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Comissões de conciliação prévia e acesso à justiça

Comissões de conciliação prévia e acesso à justiça

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As Comissões de Conciliação Prévia são um mecanismo que pode contribuir muito para o alcance da harmonia e da paz social, apesar de todos os problemas que o mecanismo vem apresentado.

Resumo: Realiza o presente estudo uma análise do mecanismo das Comissões de Conciliação Prévia como meio de acesso à justiça.

Palavras-chave: Conflito. Acesso à justiça. Comissões de Conciliação Prévia.

Sumário: 1. Introdução. 2. Meios de composição de conflitos.  3. A criação das Comissões de Conciliação Prévia: inspirações. 4. Estrutura e funcionamento das Comissões de Conciliação Prévia. 5. O acesso à justiça como direito fundamental. 6. A Comissão de Conciliação Prévia como mecanismo de acesso à justiça. 7. Críticas ao modelo das Comissões de Conciliação Prévia. 8. Conclusão. 9. Referências.


1. Introdução

Nota-se como um todo nas sociedades humanas sempre uma crescente preocupação com a paz e harmonias sociais com a solução dos conflitos, que são considerados como mal a ser evitado e extirpado. O que se busca é uma sociedade livre, igualitária e principalmente justa, onde os seus cidadãos cumpram as normas de convivência voluntariamente. Havendo, todavia, o nascimento do conflito, este deve ser solucionado de forma ágil, justa e efetiva, ou seja, não deve a lide eternizar-se, encontrar solução injusta ou não ter qualquer efetividade no plano dos fatos.

A melhor forma, entretanto, de evitar a perturbação à paz social é a priorização da prevenção dos conflitos, que só poderá ocorrer se todos os integrantes das sociedades passarem a observar as normas de convivência sem violar o direito de outrem. Considerando a natureza humana, é uma utopia crer que tal estado de coisas possa realmente ser alcançado. Desta forma, ao primar pela prevenção dos conflitos o que se pretende é a aproximação ao máximo ponto deste ideal utópico buscado.

O conflito não é, entretanto, uma patologia da sociedade, é algo previsível e esperado. Não há sociedade sem lide, sem embates entre os seus integrantes, por isso a preocupação em prevenir os conflitos deve juntar-se aos esforços na solução destes da forma que mais se aproxime dos ideais de justiça, igualdade e liberdade.

A busca pela solução justa dos embates é preocupação constante do Direito, que procura não só estabelecer normas para alcance da paz social, mas também criar uma ordem jurídica justa e acessível aos envolvidos em um conflito. A função principal do Direito na sociedade é “de coordenação dos interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar a cooperação entre pessoas e compor os conflitos que se verificarem entre seus membros”[1]. A solução de tais lides será tanto mais efetiva, rápida e igualitária quanto for a própria abertura do Direito para dar a resposta a tais inquietações na sociedade.

Assim, será aqui realizada uma análise das principais formas de solução de conflitos sob o ideal de acesso à justiça como fim a ser buscado, apreciando-se especificamente o conflito trabalhista e as contribuições das Comissões de Conciliação Prévia para a sua solução.


2. Meios de composição de conflitos

Na sociedade humana, conforme já salientado, o conflito é tido como algo a ser solucionado, pois há uma preocupação com a manutenção da harmonia e paz social, valores perturbados com a permanência de lides. Assim, a busca de soluções de tais conflitos tem sido frequentemente tratada como um tema importante  e relevante.

Nesse sentido, são apontados como métodos de solução dos conflitos a autotutela, a autocomposição e a  heterocomposição.

A autotutela, geralmente rechaçada pelo ordenamento jurídico brasileiro, é o impulso inicial de todo ser humano ao se deparar com violação a seu direito. Nesse meio de solução do conflito, apenas os envolvidos se relacionam, sendo a solução imposta por uma das partes à outra. Desta forma, a autotutela representa uma superposição de uma parte sobre a outra, pois prevalecerá o interesse de por coerção. Certamente, esse mecanismo não é o melhor para o alcance da solução do conflito, pois acaba por criar novo conflito daquele que, submetido a uma solução, fica em uma posição de desigualdade imposta e forçada, motivo pelo qual esta solução só é admitida pelo Direito Brasileiro em raras exceções, como é o caso do desforço imediato no esbulho possessório do Direito Civil.

Na autocomposição a solução continua a ser buscada pelos próprios envolvidos e pode importar em renúncia, aceitação ou transação. Renúncia e transação ocorrem quando uma das partes, por ato unilateral, se despoja de um direito ou reconhece o direito da outra. Na transação, por outro lado, há uma bilateralidade por concessões recíprocas.

Na heterocomposição um terceiro exterior ao conflito intervém para solucioná-lo, submetendo-se as partes à solução proposta, favorecida ou firmada por ele. São três as suas modalidades: a jurisdição, a arbitragem e a conciliação.

Pode-se afirmar que a jurisdição, com a transferência para um terceiro do controle e a direção na dinâmica de solução do conflito, sempre foi o meio de solução de conflito mais importante no Brasil, onde o Estado tomou para si o exercício do mecanismo, como expressão da sua própria soberania.


3. A criação das Comissões de Conciliação Prévia: inspirações.

As Comissões de Conciliação Prévia foram criadas pela Lei 9.958/2000, alterando dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, com o objetivo de criar um novo instrumento para facilitar e promover a solução de conflitos entre trabalhadores e empregadores. Foram as mesmas concebidas como mecanismos de autocomposição dos conflitos entre capital e trabalho.

Tal legislação foi concebida no interior do Tribunal Superior do Trabalho, por seus Ministros, em 1998, muito embora tenha sido formalmente encaminhada ao Congresso Nacional pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, no mesmo ano, contando com rápido trâmite legislativo para a sua aprovação, tendo sido modificada em diversos aspectos. 

Surgem com o principal objetivo de desafogar a Justiça do Trabalho da crescente quantidade de novas demandas, promovendo a solução amigável e extrajudicial dos conflitos e combatendo a cultura crescente no seio da sociedade brasileira de demandar judicialmente. Possuem caráter não-oficial ou seja: “não existe qualquer vinculação da Comissão da Conciliação Prévia com o Ministério do Trabalho e do Emprego, não estando sujeito a nenhum registro prévio para funcionamento, nem com a Justiça do Trabalho.”[2]

A preocupação com a eficiência da jurisdição diante da enxurrada de processos anuais perante a Justiça Especializada já era comentada por Bento Herculano Duarte no ano de 1998:

Não se admite que no Brasil se chegue a quase dois milhões de processos em tramitação nas ‘casas’ trabalhistas. Desde a primeira instancia até a Corte Especial os autos amontoam-se, boloram-se, tal o acúmulo processual. Os Magistrados Trabalhistas são submetidos à massacrante rotina, exaustiva e ‘estressante’, sem contudo vislumbrar resultados práticos de tão grande esforço, o que leva, inclusive, a uma incompreensão pela maioria da sociedade. Muitos dos litígios são primários e/ou de pequena monta, facilmente evitáveis em esfera extrajudicial. É, sem dúvida, o momento de se dar uma guinada na solução dos conflitos laborais pátrios, mas sem esquecermos: a Justiça do Trabalho é essencial a que o labor subordinado continue sendo extensão fundamental da dignidade humana.[3]

Desta forma, o principal valor que inspirou o legislador brasileiro para a criação das Comissões foi justamente o acesso à justiça, no seu sentido mais amplo, considerando não somente o acesso ao processo, ou o acesso ao judiciário, mas sim o acesso à própria justiça, bem maior, que deve ser alcançado por todas as partes envolvidas nos conflitos trabalhistas. Isso porque, no seu âmbito, as partes irão dialogar buscando a solução negociada do conflito, atingindo então o ideário de paz social e justiça naquele caso concreto.

A expectativa diante da criação das Comissões foi grande, como comenta Altamiro J. dos Santos:

Com certeza poderá a Comissão de Conciliação Prévia produzir extraordinária e nobre atividade na solução de controvérsia já em sua origem, oferecendo a conquista da força harmonizadora do equilíbrio entre os agentes do trabalho e do capital. Além disso, evitar-se-á uma carga dramática processual nos órgãos do Judiciário Trabalhista em todo o território nacional, atendendo até mesmo o princípio da celeridade, tão almejada entre os atores sociais da relação de emprego, e oportunizando valiosas soluções pacíficas, que atendem os mais altos e democráticos interesses de todos.[4]

O nascimento das Comissões de Conciliação Prévia, além disso, está intimamente ligado à extinção da representação classista no âmbito da Justiça do Trabalho, em 1999 por meio de Emenda Constitucional. Esse mecanismo interno do Judiciário tinha como objetivo também priorizar o diálogo e a conciliação, além de ser inspirado na concepção de representação paritária das partes envolvidas no conflito, visões transferidas ao instituto posterior.

O Relatório Geral da Justiça do Trabalho publicado pelo Tribunal Superior do Trabalho em 2007 demonstra, por seus dados estatísticos, que no ano de 1999, em todo o Brasil foram recebidas 1.877.022 novas demandas de conhecimento, sendo que em 2000 esse número reduziu-se para 1.722.541 novos processos, e em 2001 houve um leve aumento para 1.742.523 para cair novamente em 2002 para 1.614.255 novos processos recebidos na fase de conhecimento. O mesmo relatório demonstra que a quantidade de processos somente chegou a patamar próximo daquele de 1999, no ano de 2007 quando foram ajuizados 1.824.661 novos processos de conhecimento, ou seja, mesmo em 2007 a quantidade de processos não alcançou ou ultrapassou o patamar de 1999.[5]

Os dados estatísticos da mesma pesquisa também demonstram um decréscimo do percentual de processos conciliados. Em 1999, 46,9% dos processos terminavam com tal solução, tendo tal número sofrido seguidas reduções em 2000, quando somente em 45,1% das demandas houve conciliação, em 2001 esse número ficou no patamar de 44,8% e finalmente em 2007 em 43,9%.

Os números estatísticos demonstram, portanto, que a quantidade de processos novos ajuizados perante a Justiça do Trabalho sofreu um decréscimo na mesma época em que concebidas e colocadas em funcionamento as Comissões de Conciliação Prévia, mostrando que, talvez, possa ter havido alguma contribuição desse novo mecanismo na diminuição de novas demandas. Não se pode, entretanto, afirmar ter sido este o único motivo para tanto, já que o próprio aumento ou diminuição da participação do emprego formal da população economicamente ativa em tais anos, por exemplo, também pode ter contribuído para a alteração dos dados, além de outras circunstâncias sociais e econômicas.

Em relação à conciliação, seu decréscimo percentual também sofreu impacto do surgimento da Comissão de Conciliação Prévia, pois ao mesmo tempo em que deixaram de ser ajuizadas demandas solucionadas extrajudicialmente e mais simples, foram propostas somente demandas que não alcançaram tal resultado ou nas quais essa conciliação foi questionada, restando ao Judiciário, portanto, causas de maior litigiosidade e complexidade.


4. Estrutura e funcionamento das Comissões de Conciliação Prévia.

As alterações trazidas pela Lei n° 9.958/00 importaram na inserção dos artigos 625-A até H na CLT criando-se o Título VI A: Das Comissões de Conciliação Prévia.  De logo, enuncia-se que esse mecanismo de negociação destina-se essencialmente a tentar conciliar os conflitos individuais do trabalho.  É de se esclarecer que a Comissão não julga a causa, mas somente empenha-se em compor amigavelmente o conflito, criando um ambiente de diálogo leal e objetivo para alcance de uma solução negociada, como nos ensina José Augusto Rodrigues Pinto e Rodolfo Pamplona:

A leitura dos novos dispositivos da CLT sobre a matéria, com toda certeza, singulariza a sua missão em conciliar, nada mais do que isso (arts. 625-De, § 2º, e 625 -F). A singularização é muito importante porque exclui do órgão toda liberdade para formular soluções, atribuição que avançaria seu papel para a mediação, e todo poder de ditar solução, papel de conteúdo jurisdicional privado, que identifica a arbitragem.[6]

A representação paritária, com participação de representantes dos empregados e dos empregadores foi prevista como um de seus requisitos para funcionamento, com vistas justamente à preservar o diálogo entre os envolvidos.

Em relação ao âmbito de funcionamento, poderia a legislação ter privilegiado o papel dos sindicatos no particular, atribuindo-lhe a exclusividade na instalação e funcionamento de tais Comissões. Todavia, permitiu a sua criação também dentro do âmbito da empresa ou mesmo grupo de empresas, visando democratizar sua criação e aproximá-la dos próprios protagonistas do conflito.

O legislador, apesar disso, não se descurou completamente da importância da valorização da negociação coletiva e das vantagens do debate, pelos trabalhadores, no âmbito sindical, sobre a necessidade, utilidade e vantagens da instalação da Comissão, ao prever que somente por acordo ou convenção coletiva poderia ser a mesma instalada nesse caso.  Por esse motivo, as Comissões são mecanismos não obrigatórios, ou seja, a legislação não impôs a sua criação, mas somente facultou-a, dando aos trabalhadores, nesse caso, a oportunidade de voluntariamente aderir ou não à tal instrumento. A criação deste novo mecanismo de promoção da paz social e do acesso à justiça, portanto, dá-se a partir da manifestação dos trabalhadores, diretamente ou por intermédio de seus representantes.  Discorre Leila Lobato:

Assim, a composição e funcionamento serão frutos da autonomia coletiva da vontade, pois os instrumentos coletivos de trabalho, mais precisamente a  convenção ou acordo coletivo, devem estabelecer o numero de conciliadores, a possibilidade ou não da garantia de emprego, o afastamento ou não do conciliador das atividades normais na empresa ou outras regras não previstas  para as Comissões no âmbito das empresas (art. 625- C da CLT).[7]

O procedimento no âmbito de tais órgãos, uma vez instalados é simples e destituído de grandes formalidades. Sucintamente, uma vez instalada a Comissão de Conciliação Prévia, esta poderá receber as suas demandas oralmente ou por escrito, devendo comunicar a parte contrária acerca da sua existência. Feito isso, as partes serão convocadas para uma sessão de tentativa de conciliação no prazo máximo e escorreito de 10 dias, na qual, na presença de representantes de empregados e empregadores, será aberto o diálogo para alcance da conciliação.

Há, de fato, dispositivos na legislação que revelam preocupações em reduzir ao mínimo eventuais prejuízos decorrentes da submissão da demanda à apreciação da comissão, como a suspensão da prescrição e a emissão da certidão de conciliação frustrada acaso a sessão não tenha sido realizada no prazo legal.

A imperatividade de submissão de todas as demandas previamente à propositura da ação buscou atacar justamente um dos principais obstáculos à democratização do acesso à justiça: a cultura da demanda judicial. Assim, as partes envolvidas são compelidas a encontrar-se antes de propor a demanda, buscando uma solução para o conflito no qual estão envolvidas, sendo mesmo que forçadas a sentar frente a frente para ao menos, tentar alcançar a conciliação.


5. O acesso à justiça como direito fundamental.

Inicialmente se justifica a opção pela terminologia direitos fundamentais e não direitos humanos no presente trabalho, na esteira do constituinte brasileiro. Isso porque se adota aqui o critério do plano ou esfera de positivação para distinguir essas duas figuras, segundo o qual: direitos fundamentais são considerados como aquelas posições jurídicas expressamente positivadas ou reconhecidas no âmbito de uma ordem jurídica constitucional, ao contrário dos direitos humanos que possuem reconhecimento e positivação no âmbito internacional. Desta forma, opta-se pelo enfrentamento da questão dos direitos fundamentais no âmbito da ordem jurídica constitucional brasileira.

Entretanto, a ordem constitucional pátria ao consagrar direitos fundamentais no texto constitucional o faz junto com a enumeração de diversos outros direitos cuja fundamentalidade não se evidencia. Assim, há de se identificar, dentro de uma realidade constitucional complexa, quais direitos podem ser considerados fundamentais.

Nesse passo, os direitos fundamentais devem ser entendidos como aqueles cujo conteúdo se mostra relevante e essencial em uma dada realidade constitucional. Isso quer dizer que a qualidade de fundamental é estabelecida primordialmente pelo próprio constituinte, que elege valores considerados essenciais e cuja proteção diferenciada se mostra necessária. A esses bens jurídicos relevantes e essenciais o constituinte atribui uma força jurídica especial em relação às demais normas, prevendo-os de forma implítica ou explícita.

Isso porque há direitos fundamentais que não se encontram expressamente positivados no texto da Constituição brasileira, mas, nem por isso, por sua essencialidade, deixam de ser considerados fundamentais. São os direitos fundamentais positivados em tratados internacionais que passam a integrar na ordem jurídica brasileira como normas constitucionais, a teor do artigo 5º, parágrafo terceiro da CF/88.

Como se vê, a qualidade de fundamental atribuída a um dado direito não goza de uma perspectiva universal e atemporal; os direitos fundamentais enquanto valores essenciais do homem desenvolvem-se ao longo do tempo e em conjunto com a própria noção de Estado, não sendo possível seu estudo a não ser a partir de um sistema jurídico específico e considerando ainda a sua evolução histórica. Portanto, os bens jurídicos essenciais necessários à sobrevivência do homem são culturalmente construídos.

Comenta tal circunstância Daniel Sarmento, salientando que “os direitos fundamentais não constituem entidades etéreas, metafísicas, que sobrepairam o mundo real. Pelo contrário, são realidades históricas, que resultam de lutas e batalhas travadas no tempo, em prol da afirmação da dignidade humana”[8].

Dessa forma, a construção dos direitos fundamentais está intimamente relacionada às noções do Estado Liberal e Estado Social, no mundo ocidental. Isso porque a evolução do conteúdo, eficácia e efetivação dos direitos fundamentais tem sofrido transformações que, regra geral, acabam por coincidir com as alterações ocorridas na forma de tratamento do próprio poder estatal nas sociedades.

Essa perspectiva histórica é comentada por Ingo Wolfgang Sarlet, segundo o qual “há que dar razão aos que ponderam ser a história dos direitos fundamentais, de certa forma (e, em parte, poderíamos acrescentar), também a história da limitação do poder”[9], ou seja, os direitos fundamentais guardam íntima relação com a evolução histórica da delimitação da soberania estatal.

A partir deste aspecto histórico, tem-se que no Estado Liberal a lógica que imperava era a da limitação do Poder Estatal ao qual cabia assegurar o desenvolvimento livre da sociedade, a partir de uma intervenção mínima. Vigorava a premissa de que o Estado deveria ausentar-se de interferir nas relações entre particulares; havia uma preocupação intensa em limitar rigorosamente a ação estatal cuja intervenção era considerada negativa. É a fase de reconhecimento dos direitos fundamentais como direitos de defesa, oponíveis ao Estado, e que impõem uma conduta omissiva, ou de não intervenção estatal na esfera de autonomia individual. Nesta fase inicial surgem os direitos fundamentais de liberdade, vida e igualdade.

Já no Estado Social, construído a partir da falência do modelo anterior, o Poder Estatal passa a ocupar um espaço maior de intervenção na sociedade, adotando uma postura comissiva com o objetivo de alcançar o buscado bem-estar social. As prestações estatais, portanto, são então valorizadas. Dá-se, assim, o surgimento dos direitos fundamentais a prestações, ou positivos.

Toda essa construção histórica demonstra que os direitos fundamentais possuem, regra geral, assento formal no texto constitucional e acabam por ser caracterizados como direitos humanos expressamente positivados na Constituição de um determinado Estado, além de resgatarem o valor da pessoa humana.

Dessa forma, ao lado desse aspecto histórico, que grande influência possui na construção de um conceito acerca dos direitos fundamentais, acopla-se a noção de que é preciso se reconhecer a essência de tais direitos como relacionados à própria noção de dignidade da pessoa humana. Direitos fundamentais são valores que se relacionam com as noções de liberdade, igualdade e solidariedade e, portanto, não só o aspecto formal da previsão constitucional informa a sua conceituação, mas também o seu conteúdo material.

Flávia Piovesan, ao analisar os precedentes históricos do processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos, conceitua:

Defende este estudo a historicidade dos direitos humanos, na medida em que estes não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos são fruto de um espaço simbólico de luta social, na busca por dignidade humana, o que compõe um construído axiológico emancipatório.[10]

Isso significa que além do assento constitucional, os direitos fundamentais se relacionam com um padrão justo e digno de vida, reconhecidos ao todos os homens.

Conjugando os diferentes aspectos da conceituação dos direitos fundamentais, Dirley da Cunha Junior esclarece:

[...] os direitos fundamentais são todas aquelas posições jurídicas favoráveis às pessoas que explicitam, direta ou indiretamente, o princípio da dignidade humana, que se encontram reconhecidas no texto da Constituição formal (fundamentalidade formal) ou que, por seu conteúdo e importância, são admitidas e equiparadas, pela própria Constituição, aos direitos que esta formalmente reconhece, embora dela não façam parte (fundamentalidade material). Esse conceito, entretanto, ainda fica a depender da ordem constitucional concreta de cada Estado, uma vez que, o que é fundamental para certo Estado, pode não ser para outro.[11]

Nesse passo, inspirado na doutrina de Robert Alexy, para Ingo Wolfgang Sarlet, tratando da circunstância de que os direitos fundamentais representam um rol em constante transformação, com novas inclusões de direitos, explana:

Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento da Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo). [12]

A clássica doutrina de José Afonso da Silva, também contribui com a conceituação, ao optar pela expressão direitos fundamentais do homem que seriam “situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana”.[13]

De tais noções, portanto, se podem extrair os aspectos material e formal dos direitos fundamentais, uma vez que essa categoria de direitos representam um catálogo aberto, não se restringindo somente àqueles expressamente previstos no texto constitucional.

Por fim, destaca-se a contribuição de Arion Sayão Romita para quem:

[...] pode-se definir direitos fundamentais como os que, em dado momento histórico, fundados no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, asseguram a cada homem as garantias de liberdade, igualdade, solidariedade, cidadania e justiça. Este é o núcleo essencial da noção de direitos fundamentais, aquilo que identifica a fundamentalidade dos direitos. Poderiam ser acrescentadas as notas acidentais de exigência do respeito a essas garantias por parte dos demais homens, dos grupos e do Estado e bem assim a possibilidade de postular a efetiva proteção do Estado em caso de ofensa.[14]

Os direitos fundamentais, portanto, são destinados à proteção do ser humano, à promoção da vida digna, impondo-se a todos, não só a Estado, mas também aos particulares o dever de realizar tais valores. Revelam uma construção histórica e, portanto, não representam um conjunto de posições jurídicas estanque, mas sim em constante evolução.

O acesso à justiça é concebido, sob esta perspectiva de essencialidade e dignidade, como um direito fundamental. Aponta-se, inclusive que o acesso à justiça é um direito fundamental que permite o próprio exercício de todos os outros direitos fundamentais, afinal, acaso violados, todos os demais direitos fundamentais não se efetivarão sem a necessária busca pela sua realização. Sob essa concepção “buscar a justiça não é necessariamente procurar o Judiciário, mas encontrar soluções para os conflitos que estao por aí amiúde”.[15]

Comenta acerca da fundamentalidade de tal direito o Professor Paulo César Santos Bezerra, para quem este é também  um direito natural:

Quando se pensa a justiça, não se está apenas querendo observar o aspecto formal da justiça, nem seu caráter processual. Argumenta-se com um valor que antecede a lei e o processo. O acesso à justiça pois, nessa perspectiva é um direito natural, um valor inerente ao homem, por sua própria natureza. A sede de justiça, que angustia o ser humano, tem raízes fincadas na teoria do direito natural. Como direito, o acesso à justiça é, sem dúvida, um direito natural. Como direito, o acesso à proteção judicial, é um direito formal do indivíduo de propor ou contestar uma ação. Nesse sentido é um direito fundamental. Naquele antecede o Estado, esse imbrica-se fundamentalmente com o surgimento do Estado. (...)[16]

Desta forma, a própria noção de acesso à justiça não pode ser dissociada dos ideais de liberdade e igualdade, bem como da dignidade da pessoa humana.


6. A Comissão de Conciliação Prévia como mecanismo de acesso à justiça.

A questão do acesso à justiça como aqui concebido ultrapassa o ideário de acesso ao Judiciário, concepção ligada à dependência da solução estatal dos conflitos. As Comissões surgem justamente para proporcionar aos envolvidos no conflito que alcancem a justiça, apliquem do Direito e atinjam uma solução pacificadora para aquela demanda. Nesse sentido:

O acesso aos direitos depende do funcionamento do Estado e da Sociedade Civil organizada. Assim, garantir o acesso aos direitos é assegurar que os cidadãos, especialmente os socialmente mais vulneráveis, conheçam seus direitos, não se conformem frente a sua lesão e tenham condições de vencer os custos da oportunidade das barreiras econômicas, sociais e culturais para aceder à entidade que consideram mais adequada para a solução do litígio, seja uma terceira parte da comunidade, uma instancia formal não judicial ou os Tribunais Judiciais.[17]

A criação deste mecanismo extrajudicial, portanto, pretendeu transferir também à sociedade o seu papel de harmonização da vida em coletividade; é dizer, conferiu aos atores do conflito o protagonismo na sua solução. O próprio Estado busca, ao conclamar os envolvidos, a solução do conflito o que se revela  como “um interesse público ostensivo, pois o dissídio trabalhista se caracteriza por uma intensa carga de tensão social, potenciada pela própria existência da ação.”[18]

Essa participação dos envolvidos no conflito para a busca da solução não é estranha ao Direito do Trabalho, pois sua presença já se mostrava fundamental nas relações coletivas anteriormente. Isso porque nos conflitos coletivos o Estado tem retraído a sua participação com a conseqüente valorização das negociações coletivas. Comenta João de Lima Teixeira Filho:

Afortunadamente, essa onipresença estatal do passado tem se esvanecido de forma progressiva, em especial a partir da Constituição Federal de 1988. À medida que a negociação coletiva se firma como o fórum mais qualificado para a composição dos conflitos trabalhistas, a intervenção estatal, num regime democrático e participativo (Preâmbulo da CF), estanca para, em seguida, tender à proclividade, proporcionalmente ao avanço do processo autocompositivo.[19]

Essa concepção mais ampla do acesso à justiça encontra inspiração na obra do jurista Mauro Cappelletti, para quem se podem identificar três ondas renovatórias de acesso à justiça e igualdade, ou seja, três movimentos de reforma para ampliação do acesso à justiça. A primeira onda seria a assistência judiciária aos pobres, ou seja, visou atacar o problema econômico do custo associado ao acesso à Justiça, com o custeio pelo Estado dos gastos associados à assistência dos advogados. O segundo movimento de reforma proposto pela doutrina cappelletiana seria a coletivização das demandas, tutelando interesses transindividuais. A terceira onda, e mais importante para o nosso estudo privilegia justamente o diálogo e visa combater a excessiva judicialização dos conflitos. Comenta Fernando de Castro Fontainha essa terceira onda:

A justiça não mais é de monopólio estatal. E de fato nunca fora. A terceira onda nos faz distinguir exatamente que não somente através da jurisdição – esta, de monopólio estatal – se realiza a justiça. O Direito e os juristas hão de reconhecer este presente fenômeno simplesmente é desdobramento da realidade, e que a maioria dos litígios existentes no seio da sociedade não se resolvem nos tribunais.[20]

Sob a mesma inspiração, Ricardo Castilho nos ensina que há hoje uma significativa mudança na concepção acerca do acesso à justiça, que deixa de ser simplesmente concebida como acesso à jurisdição, para ampliar esse significado pela busca por uma ordem jurídica justa, com acesso igualitário, geral e efetivo.[21]

As Comissões, portanto atuam como complemento à atividade jurisdicional, sendo um mecanismo sem custos para o trabalhador e de custo reduzido aos empregadores, que conta com um célere processamento na busca por uma solução, alcançando, com isso o acesso à justiça, com a satisfação dos litigantes.

A par deste acesso, o acordo firmado na Comissão certamente conduz a um sentimento de satisfação das partes, que reconciliadas, atingem um maior contentamento comparativamente ao exercício da jurisdição. Além disso, a possibilidade de cumprimento espontâneo da solução construída pelo litigante devedor será maior caso esse se sinta parte da solução e tenha firmado seu compromisso pessoal em obedecê-la.

Sabe-se que a própria propositura da demanda perante o Poder Judiciário leva ao acirramento de ânimos entre as partes, que passam a ver-se enquanto inimigas, afastando-as de um entendimento direto e amigável.


7. Críticas ao modelo das Comissões de Conciliação Prévia

Apesar do modelo concebido quando da criação das Comissões de Conciliação Prévia ter primado justamente pela facilidade de acesso à justiça, não faltaram críticas negativas ao mecanismo, desde o seu nascimento, passando pela sua atuação, apontando-se principalmente os seus desvirtuamentos decorrente de práticas abusivas. Assim, pode apontar-se como principais problemas das Comissões tanto questões relativas à sua regulamentação normativa quanto razões ligadas ao cotidiano de sua atuação.

As críticas dirigidas à própria concepção das Comissões ligam-se principalmente à noção de hipossuficiência do empregado revelada no momento da tentativa de conciliação. Esta fragilidade do empregado teria sido deixada de lado quando da concepção das Comissões, segundo defendem os críticos, posição com  a qual não se concorda. Isso porque o estabelecimento da composição paritária, da representação dos empregados mediante escolha democrática de seus pares, bem como a garantia de emprego de tais representantes revela justamente esta preocupação da legislação em manter, ao lado do empregado, um representante de seu interesse. Ademais, como já dito, à Comissão não cabe investigar, realizar a produção de provas e dizer o Direito, de modo que ao tentar aproximar as partes de um acordo não realiza qualquer atividade tendente em favor de uma das partes somente.

Outra crítica reiterada ao mecanismo das Comissões é justamente a obrigatoriedade de submissão de qualquer demanda à sua prévia tentativa de conciliação, sendo permitido, somente após isso, o ajuizamento da demanda, norma que seria inconstitucional face ao art. 5º da CF/88, inciso XXXV, que trata da inafastabilidade do Poder Judiciário.

Sobre a questão, em 2009, o Supremo Tribunal Federal apreciou duas medidas cautelares em ações diretas de inconstitucionalidade propostas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e pelo Partido Comunista do Brasil, Partido Socialista Brasileiro, Partido dos Trabalhadores e o Partido Democrático Trabalhista, que questionavam o artigo 625 – D introduzido pela lei 9.958/2000, para lhe dar, por maioria, interpretação conforme à Constituição e afastar a obrigatoriedade de submissão prévia às Comissões das demandas trabalhistas.

Entendeu-se que o mecanismo criava obstáculo condicionante à apreciação da demanda pelo Poder Judiciário e principalmente que a norma questionada violava a liberdade de submissão de lides pelos cidadãos a tal poder. Na ocasião a questão foi também apreciada sob o viés da desnecessidade de esgotamento da instância administrativa, nos termos do texto constitucional. Entendeu-se, portanto haver injustificado obstáculo no acesso à justiça.

Como exposto, já firmado o entendimento que acesso à justiça não se confunde necessariamente com acesso ao Judiciário. As Comissões foram concebidas, segundo aqui se defende, justamente como um mecanismo de acesso à justiça, considerada esta em seu sentido mais amplo e abrangente, tendo havido uma inversão de tal argumento justamente para considerar a inconstitucionalidade do artigo mencionado.

A mera exigência de prévio encontro para tentativa de negociação de uma conciliação, dando às partes a oportunidade de solucionar um conflito criado no âmbito da sua própria relação revelou o intuito de democratizar o diálogo. Não se pode afirmar que o acesso à justiça signifique que toda qualquer demanda deva ser submetida à solução jurisdicional, sob pena de dar-se precedência ao Estado na solução dos conflitos ao mesmo tempo em que se sabe que o modelo de judicialização de demandas cria inúmeros outros problemas na sociedade. Exemplificadamente citem-se os custos excessivos de manutenção de um aparato com este fim, cada vez mais numeroso, mas, mais importante ainda do que tal argumento econômico, os custos sociais de um processo judicial burocrático, formalista, lento e, muita vezes ineficaz.

As Comissões não representam sequer um retardamento excessivo na propositura da demanda, pois, como já exposto, estas devem propor a conciliação no prazo exíguo de 10 dias. A praxe judicial demonstra que são raros aqueles casos em que o trabalhador ingressa em Juízo em prazo tão curto após o surgimento do conflito, por exemplo, com a sua despedida.

De fato, a decisão liminar do Supremo Tribunal Federal enfraqueceu parcialmente o instituto da conciliação extrajudicial, pois, as partes agora não precisam mais obrigatoriamente se encontrar para amigavelmente tentar conciliar, encontrando-se somente após a propositura da demanda, onde os ânimos acirrados muitas vezes dificultam e impedem o alcance da solução negociada da lide.

A visão estreita do acesso à justiça, como acesso ao Judiciário impede a observação das vantagens psicológicas e sociais que podem advir da conciliação extrajudicial, pois o interessado vincula-se pessoalmente à solução da demanda, contribuindo para a sua construção, o que, sem dúvida, jamais pode ser alcançado com a imposição da decisão por um terceiro, caso do exercício da jurisdição.

Além disso, as partes não são obrigadas a conciliar, não estão sujeitas a qualquer penalidade se isso não ocorrer, nem sofrem prejuízos ao comparecer a uma sessão perante a Comissão de Conciliação Prévia. O trabalhador, ao submeter a sua demanda, não está obrigado sequer a efetivamente negociar ou propor uma solução, muito menos a se sujeitar a uma conciliação desfavorável.

O que o STF criou, com a decisão mencionada, foi uma opção aos envolvidos numa demanda trabalhista que não mais se obrigam necessariamente à técnica extrajudicial. Essa alternativa de ingresso da demanda perante as Comissões foi, portanto, preservada cabendo hoje ao envolvido no conflito submeter ou não a sua lide a tal negociação. Não houve declaração de inconstitucionalidade, mas sim, interpretação conforme à Constituição, preservando a norma legal e somente vedando interpretações dissonantes daquela estabelecida no julgamento liminar.

Esse posicionamento reconheceu indiretamente que a tentativa de mudança radical na cultura brasileira de judicialização dos conflitos tende ao fracasso. A imposição acabou criando verdadeira aversão ao mecanismo, duramente criticado até mesmo por sindicatos de trabalhadores. A mudança, como comenta Renato de Magalhães Dantas Neto para guardar maior efetividade na sociedade, não pode ser imposta:

Portanto, o primeiro passo para a conquista de uma mudança cultural, com a finalidade de fazer com que a sociedade tenha um determinado comportamento almejando, inclusive com a legitimação da conduta, decorre de uma legislação que contenha um caráter promocional, bem ao contrário do que aconteceu com a Lei 9.958/2000, a qual, no seu aspecto global, foi traduzida pela população como uma imposição ou obstaculização ao acesso ao Judiciário.[22]

Nesse passo, o STF deu vazão ao sentimento de aversão dos envolvidos em um conflito individual na relação de trabalho à idéia de submeter-se extrajudicialmente a uma sessão de negociação obrigatória, mantendo o instituto como uma opção, ou seja, valorizando a submissão voluntária ao mecanismo.

Ao lado das críticas às próprias normas da CLT, crescem denúncias acerca da atuação abusiva das Comissões de Conciliação Prévia. As práticas apontadas vão desde a cobrança de taxas do obreiro, como a criação de um ambiente com cenário oficial com vistas a ludibriar trabalhadores incautos que julgam estar perante um órgão integrante do próprio Poder Judiciário, as sonegações de contribuições previdenciárias e de imposto de renda e a homologação de transações de direitos incontroversos para alcance apenas da eficácia liberatória geral a que se refere o art. 625-E da CLT.

De fato, a realidade é frutífera e vai além daquele ambiente imaginado pelo legislador, dando azo a fraudes e condutas abusivas lamentáveis e que devem ser combatidas a todo custo. A permanecer tais distorções jamais serão alcançados os objetivos buscados de alcance de ordem jurídica justa.

As distorções, entretanto, podem e devem ser combatidas e eliminadas. Com essa preocupação, no ano de 2002, o Ministério do Trabalho e Emprego editou a Portaria n. 329 que proibiu a transação referente ao FGTS e à multa de 40%, bem como limitou a conciliação a direitos ou parcelas controversas.

Outro ponto fundamental de tal Portaria foi o de impedir expressamente que as Comissões atuem como órgãos de assistência às rescisões contratuais, afinal, não se destinam a tal escopo. Além disso, ficou facultado à parte que comparece à Comissão ser acompanhada de pessoa de sua confiança e escolha ao comparecer à sessão.

Junto a isso, o próprio Tribunal Superior do Trabalho firmou um compromisso, em conjunto com o Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, CGT, Força Sindical e diversas outros entes representativos de trabalhadores e empregadores prevendo basicamente a capacitação dos conciliadores, especialmente no que diz respeito ao esclarecimento das partes quanto à facultatividade da transação proposta e a não integração da Comissão ao Poder Judiciário; a gratuidade absoluta para os trabalhadores; o encaminhamento de denúncias de práticas desviantes ao Ministério Público do Trabalho, dentre outras medidas.

Os ataques às Comissões de Conciliação Prévia foram tantos e tão incisivos que se chegou mesmo a cogitar a sua própria extinção. A medida radical encontrou ressonância principalmente entre aqueles que ainda acreditam que os conflitos devem ser solucionados somente por meio da jurisdição e que qualquer outra forma de solução equivale à negação do acesso à justiça.

Vale aqui, em contraponto a tal posicionamento, a opinião de Georgenor de Sousa Franco Filho:

Falar em extinguir as Comissões de Conciliação Prévia, criadas pela Lei n. 9.958, de 12 de janeiro de 2000, é, no meu entendimento, um retrocesso. Muito antes de extingui-las, é preciso criar formas para o seu fortalecimento e meios para o seu adequado funcionamento. A concepção dessas Comissões foi boa. Sua implementação, no entanto, tem sido, no geral, equivocada. Ao invés de promoverem a composição dos conflitos em seus diversos âmbitos de atuação, algumas têm se prestado mais como fonte de arrecadação, sobretudo para entidades sindicais que não se encontram devidamente engajadas no sentido de promover a melhoria dos integrantes da respectiva categoria.

As formas extrajudiciais para a solução dos conflitos, quer coletivos, quer individuais, heterônoma (como a arbitragem) ou autonomamente existentes (como a conciliação direta), são os meios mais indicados para encontrar uma resposta pacificadora. Os próprios interlocutores buscam os meios que precisam, eliminam as divergências existentes e encontram a paz que deve existir entre ambos.[23]

As Comissões, por serem um importante instrumento de solução extrajudicial dos conflitos devem ser, portanto, fortalecidas. Para isso, a valorização da participação dos sindicatos de classe é medida que se impõe.

O já combalido movimento sindical no ordenamento brasileiro, sofreu, para Márcio Túlio Viana, novo golpe de enfraquecimento com a criação das Comissões. Esse autor, portanto, também revela a sua preocupação com o fortalecimento deste movimento:

Como se sabe, o objetivo básico dos sindicatos, historicamente, é reduzir as taxas de exploração. Para isso, têm eles lutado em duas frentes principais. De um lado, criando a norma, seja diretamente, nas convenções e nos acordos coletivos, seja indiretamente, pressionando o legislador. De outro, aumentando a sua efetividade.

Pois bem. As comissões podem vir a se tornar uma espécie de Cavalo de Tróia. Ao invés de servirem aos sindicatos, abrindo-lhes um novo espaço político, podem deles se servir para legitimar a desconstrução individual de direitos conquistados coletivamente. Com isso, os próprios sindicatos estarão se deslegitimando e se desconstruindo.[24]

O mecanismo inaugurado pelas Comissões, inédito em sua forma de solução extrajudicial para os dissídios individuais no Brasil não deve ser abandonado diante dos problemas que surgiram no seu cotidiano. As desvirtuações que se constatam servem para o aperfeiçoamento do mecanismo. O combate a tais fraudes deve ser realizado não só pela fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, como também pelo Ministério Público do Trabalho, órgão sempre vigilante e aberto a denúncias, com o ajuizamento de ações civis públicas nas quais até mesmo a dissolução judicial das Comissões pode vir a ser pleiteada.


8. Conclusão

Dentre os mecanismos atualmente disponíveis para a solução de conflitos entre capital e trabalho há um movimento pela valorização da negociação em contraponto ao exercício da jurisdição.

Essa concepção surge não só por uma necessidade de emprestar ao ordenamento uma maior efetividade, mas principalmente na necessidade de aproximar a sociedade brasileira do acesso à justiça. Nesse ponto, é importante salientar que, se o objetivo a ser alcançado é a paz social, o sistema deve ser mais aberto para democratizar o seu acesso.

O acesso à justiça revela-se como um direito fundamental sem o qual nenhum dos demais direitos, fundamentais ou não, podem ser efetivamente exercidos. Entretanto, efetividade não se alcança somente pela coerção, pela força, pela imposição, mas também pelo diálogo, pelo entendimento das partes envolvidas que passam a ser parte também da solução a ser buscada, com ela contribuindo ativamente.

Nesse passo, acesso à justiça não significa acesso ao processo ou acesso à jurisdição. Aliás, uma das muitas críticas ao modelo da solução heterônoma dos conflitos como mecanismo principal de solução diz respeito à multiplicação de conflitos dentro da sociedade pela adoção de tal mecanismo, com o afastamento entre as partes que criam novas animosidades.

Com essa inspiração acredita-se que as Comissões de Conciliação Prévia são um mecanismo que pode contribuir muito para o alcance da harmonia e da paz social, apesar de todos os problemas que o mecanismo vem apresentado. O próprio ordenamento, por outro lado, já prevê mecanismos efetivos de controle, não sendo justificável o abandono ou a extinção do modelo.


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Notas

[1] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p.19.

[2] OLIVEIRA, Francisco Antonio de. O processo na justiça do trabalho. 5 ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 364/365

[3]  DUARTE, Bento Herculano.  O papel das comissões bilaterais. In: FRANCO FILHO, Georgenor de Souza. (Coord.) Curso de Direito Coletivo do Trabalho. Estudos em homenagem ao Ministro Orlando Teixeira da Costa. São Paulo: LTr, 1998, p. 227.

[4] SANTOS, Altarmiro J. dos. Comissão de Conciliação Prévia: conviviologia jurídica & harmonia social. São Paulo: Ltr, 2001, p. 190.

[5] BRASIL. Relatório Geral da Justiça do Trabalho: dados estatísticos. Brasília: TST, 2007, p. 363.

[6] PINTO, José Augusto Rodrigues; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual da conciliação preventiva e do procedimento sumaríssimo trabalhista. São Paulo: Ltr, 2001, p. .96

[7] LOBATO, Leila Regina Corado. Comissão de conciliação prévia: objetivos do legislador ao criar a nova modalidade de solução dos conflitos trabalhistas e principais irregularidades na sua atuação. 1 ed. Brasília, 2005,p.28.

[8] SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 18/19.

[9] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 36.

[10] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 10 ed. rev. e atual. São Paulo. Saraiva, 2009, p.112-113

[11] CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle judicial das omissões do poder público: em busca de uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da constituição. São Paulo: Saraiva,  2004, p. 155.

[12] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. re. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009,  p. 77

[13] SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22ª ed. ver. atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 178.

[14] ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 3. ed. rev. e aumentada. São Paulo: LTr, 2009, p. 51

[15] FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa Franco. Ética, Direito &Justiça. São Paulo: LTr, 2004, p. 159.

[16]  BEZERRA, Paulo Cesar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do direito. 2. ed, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 122

[17] BEZERRA, Paulo César Santos. A produção do Direito no Brasil: a dissociação entre direito e realidade social e o direito de Acesso à Justiça. Bahia: Editora da UESC, 2008, p.203

[18] PINTO, José Augusto Rodrigues. Processo trabalhista de conhecimento. São Paulo: LTr, 2005,  p. 74

[19] TEIXEIRA FILHO, João de Lima. A arbitragem e a solução dos conflitos coletivos de trabalho. In: FRANCO FILHO, Georgenor de Souza. (Coord.) Curso de Direito Coletivo do Trabalho. Estudos em homenagem ao Ministro Orlando Teixeira da Costa. São Paulo: LTr, 1998, p. 327.

[20] FONTAINHA, Fernando de Castro. Acesso à justiça: da contribuição de Mauro Cappelletti à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009, p.77

[21] CASTILHO,  Ricardo. Acesso à justiça: tutela coletiva de direitos pelo Ministério Público: uma nova visão. São Paulo: Atlas, 2006, p. 14.

[22] DANTAS NETO, Renato de Magalhães. Comissões de Conciliação Prévia: o reverso de uma solução extrajudicial de conflito. Revista Justiça do Trabalho, Porto Alegre: HS Editora, ano 27, n° 318, p. 64-86, junho de 2010

[23] Idem, p. 120.

[24] VIANA, Márcio Túlio. A onda precarizante, as comissões de conciliação prévia e a nova Portaria do Ministério do Trabalho. Revista do Ministério Públco do Trabalho PRT 3ª Região, Belo Horizonte: v. 4, p 137, 2003.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Priscila Cunha Lima de. Comissões de conciliação prévia e acesso à justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3546, 17 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23936. Acesso em: 8 maio 2024.