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Coisa julgada e inconstitucionalidade

Coisa julgada e inconstitucionalidade

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Análise da aplicação da autoridade da coisa julgada às decisões de fundamento inconstitucional.

Resumo: Trata do instituto da coisa julgada relacionado à inconstitucionalidade de normas jurídicas, em geral, e de decisões judiciais, em particular. Parte de uma breve análise da aplicação da autoridade da coisa julgada às decisões prolatadas no exercício do controle de constitucionalidade, pela via difusa e pela via concentrada, por parte do Poder Judiciário. Analisa questão da aplicação da autoridade da coisa julgada às decisões de fundamento inconstitucional. Procura relacionar a natureza da sentença de fundamento inconstitucional e a possibilidade de modulação dos efeitos da sentença prolatada no exercício do controle concentrado de constitucionalidade.

Palavras-chave: Coisa Julgada. Controle de Constitucionalidade. Norma Inconstitucional.


1 INTRODUÇÃO

As características da aplicação da coisa julgada, especificamente em relação às decisões que tratam do controle de constitucionalidade, no Brasil, assim como a questão da denominada “coisa julgada inconstitucional”, constituem tema que merece destacada atenção, por parte dos estudiosos do Direito, por conta de suas evidentes implicações teóricas e práticas.

Neste resumido estudo, procurar-se-á analisar algumas distinções entre a aplicação da autoridade da coisa julgada nas decisões por meio das quais o Poder Judiciário exerce o controle de constitucionalidade pela via difusa e pela via concentrada.

A seguir, tratar-se-á da questão da denominada “coisa julgada inconstitucional”, procurando-se demonstrar que, na realidade, é uma sentença de fundamento inconstitucional que transita em julgado, e não a própria coisa julgada que tem, em geral, contornos inconstitucionais.

Neste tópico, investigar-se-á a natureza jurídica das normas inconstitucionais, em geral, e das decisões judiciais, em particular, procurando-se estabelecer um paralelo entre tal natureza e a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão que pronuncia a inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica, pela via concentrada.

Evidentemente, inclusive em virtude dos estreitos limites do estudo que ora se apresenta[1] e diante da vastidão e profundidade do tema por ele tratado, é necessário esclarecer, desde o início, que não se tem quaisquer pretensões exaustivas, nem se pretende colocar termo às relevantes controvérsias que serão inevitavelmente referidas.

O escopo, antes, é chamar a atenção para a existência, ainda, de uma série de relevantes questões ligadas às relações entre o instituto da coisa julgada e a inconstitucionalidade de normas jurídicas, o que revela vasto campo para o trabalho daqueles que se dedicam ao estudo e construção da Ciência do Direito.

2 COISA JULGADA NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Como é por demais sabido, há, no Brasil, duas espécies de controle de constitucionalidade: a concentrada e a difusa.[2]

Tanto os magistrados, em geral, têm o “poder” de declarar, com eficácia intra pars, a inconstitucionalidade de atos normativos, nos casos concretos que são levados à sua apreciação, no chamado “controle difuso”; quanto o Supremo Tribunal Federal, em particular, tem a possibilidade de pronunciar a inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes, no denominado “controle concentrado”.

Por terem características fundamentalmente diversas, é possível intuir que a coisa julgada se aplica, também, com peculiaridades específicas para cada uma de tais espécies de controle de constitucionalidade.

Assim é que se procurará traçar, em linhas gerais, as características da aplicação da coisa julgada no controle de constitucionalidade pela via difusa – inclusive por parte do Supremo Tribunal Federal – e pela via concentrada.

2.1 COISA JULGADA NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

O controle de constitucionalidade pela via difusa – também denominado controle concreto de constitucionalidade – é caracterizado, segundo Mezzomo, pelo

[...] caráter incidental da discussão da constitucionalidade à vista de uma demanda que visa determinada pretensão, que não é a de declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade de uma norma.

A questão constitucional surge, portanto, em relação ao direito que embasa a pretensão e que constitui elemento da causa de pedir, seja a demanda cível ou penal. Desta forma, o controle incidental pode ocorrer em qualquer espécie de demanda (2006).

Em suma, no controle de constitucionalidade, pela via difusa, não é a declaração de constitucionalidade – ou não – de uma determinada norma que constitui objeto da demanda.

Assim, e tendo em conta o entendimento que vige no Brasil, a respeito dos limites subjetivos da coisa julgada, comenta Zavascki que

[...] as decisões judiciais, tomadas em casos concretos, sobre questões constitucionais, inclusive as que dizem respeito à legitimidade dos preceitos normativos, limitam sua força vinculante às partes envolvidas no litígio. A rigor, não fazem sequer coisa julgada entre os litigantes, pois a apreciação da questão constitucional serve apenas como fundamento para o juízo de procedência ou improcedência do pedido deduzido na demanda. E a coisa julgada, sabe-se, não se estende aos fundamentos da decisão (CPC, art 469) (2001, p. 30).[3]

É de se destacar que tal se dá no controle difuso, inclusive quando é ele realizado pelo Supremo Tribunal Federal, quando se pronuncia, efetivamente, em recursos extraordinários, por exemplo, decidindo a questão da constitucionalidade de uma determinada norma em caráter incidental – de forma alheia, portanto, ao objeto central da demanda.

Não quer dizer, todavia, que uma decisão desta natureza, ainda que prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, não teria qualquer possibilidade de gerar efeitos de ordem reflexa para terceiros.[4]

Se tal se desse, não se justificaria, de forma alguma, por exemplo, o requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, de que seja demonstrada pelo recorrente “a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso”, que consta expressamente do art. 102, § 3°, da Constituição Federal, desde o advento da Emenda Constitucional 45 de 2004.

O quadro, todavia, fica mais claro quando se leva em conta as chamadas “eficácias reflexas” do controle difuso, por parte do Supremo Tribunal Federal, o que inclui, por exemplo, a suspensão, pelo Senado Federal, de norma declarada inconstitucional, por aquela Corte, na forma preconizada pelo art. 52, X, da Constituição Federal – que conserva, aliás, a mesma redação desde o advento da Carta Magna, ainda em 1988.[5]

Desta forma, ainda que se possa, efetivamente, dizer que a autoridade da coisa julgada,[6] no controle difuso de constitucionalidade, não atingirá terceiros, isto não quer dizer, por outro lado, que a pronúncia de inconstitucionalidade de uma determinada norma, por parte do Supremo Tribunal Federal, no exercício desta espécie de controle, não tem relevância social.

2.2 COISA JULGADA NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE

Referidas, em geral, algumas importantes características da aplicação do instituto da coisa julgada em relação às decisões que cuidam do controle difuso de constitucionalidade, cabem algumas observações no atinente a este mesmo controle pela via concentrada.

Mezzomo pontua que,

No controle concentrado ou abstrato, a questão constitucional não surge incidentalmente, senão que constitui a própria motivação da demanda, que se volta contra a lei abstratamente considerada, e não contra os seus efeitos concretos. Busca-se em síntese, afirmar ou negar a conformidade, material ou formal, do ato normativo em relação à Constituição (2006).

O controle concentrado é realizado, no Brasil, principalmente pela via das ações declaratórias de constitucionalidade e das ações diretas de inconstitucionalidade, cujos procedimentos encontram-se regulamentados pela Lei 9.868, de 1999, que repete a orientação explicitada no art. 102, § 2°, da Constituição Federal, de que as decisões do Supremo Tribunal Federal, nessa espécie de demandas, devem produzir “eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo”.[7]

Segundo Tucci, estas decisões do Supremo Tribunal Federal

“[...] têm força de coisa julgada ultra partes, a exemplo do direito alemão e português, pois enquanto intérprete maior da compatibilidade abstrata do ordenamento jurídico com as normas constitucionais, vinculam o legislador, todos os tribunais e todas as autoridades administrativas (2006, p. 338).[8]

Pode-se pontuar, todavia, algumas distinções entre as características da coisa julgada, no que se refere ao pronunciamento de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, no exercício do controle pela via concentrada.

Assim é, por exemplo, que a declaração de constitucionalidade de uma determinada norma – por parte do Supremo Tribunal Federal, por meio do controle concentrado – terá eficácia, também, segundo o sistema vigente, ultra pars, e obstará, em tese, a pronúncia de inconstitucionalidade de tal norma, inclusive pelo próprio Supremo Tribunal Federal,[9] com exceção da hipótese de inconstitucionalidade por causa superveniente.[10]

Por outro lado, uma norma que tenha sido declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, no exercício do controle concentrado, não será tida, posteriormente, como constitucional, ainda que haja uma modificação posterior do texto constitucional, a partir da qual poderia, em tese, ser editada uma norma naqueles mesmos exatos termos.

Vale dizer, ainda que uma lei declarada constitucional, pela via do controle concentrado, possa, posteriormente, tornar-se inconstitucional, por causa superveniente, o mesmo não ocorre com uma lei declarada inconstitucional, pela mesma via, que não será tida, posteriormente, como constitucional, ainda que sobrevenha mudança no texto da Carta Magna.

Merece, ainda, alguma atenção a possibilidade de pronúncia, por parte do Supremo Tribunal Federal, da improcedência da pretensão de declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de uma determinada norma, no exercício do controle concentrado.

Mendes, ao analisar, especificamente, o julgamento de improcedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade de uma determinada norma, pelo controle concentrado, pontua que

Se o Supremo Tribunal Federal chegar à conclusão de que a lei questionada é constitucional, então afirmará expressamente a sua constitucionalidade, julgando improcedente a ação direta de inconstitucionalidade.

Do prisma estritamente processual, a eficácia geral ou erga omnes obsta, em primeiro plano, que a questão seja submetida, uma vez mais, ao Supremo Tribunal Federal.

Não se tem, porém, uma mudança qualitativa da situação jurídica. Enquanto a declaração de nulidade importa na cassação da lei, não dispõe a declaração de constitucionalidade de efeito análogo (2009, p. 359).

Tucci, contudo, entende que a doutrina mais moderna posiciona-se no sentido de que

[...] os provimentos que rejeitam o pedido de declaração de inconstitucionalidade não geram qualquer eficácia e também não equivalem a um reconhecimento de constitucionalidade da disposição legislativa impugnada. Desse modo, tais decisões não prejudicam o ajuizamento de sucessiva argüição de inconstitucionalidade (2006, p. 339).

Isto se daria porque, segundo Tucci, poder-se-ia inferir do disposto no art. 24, da Lei 9868 de 1999, “[...] que a propalada natureza dúplice da ação declaratória de constitucionalidade e da ação direta de inconstitucionalidade opera-se apenas quando pendentes, no mesmo momento, as duas demandas” (2006, p. 341).

O autor observa, todavia, que

É evidente, por outro lado, que, nos processos objetivos, a causa de pedir é “aberta”, permitindo que o Supremo Tribunal Federal examine a integralidade do texto legal levado à sua apreciação. Assim, na prática, depois de rejeitada a ação direta, dificilmente haverá nova argüição de inconstitucionalidade da mesma lei (TUCCI, 2006, p. 341 e 342)

De qualquer forma, a Lei 9868 de 1999 parece dar diretrizes um tanto quanto seguras, já que em seu artigo 24 determina, em termos expressos, que “proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual ação declaratória”.

Ou seja, tanto têm as ações diretas de inconstitucionalidade e as ações declaratórias de constitucionalidade o tão propalado “caráter dúplice”, que a própria Lei que lhes regulamenta determina que o seu julgamento deve culminar na proclamação de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade da norma que lhe constituir objeto.

Merece ser destacada, também, a possibilidade de que o Supremo Tribunal Federal, no exercício do controle de constitucionalidade, pela via concentrada, module os efeitos de sua decisão, quando declarar a inconstitucionalidade de uma determinada norma.

Isto é o que resulta do artigo 27, da Lei 9868 de 1999, cuja redação dispõe:

Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.[11]

Vale ressaltar, ainda, que, nos termos da Lei 9868 de 1999, desde a sua redação original, tal proclamação não só tem “eficácia contra todos” – o que se encontra disposto no artigo 28, parágrafo único – como é irrecorrível[12] e não pode, sequer, ser objeto de ação rescisória – conforme a determinação do artigo 26, daquela mesma Lei.


3 COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL

Uma das questões que parece mais preocupar os teóricos do Direito, contemporaneamente, no que se refere à coisa julgada, diz respeito à possibilidade – ou não – de o instituto ser aplicado a uma sentença inconstitucional, e das respectivas conseqüências de tal ou qual solução que se propuser para o problema.

Procurar-se-á, a esta altura, referir, em geral, algo a respeito do problema da denominada “coisa julgada inconstitucional”, sem que se tenha, também a este respeito, quaisquer pretensões exaustivas ou definitivas, inclusive em virtude da complexidade da matéria.

É útil, para a compreensão do tema, que se esclareça, de forma preliminar, o que se entende, efetivamente, pela expressão coisa julgada inconstitucional.

A este respeito, afirma Cancella que

A coisa julgada inconstitucional se verifica quando uma sentença, transitada em julgado, encontra-se motivada em interpretação ou aplicação de lei tida pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição, ou quando as instâncias ordinárias afastam a aplicação de determinada lei por tê-la como inconstitucional e a Suprema Corte posteriormente declara-a válida, compatível com a Constituição (2008).

Pode-se dizer, portanto, de certa forma, que não é a coisa julgada que é inconstitucional, em qualquer caso, mas que, em determinadas circunstâncias, pode a aplicação do instituto estar relacionada a uma sentença que tem fundamentos inconstitucionais.[13]

A este respeito, segundo Câmara,

Trata-se, em outros termos, de reconhecer o fenômeno que em doutrina tem sido chamado de “coisa julgada inconstitucional”, mas que mais bem se chamaria sentença inconstitucional transitada em julgado. A rigor, o que contraria a Constituição não é a coisa julgada, mas o conteúdo da sentença. Essa sentença inconstitucional, aliás, já contrariava a Lei Maior antes de transitar em julgado. É a sentença, pois, e não a coisa julgada, que pode ser inconstitucional (2008, p. 466).

De toda sorte, no desenvolvimento deste estudo utilizar-se-á a expressão “coisa julgada inconstitucional” com o fim de referir a situação em que uma sentença com fundamento de qualquer maneira inconstitucional transita em julgado.[14]

Há, assim, basicamente, três correntes doutrinárias que se posicionam mais claramente a respeito do problema da denominada “coisa julgada inconstitucional”, a partir da análise da natureza da sentença que tem fundamento supostamente inconstitucional.

A primeira tendência que se pode identificar é a de afirmar a “inexistência”; a segunda corrente defende a tese da “nulidade”; e o terceiro grupo trabalha com a idéia de “anulabilidade” dessa espécie de sentença.

A afirmação de que a sentença é, também, norma jurídica – decorrente da adoção da teoria monista do ordenamento jurídico[15] – poderia levar à impressão de que não se poderia, nunca, admitir que a coisa julgada pudesse agasalhar uma sentença com fundamentos inconstitucionais.

Isto porque, no que se refere às normas gerais e abstratas, não há impedimento temporal a que pronuncie o Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade de um determinado dispositivo, pela via do controle concentrado, mesmo tendo a corte se pronunciado, em ocasiões anteriores, pela constitucionalidade do mesmo dispositivo, por meio do controle difuso, por exemplo.[16]

Esta é, parece, aliás, a conclusão a que chega boa parte da doutrina, que comporia a primeira tendência supra mencionada.

Assim é, por exemplo, que Thereza Alvim pontua que

[...] como se sabe, a decisão judicial de mérito é prolatada na ação processual civil, pondo fim a ela. Nessas condições, é essencial a presença das condições da ação, para que, presente a ação, possa vir a ser decidida a lide. Casos há em que, mesmo faltante condição da ação, inadvertidamente é decidido o pedido. Em ocorrendo essa situação, teremos simplesmente uma aparente decisão judicial, que, por isso mesmo, nunca poderá vir a ser revestida pela autoridade da coisa julgada material. Como exemplo, podemos aventar a hipótese de o pedido ofender princípio constitucional. Na ação não estariam presentes nem o interesse jurídico nem a possibilidade jurídica do pedido. Sem o exercício regular do direito de ação, a decisão do magistrado cai no vazio, na impossibilidade de existir, na inexistência (2008, p. 404).[17]

Para uma parcela da doutrina, portanto, as sentenças que têm por fundamento uma inconstitucionalidade – ou, no mínimo, boa parte delas – sequer existiriam, pelo que não poderiam, de qualquer forma, transitar em julgado.

A possibilidade de modulação, pelo Supremo Tribunal Federal, dos efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade de uma determinada norma, pela via do controle concentrado, estaria, todavia, neste caso, salvo melhor juízo, em completa incompatibilidade com o sistema jurídico vigente.

Os autores que compõem uma segunda corrente, conforme anteriormente mencionado, defendem a idéia de que a sentença que tem fundamento inconstitucional existiria, mas padeceria de nulidade.

Theodoro Júnior e Faria, assim, entendem que não se pode considerar a sentença que tem fundamentos inconstitucionais “inexistente”, mas consideram que ela não poderia surtir efeitos. Segundo os autores,

[...] uma decisão judicial que viole diretamente a Constituição, ao contrário do que sustentam alguns, não é inexistente. Não há na hipótese de inconstitucionalidade mera aparência de ato. Sendo desconforme à Constituição o ato existe se reúne condições mínimas de identificabilidade das características de um ato judicial, o que significa dizer, que seja prolatado por um juiz investido de jurisdição, observando aos requisitos formais e processuais mínimos. Não lhe faltando elementos materiais para existir como sentença, o ato judicial existe. Mas, contrapondo-se a exigência absoluta da ordem constitucional, falta-lhe condição para valer, isto é, falta-lhe aptidão ou idoneidade para gerar os efeitos para os quais foi praticado (THEODORO JUNIOR e FARIA, 2003, p. 154).[18]

Mendes, por sua vez, defende a tese de “nulidade da lei incompatível com a Constituição” (2009, p. 326), mas pondera que tal princípio

[...] não poderá ser aplicado nos casos em que se revelar absolutamente inidôneo para a finalidade perseguida (casos de omissão; exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade), bem como nas hipóteses em que a sua aplicação pudesse trazer danos para o próprio sistema jurídico constitucional (grave ameaça à segurança jurídica).

Assim, configurado eventual conflito entre o princípio da nulidade e o princípio da segurança jurídica, que, entre nós, tem status constitucional, a solução da questão há de ser, igualmente, levada a efeito em um processo de complexa ponderação. Em muitos casos, há de se preferir a declaração de inconstitucionalidade com efeitos restritos à insegurança jurídica de uma declaração de nulidade, como demonstram os múltiplos exemplos do direito comparado e do nosso direito (2009, p. 333)

Conclui o autor, a este respeito, que, em seu entendimento,

Em outras palavras, a aceitação do princípio da nulidade da lei inconstitucional não impede que se reconheça a possibilidade de adoção, entre nós, de uma declaração de inconstitucionalidade alternativa. Ao revés, a adoção de uma decisão alternativa é inerente ao modelo de controle de constitucionalidade amplo, que exige, ao lado da tradicional decisão de perfil cassatório com eficácia retroativa, também decisões de conteúdo outro, que não importem, necessariamente, na eliminação direta e imediata da lei do ordenamento jurídico (MENDES, 2009, p. 333).

As considerações do autor a respeito da existência da lei inconstitucional, mas de sua plena nulidade refletem no próprio status da sentença que toma por base uma norma, de qualquer forma, inconstitucional.

Assim, em síntese, pode-se dizer que, para uma segunda parte da doutrina, a norma inconstitucional seria nula, com a ressalva de que, para uma parcela de tais autores, uma decisão judicial nela fundamentada poderia, também, ser considerada existente e eficaz – e, de certa forma, também, válida – dependendo de uma modulação dos efeitos da respectiva declaração de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, que, por sua vez, resultaria de “um processo de complexa ponderação” – cujos parâmetros não são, todavia, muito claros.

De qualquer maneira, a questão da possibilidade de modulação dos efeitos da decisão que pronuncia a inconstitucionalidade de uma norma, pela via do controle concentrado, continuaria significantemente problemática, nesta perspectiva, porque implicaria, de certa forma, uma “convalidação” dos efeitos de uma nulidade absoluta.

O próprio Mendes (2009, p. 322 e 323) registra, todavia, uma tendência que poderia ser classificada como uma terceira proposta, e que defenderia a idéia de que a sentença que tem fundamento inconstitucional seria não nula, mas anulável.

Nas palavras do autor,

Segundo essa concepção, a lei inconstitucional não poderia ser considerada nula porque, tendo sido editada regularmente, gozaria de presunção de constitucionalidade, e sua aplicação continuada produziria conseqüências que não poderiam ser olvidadas. A lei inconstitucional não seria, portanto, nula ipso jure, mas apenas anulável. A declaração de inconstitucionalidade teria, assim, caráter constitutivo. Da mesma forma que o legislador poderia dispor sobre os efeitos da lei inconstitucional, seria facultado do Tribunal reconhecer que a lei aplicada por longo período haveria de ser considerada como eficaz, apto a produzir conseqüências pelo menos nas relações jurídicas entre pessoas privadas e o Poder Público. Esse seria também o caso se, com a cassação de um ato administrativo, se configurasse uma quebra da segurança jurídica e do princípio da boa-fé (MENDES, 2009, p. 322).

A tese da anulabilidade – e não nulidade ab initio – da lei inconstitucional tem base nas considerações de Kelsen, segundo quem até o momento em que uma determinada lei é declarada inconstitucional, pelo órgão jurisdicional competente, ela é “[...] válida e deve ser aplicada por todos os órgãos aplicadores do direito. Uma tal lei pode permanecer em vigor e ser aplicada durante muitos anos antes que seja anulada pelo tribunal competente como ‘inconstitucional’” (2003, p. 303).[19]

Esta observação faz bastante sentido, especialmente quando em uma ordem jurídica orientada, inclusive, pelo princípio da segurança, deve-se presumir, em sociedade, a constitucionalidade das leis, e não o contrário.[20]

O autor também afirma que

Se for possível existir uma lei inconstitucional, ou seja, lei válida que conflite com a prescrita pela Constituição vigente, ou pelo processo de sua produção ou por seu conteúdo, este fato não pode ser explicado senão deste modo: que a Constituição não só admite a validade da lei conforme a Constituição, como também, em certo sentido, a validade da lei inconstitucional [...] (KELSEN, 2001, p. 110).

Kelsen explicita o seu entendimento, nos seguintes termos:

Que a Constituição queira também a validade da denominada lei inconstitucional, isso acontece porque ela não só prescreve a lei produzida de modo determinado, que deve ou não deve ter determinado conteúdo, como também que, quando a lei for produzida de modo diferente do prescrito ou tiver conteúdo diverso do prescrito, não deve ser considerada nula, mas com validade desde aquele determinado instante até ser anulada por um Tribunal Constitucional, em um processo regulado pela Constituição (2001, p. 110).

Em outras palavras, conforme já referido, por força do princípio da presunção de legitimidade das leis,[21] toda norma jurídica deve ser presumida constitucional, enquanto não for decretado o contrário, por órgão competente.[22]

O doutrinador arremata suas considerações, a respeito do tema sob análise, com a seguinte ponderação:

A lei contém não apenas o preceito de que a sentença judicial e o ato administrativo são produzidos de determinado modo e devem ter determinado conteúdo, como também o preceito de que uma norma individual produzida de outro modo e com outro conteúdo, deve valer até ser revogada num determinado processo por motivo de sua contradição em relação ao primeiro preceito. Se o processo estiver esgotado ou se nenhum processo desse tipo for previsto, então a norma de grau inferior cresceu em “força jurídica” perante a norma superior.

Isso significa que a norma inferior permanece válida apesar de seu conteúdo ser contrário à norma de grau superior e conforme o princípio auto-estabelecido pela norma superior da coisa julgada (KELSEN, 2001, p. 111).

Vale dizer, a tese que é defendida por Kelsen, no que se refere às leis, normas gerais e abstratas, em relação à sua presunção de legitimidade, aplica-se, também – inclusive em virtude da observância da teoria monista do ordenamento jurídico –, às normas específicas e concretas, isto é, às ditas “sentenças inconstitucionais”.[23]

Tomando por base a doutrina kelseniana, Leitão de Abreu, enquanto Ministro do Supremo Tribunal Federal, proferiu voto em que afirmava:

Acertado se me afigura [...] o entendimento de que se não deve ter como nulo ab initio ato legislativo que entrou no mundo jurídico munido de presunção de validade, impondo-se, em razão disso, enquanto não declarado inconstitucional, à obediência pelos destinatários dos seus comandos. Razoável é a inteligência, a meu ver, de que se cuida, em verdade, de ato anulável, possuindo caráter constitutivo a decisão que decreta nulidade. Como, entretanto, em princípio, os efeitos dessa decisão operam retroativamente, não se resolve, com isso, de modo pleno, a questão de saber se é mister haver como delitos do orbe jurídico atos ou fatos verificados em conformidade com a norma que haja sido pronunciada como inconsistente com a ordem constitucional. Tenho que procede a tese, consagrada pela corrente discrepante, a que se refere o Corpus Juris Secundum, de que a lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação de inconstitucionalidade, podendo ter conseqüências que não é lícito ignorar (apud MENDES, 2009, p. 323).

A tese desenvolvida pelo Ministro Leitão de Abreu, portanto, com fundamento no princípio da segurança – e referências a Kelsen –, implica que a natureza de uma sentença que tem por fundamento uma norma jurídica posteriormente declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, dependerá do teor da própria decisão por meio da qual se der o controle de constitucionalidade.

Este entendimento parece melhor se amoldar ao regime vigente no País, que prevê, como visto, a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal que pronuncia a inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica.[24]

Contudo, faz-se mister esclarecer que é a tese da nulidade ab initio da lei inconstitucional que prevalece, hodiernamente, na sistemática legislativa ordinária brasileira.[25]

De toda sorte, conforme já frisado, provavelmente apenas a tese da anulabilidade da norma inconstitucional[26] – o que inclui, como visto, tanto as leis quanto as sentenças – pode se colocar em consonância com a realidade da modulação dos efeitos da decisão que pronuncia, pela via do controle concentrado, uma inconstitucionalidade.[27]

Além do mais, é de se repisar, parece possível dizer que a tese da anulabilidade da sentença de fundamento inconstitucional garante vigência mais plena ao princípio da presunção de legitimidade, que, por sua vez, atua no sentido de aplicar os níveis possíveis de segurança social e institucional, função primordial do Direito.

Vale, aqui, uma breve recapitulação.

Vige, no Brasil, o entendimento de que a pronúncia de inconstitucionalidade de um determinado dispositivo legal tem caráter declaratório, e que se limita a reconhecer a sua nulidade ab initio.[28]

A sistemática mais adequada para se tratar a pronúncia de inconstitucionalidade dos fundamentos de uma sentença, porém, parece ser outra – e neste particular verifica-se não a inexistência da sentença, nem a sua nulidade absoluta ab initio, mas sim uma espécie de anulabilidade.

Assim, a pronúncia de inconstitucionalidade dos fundamentos de uma determinada sentença, quando cabível, terá, em geral, efeito constitutivo negativo, e não meramente declaratório.

Admitida como mais concorde com o sistema vigente a tese de que a sentença de fundamento inconstitucional é anulável – e não inexistente ou  plenamente nula ab initio – resulta que seria perfeitamente possível que fosse uma decisão judicial com tais características agasalhada pelo manto da coisa julgada – pelo menos até que fosse ela devidamente impugnada, pelos meios previamente arrolados no ordenamento jurídico.[29]


4 CONCLUSÃO

Ainda que se possa dizer que, no controle de constitucionalidade pela via difusa, a coisa julgada não deverá atingir terceiros. Isto não quer dizer, contudo, que a pronúncia incidental de inconstitucionalidade, por parte do Supremo Tribunal Federal, não tenha relevância social – mormente quando se leva em conta a previsão contemporânea de alguns mecanismos como a súmula de efeitos vinculantes, por exemplo.

As pronúncias de inconstitucionalidade, por parte do Supremo Tribunal Federal, no exercício do controle pela via concentrada, por sua vez, implicam, em geral, decisões de eficácia erga omnes, podendo-se destacar, a partir do advento da Lei 9868 de 1999, a possibilidade de modulação dos efeitos da respectiva decisão.

Pode-se dizer que a expressão “coisa julgada inconstitucional” não é, a rigor, a mais adequada, já que, na realidade, nos casos a que tal expressão faz referência, é a sentença à qual o instituto está relacionado quem tomou fundamentos inconstitucionais.

A natureza de uma sentença que tem por fundamento uma norma ou interpretação posteriormente declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, dependerá do teor da decisão por meio da qual se der o controle de constitucionalidade – o que se adapta perfeitamente ao sistema vigente que possibilita a modulação dos efeitos da pronúncia de inconstitucionalidade, por parte do Supremo Tribunal Federal.


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Notas

[1] Em virtude do recorte temático específico, assim, este artigo não tratará de questões extremamente relevantes, como a distinção entre as noções formal e material da coisa julgada, da finalidade do instituto, ou da definição de seus limites objetivos e subjetivos, por exemplo. Para uma abordagem de tais aspectos do estudo da coisa julgada, cf. Antunes (2012) e Antunes e Bellinetti (2010).

[2] É de se destacar que não se nega a importância da investigação científica minuciosa do controle de constitucionalidade em suas formas difusa e concentrada. Neste sentido, Magalhães afirma que “A existência de mecanismos adequados e eficazes de controle de constitucionalidade é condição fundamental para a supremacia constitucional e a segurança jurídica, essência do moderno estado de direito. De nada adiantam a existência de limites materiais, circunstanciais, temporais e formais que marcam a rigidez constitucional se não existem eficazes meios de controle, e afastamento do ordenamento jurídico e da vida das pessoas, dos atos e leis que contrariam estes limites” (2009). Abster-se-á, todavia, de se incluir considerações a este respeito, no estudo que ora se apresenta, em virtude dos estreitos limites de seu objeto central. Vale mencionar, contudo, que o tema já foi objeto de análise mais específica, especialmente no que se refere à investigação dos limites do exercício do controle de constitucionalidade, por parte do Supremo Tribunal Federal, em um cenário democrático (cf. ANTUNES E BELLINETTI, 2009).

[3] A definição dos limites objetivos e subjetivos da coisa julgada e suas respectivas implicações constitui, também, tema de diferenciada importância, que se encontra, todavia, além dos estreitos limites do estudo que ora se apresenta. Vale aqui, de qualquer forma, a título de esclarecimento, a respeito dos limites objetivos da coisa julgada, a síntese perspicaz de Liebman: “[...] é exata a afirmativa de que a coisa julgada se restringe à parte dispositiva da sentença. A expressão, entretanto, deve ser entendida em sentido substancial e não apenas formalístico, de modo que compreenda não apenas a frase final da sentença, mas também tudo quanto o juiz porventura haja considerado e resolvido acerca do pedido feito pelas partes. Os motivos são, pois, excluídos, por essa razão, da coisa julgada, mas constituem amiúde indispensável elemento para determinar o alcance do dispositivo” (1976, p. 164).

[4] Isto não implica que se imponha a coisa julgada, enquanto qualidade dos efeitos da pronúncia do Supremo Tribunal Federal, em relação a terceiros. Trata-se aqui de outros possíveis efeitos reflexos, conforme se procurará demonstrar.

[5] Zavascki menciona, ainda, no rol do que considera serem as mais significativas eficácias reflexas da decisão incidental sobre a constitucionalidade de uma determinada norma, pelo Supremo Tribunal Federal, uma força vinculante para os demais tribunais e, ainda, uma “força de precedente” de suas decisões (2001, p. 30 a 39).

[6] Sobre a distinção, de fundamental importância, entre a autoridade da coisa julgada e a eficácia natural da sentença, cf. Liebman (1981, 53 e 54).

[7] De acordo com Tucci, “[…] verifica-se que esse diploma legal acabou ampliando de modo expressivo a eficácia vinculante dos precedentes do Supremo Tribunal Federal, no tocante ao controle direto da constitucionalidade das leis” (2006, p. 337).

[8] A este respeito, pontuam Mendes, Coelho e Branco que “O texto constitucional consagra [...] o efeito vinculante das decisões proferidas em ADI e ADC relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (CF, art. 102, § 2°). Também o art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868/99 estabelece o efeito vinculante da declaração de constitucionalidade, da declaração de inconstitucionalidade, inclusive da interpretação conforme à Constituição, e da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto” (2009, p. 1325).

[9] O que leva à conclusão de que se pode falar, também no que se refere a decisões que se pronunciam sobre a inconstitucionalidade abstrata de uma determinada norma, em coisa julgada material.

[10] Que ocorrerá quando a norma infraconstitucional anteriormente declarada constitucional for incompatível com o texto constitucional resultante de uma reforma posterior, por Emenda Constitucional, ou pela recepção de determinados tratados internacionais, na forma do art. 5°, §§ 2° e 3°, da Constituição Federal.

[11] Procurar-se-á analisar alguns dos desdobramentos do artigo 27, da Lei 9868 de 1999, na próxima seção, que tratará da questão da denominada coisa julgada inconstitucional.

[12] Excetuando-se a possibilidade de interposição de embargos de declaração.

[13] Cabe aqui, aliás, a lembrança de que os motivos não fazem, no Brasil, coisa julgada, por conta da determinação do artigo 469, do Código de Processo Civil.

[14] Vale, neste ponto, lembrar a lição de Neves, segundo quem “a inconstitucionalidade [...] é um problema de relação intra-sistemática de normas jurídicas, abordado do ponto de vista interno, conforme os critérios de validade contidos nas normas constitucionais. Não se confunde com o problema da injustiça ou ilegitimidade social” (1988, p. 70).

[15] Sobre as distinções entre a teoria monista ou unitária e a teoria dualista, é elucidativa a lição de Marinoni: “As concepções de ‘justa composição da lide’, de Carnelutti, e de ‘atuação da vontade concreta do direito’, elaborada por Chiovenda, são ligadas a uma tomada de posição em face da teoria do ordenamento jurídico, ou melhor, à função da sentença diante do ordenamento jurídico. Para Chiovenda, a função da jurisdição é meramente declaratória; o juiz declara ou atua a vontade da lei. Carnelutti, ao contrário, entende que a sentença torna concreta a norma abstrata e genérica, isto é, faz particular a lei para os litigantes. Para Carnelutti a sentença cria uma regra ou norma individual, particular para o caso concreto, que passa a integrar o ordenamento jurídico, enquanto que, na teoria de Chiovenda, a sentença é externa (está fora) ao ordenamento jurídico, tendo a função de simplesmente declarar a lei, e não de completar o ordenamento jurídico. A primeira concepção é considerada adepta da teoria unitária e a segunda da teoria dualista do ordenamento jurídico, sendo que essas teorias também são chamadas de constitutiva (unitária) e declaratória (dualista)” (2006, p. 21).

[16] Todavia, para parte bastante significativa da doutrina, conforme salientado, já, na seção anterior, se o Supremo Tribunal Federal pronuncia a constitucionalidade de uma determinada norma, pela via do controle concentrado, ficaria, ele também, impedido de pronunciar, posteriormente, a sua inconstitucionalidade – exceto quando houvesse uma causa superveniente de tal inconstitucionalidade.

[17] A autora oferece, ainda, um par de exemplos que podem ser elucidativos de suas conclusões. Nas suas palavras, “[...] tanto uma condenação faticamente absurda, de uma esposa carregar seu marido diariamente para o serviço, no colo, como a concessão de elevados danos morais por ofensa irrisória, tão elevados que poderiam vir a reduzir o condenado à insolvência ou falência, não podem ser aceitas como decisões judiciais, a transitar em julgado, pela absurdidade que encerram. Na primeira hipótese não teria havido possibilidade jurídica do pedido por falto de absoluto amparo legal ao pedido. Na segunda, a desproporcionalidade entre o dano e a indenização entre a causa de pedir e o pedido obstaria houvesse a possibilidade jurídica do pedido” (THEREZA ALVIM, 2008, p. 404 e 405).

[18] Segundo a lição de Chiovenda, que menciona “profunda diferença” entre a inexistência e a nulidade, “é inexistente a sentença prolatada por quem não é juiz; a sentença que não contém decisão; a sentença não escrita e não publicada” (2002, p. 239).

[19] O autor, aliás, considera que “se a afirmação, corrente na jurisprudência tradicional, de que uma lei é inconstitucional há de ter um sentido jurídico possível, não pode ser tomada ao pé da letra. O seu significado apenas pode ser o de que a lei em questão, de acordo com a Constituição, pode ser revogada não só pelo processo usual, quer dizer, por uma outra lei, segundo o princípio ‘lex posterior derogat priori’, mas também através de um processo especial, previsto pela Constituição. Enquanto, porém, não for revogada, tem de ser considerada como válida; e, enquanto for válida, não pode ser inconstitucional” (KELSEN, 2003, p. 300).

[20] A este respeito, pontua Neves que “o sistema jurídico reconhece a possibilidade de incompatibilidade entre normas legais e constitucionais, e, conseqüentemente, funcionando a Constituição como critério (fundamento) imediato de validade das leis, também reconhece a pertinência inválida (defeituosa) de normas legais, enquanto não haja o ato específico de expulsão” (1988, p. 76); isto porque, segundo o autor, “o sistema jurídico funciona com base no princípio da autoridade, o que implica, do ponto de vista pragmático, a imperatividade de suas normas inválidas” (NEVES, 1988, p. 80).

[21] Segundo a observação de Barroso, “as leis e atos normativos, como os atos do Poder Público em geral, desfrutam de presunção de validade. Isso porque, idealmente, sua atuação se funda na legitimidade democrática dos agentes públicos eleitos, no dever de promoção do interesse público e no respeito aos princípios constitucionais [...]” (2009, p. 300).

[22] Para maiores esclarecimentos a respeito do princípio da presunção de legitimidade das normas jurídicas, cf. Ferrari (2004, p. 77 e 78).

[23] A fim de que esta dedução reste mais clara, vale referir as considerações do próprio autor, a respeito do que chama de “decisões ilegais”: “O fato de a ordem jurídica conferir força de caso julgado a uma decisão judicial de última instância significa que está em vigor não só uma norma geral que predetermina o conteúdo da decisão judicial, mas também uma norma geral segundo a qual o tribunal pode, ele próprio, determinar o conteúdo da norma individual que há de produzir. Estas duas normas formam uma unidade. Tanto assim que o tribunal de última instância tem poder para criar, quer uma norma jurídica individual cujo conteúdo se encontre predeterminado numa norma geral criada por via legislativa ou consuetudinária, quer uma norma jurídica individual cujo conteúdo se não ache deste jeito predeterminado mas que vai ser fixado pelo próprio tribunal de última instância. Mas também o fato de a decisão do tribunal de primeira instância, e do tribunal de qualquer outra instância que não seja a última, ser, de acordo com as disposições da ordem jurídica, apenas anulável, quer dizer, o fato de ela permanecer válida enquanto não for anulada por uma instância superior, significa que estes órgãos recebem da ordem jurídica poder para criar, ou uma norma jurídica individual cujo conteúdo se encontra prefixado na norma jurídica geral, ou uma norma jurídica individual cujo conteúdo se não encontra predeterminado mas é estabelecido por estes mesmos órgãos - com a diferença de que a validade destas normas jurídicas individuais é apenas uma validade provisória, isto é, pode ser anulada através de um determinado processo [...]” (KELSEN, 2003, p. 297 e 298).

[24] Isto além dos demais motivos já mencionados, como o próprio princípio da segurança, por exemplo.

[25] Aqui, remete-se às citações doutrinárias já transcritas, no transcorrer desta seção, e aos termos da própria Lei 9.868/99.

[26] A este respeito, Ferrari, com referências a Piero Calamandrei, assevera que “[...] a sentença que decreta a inconstitucionalidade tem caráter constitutivo – sem desprezarmos a carga declaratória própria de todas as sentenças [...]” e que “[...] em determinados casos pode ter alcance ex tunc, já que normalmente deve ela operar ex nunc, projetando seus efeitos para o futuro [...]” (2004, p 176). A autora afirma, ainda, com alusão a Kelsen, que “[...] uma norma jurídica é sempre válida, não podendo ser nula, mas podendo ser anulada, e assim admite diversos graus de anulabilidade” (2004, p. 175).

[27] Pode ser elucidativa a observação de Marinoni e Arenhart, a respeito da modulação dos efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal, em ação direta de inconstitucionalidade: “note-se que a Constituição portuguesa, em que buscou inspiração o legislador brasileiro para editar a Lei 9.868/99 – que ‘dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal’ –, ao admitir a eficácia ex tunc da decisão de inconstitucionalidade (art. 282, n. 1), ressalva expressamente a coisa julgada material” (2008, p. 301).

[28] Isto é o que determina, aliás, a ordem legal vigente, tendo em vista o disposto no artigo 27, da Lei 9.868/1999; ou seja, o dispositivo legal pronunciado inconstitucional é, em regra, tido como nulo ab initio.

[29] É de se pontuar que os meios especificamente previstos no ordenamento jurídico em vigor para a impugnação da autoridade da coisa julgada que tenha agasalhado uma determinada sentença são a ação rescisória (art. 485 a 495, do Código de Processo Civil), a impugnação ao cumprimento de sentença, por inconstitucionalidade (art. 475-L, § 1º, do Código de Processo Civil) e os embargos à execução contra a Fazenda Pública, por inconstitucionalidade (art. 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil).


ABSTRACT: This essay regards to the institute of res judicata, related to the unconstitutionality of legal rules, in general and also related to decisions of law suits, in specific. It initiates with a brief analysis of the application of the res judicata concerned to decisions granted in the exercise of Constitutionality Control, in the diffuse via and the concentrated via, by the Judiciary. It analyzes the question of the application of the institute of res judicata to decisions granted on unconstitutional basis. Seeks to associate the nature of the decision granted on unconstitutional basis to the possibility of modulating the effects of the judgment granted in the exercise of the concentrated Constitutionality Control.

KEYWORDS: Res Judicata. Constitutionality Control. Unconstitutional Legal Rules.


Autor

  • Thiago Caversan Antunes

    Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Especialista em Direito Civil e Processo Civil (UEL) e Mestre em Direito Negocial (UEL). Doutor em Direito pela Universidade de Marília (UNIMAR). Professor do curso de graduação em Direito da Universidade Positivo (UP Londrina), e de diversos cursos de pós-graduação. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE). Autor de livros e artigos científicos. Atua como advogado.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANTUNES, Thiago Caversan. Coisa julgada e inconstitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3730, 17 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25297. Acesso em: 17 maio 2024.