fizeram parte da mesma estrutura lógica. Perceba que um objeto só existe em relação a um sujeito, da mesma forma que um sujeito só é entendido em relação a um ambiente objetivo.

Não foi difícil de concluir que:

O objeto e o sujeito, entregues cada um a si próprios, são conceitos insuficientes. A idéia de universo puramente objetivo está privada não apenas de sujeito, mas de entorno, de além; ela é de uma extrema pobreza, fechada sobre si mesma, não repousando sobre nada mais do que o postulado de objetividade, cercado por um vazio insondável tendo em seu centro, lá onde há o pensamento deste universo, um outro vazio insondável. O conceito de sujeito quer vegetando ao nível empírico, quer hipertrofiado ao nível transcendental, está por sua vez desprovido de entorno e, anulando o mundo, encerra-se em seu solipsismo. Assim, surge o grande paradoxo: sujeito e objeto são indissociáveis, mas nosso modo de pensar excluiu um do outro, deixando-nos apenas livres para escolher, conforme os momentos do dia, entre o sujeito metafísico e o objeto positivista.[34]

Sujeito e objeto, então, na teoria do pensamento complexo, devem integrar faces da mesma moeda, devem se complementar, se unir. Ao contrário da teoria epistemológica clássica, as complexificações apresentadas pela união destes dois elementos devem ser consideradas e levadas à termo. A partir da identificação das novas dificuldades pós-modernas, não se pode mais conceber uma ciência disjuntiva, objetiva, unidimensionalizada. Ela tem de ser capaz de lidar com os movimentos aleatórias da imprevisibilidade, utilizando-se, para tanto, de noções complexas como a teoria sistêmica, a teoria da informação, a teoria da auto-eco-organização, et cetera.

É assim que, em grosseira síntese e necessário corte epistemológico, resumimos as centrais idéias de Morin. Através da problematização da simplificação e redução cientificista, Morin abre espaço para um novo método de se fazer ciência, uma ciência crítica e não reducionista, uma ciência, diria filosófica. Mas a intenção seria de apontar para novo paradigma, para nova forma de ver o mundo, de ver o homem, e não de apostar em novas verdades ou de renegar a ciência clássica. “A complexidade não é um fundamento. É o princípio regulador que não perde de vista a realidade do tecido fenomênico no qual estamos e que constitui nosso mundo”[35].

Desta forma, todas as incongruências, contradições, irracionalidades, integrariam o saber, a ciência, comporiam a epistemologia. O sistema fechado deixaria de existir, abrir-se-ia à vastidão dos fluxos de conhecimento. A verdade última passaria a compor as inúmeras verdades do pensamento complexo, passaria a aceitar as contradições entre elas mesmas. A incerteza e a dúvida seriam componentes desta mesma verdade.

O atual estágio civilizatório não comporta mais o método que outrora foi suficiente aos anseios da época. Como já referido linhas atrás, durante vários séculos se acreditou na objetividade de um diálogo racional e não distorcido, guiado pelo próprio homem, sem intervenções, avançando para obtenção da verdade plausível que aguarda ser descoberta. Eis uma inteligência cega, descompromissada. A complexidade rejeita essa simplificação do real.

Mas a crítica ao método não se restringe ao próprio método em si. Vai além. Traz a noção de atual mudança de paradigma em contraposição à manutenção do antigo método. O mesmo método utilizado para lastrear o positivismo cientificista kelseniano também é usado para dar forma e sustentação a um novo paradigma, totalmente diferente. O neoconstitucionalismo e, via de conseqüência, o neoprocessualismo, pregam uma noção totalmente diversa do direito da prevista pelos dogmáticos. O resultado disso: niilismo metodológico, ausência de sentido, não conformação entre causa e efeito.

Um direito que se pretende científico fechando as portas de comunicação com os demais conhecimentos humanos, um direito asséptico, não mais se sustenta diante dos novos anseios, das novas metas. A diversidade e complexidade social instaurada na atualidade impedem o desenvolvimento da epistemologia jurídica, ou, mais tecnicamente, já que se critica esta teoria do conhecimento enquanto exclusivamente científico, da gnoseologia jurídica, abrindo a necessidade premente de novas técnicas, de novas práticas.

É consciente desta necessidade que trazemos à baila uma nova noção de processo, um novo paradigma a ser seguido, desta vez sim, utilizando-se do método da complexidade: a processualística sistêmica.

4.2. A Processualística sistêmica

Com base nesta nova forma de se fazer ciência, uma ciência dita filosófica, que aceita a multiplicidade do real, que não elimina as contradições internas, que não reduz a importância da incerteza, do irracional, da ambigüidade, que não pretende trazer a ordem através de um sistema simplificador, lógico, racional, reducionista, uma nova teoria acerca do direito e, mais detidamente, do processo, é encabeçada: a processualística sistêmica.

É um movimento que, segundo Elias Moura, se pretende para além de uma teoria do processo, assumindo um objetivo de agente de transformação neo-paradigmático. A intenção é seguir uma teoria complexa capaz de substituir o pensamento sistemático redutor da multiplicidade das experiências do real da modernidade ocidental, “pelo pensamento sistêmico que tem o processo judicial como experiência multi-versa, complexa e instável”.[36]

Assumindo a complexidade mundana, a processualística sistêmica aloca para além da estiolada linha modular do ciclo vital do direito um contexto bem mais amplo e complexo, reconhecendo como partes integrantes da ciência jurídica as diversas propostas disciplinares conhecidas, inserindo no conceito de direito questões políticas, sociais, etc. É um convite ao diálogo inter-disciplinar não só ao direito, mas também às mais variadas formas de se conceber e explicar as coisas e o mundo, se apresentando como uma alternativa mais cética e mais complexa ao conhecimento jurídico fechado e compartimentado da modernidade.

O processo, visto como eclosão do ciclo vital do direito, perde a linearidade simplista de outrora (ondulação modal) e assume a complexidade sistêmica para dar azo a um quadro muito mais imbricado e complexo:

Essa ondulação modal, que terminou por ser reduzida à estabilização (ingênua) do processo judicial – ou mesmo ao sistema normativo processual – dos conflitos de interesses (litígios ou lide) tem exigido sua reinserção na totalidade do ciclo vital do direito compreendido num setor cognitivo paradigmático legalista do positivismo jurídico, afastando-se da mutilação da experiência jurídica moderna proporcionada pela processualística. Veja-se que o ciclo vital do direito é mais rico, mais extenso e, sem dúvida alguma, mais complexo e, portanto, irredutível ao fenômeno da decisão igualmente indedutível dos sistemas normativos vigentes diante das emergências fenomenológicas dos conflitos sociais modernos (...).[37]

No entanto, apesar de reconhecer a urgência na mudança do paradigma jurídico, a complexificação, por si só, do ciclo vital do direito não é suficientemente adequada para resolver os enlaces jurídicos pós-modernos, revelando-se necessário uma abertura mais significativa da epistemologia jurídica, vez que o próprio direito, enquanto ciência, é que está em cheque.

Atenta às rachaduras da ciência jurídica clássica, muito além da complexificação do ciclo vital do direito, a nova teoria nos apresentou as insuficiências das teorias que até então tentaram fundamentar e justificar o direito, tais como a retórica antiga, o positivismo moderno e o utilitarismo pós-moderno, defendendo uma nova forma de ver não só o processo, mas toda uma ciência dita jurídica.

Para a processualística sistêmica, o direito, em especial o direito processual, quando visto tão só sob o aspecto da legalidade, da norma, do positivismo, encobre os dados empíricos da realidade, fazendo insurgir problemas institucionais como os experimentados nos totalitarismos da segunda grande guerra.

Um direito, por sua vez, que se atenha tão somente a estes mesmos dados empíricos de realidade, um direito prático, utilitarista, perde seu norte conceitual, perde sua forma, e passa a ser mero sistema garantidor de resultados práticos convenientes em determinada realidade histórica, ultrapassando as barreiras do razoável.

De igual forma, uma ciência jurídica nos moldes clássicos, buscando a solução dos conflitos através de uma disputa retórica, em que só se busca apontar as contradições e falácias dos discursos dos opositores, sentencia o direito à casuística arbitrária do poder de convencimento dos mais letrados.

Sistematizando seu núcleo teórico, a processualística sistêmica elimina o isolamento entre estas teorias, propondo uma aproximação e diálogo entre elas, em clara atitude sistêmica, própria da teoria complexa. Ao revés do isolamento simplista, unidimensional, reto, fechado, propõe a complexificação do diálogo entre as fontes e a abertura do “sistema jurídico”, ratificando a necessidade de inter-conexão entre os vários “sistemas”, sejam eles jurídicos ou não.

Para tanto, a nova teoria teve de reconhecer que a proposta epistemológica moderna era insuficiente, subsumida que estava às relações de causa e efeito e à disjunção entre sujeito e objeto. A simplificação do real através de posturas dúplices e dicotômicas, como verdadeiro e falso, sim e não, ajuda a agravar a crise da ciência em geral, que no campo do direito também se mostrou através da criação de regimes puramente dogmatistas ou simplesmente utilitaristas. A processualística sistêmica, além de instituir um novo paradigma, a complexificação do direito, teria de também desenvolver um método capaz de estabilizar a nova proposta, evitando implicações já conhecidas, como o niilismo científico ou o anarquismo metodológico.

Assim, trouxe à baila os ensinamentos de Dilthey, primeiro a identificar e diferenciar as ciências positivas das ciências humanas. Este seria o primeiro passo para possibilitar uma ciência jurídica complexa: retirar-lhe a objetividade simplista de um diálogo positivista subsumido a uma relação de causa e efeito e incumbir-lhe o papel da interação entre os vários significados possíveis para um mesmo fenômeno a depender de contexto situacional proposto. Sujeito e objeto se entrelaçam num forte emaranhado conceitual e passam a integrar faces da mesma moeda. O objeto sem sujeito, sem contextualidade, é pura abstração lógica; enquanto que o sujeito sem objeto é transcendentalidade ingênua. Esta diferenciação entre ciências positivas, explicativas, e ciências humanas, ou do espírito, permitiu, enfim, a junção entre sujeito e objeto e o reconhecimento de que os movimentos aleatórios e imprevisíveis desta união merecem preocupação científica.

O reconhecimento da subjetividade como parte integrante do processo de produção de conhecimento, por sua vez, produziu uma imensa dificuldade de adequação metodológica. Como compatibilizar as variáveis e incertezas produzidas pela inserção do sujeito na construção das ciências do espírito? Mais uma vez a resposta para o problema foi a necessária conexão inter-disciplinar proposta pelo pensamento complexo, fazendo figurar como parte integrante da ciência jurídica a filosofia hermenêutica.

Elias Dubard de Moura Rocha, interpretando as lições de Dilthey, afirma que:

O uso do conhecimento hermenêutico no campo epistemológico, se por um lado sugere um alargamento do conceito de ciência, (...) por outro lado, põe em evidência um espectro filosófico de um projeto conciliador entre lógica e vida, teoria e práxis, em suma, do modelo conceitual normativo da pessoa abstrata, ahistórica e apriorística de Kant e o do sujeito concreto, histórico e posteriorístico de Hegel por meio de uma crítica à razão histórica.[38]

A hermenêutica, então, se incumbiu do papel conciliador da necessidade pós-moderna de se unir teoria e práxis, positivismo e utilitarismo, de se levar a termo a proposta do pensamento complexo, abrindo-se os sistemas em um diálogo inter-disciplinar construtivo e revigorante.

Seguindo a processualística sistêmica, a hermenêutica possibilitaria o diálogo inter-paradigmático entre as teorias jurídicas (retórica, positivismo e utilitarismo), fazendo surgir uma nova noção de ciência jurídica, uma nova noção de processo. Ao revés do utilitarismo pós-moderno de hoje, do positivismo puro de Kelsen ou da retórica dos clássicos, teríamos uma ciência do direito que se pretende efetiva, célere, eficaz, prática, mas que tem na norma o fio condutor do horizonte significativo do direito, tudo isso através de uma prática retórica bem definida, assegurada pelos cânones hermenêuticos.

Os cânones que impõem o limite à abstração retórica da lei, impedindo a divagação no horizonte significativo do direito, são bem definidos por Emilio Betti, citado na obra de Elias Moura[39], como sendo: o cânone da totalidade ou da coerência de sentido, o cânone da autonomia hermenêutica do objeto, o cânone da adequação e o cânone da atualidade. Os dois primeiros se referem ao sujeito, ao intérprete, ao operador do direito, e os dois seguintes se limitam a regular o objeto interpretado, o texto legal, a norma posta.

O cânone hermenêutico da totalidade se destina a regular o ato intelectivo do intérprete, diminuindo as possibilidades de significação dos vocábulos legais ao instituí-los dentro de uma totalidade contextual bem definida. A norma positivada é inserida dentre de um campo de significação limitado por livros, títulos, capítulos e seções, pelos quais os vocábulos legais passarão a integrar, ajudando a construir seu significado.

 A autonomia hermenêutica do objeto imputa a independência dos textos interpretados com relação ao objeto referido, ainda que este deixe de existir fenomenicamente. Ou seja, mesmo que o fato fenomênico sobre o qual se debruçou a elaboração de um determinado texto deixe de existir, ainda assim o texto terá existência própria, mesmo que o seu autor queira lhe dar outra destinação. A lei, a norma, um tributo, por exemplo, que tenha como agente provocador de sua elaboração textual a insuficiência de arrecadação para custeio do plexo público, ainda que a administração pública passe a arrecadar o suficiente para sua manutenção, mesmo assim o texto legal terá seu sentido próprio, que deverá ser levado à cabo para construção e delimitação de seu significado.

Já o cânone da adequação obriga o intérprete a contextualizar o vocábulo a ser interpretado a um dado contexto situacional próprio capaz de definir a extensão e o significado mais apropriado ao texto. Dentre algumas possibilidades de significação possíveis de um determinado vocábulo, o intérprete deve escolher o que mais se adapta ao contexto situacional proposto. Quando, por exemplo, um advogado afirma que determinado juiz é incompetente não está querendo dizer o mesmo quando chama um aluno seu de incompetente por não ter conseguido finalizar determinada tarefa.

Por fim, o cânone da atualidade determina que a interpretação de certo vocábulo deva ser realizada dentro de um contexto histórico bem definido, evitando a mutação no significado do vocábulo com o passar do tempo. Um mesmo fato pode ter mais de um significado possível alterando-se a realidade histórica do objeto a ser interpretado, como é o caso do negro escravo de séculos atrás que era tido como um bem, uma coisa, e hoje é um sujeito de direitos.

Estes cânones hermenêuticos, então, encararam as dificuldades de se construir uma ciência jurídica complexa, compatibilizando uma nova proposta epistemológica. Ao invés da positividade racionalista ou do formalismo kelseniano, se estabelece uma ciência jurídica da compreensão.


5. Conclusão

Como podemos ver no desenvolver deste trabalho monográfico, o agito intelectual do século XX fez surgir novos questionamentos acerca da vida e do mundo, pondo em cheque a estrutura cognitiva moderna, calcada no racionalismo cientificista cartesiano. O positivismo de outrora conseguia administrar bem as questões antigas, tendo, inclusive, elevado o direito à categoria de ciência pela redução ôntica-causal da multiplicidade dos fenômenos jurídicos. Mas esta prática fez com que o direito pecasse pela rigidez, pela falta de mobilidade, pela ineficiência, pela lentidão, et Cetera.

Os novos enlaces argumentativos, então, fizeram emergir um novo movimento jurídico que trouxe uma noção mais complexa acerca do fenômeno jurídico, elevando ao grau máximo o pragmatismo jurídico, tornando o direito mais eficaz, mais célere, mais justo. Por sua vez, esqueceu-se de tratar da forma, do método.

Eis o colapso da ciência jurídica de hoje. Fadado às estruturas lógicas incompletas, simplistas, reducionistas da modernidade, o direito passa hoje por uma profunda crise de degenerescência, por uma séria crise epistemológica.

Descritos os vários problemas e os novos questionamentos acerca da ciência jurídica da atualidade (o poder criador dos magistrados, o excesso de subjetividade, os excessos interpretativos, a quebra de representatividade democrática, a aniquilação da tripartição dos poderes, o anarquismo metodológico, o niilismo científico, et cetera), na luta para equalizar as novas preocupações, este trabalho trouxe à baila noções de uma nova teoria jurídica: a processualística sistêmica baseada no pensamento complexo.

Visualizada uma nova forma de se fazer ciência, uma ciência dita filosófica, que aceita a multiplicidade do real, que não elimina as contradições internas, que não reduz a importância da incerteza, do irracional, da ambigüidade, que não pretende trazer a ordem através de um sistema simplificador, lógico, racional, reducionista, se aponta por uma nova teoria jurídica. A processualística sistêmica assume a complexidade do mundo e das coisas e convida o direito a um diálogo inter-disciplinar, inserindo o conceito de direito num contexto bem mais amplo, rico e complexo, reconhecendo como partes integrantes da ciência jurídica as diversas propostas disciplinares conhecidas.


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Notas

[1] ROUANET, Sérgio Paulo. O mal-estar na modernidade. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.44.

[2] ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia: a Filosofia do Renascimento. Lisboa: Editora Presença, 2000, p.09.

[3] ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. p.20.

[4] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. São Paulo: ATLAS, 2008. p. 115.

[5] DESCARTES, René. Discurso do Método. Regras para Direção do Espírito. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2008. p.14.

[6] Ibidem, p.46.

[7] Ibidem, p.31.

[8] KANT, Immanuel. Prolegômenos. 1ª ed. Trad. Tânia Maria Bernkopf. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

[9] MESESES, Paulo. Abordagens hegelianas. Rio de Janeiro: Vieira e Lent, 2006. p.19.

[10] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O Pós-modernismo jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. p.32.

[11] ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Martin Claret, 2005.

[12] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O Pós-modernismo jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. p.34.

[13] NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. PENA-VEGA, Alfredo. O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. p. 21.

[14] ROCHA, José Manoel de Sacadura. Fundamentos de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2007. p. 115.

[15] HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 74.

[16] FOUCALT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 150.

[17] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O Pós-modernismo jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. p. 100.

[18] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional do Brasil. Disponível em: http://jus2.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547.

[19] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Disponível em: http://www.panoptica.org.

[20] MAIA, Antonio Cavalcanti. As transformações dos sistemas jurídicos contemporâneos: apontamentos acerca do neoconstitucionalismo. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br.

[21] PIETRO, Sanchís Luis. Jueces y justicia em tiempos de constitucionalismo. Entrevista al profesor Luis Pietro Sanchís, realizada por Pedro Grandes Castro (mimeo). Toledo, 2005.

[22] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional do Brasil. Disponível em: http://jus2.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547.

[23] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 161.

[24] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Disponível em: http://www.panoptica.org.

[25] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2007, p. 54.

[26] PAUL, Ana Carolina Lobo Gluck. Colisão entre direitos fundamentais. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/8770.

[27] FILHO, Ruy Alves Henriques. Direitos fundamentais e processo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 183/184.

[28] KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Colisão de direitos fundamentais: o direito à vida em oposição à liberdade religiosa – o caso dos pacientes Testemunhas de Jeová internado em hospitais públicos. Disponível em: http://jus2.com.br/doutrina/texto.asp?id=10071.

[29] JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de direito processual civil. Processo de execução e cumprimento de sentença processo cautelar e tutela de urgência. Rio de janeiro: Forense, 2007. p. 11.

[30] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007. p. 14.

[31] Ibidem, p. 18.

[32] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007. p. 23.

[33] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007. p. 40.

[34] Ibidem, p. 41.

[35] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007. p. 105.

[36] ROCHA, Elias Dubard de Moura. Crise cognitiva do processo judicial. Recife: Nossa livraria, 2008. p. 13.

[37] ROCHA, Elias Dubard de Moura. Crise cognitiva do processo judicial. Recife: Nossa livraria, 2008. p. 31-32.

[38] ROCHA, Elias Dubard de Moura. Crise cognitiva do processo judicial. Recife: Nossa livraria, 2008. p. 68/69.

[39] Ibidem


Autor

  • Elder Paes Barreto Bringel

    Elder Paes Barreto Bringel

    Graduado em Direito e Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Católica de Pernambuco. Oficial de Justiça lotado na CEMANDO de Olinda. Tem experiência em diversas áreas do Direito devido a sua vida profissional versátil, e tem se especializado nas ciências propedêuticas e filosóficas. Graduando em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRINGEL, Elder Paes Barreto. A crise do direito processual e o neoprocessualismo. Uma alternativa complexa ao poder criador dos magistrados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3359, 11 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22591. Acesso em: 3 maio 2024.