Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/25395
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O pecado de algumas ideias associadas ao direito

lei, justiça, relativismo pós-moderno (parte II)

O pecado de algumas ideias associadas ao direito: lei, justiça, relativismo pós-moderno (parte II)

|

Publicado em . Elaborado em .

Rejeita-se o relativismo cultural e jurídico, para o qual o Direito é uma invenção puramente cultural, dependente do acordo ou o desacordo humanos, que não passa de uma expressão do poder dominante. Há algo de indisponível na ideia do Direito que impõe restrições à variabilidade cultural.

“El paraí­so de los juristas es aquél en que todas las palabras tienen un sentido preciso y firmemente establecido; en el que los hombres pueden expresar sus intenciones no solo con exactitud, sino también con plenitud; y donde, si el escritor ha sido cuidadoso, el jurista, con el documento en cuestión delante suyo, puede, sentado en su mesa, inspeccionar el texto y responder a todas las cuestiones sin levantar los ojos”.                                                          L. O. THAYER

“En cualquier situación es saludable poner, de vez en cuando, un signo de interrogación a todo lo que hemos dado siempre por sabido.”  BERTRAND RUSSELL


1. As ideias do caráter ideológico do direito e da ausência de controle da atividade “política” dos juízes

De um modo geral, o conceito aprendido de Direito está constituído pelos seguintes elementos: legalidade conforme o ordenamento, relação e eficácia social e correção material ou justiça. A falta de qualquer um destes elementos descaracteriza um fenômeno como jurídico. Assim que o desempenho da tarefa de interpretação e aplicação da norma jurídica aos conflitos decorrentes de nossos vínculos sociais implica a necessidade de interpretar e decidir de tal modo que os textos normativos, tomados como uma unidade aberta aos valores comunitários, acabe por determinar a realização do justo concreto. Em um Estado Democrático de Direito, alicerçado em uma Constituição comprometida com a dignidade do homem, a atividade interpretativa deve manter-se dentro de determinados limites objetivos, fora dos quais não parece razoável falar de interpretação, senão de “ativismo judicial”.

 Significa dizer com isso, se bem entendido, que parece desde logo inoportuna a livre criação do direito, a rebelião do juiz contra a lei ou o que os juristas alemães denominaram de interpretação ilimitada da norma. Não é verdade que as normas jurídicas (de qualquer natureza) admitam uma interpretação ilimitada, como tão pouco que esteja aberta ao que certos juristas italianos chamaram há vinte anos (com mais êxito no Brasil que em seu próprio país, por certo) de uso alternativo do direito, que pretendeu, em última análise, justificar qualquer interpretação desde critérios político-ideológicos.

Dizemos isso porque, embora grande parte da doutrina admitida uma crescente "politización de la justicia constitucional, ya que la jurisdicción constitucional entra dentro del dominio de lo político y (…), como tal, plantear la disyuntiva judicialización de la política/politización de la justicia es, en gran medida, errónea…” (Álvarez Conde), não é ouro tudo o que brilha e nem estão perdidos todos os que vagam pelo mundo. O quadro atual da situação que oferece este panorama contém mais enigmas que certezas. E isso porque, em última instância, a  valoração pessoal  ou a prudente ponderação pode levar à produção de decisões com um grau intolerável de subjetivismo, o que, em Direito, se assemelha a uma perigosíssima arbitrariedade que põe em questão nossa segurança enquanto cidadãos sob o império da lei.

Ademais, não parece apropriado desconsiderar os problemas relacionados com os inconvenientes, os limites e a natureza essencialmente subjetiva da “ponderação” como técnica argumentativa, a qual consiste fundamentalmente em um processo (subjetivo) de valoração das razões para interpretar a norma de uma ou de outra maneira, no contexto de suas interpretações possíveis. Porque, e aqui está o dado decisivo, nem os princípios e nem os valores pesam “em si”, nem as circunstâncias do caso pesam “em si”; o respectivo “peso” dá o juiz, ao “sopesá-los”.

Este o motivo pelo qual Jonh Merryman afirmou que os juízes exercitam um poder e onde há poder sempre pode haver arbitrariedade. E embora a maioria dos juízes e parcela significativa de juristas não goste muito do emprego desta terminologia, o controle sobre a atividade da magistratura, que não representa, de forma alguma, a perda de sua independência, não pode ser menosprezado. A independência do magistrado e suas prerrogativas constitucionais não são valores em si mesmo, senão instrumentos da mantença de sua imparcialidade. Do que resulta igualmente despropositado, sob o argumento da politização da justiça, não exigir do magistrado, assim como de qualquer integrante dos poderes estatais, o controle e a prestação de contas acerca de suas atividades na “administração da justiça”.

Por outro lado, decerto que se a lei (essa ferramenta cultural e institucional “cega”, virtualmente neutra e com potencial capacidade vinculante para predizer e regular o comportamento humano) não é mais o único instrumento útil para a regulação social, não menos certo é que segue sendo um meio ou instrumento insubstituível e indispensável para assegurar, em sociedades pluralistas e complexas, um dos valores fundamentais do direito: a segurança jurídica.

O sentido e alcance de uma norma (constitucional ou infraconstitucional) não pode depender do talante pessoal de seus intérpretes, em especial de magistrados pretendidamente redentores ou iluminados, autoinvestidos como representantes de qualquer ideologia, doutrina ou tradição histórica. A objetividade do direito, sem a qual não cumpriria nenhum de seus fins, descansa necessariamente sobre a objetividade e a racionalidade na interpretação e aplicação da norma jurídica (ainda que, é importante dizer, “racionalizamos por razões  irracionais”; racionalizamos o que pensamos, sentimos e fazemos e o motivo pelo qual pensamos, sentimos e fazemos: “¿Eso es justo o injusto?, se pregunta nuestra mente primitiva a cada instante... milésimas de segundo después tratamos de esbozar un juicio razonado.”).

E torná-la possível vem a ser, justamente, um dos primeiros objetivos da tarefa concreta do jurista de realizar historicamente a verdadeira intenção do direito (isto é, a de, negativamente, impedir o homem do esquecimento de si próprio e, positivamente, a de afirmá-lo no seu ser e, assim, no seu incondicional valor) e que é projetada em um determinado contexto econômico, político e social segundo as necessidades humanas de cada época; quer dizer, de plasmar e realizar historicamente as expectativas normativas e culturais de uma comunidade de indivíduos (ante a qual a qualidade de seu discurso será medida por sua humanidade, pela precisão de sua adesão à natureza humana) que sirvam para iluminar, fundamentar e constituir determinado agrupamento social em uma comunidade verdadeiramente  ética.

Essa, aliás, a razão de que o princípio da segurança jurídica, que assegura a previsibilidade das normas como ordenadoras das condutas humanas, leva também à manutenção da preeminência da lei na atual sociedade de massa (no sentido dado por Ortega y Gasset). Mas, da circunstância de que os cidadãos têm o direito de saber que uma conduta lhes compromete na medida em que o direito vá a qualificá-la como tal, não parece legítimo que se possa deduzir que o juiz deva ser um órgão “cego” e “acéfalo” no processo de interpretação e aplicação da Constituição e das leis ou que se deva autoinvestir da suposta virtude que faz dos juízes “les bouches qui prononcent les paroles de la loi, des êtres imanimés qui n´em peuvent modérer ni la force ni la rigueur” (Montesquieu).

A importância da lei em uma sociedade decente (isto é, em uma sociedade cujas instituições não humilham às pessoas sujeitas a sua autoridade e cujos cidadãos não se humilham uns aos outros; uma sociedade que permite aos indivíduos viverem juntos sem humilhações e sem interferências arbitrárias, de forma livre, igualitária e fraterna), a par de conviver com a preeminência das normas constitucionais, faz com que o papel do juiz, já não mais neutro e passivo, seja o de um vivo vigilante intérprete dos tempos, que tanto melhor sabe cumprir a sua função quanto melhor alcance sentir a exigência humana da  história e traduzi-la em fórmulas apropriadas de ordenada convivência. O que não significa, evidentemente, uma atividade “alternativa” à lei, senão uma qualificada tarefa de assegurar a sua legítima, devida e justa efetividade.

Talvez seja útil recordar que o ilimitado (e/ou descontrolado) uso do poder é, depois de tudo, a essência da tirania. E o exercício do poder na administração da justiça, levado a cabo por primatas humanos, não constitui nenhuma exceção a esta regra.


2. As ideias da eliminação da subjetividade na tarefa interpretativa e da supressão da objetividade jurídica

Aos destinatários das normas jurídicas não lhes interessa as opiniões pessoais dos que atuam como juízes, senão somente suas respectivas capacidades para expressar as normas que a sociedade a si mesma se (im) põe e pelas quais ilumina e fundamenta a solidariedade de sua ética convivência, depurando e afinando seu alcance e sentido e, na mesma medida, garantindo sua eficácia última. De fato, o grande problema da época contemporânea já não é tanto o da convicção ideológica, das preferências pessoais, do subjetivismo inconsistente ou das convicções íntimas do juiz, enquanto mediador.

É o de que o cidadão (ou se preferir, do cidadão enquanto tal, como indivíduo plenamente livre, dono ou senhor de si mesmo – segundo a célebre fórmula do direito romano, recuperada pelo republicanismo moderno), destinatário do provimento, do ato imperativo do Estado, que no processo jurisdicional é manifestado pela decisão, possa participar de sua formação e de eficazes (adequadas e acessíveis) medidas de controle, com as mesmas garantias e em simétrica igualdade de oportunidades; isto é,  que  possa compreender por que, como, de quê forma e com que limites o Estado atua para resguardar e tutelar direitos, para negar pretensos direitos, para impor obrigações e assegurar o cumprimento de deveres. Em síntese, é tornar efetiva a famosa “eterna vigilância cidadã” republicana, que trata de evitar que o abuso de autoridade por parte dos magistrados afete as relações sociais, rompa os vínculos de liberdade, igualdade e fraternidade cidadã e degrade a res publica a imperium.    

O principal problema, hoje, reside na necessidade de estabelecer critérios metodológicos com o objetivo de chegar à pretendida noção de racionalidade, de correção da decisão prática e/ou de compromisso ético relativamente à aplicação das normas jurídicas. Em palavras mais simples, o de como se pode obter a racionalidade, a objetividade e o controle de toda possível decisão jurídica, de como limitar a atividade interpretativa sem dissimular ou jugular a iniludível subjetividade que a caracteriza.

De fato, a adoção de um adequado processo de realização do direito, em seu aspecto metodológico, obriga o jurista-intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão entre os fatos, as normas constitucionais e infraconstitucionais a concretizar, de tal forma que se deva sempre considerar as normas não como instrumentos de dominação e/ou manipulação, senão como preceitos integrados em um sistema unitário e aberto de normas, princípios e valores, sob pena de destruição da tendencial unidade axiológico-normativa do ordenamento jurídico.

Carecem de legitimidade as decisões que desconsiderem as normas jurídicas e imponham vazios argumentos de “justiça” tirados de convicções pessoais do operador do direito, de comandos emergentes da mera interpretação pessoal ou ideológica do julgador. Nunca é dispensável a interpretação dos textos legais no sistema da própria ordem jurídica positiva em consonância com os princípios e garantias constitucionais e, sobretudo, à luz dos valores comunitariamente aceitos e compartidos.

E não se trata, depois de tudo, de um intento ilícito ou desafortunado, porquanto parece intuitiva a necessidade de que os discursos jurídicos (com validade intersubjetiva e potencial capacidade de consenso) estejam racionalmente justificados e coerentes com o sistema jurídico global, quer dizer, que em favor dos mesmos se aportem argumentos que façam com que, sendo produto de uma (limitada) racionalidade plasmada no diálogo de reconhecimento e compreensão recíproca, possam ser discutidos e controlados, e, em igual medida, tratem de impedir um perfil de operador jurídico (nomeadamente do juiz) proclive a um desvairado  e  irracional subjetivismo.

Assim que uma interpretação que não se submeta a regras e não se preocupe por estabelecer uma coerência respeito a modelos de decisão estabilizados e já argumentativamente ponderados corre sempre o risco, precisamente por ser infundada, de precipitar-se em uma violência e em um arbítrio visceralmente insensatos. A tal ponto que a atividade do jurista-intérprete acabaria despojada de toda objetividade e assumiria sorrateira e definitivamente a iniludível irracionalidade do jogo interpretativo.

Claro que a partir de uma atenta observação sobre as condições do ato do compreender e interpretar não resulta difícil inferir que – se bem valiosos os fins da racionalidade do proceder interpretativo – os vínculos constituídos pelas regras, os métodos de interpretação dos textos normativos, a dogmática jurídica, a comunidade dos intérpretes e dos juristas, e a própria dimensão da comunidade ética e da textualidade, são sempre limites de natureza relativa, quer dizer, não podem jamais eliminar totalmente a natureza do jogo interpretativo (de discricionariedade e dos espaços de liberdade do intérprete), senão que somente contribuem, com sua função normativo-prescritiva, a estruturá-los e a contê-los.

Em todo caso, se o objetivo é a racionalidade do interpretar, são sempre preferíveis vínculos e limites parciais e imperfeitos, expressão de culturas jurídicas e sociedades históricas específicas, antes que nenhum vínculo ou limite. Dito de modo mais simples, a insuficiência do vínculo não implica, em definitivo, a supressão dos limites por ele desenhados.

Daí que fazer frente ao reconhecimento da construção jurisprudencial no sistema de fontes jurídicas como produto da atividade cognitivo-normativa de interpretar, justificar e aplicar o Direito implica a necessidade de se estabelecer métodos apropriados para salvar  metodologicamente as possibilidades de uma eventual – necessária, ainda que não suficiente – objetividade hermenêutica e a própria racionalidade da interpretação jurídica. A normatividade do direito, sem a qual não cumpriria (ou cumprirá) nenhum de seus fins, repousa necessariamente sobre a objetividade – ainda que tentada – da interpretação, justificação e aplicação das normas jurídicas.


3. As ideias de um novo paradigma teórico do direito e o problema da interdisciplinaridade

O movimento gerado por algumas teorias críticas do direito serviu menos como padrão teórico e mais como orientação para prática profissional de operadores do direito (juízes, advogados, membros do Ministério Público, etc.). De fato, os empedernidos defensores desse tipo  movimento não chegaram a elaborar um modelo de ciência do direito que pudesse se afastar dos paradigmas dogmáticos. Pelo contrário, conformaram-se com acusar o sistema jurídico e criticar a legalidade instituída, ainda que pretendessem dar plena eficácia aos direitos fundamentais albergados na Constituição. Tão pouco chegaram a propor qualquer base filosófica ou modelo metodológico coerente que se afastasse dos modelos positivistas tradicionais e direcionassem, de forma racional e objetiva, as “novas” diretrizes interpretativas propostas.

Ademais, ainda que em sua maioria tenha surgido sob o manto de uma concepção social marxista (o “proletariado” parece ser um de seus principais propulsores) e insista em ver interesses econômicos e contradições dialéticas até na sopa, o conjunto desse movimento acabou por recolher seus fundamentos de outros movimentos críticos setoriais, tais como: a epistemologia crítica de Popper e Bachelard, a filosofia fenomenológica de Husserl, a sociología crítica de Weber, a psicanálise freudiana, a filosofia marxista, a teoria crítica da sociedade dos pensadores da escola de Frankfurt... Lamentavelmente, essa miscelânea de concepções filosóficas díspares impediu que esse movimento adotasse uma postura filosófica e epistemológica uniforme e coerente, predominando “hoy quienes repiten o comentan textos herméticos o retrógrados, como los de Hegel, Nietzsche, Heidegger y sus imitadores”. (Mario Bunge)

Por outro lado, a atual interdisciplinaridade proposta para o âmbito do direito vem sendo posta em causa pelos novos avanços provenientes da biologia evolutiva, psicologia evolucionista, primatologia, antropologia evolutiva, neurociência, ciências cognitivas, genética comportamental... Uma nova realidade inter e/ou multidisciplinar – a qual ainda permanecem, em sua miopia, inadvertidamente alheios uma boa parte dos cientistas sociais e, em especial, em sua quase totalidade, os operadores do direito -  não somente vem pondo em cheque uma grande porção dos logros teóricos tradicionais das ciências sociais normativas – nestas incluída, claro está, a ciência jurídica -, como, e muito particularmente, vem possibilitando uma revisão das bases ontológicas e metodológicas do fenômeno jurídico a partir de uma concepção mais empírica e robusta acerca da natureza humana.

Trata-se, em síntese, de uma perspectiva interdisciplinar cuja ideia básica consiste em propor que várias disciplinas contidas nas ciências sociais e do comportamento tornem-se mutuamente coerentes e compatíveis com o que é conhecido pelas novas ciências que se ocupam do cérebro/mente e da conduta humana, ou seja, uma explicação verticalmente integrada dos fenômenos. Nas palavras de Jerome Barkow, essas explicações (“verticalmente integradas”) que, em ciências humanas, são simultaneamente cruciais e raras, querem significar que o que é exigido é sempre um leque de explicações que se complementem nos diversos níveis de análise e que sejam todas mutuamente compatíveis.

Coloca-se como exigência que qualquer explicação sociológica ou filosófica da ética seja compatível com as teorias psicológicas da ética, e que estas sejam compatíveis com as ciências mais sólidas dedicadas a aportar uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana que os mitos aos que estão chamadas (e destinadas) a substituir (sobretudo na doutrina jurídica, onde cada autor, quase que completamente alheio aos estudos que se efetuam em outros campos distintos do direito, aborda um tema comum a partir de um ponto de vista disciplinar e teórico específico, ademais de exclusivamente jurídico).

Por certo que essa postura interdisciplinar não exige que digam todos as mesmas coisas, mas que digam coisas compatíveis entre si e com outras áreas de conhecimento, ou que, pelo menos, tornem explícitas as incompatibilidades. Depois, da mesma forma como em filosofia não se trata de estabelecer uma orientação analítica e uma orientação hermenêutica opostas entre si senão de um “ir e vir” de uma a outra mutuamente enriquecedora, o mesmo sucede com a epistemologia, em que o conhecimento teórico e metodológico-científico não “se opõe ao” senão que “se compõe do” conhecimento acerca da condição/natureza humana  – quer dizer, é parte dele –, segundo uma relação complexa (de continuidade-descontinuidade) entre as chamadas ciências humanas e ciências naturais. Significa que é através de um diálogo com as chamadas ciências “duras” como as ciências humanas lograrão elaborar uma reflexão mais fecunda sobre a natureza humana, o direito e a ética.

Esse diálogo (perspectiva ou postura) interdisciplinar pressupõe, para usar a expressão de Edgar Morin, simultaneamente uma reforma das estruturas do pensamento: o verdadeiramente importante não é justapor os aportes das diversas ciências, senão o de enlaçá-los, de saber mover-se entre saberes compartimentados e uma vontade de integrá-los, de contextualizá-los ou globalizá-los. Somente outra estrutura de pensamento poderá permitir-nos conceber as ciências como conjunção, como implicação mútua, o que se costuma ver como disjuntiva: o ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social.

Portanto, qualquer concepção desagregadora da ciência é  desatinada,  já que  os  valores, os princípios, as normas - enfim, as fontes e os materiais jurídicos - e os acontecimentos do social – os vínculos sociais relacionais - descansam  no, ou são constringidos  e condicionados pelo, natural. E  em que pese o fato de que a tendência para a separação entre a cultura e a natureza  tem levado (ainda)  a que se absolutizem alguns desses valores (desligando-os das suas origens naturais e apresentando-os  como  de  essência espiritual, como uma transcendência que ultrapassa o próprio homem),  a ética e o direito parecem ter uma base mais segura quando relacionados a uma visão biologicamente vinculada à nossa arquitetura cognitiva altamente diferenciada, plástica e especializada, quer dizer, à natureza humana unificada e fundamentada na herança genética e desenvolvida “em” e “a partir de” um entorno cultural. O sentido da moral e da justiça não é o oposto da natureza humana, senão que forma uma parte integrada da mesma.

Uma compreensão mais comprometida com as causas últimas, radicadas em nossa natureza, do comportamento moral e jurídico humano, pode ser muito importante para reconstruir os melhores e mais profundos pensamentos humanos sobre o Direito, potencialmente unificados do lugar que ocupamos na natureza. Afinal, estabelecer  princípios e preceitos normativos que não têm nada que ver com a natureza humana é o mesmo que condená-los ao fracasso. É possível, por que não dizer, que a maior parte das propostas de fundamentação teórica e metodológica do direito que já se formularam  ao longo da história pequem por sua inviabilidade em função dessa desatenção com relação a realidade biológica que nos constitui , ou seja, pela falta de precisão de sua adesão à natureza humana.


4. As ideias da diversidade cultural e do relativismo jurídico de corte pós-moderno

Uma dilatada linha intelectual que arrancando dos sofistas e passando por Hobbes e Nietzsche desemboca em certa pós-modernidade pretendidamente radical sustenta que as sociedades humanas vivem permanentemente em situações extremas, e que não há possibilidade de deliberação racional de modo algum, aqui incluído o Direito. O intento de emparelhar democracia, Direito e relativismo levou a reduzir à mera liturgia elementos hoje considerados como fulcrais de todo o Estado de Direito. De fato, o relativismo cultural, histórico e jurídico parecem não resistir à ideia de que existe uma natureza humana cujo núcleo constitui o fundamento de toda a unidade ético-cultural: não há valores "objetivos" que subsistam por si mesmos à margem da biologia humana e das condições ecológicas e culturais.

Nesse sentido:

1. É necessário rejeitar o relativismo cultural e jurídico, que afirma que a Direito é uma invenção puramente cultural, uma verdade serviçal, dependente do acordo ou o desacordo humanos, que não passa de uma expressão do poder dominante e que varia arbitrariamente de uma cultura para outra de acordo com as variações de poder, porque, ainda quando se possa reconhecer a importância do poder e os costumes no desenvolvimento jurídico, parece razoável crer (e insistir) que há algo de indisponível na ideia do Direito (o Direito é parte da condição humana e a sua ideia - ideia de Direito - é o resultado da ideia do homem ) que, de uma forma ou outra, limita e impõe restrições à variabilidade cultural das práticas jurídicas. Quer dizer, que é a natureza humana a que impõe constrições cognitivas fortes para a percepção, armazenamento e transmissão discriminatória de representações culturais, limitando o rol das variações sociais e culturais possíveis.

2. É necessário rejeitar o relativismo historicista, que afirma que o Direito é puramente uma invenção histórica que varia radicalmente de uma época (histórica) para outra, porque, ainda quando se possa reconhecer a importância das tradições jurídicas, parece razoável crer (e insistir) que a natureza humana, de forma direta ou indireta, condiciona e limita nossa conduta, nossos juízos morais e os vínculos sociais relacionais que estabelecemos.

3. É necessário rejeitar o relativismo cético e solipcista, que afirma que não há padrões objetivos de julgamento jurídico, além dos impulsos e da subjetividade de indivíduos únicos, porque, ainda quando se possa reconhecer a importância  da diversidade individual, parece razoável crer (e insistir), pelos motivos a que antes nos referíamos, na possibilidade de se estabelecer critérios objetivos e de controle de racionalidade em todo processo de interpretação e aplicação do Direito.

4. É necessário rejeitar o fundamentalismo ideológico de determinadas teorias críticas do direito que afirma que o Direito é mero instrumento de dominação da classe dominante, porque, ainda quando se possa reconhecer que alguns interesses dominantes podem reforçar algumas tendências do Direito, parece razoável crer (e insistir) que o Direito está fundado, ademais de na legalidade conforme o ordenamento e na eficácia social, em uma pretensão de correção material (de justiça) que existe independentemente de qualquer poder derivado dos interesses de uma classe dominante.

Portanto, já não cabe objetar (séria e licitamente) contra estes critérios, com desmedido, tendencioso e míope entusiasmo, os argumentos e os discursos jurídicos que agora primam pelo mais insano e inconsistente relativismo e pluralismo jurídico. Tais discursos desprezam a evidência de que, por estar a nossa mente modelada através da seleção natural e com uma estrutura domínio-específico homogênea para todos os seres humanos, a diversidade interpretativa, jurídica e cultural não pode ser indefinida, senão limitadamente diversa no tempo e no espaço.

Dito de forma mais simples, uma concepção robusta e séria acerca da natureza humana implica admitir que o ser humano, por ser um produto mais da evolução biológica e cultural - desenhado pela seleção natural para resolver determinados problemas adaptativos relacionados com a constituição de uma vida socialmente organizada - toma em consideração as limitações com as quais nascemos (que, repetimos, impõem constrições cognitivas fortes para a percepção, armazenamento e transmissão discriminatória da cultura e limitam o rol das variações culturais possíveis) e que, de uma maneira ou outra, definem e circunscrevem as condições de possibilidade do Direito e de sua realização prático-concreta.

O “episódio” pós-moderno, tão apreciado pelos movimentos críticos e que provoca secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos proclives à retórica, tende ao extremo e se caracteriza por ser a antítese polar extrema da Ilustração (Holbach, Diderot e Helvétius): a verdade é sempre relativa e pessoal. Cada indivíduo cria seu próprio mundo interior mediante a aceitação ou o rechaço de signos linguísticos que cambiam sem cessar. Não existe um ponto privilegiado, nem um norte ou critério que guie o comportamento humano. E uma vez que o Direito não é mais que outra maneira de ver o mundo, não existe nenhum modelo a partir do qual se possa construir coerentemente seu sentido, e a partir do qual seja possível extrair o significado profundo dos valores jurídicos relativos à solução pacífica de conflitos e da cooperação social. Só existe a oportunidade ilimitada dos indivíduos para inventar interpretações, hipóteses e comentários de uma realidade que ele mesmo (e somente ele) constrói. A ideia de que tudo é “construído” pertence a essa família.

O que significa que se o fundamento da Ética e do Direito é a suposição de que as pessoas têm  preferências, desejos e necessidades – e que, por sua vez,  gozam de plena autoridade sobre o que são estes desejos, necessidades e preferências –, a negação de um sentido indisponível do Direito fundado na natureza humana e a consequente negação da possibilidade de se aceder a métodos universalmente válidos de pensamento objetivo pode ser um instrumento útil para, uma vez deformado, justificar qualquer atrocidade e, como tal, servir para atender  a  finalidades potencialmente  perniciosas. Neste particular, não se pode olvidar que as primeiras e principais investidas do regime nazista com relação ao ordenamento jurídico alemão foram precisamente de corte “crítico” e “alternativista”. (Ingo Müller)


5. As ideias da indeterminação do Direito e da “crise” da lei

É certo que as sociedades atuais, plurais e complexas, já não mais parecem aceitar lhanamente novos códigos gerais e globalizantes como os que alimentaram em seus dias os grandes dogmas do positivismo jurídico. Hoje, não só se fala abertamente de descodificação, inclusive com relação às matérias típicas dos códigos clássicos, como também as leis tendem a limitar-se, com frequência, a regulamentações fragmentárias e ocasionais e, às vezes, a formular disposições ou princípios muito gerais, confiando logo à interpretação e aplicação pelos operadores do direito a precisão casuística de seus respectivos enunciados.

O desgaste que vem sofrendo a generalidade e a abstração da lei em virtude do que se convencionou denominar de “pulverização” do direito legislativo  produzida pela multiplicação de leis de caráter setorial e temporal, demonstra claramente a pressão de interesses corporativos, dando lugar a um tratamento normativo diferenciado e, em igual medida, provocando a explosão de legislações cambiantes, com a consequente crise dos mencionados princípios de generalidade e abstração.

A suposta consequência produzida por esse fenômeno é a de que a lei é, cada vez mais, transação e compromisso, tanto mais quanto a negociação se estende a forças numerosas e com interesses heterogêneos: cada um dos agentes sociais, quando acredita haver alcançado força suficiente para orientar em seu próprio interesse os termos do “acordo”, busca a aprovação de novas leis que sancionem a nova relação de forças; se produz, assim, a cada vez mais marcada contratualização dos conteúdos da lei.

Não há dúvida de que a atual experiência legislativa nos situa muito longe da racionalidade do legislador e da imagem da lei como ordenação abstrata, geral e permanente, como quadro estável cuja finalidade é distribuir direitos e deveres gerais e sobre o qual a sociedade vive a continuação de seu próprio dinamismo. Tão pouco há muitas dúvidas de que as leis (e os governos) podem causar (e causam) uma grande parte da desgraça humana.  Dito de forma mais direta, é indiscutível que a realidade dessas leis se ajusta mal ao esquema ilustrado e revolucionário da lex universales.

Contudo, e em que pese todas essas circunstâncias, não parece razoável inferir como apropriadas as considerações articuladas por alguns setores mais críticos do Direito no que a crise da lei se refere. Se é certo que a legislação atual tende à ocasionalidade e confusão, não menos certa é a constatação de que isso não nos permite deduzir que as sociedades modernas pretendam remeter aos magistrados os problemas últimos de seu livre – e deveras defeituoso  – ajuste social. Por muito que se ressalte a crise da lei nas sociedades atuais, tal crise não chega de modo algum a deslocá-la do seu papel central e, até o momento, insubstituível no que se refere às expectativas recíprocas de comportamento generalizadas.

As normas são, apesar de tudo, o melhor mecanismo de organização social em grande escala que nossa lamentável espécie descobriu até o presente e que, para o bem ou para o mal, pode ser adaptada às características próprias da psicologia humana – por exemplo, a denominada “certeza jurídica” pode ser entendida muito bem como solução sócio-cultural aos problemas adaptativos relacionados com a capacidade e necessidade de inferir e antecipar as ações dos membros do grupo e suas conseqüências.

Por outro lado, as normas jurídicas não são simplesmente um conjunto institucional de regras escritas ou formalizadas destinadas a constituir uma razão (determinante e/ou moral) para o atuar dos indivíduos, que expressam ideologias dominantes ou que as pessoas se limitam a seguir. Em vez disso, as normas representam à formalização de regras de condutas sociais, sobre as quais uma alta percentagem de pessoas concorda, que refletem as inclinações comportamentais e oferecem benefícios potenciais e eficientes àqueles que as seguem e castigos para os que as descumprem: quando as pessoas não reconhecem ou não acreditam nesses benefícios potenciais, as normas são, com frequência,  não somente ignoradas ou desobedecidas (pois carecem de legitimidade e de contornos culturalmente aceitáveis em termos de uma comum, consensual e intuitiva concepção de justiça), senão que seu cumprimento fica condicionado a um critério de autoridade que lhes impõem por meio da “força bruta”. E uma prática social que não pretendesse nada mais que o poder ou a força não seria um sistema jurídico .

Dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito à reação dos membros de uma determinada comunidade. Estes artefatos, se plasmam grande parte de nossas intuições e emoções morais, não são somente construções arbitrárias, senão que servem ao importante propósito de, por meio de juízos de valor acerca do justo e do injusto (acerca de questões morais relativas à correção na distribuição e compensação), guiar a ação humana (posto que também proveem ao agente de boas razões, morais e prudenciais, para abster-se ou para atuar) e tornar a ação coletiva possível – e parece razoável admitir que os seres humanos encontram satisfação no fato de que  as normas sejam compartidas pelos membros da comunidade.

E é precisamente esta capacidade para categorizar valorativamente a conduta própria e alheia e encerrar-se em um intercâmbio de juízos de aprovação e de reprovação até constituir uma nova fonte de emoções de prazer e desagrado (que sentimos ao colocar à prova uma conduta e a que sentimos ante a aceitação, o castigo ou o rechaço social da mesma) que constitui o melhor exemplo de como nossa constituição neurobiológica gera, condiciona e restringe a criação, o desenvolvimento e a validez das normas de conduta, funcionando como condição de possibilidade da massiva produção normativa de nossa espécie e, ao mesmo tempo, de sua (relativa) independência material e natureza preditiva no que às nossas crenças, desejos, preferências e ações se refere.

Com o Direito e suas normas promovemos em grupos tão complexos como são os humanos aqueles meios necessários para instituir e decidir que ações estão proibidas, são lícitas ou obrigatórias, assim como para justificar e controlar os comportamentos coletivos e, o que é mais importante, para articular, combinar, controlar e estabelecer limites aos vínculos sociais relacionais estabelecidos pelo ser humano. O desenvolvimento dos sistemas normativos implicou processos causais gerados pelas inevitáveis colisões de interesses próprios relativos à convivência social e em vista da necessidade de inferir os estados mentais, de controlar e de predizer o comportamento dos indivíduos, isto é, de antecipar as consequências do comportamento dos demais em empresas que requerem a competição ou a cooperação de vários indivíduos. Dito de outro modo, criamos um sistema complexo de normas de conduta para canalizar nossa natural tendência à “agressão” decorrente da falta de reciprocidade e dos defeitos que emergem de nossas relações sociais.

Como explica Stephen J. Morse (2012), uma história evolutiva perfeitamente plausível explica por que os seres humanos necessitam regras como as que o Direito proporciona. A evolução nos converteu em seres autoconscientes que atuam por razões. A razão prática é iniludível para criaturas como nós, que inevitavelmente se preocupam dos fins que perseguem e das razões que tem para atuar de um modo mais que de outro. É porque somos seres sociais, cujas interações não estão fundamentalmente  governadas por repertórios inatos, pelo que é inevitável que necessitemos as regras para ordenar nossos vínculos relacionais em qualquer grupo social minimamente complexo. Os seres humanos desenvolveram formas extraordinariamente  diversas de viver juntos, mas a característica que se encontra presente em todas as sociedades é que estas estão governadas por regras que se dirigem a seres capazes de segui-las.

A própria ideia de justiça – no seu sentido apenas humano, e quaisquer que tenham sido os significados que haja recebido ao longo de nossa história cultural – sempre quis exprimir essa suprema axiologia da existência humana comunitária. Em palavras mais simples: a justiça, entanto um instinto individual e relacional, parte de nossos instintos morais, embora tenha uma codificação social em forma de leis; estas mudam mais rapidamente, mas sobre o substrato neurobiológico que estabelece o que é justo ou injusto.

Nesse sentido, uma explicação naturalista sobre a evolução do direito supõe que as normas de conduta (no caso, as leis) representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar. Sem elas, recorda Adela Cortina (2012), “não há vida humana”.  

Ademais, se a vida há de fazer-se tolerável, deve proporcionar algumas estratégias de segurança, estabilidade das relações sociais e proteção contra os ataques às condições fundamentais da existência individual. Deve existir previsibilidade e ordem dentro de um grupo social. Para proporcionar uma ordenada convivência humana devem existir regras revestidas de certa autoridade, sendo que estas regras são tanto mais eficazes quanto mais formal é o mecanismo de coação. As normas, portanto, são úteis não somente como meio eficaz para tomada de decisões, senão também como um sistema eficiente de guias para a vida individual e cooperativa, para desenvolver nossa capacidade para cooperar e resolver conflitos sociais, sem necessidade de recorrer a outras formas de hierarquização e organização social  típicas de numerosas espécies animais como é a da agressividade. 

Em resumo, as normas jurídicas constituem a resposta que elaboramos, com os mecanismos psicológicos evolucionados de que dispomos, para solucionar os problemas relativos às exigências e contingências associadas à complexidade de nosso estilo de vida social. As transformações evolutivas do último período do gênero Homo modelaram nossas habilidades e motivações cognitivo-sociais que, por sua vez, favoreceram o surgimento de grupos cuja sobrevivência dependia sobremaneira da relação mútua entre o grau muito elevado de altruísmo/cooperação e a emergência da capacidade para refletir sobre nossas intenções e comportamentos, avaliá-los como bons ou maus, justos ou injustos, discernir entre o permitido, o proibido e o obrigatório, e, inspirados no sentido de dever e compromisso com relação aos demais, elaborar um conjunto normativo para predizer e controlar a conduta humana em benefício da comunidade.

Tudo isso implica admitir que a verdadeira alternativa ao recurso utilizado pelo legislador para afrontar e contornar os problemas sociais, de justiça e de segurança jurídica não parece ser a de reinventar o “juiz sacerdote” (preso a alguma ideologia, dogma ou doutrina sem consistência teórica e/ou incapaz de ter alguma eficácia fora dos limites físicos de um papel), senão a de habilitar os julgadores a assumir, de forma virtuosa, inflexível e qualificada a responsabilidade que lhes cabe e cuja tarefa seja a de afirmar indistintamente os direitos e deveres de toda a pessoa humana, projetando na e através da legalidade vigente os princípios e valores fundamentais do Direito; isto é, de habilitar-lhes ao inegociável compromisso de colocar-se à frente dos fatos e dos vínculos sociais relacionais para, com a iniludível prudência e talento de “desenhador” que caracteriza o ato de julgar, impulsarem os câmbios necessários para que se promova um panorama institucional, normativo e sócio-cultural o mais amigável possível com uma sociedade verdadeiramente decente.

 Daí porque o papel do operador do Direito (particularmente dos juízes) deverá seguir estando vinculado à Constituição e à lei – que nunca podem ser livres de contexto, senão que devem ter em conta seu “lugar na vida” e sempre “em situação” –, em nome das quais fala e das quais – e não de nenhuma outra fonte “mágica”, “alternativa” ou de qualquer subjetivismo camuflado de teoria – extrai unicamente a justiça e a legitimidade de suas decisões.

É certo que ante uma legislação fragmentada, casuística e cambiante, com enunciados que caem com frequência em desuso por desajustes sistemáticos e/ou sociais, o papel do magistrado se realça. Mas este realce do papel do juiz não poderá jamais pretender levar-lhe a uma independência com respeito à Constituição ou à lei; levará, certamente, a um uso mais apurado, sofisticado e refinado dos valores, princípios e regras jurídicas, sempre e em tudo condizente com a finalidade de atender ao imperativo ético segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria e o sofrimento humano, com a obrigação de produzir a articulação combinada dos vínculos sociais relacionais que subjazem a um determinado tipo de relação jurídica, no sentido de e com o objetivo de, potenciando seus melhores lados e eliminando seus lados destrutivos, atuar o direito em relação da  pessoa  e  para a  pessoa.

Quer dizer, ao  redor do compromisso ético que congregue liberdade, igualdade e fraternidade, dessas três virtudes que compõem o núcleo duro, o conteúdo próprio da justiça e que, em seu conjunto, constituem diferentes aspectos da mesma atitude humanista fundamental destinada à construção conjunta de alternativas e possibilidades reais de uma vida digna de ser vivida. Evitar ou mitigar o sofrimento, esta é a máxima.


6. Conclusão

Reconhecemos que a perspectiva aqui adotada, nomeadamente no âmbito do jurídico, pode parecer odiosa e detestável aos que permanecem atados às fronteiras e às limitações das ideias e/ou dogmas do momento. O problema é que não devemos (o que pressupõe que não podemos) olvidar que a Moral e o Direito estão entre os fenômenos culturais mais poderosos já criados pela humanidade e que precisamos entendê-los melhor se quisermos tomar decisões políticas, jurídicas e/ou éticas bem informadas e justas.

Já não podemos manejar-nos na filosofia e na ciência do Direito do século XXI baseados em uma psicologia humana impossível, com uma ideia de natureza humana procedente do século XVII e nem tão pouco trabalhar com os métodos do século XIX. Somos antes de tudo animais, e tudo o que seja fazer uma abstração da dimensão natural do ser humano, sua natureza biológica e sua origem evolutiva, é falso. A estrutura de nossa mente dista muito de ser a que imaginou Descartes e sem uma compreensão profunda de seus mecanismos nunca poderemos dar conta de seu resultado mais chamativo e destacado: o Direito como objeto da cultura.

E uma vez que o inato e o adquirido se complementam mutuamente, a falta de respeito pela evidência empírica de uma natureza humana se traduz psicologicamente e socialmente em uma cultura da mentira e do poder político, não em uma cultura que valore a verdade e a justiça. É hora de reconhecer o inútil, deficiente e esclerosado que resulta insistir em uma mentalidade que recusa metodicamente a ideia de que qualquer câmbio em nossa maneira de entender a natureza humana afeta por força nossa concepção do Direito, da Moral e da Justiça.

É de fundamental importância assumir, com a necessária humildade intelectual, que a partir do momento em que a  filosofia e a ciência jurídica não são capazes de advertir (e superar) os signos de suas próprias crises, porque suas ideologias e discursos parecem ser um mito continuo de justiça e ordem, o Direito se separa da realidade e se corrompe em uma ilusão, custodiada pela moldura conceitual de concepções meramente especulativas e abstratas, completamente alheias às implicações reais e factíveis da natureza humana, alçada sobre fundamentos científicos e filosóficos sãos a partir de uma simbiose sociocultural-biológica aparecida no curso da evolução.

A eleição da forma de abordar o Direito supõe uma diferença importante no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, condiciona as estratégias que adotamos para regular nossas instituições e práticas sociais, e determina, em última instância, o repertório de ideias e teorias acerca do sentido e da finalidade do raciocínio prático ético-jurídico. Enfim, que negar ou desconsiderar as implicações jurídicas de uma compreensão realista da natureza humana é o mesmo que recusar (deliberadamente) a própria humanidade da vida, da Moral, do Direito e da Justiça. 


Autores

  • Atahualpa Fernandez

    Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

    Textos publicados pelo autor

    Site(s):
  • Atahualpa Fernandez Bisneto

    Advogado (OAB/SP); Doutor (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales (Derecho)/ Universitat de les Illes Balears/UIB/España; Mestre (M.Sc.) Evolución y Cognición Humana/ Universitat de les Illes Balears/UIB/España; Especialista Direito Penal e Processo Penal/Faculdade de Direito/Fundação Armando Álvares Penteado–FAAP/SP/Brasil;Research Scholar/Dipartimento di Scienze Penalistiche/Facoltá di Giurisprudenza/Universitá Degli Studi di Parma/Italia; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ BISNETO, Atahualpa. O pecado de algumas ideias associadas ao direito: lei, justiça, relativismo pós-moderno (parte II). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3740, 27 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25395. Acesso em: 4 maio 2024.