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Interpretação e aplicação do Direito em Ronald Dworkin.

O que o Direito pode aprender com a teoria da Literatura?

Interpretação e aplicação do Direito em Ronald Dworkin. O que o Direito pode aprender com a teoria da Literatura?

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O presente trabalho destina-se a reconstruir a metáfora do romance em cadeia teorizada por Ronald Dworkin, no intuito de demonstrar como o direito e a literatura podem compreender melhor a relação de intersubjetivismo que funda suas práticas.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS.

No ensaio De que maneira o Direito se assemelha à literatura,[1]Dworkin pretende sustentar a tese de que a prática jurídica é um exercício de interpretação de um modo geral, não apenas quando se tem de interpretar um documento ou uma lei específica. Portanto, poder-se-ia traçar um paralelo da interpretação que se desenvolve na literatura em paralelo com a interpretação jurídica. Tem-se aqui o primeiro esboço do que em um obra posterior, como O Império do Direito, será denominada de interpretação construtiva, que exige que se tomem as práticas sociais da melhor forma possível.[2]

O texto ainda adquire importância no conjunto dworkiano por ser a primeira vez que o autor apresenta o esquema do romance em cadeia. É importante aqui ter em mente que a proposta dworkiana como um todo pode ser entendida como um esforço de superação de duas tradições concorrentes, o positivismo jurídico (convencionalismo) e o realismo jurídico (pragmatismo),[3]através da afirmação da possibilidade de se chegar a uma resposta correta[4]nos casos judiciais e, em contra posição, negando a existência de um espaço discricionário para tomadas de decisões judiciais.

Para melhor compreender tais críticas, deve ser lembrado que Dworkin leva à sério o giro hermenêutico empreendido por Hans-Georg Gadamer, em sua importante obra Verdade e Método, que rompe com as posições objetivistas de Schleiermacher e Dilthey,[5] radicalizando a experiência hermenêutica e apoiando-se principalmente no modo de ser do Dasein (do ser-aí) heideggeriano.[6] Desta forma, a Hermenêutica Filosófica entende que

[...] a compreensão humana se orienta a partir de uma pré-compreensão que emerge da eventual situação existencial e que demarca o enquadramento temático e o limite de validade de cada tentativa de interpretação.[7]

Os reflexos da percepção da tal “consciência histórica”, podem ser sentidos no pensamento de Dworkin, como lembra Carvalho Netto:

Para ele, a unicidade e a irrepetibilidade que caracterizam todos os eventos históricos, ou seja, também qualquer caso concreto sobre o qual se pretenda tutela jurisdicional, exigem do juiz hercúleo esforço no sentido de encontrar no ordenamento considerado em sua inteireza a única decisão correta para este caso específico irrepetível por definição.[8]

Todavia, esse enfoque hermenêutico presente no pensamento do professor de Oxford, que o faz considerar a dimensão histórica para aplicação do direito em casos presentes, é também uma hermenêutica crítica:[9]não se trata de exclusivamente continuar o que sempre se fez, na completude de seus detalhes, mas, ao contrário, o intérprete deve examinar o sentido para que possa compreender o direito à melhor luz, o que inclui, não somente a repetição de uma prática, mas também modificação, limitação ou mesmo a eliminação da mesma.[10]

Para explicitar tal tarefa, Dworkin inicia desenvolvendo a distinção entre princípios, regras e diretrizes políticas.[11] Assim, Dworkin afirma que a diferença entre princípios e regras tem natureza lógico-argumentativa, de modo que

Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso nada contribui para a decisão.[12]

Outra característica das regras é que, pelo menos em tese, “todas as exceções podem ser arroladas e o quanto mais o forem, mais completo será o enunciado da regra”.[13]Se duas regras entram em conflito apenas uma delas fará a subsunção ao caso concreto. A decisão de saber qual delas será aplicada e qual delas será abandonada deve ser feita recorrendo-se às considerações que estão além das próprias regras. Essas considerações versam, por exemplo, os critérios clássicos de solução de antinomias do positivismo: (1) o critério cronológico - em que a norma posterior prevalece sobre a norma posterior; (2) o critério hierárquico, em que a norma de grau superior prevalece sobre a norma de grau inferior; e (3) o critério da especialidade, em que a norma especial prevalece sobre a norma geral. Assim, não se pode dizer que uma regra é mais importante que outras enquanto parte de um mesmo sistema de regras. Logo, uma não suplanta a outra, por ter uma importância maior no caso concreto.

Já os princípios jurídicos não apresentam as conseqüências jurídicas que seguem as regras quando as condições de aplicação são dadas. Eles não pretendem, nem mesmo, estabelecer as condições que tornam a sua aplicação necessária. Ao contrário, eles enunciam uma razão que conduz a um argumento e a uma determinada direção. Com relação aos princípios não há exceções, pois elas não são, nem mesmo em teoria, susceptíveis de enumeração. Os princípios possuem também a dimensão de peso e importância que é parte integrante do seu conceito. Assim, quando os princípios se conflitam o juiz deve levar em conta a força relativa de cada um deles, devendo-se aplicar aquele que for mais adequado ao caso concreto, como se fosse uma razão que se inclinasse para um posicionamento e não para outro.[14] Sobre a diferenciação dos princípios em sentido estrito e das diretrizes políticas (do inglês, policy), o princípio em sentido estrito é aquele que contém uma exigência de justiça, equidade, devido processo legal ou qualquer outra dimensão de moralidade. Por sua vez, o padrão denominado diretriz política estabelece um objetivo a ser alcançado, que geralmente, consiste na melhoria de algum aspecto econômico, político ou social da comunidade, buscando promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável.[15]

Na sequência de seu pensamento, Dworkin buscou desenvolver a figura metafórica do Juiz Hércules,[16]um juiz filósofo capaz de resolver questões problemáticas (hard cases) através de uma análise completa da legislação, de precedentes e dos princípios aplicados ao caso. 

O passo seguinte foi justamente o desenvolvimento de uma segunda metáfora, a do romance em cadeia, que será objeto do presente texto. Mas o projeto dworkiano não tem fim aqui. Ele foi complementado com a noção da comunidade de princípios, explorada conclusivamente na obra O Império do Direito.[17]Tudo isso como elementos essenciais para a construção de uma Teoria do Direito como Integridade, que pretende levar o direito à sério, seja por negar a discricionariedade, seja por negar a possibilidades de decisões conciliatórias, que não se baseiem em argumentos de princípios. Trata-se, então, de uma proposta condizente com o paradigma do Estado Democrático de Direito, como bem concordará Habermas:

A teoria do Direito de Ronald Dworkin pode ser entendida como uma tentativa de se evitar as falhas das soluções realista, positivista e hermenêutica, bem como de explicar com base em direitos deontologicamente concebidos como a decisão judicial pode cumprir a um só tempo os requisitos da certeza do Direito e da aceitabilidade racional.[18]


1 - O DIREITO. 

O problema central que se coloca para uma doutrina analítica do direito é como compreender o sentido a ser atribuído às proposições jurídicas,[19]que são os vários enunciados formulados por juristas ao descrever o direito em um determinado ponto.

Mas de que tratam tais enunciados? Quais os critérios que permitem afirmar que um enunciado é verdadeiro ou falso? Para os integrantes da tradição positivista, uma proposição jurídica somente poderia ser considerada verdadeira se a mesma fosse fruto de um evento legislativo, pois o direito seria aquilo previsto pelas convenções jurídicas no passado:

A dificuldade surge porque as proposições de Direito parecem ser descritivas – dizem respeito a como as coisas são no Direito, não como deveriam ser – e, no entanto, revelou-se extremamente difícil dizer exatamente o que é que elas descrevem. Os positivistas jurídicos acreditam que as proposições de Direito são, na verdade, inteiramente descritivas: são trechos da história. Uma proposição jurídica, a seu ver, somente é verdadeira caso tenha ocorrido algum evento de natureza legislativa do tipo citado; caso contrário, não é.[20]

Tal afirmação pode ser bem compreendida tomando casos mais simples, entretanto, em casos mais complexos essa análise esbarra em falhas. Dworkin menciona, por exemplo, o problema que surge frente a uma dada ação afirmativa, de modo que não será possível encontrar uma resposta em nenhum texto normativo ou decisão judicial do passado. Assim, poder-se-ia concluir de outros dois modos: (1) que o enunciado da ação afirmativa não apresenta uma proposição descritiva, mas expressa o que o falante prefere em termos de uma política pessoal; ou (2) que os enunciados controvertidos são tentativas de descrever um direito objetivo (ou até mesmo natural), de modo a se ligar a uma verdade moral também objetiva, ao invés de histórica. No entanto, para Dworkin, nenhum desses esquemas é plausível, pois a afirmação de constitucionalidade de uma ação afirmativa não julgada pelos Tribunais é uma afirmação que pretende descrever o Direito como ele é, desse modo não se está afirmando que o direito é (ou deveria ser) o que o falante deseja que fosse, a partir de uma dada teoria moral.

Dworkin compreende esse problema a partir de uma outra luz:

[...] as proposições de Direito não são meras descrições da história jurídica, de maneira inequívoca, nem são simples valorativas, em algum sentido dissociado da história jurídica. São interpretativas da história jurídica, que combina elementos tanto da descrição quando da valoração, sendo porém diferente de ambas.[21]

Tomando por base o exemplo da literatura, compreende-se como equívoco e limitado o conceito de interpretação adotado pelo direito. Isto porque os juristas tomaram como sendo interpretação um recurso para descobrir o sentido do texto normativo quando há uma obscuridade presente.[22]E um dos principais métodos utilizados é encontrar a vontade dos autores da regra jurídica, seja de uma lei, seja da Constituição. Daí, a importância do trabalho dworkiano, pois por meio do paralelo com a interpretação literária, pode-se perceber a impossibilidade - e desnecessidade - de atingir a intenção do autor.

Como já afirmado, o presente ensaio, bem como todo a construção do jurista norte-americano, se constrói a partir de uma compreensão do giro hermenêutico-pragmático operado na linguagem,[23]o que parece estar ausente em grande parte dos representantes do discurso jurídico moderno. A tese da intenção do autor parece ser ainda muito difundida, bem como uma outra afirmação, mais cética, no sentido de que os juízes fingem descobrir a intenção do legislador, quando na realidade estão impondo uma visão própria que a lei deveria ter sido e criando novos direitos. O mesmo aconteceria com a aplicação dos precedentes.[24]

Contra essas posições, Dworkin apresenta, primeiro na perspectiva literária, depois jurídica, uma forma hermenêutica de compreensão do problema.[25]Isso, porque para ele o problema da interpretação jurídica deve ser compreendida dentro de um quadro maior que envolva a interpretação como um todo, como um modo de conhecimento, e não como uma atividade sui generis. Por isso mesmo, mostra-se necessário que juristas estudem um pouco de interpretação literária.

Mas, com isso, não se está afirmando que a questão na seara da literatura já esteja resolvida, pois ela continua a ser polêmica. Entretanto, no meio desse debate diversas teorias podem ganhar destaques e poderiam muito bem enriquecer a forma de se compreender a interpretação jurídica, já que “na literatura foram defendidas muito mais teorias da interpretação que no Direito, inclusive teorias que contestam a distinção categórica entre descrição e valoração que debilitou a teoria jurídica”.[26]


2 - A LITERATURA. 

2.1 - A HIPÓTESE ESTÉTICA.

Pelas razoes anteriormente demonstradas, tem-se que o foco de análise das teses literárias sobre interpretação deveria ser não tanto a busca da intenção do autor da obra, mas a forma de interpretação que se preocupe com significado de uma obra como um todo. Elas poderão assumir, então, a forma de indagações sobre os personagens, sobre eventos por detrás da história ou sobre o tema do texto como um todo.[27]Assim, de fato, tais teorias podem, por exemplo, ter importância para um diretor que está montando uma peça, bem como para auxiliar numa compreensão melhor de partes importantes de nosso ambiente cultural. É por isso que, embora haja divergências entre os críticos, a teses objetivam interpretar uma obra literária da melhor maneira possível.

Contudo, tal afirmação pode suscitar uma rejeição por parte de estudiosos que identificarão uma confusão entre interpretação e crítica literária. Esses podem muito bem tomar assento ao lado dos mesmos juristas céticos que afirmam a impossibilidade de uma interpretação. Sustentando uma teoria diferente Dworkin afirma que similarmente ao direito,

[a] interpretação de um texto tenta mostrá-lo como a melhor obra de arte que ele pode ser, e o pronome acentua a diferença entre explicar uma obra e transformá-la em outra. Talvez Shakespeare pudesse ter escrito uma peça melhor com base nas fontes que utilizou para Hamlet e, nessa peça melhor, o herói teria sido um homem de ação mais vigoroso. Não decorre daí, que Hamlet, a peça que ele escreveu, seja realmente como essa outra peça. Naturalmente, uma teoria da interpretação deve conter uma subteoria sobre a identidade de uma obra de arte para ser capaz de distinguir entre interpretar e modificar uma obra.[28]

Em busca de estabelecer uma restrição, algumas teorias contemporâneas de interpretação vão fazer uso de um texto canônico, isto é, em nome da identidade do texto faz-se uma exigência de que todas as palavras sejam consideradas, sem que seja possível sua substituição no intuito de tornar a obra algo melhor. Contudo, um texto pode se manter o mesmo, ainda que ocorra uma troca de palavras na hora de se contar o acontecido. É o caso de uma piada que pode sofrer diversas alterações sem que haja perda da sua estrutura básica. O que se quer, então, demonstrar é que o estilo interpretativo de um crítico é sensível às suas confecções teóricas a respeito da natureza de um texto, bem como a problemas de coerência ou integridade da obra de arte. Assim,

Uma interpretação não pode tornar uma obra de arte superior se trata grande parte do texto como irrelevante, ou boa parte dos incidentes como acidentes, ou boa parte do tropo ou estilo como desarticulado e respondendo apenas a padrões autônomos das belas-artes.[29]

Mas ao apresentar essa tese, já teve em mente a possibilidade de objeções a serem levantadas por seus críticos. O que se pode considerar como integridade? Qual forma de unidade pode ser desejável?

Para tais perguntas diversas escolas de interpretação se levantarão. O problema é que tais escolas se prendem mais a aspectos quase formais da arte, do que à função e ao propósito da arte compreendida de uma maneira mais ampla. E por isso, será defendida uma ideia de matriz essencialmente gadameriana no sentido de que toda teoria da arte não pode existir desconectada de uma teoria filosófica (ou sociológica, psicológica ou cosmológica, dependendo do caso). O fato é que tais supostos moldarão o olhar daquele que lê, em razão dos seus preconceitos.[30]Um exemplo fornecido pelo texto mostra bem isso: alguém que parte do ponto de vista religioso provavelmente terá uma teoria da arte diferente de outra pessoa que a rejeite, fazendo com que cada uma enxergue a mesma obra, porém, com olhos diferentes. Mas também é problemático supor que todas essas teorias de fundo têm uma compreensão desenvolvida e se alinham conscientemente a uma escola da interpretação, pois a literatura se mostra valiosa em múltiplos sentidos, não podendo ficar presa a uma única função ou propósito.

Na minha opinião, os melhores críticos negam que a literatura tenha uma única função ou propósito. Um romance ou peça podem ser valiosos em inúmeros sentidos, alguns dos quais descobrimos lendo, olhando ou escutando, não mediante uma reflexão abstrata de como deve ser e para que deve servir a boa arte.[31]

Mesmo assim, pode-se adiantar uma crítica que pode ser feita à teoria estética no sentido de ser ela trivial. Por isso, diferentes teorias de arte são frutos de distintas teorias da interpretação.

Como as opiniões das pessoas sobre o que constitui a boa arte são inerentemente subjetivas, a hipótese estética abandona a esperança de resgatar a objetividade na interpretação, exceto, talvez, entre os que sustentam a mesma teoria da arte, o que não é muito útil.[32]

Assim, tanto as concepções formais como as opiniões normativas do que seja uma boa arte, mostram-se presentes no julgamento de uma determinada leitura, fazendo com que ela possa ser melhor ou pior que outra. Mas ainda assim, uma objeção pode ser posta: não seria trivial uma teoria da arte? Isto é: diferentes teorias sobre a interpretação existirem por não existem diferentes teoria sobre a arte? Dessa forma, verificar-se-ia um fracasso na pretensão de objetividade de hipótese estética. Mas tal conclusão seria um pouco apressada. Esse ponto de vista compreende as teorias acadêmicas de interpretação como análises da própria ideia de interpretação, de modo que deixa de vê-las como possíveis melhores respostas para uma questão substantiva que é posta pela interpretação. O que se quer, então, afirmar é que partindo dessas premissas desaparecem os muros que separam uma teoria da interpretação de uma determinada interpretação. Isto é:

Não há mais uma distinção categórica entre a interpretação, concebida como algo que revela o real significado de uma obra de arte, e a crítica, concebida como avaliação de seu sucesso ou importância. Ainda resta uma distinção, pois sempre existe uma diferença entre dizer quão boa pode se tornar uma obra e dizer quão boa ela é. Mas convicções valorativas sobre a arte figuram em ambos os julgamentos.[33]

Mas como fica, então, o problema da objetividade, já que ainda permanece aberta a questão sobre ser possível considerar os juízos sobre a arte como verdadeiros ou falso, válidos ou inválidos?

Acontece que o problema da objetividade não se apresenta apenas para uma teoria estética, mas ultrapassa suas fronteiras, sendo tema de acirrados debates na ética e na filosofia da linguagem. No caso de Dworkin, ele assume a posição de que não é possível demonstrar como uma afirmação estética possa ser verdadeira ou falsa. Assim, se a demonstrabilidade desses juízos é condição para o que alguns críticos consideram como objetividade, então se pode tomar os juízos estéticos como subjetivos. Mas, é importante, que fique claro que com isso não se quer afirmar que não se possa dizer que uma teoria sobre a arte posa ser melhor que outra, ou que não seja possível produzir uma teoria melhor das que já foram pensadas.

É por isso mesmo que Dworkin (2001:228) rejeita a posição de E. D. Hirsch,[34]segundo a qual poderia, através de sua teoria, tornar objetiva a interpretação e tornar válidas as interpretações particulares. Para tanto, tem que se ter em mente que a interpretação é “um empreendimento, uma instituição pública, sendo errado supor, a priori, que as proposições centrais a qualquer empreendimento público devam ser passíveis de validação”.[35]O que se deve fazer é estudar uma série de atividades em que pessoas acreditam ter boas razões para afirmarem algo que se considera válido, sem partirem de um ponto de vista individual. Assim, põe-se de lado a distinção entre qual perspectiva dar mais importância, a individual ou a coletiva, para se afirmar que existem ligações argumentativas entre teorias da interpretação e teorias de arte.

Meu objetivo é exatamente demonstrar que a ligação é recíproca, de modo que qualquer um chamado a defender uma abordagem particular de interpretação seria forçado a valer-se de aspectos mais gerais de uma teoria da arte, quer ele o percebesse quer não.[36]

O argumento cético de que a “interpretação cria o texto”, então, fracassa pois o que pode ser considerado como uma obra de arte deve harmonizar-se com o que se considera um ato de interpretação de uma obra de arte, bem como um objeto físico deve se adequar a uma teoria do conhecimento, apenas se o inverso também for válido. 

2.2 - A INTENÇÃO DO AUTOR.

Por tais razões, o principal teste para a hipótese estética estaria no seu potencial explicativo-crítico. Isto porque as teorias estéticas não podem ser vistas como análises independentes do que significa interpretar algo. Elas baseiam-se em teorias normativas sobre a arte, de modo que também são vulneráveis às criticas que podem ser formuladas contra a teoria normativa que se fundamentam.

Algumas dessas teorias tomam por base a pressuposição de que o valioso em uma obra de arte é determinado pela intenção do autor. No entanto, ao fazer isso, pressupõem que na obra de arte se opere uma comunicação do tipo falante-público.

Logo, para os intencionalistas o valioso não seria uma descrição de uma obra, mas o sentido estrito da intenção do autor. É por isso que uma teoria intencionalista acredita ser uma melhor teoria da interpretação, ao invés de uma mera hipótese estética. Isto porque tal tese não se preocupa em oferecer uma melhor interpretação de uma obra, mas uma interpretação que possa ser considera como objetiva.

Contudo, não se pode furtar dois questionamentos: (1) é possível descobrir o que o autor realmente pretendia?; e (2) isso é realmente importante?

Para os intencionalistas é fundamental saber realmente – ou pelo menos com aproximação - o que realmente Shakespeare pensava sobre Hamlet – o personagem teria sido imaginado pelo autor como um louco ou alguém que apenas estava fingindo? - para poder chegar a uma conclusão sobre a peça.[37]É por isso que os intencionalista tomam como elemento central à interpretação o estado de espírito do autor. Entretanto, o que está pressuposto à tese intencionalista é a ideia de que o valor ou significado da arte é vinculado ao que o autor pretendia. Logo, vincula-se a uma teoria normativa - que é pelo menos controvertida - e não a uma observação neutra. Assim, mesmo a tese intencionalista ainda pode ser compreendida como uma hipótese estética.

Uma segunda objeção feita por esses pensadores, pode ser suscitada, trazendo à luz um argumento interessante.

Os intencionalistas tornam central à interpretação o estado de espírito do autor. Mas compreendem erroneamente, até onde sei, certas complexidades desse estado de espírito em particular, ignoram como interagem as intenções para uma obra e as opiniões sobre ela.[38]

Se tomarmos o exemplo baseado no livro A mulher do tenente francês, de John Fowles[39]- no qual parece que o autor mudou de ideia sobre sua história na metade do livro - o intencionalista acha que devemos escolher entre duas opções: 1) o autor repentinamente percebe que tinha uma intenção subconsciente, que só agora descobre; 2) ou mudou de intenção depois. Mas nenhuma dessas opções se mostra como satisfatória. No primeiro caso, explicações do tipo psicanalista se mostram incapazes de resolver problemas desse tipo, pois não podem se apoiar em provas (empíricas) do tipo que os próprios psicanalistas exigem. O que acontece é que as ideias sobre os personagens do livro derivam não de confrontações sobre o eu anterior do autor, mas da própria obra que ele criou. Rebatendo a segunda observação, também não podemos compreender a mudança como uma intenção nova e distinta. Como Dworkin afirma, não é uma opinião sobre que tipo de personagem criar, mas sim sobre o personagem que ele já criou.[40]Também, não se trata de uma observação voltada para o que os outros irão compreender sobre o livro. O que acontece, então, é que a mudança no texto se deve a uma análise do próprio texto já escrito, pois o autor teve o cuidado de tratar seus personagens como se eles fossem de fato pessoas reais. Assim, o autor teve de interpretar sua própria obra, não descobrir o que se ocultava nas profundezas de seu subconsciente. Se uma outra alteração aconteceu ao ver o filme feito, não se trata de uma nova intenção, mas de uma nova interpretação sobre a obra.

Os intencionalistas, então, desconsideram que um autor pode separar o que escreveu de suas intenções e crenças, de modo a tratá-las como objeto em si. Por isso mesmo, pode compreender que novas conclusões são possíveis, de modo a que seu livro possa ser lido de modo mais coerente, da melhor forma possível.[41]

Suponho que considerar algo que se produziu como um romance, um poema ou uma pintura, em vez de um conjunto de proposições ou sinais, depende de considerá-lo como algo que pode ser separado e interpretado no sentido que descrevi. De qualquer modo, é assim que os próprios autores consideram o que fizeram. As intenções dos autores não são simplesmente conjuntivas, como as de alguém, que vai ao mercado com uma lista de compras, mas estruturadas, de modo que as mais concretas delas, como as intenções sobre os motivos de um personagem particular em um romance, dependem de opiniões interpretativas cujo acerto varia com o que é produzido e que podem ser alteradas de tempos em tempos.[42]

Talvez fosse possível isolar as opiniões de um autor fruto de um momento específico, mas mesmo que isso fosse considerada como “intenções”, estar-se-ia ignorando outros níveis de intenções, como por exemplo, a intenção de criar uma obra que não seja assim determinada. Mas isso passa despercebido pelos defensores da escola de intenção do autor ao tomarem o valor de uma obra de arte a partir de uma visão restrita das possíveis intenções de um autor.


3 – DIREITO E LITERATURA. 

3.1 - A CORRENTE DO DIREITO.

A partir do raciocínio que foi desenvolvido até aqui, é importante ter em mente que não há uma separação estanque entre criação e interpretação. Tanto quando o artista que ao criar, deve interpretar a obra, o crítico ao interpretar também cria.[43]Mas a partir disso não se pode cair no ceticismo de afirmar que não há diferença entre o crítico e o artista. Por isso mesmo a interpretação literária pode se mostrar como um ótimo exemplo para o problema da interpretação jurídica. E partindo desse ponto, Dworkin lança mão da metáfora do romance em cadeia, que consiste no seguinte exercício imaginativo:

Suponha que um grupo de romancistas seja contratado para um determinado projeto e que jogue dados para definir a ordem do jogo. O de número mais baixo escreve o capítulo de abertura de um romance, que ele depois manda para o número seguinte, o qual acrescenta um capítulo, com a compreensão de que está escrevendo um capítulo a esse romance, não começando outro, e, depois, manda os dois capítulos para o número seguinte, e assim por diante. Ora, cada romancista, a não ser o primeiro, tem a dupla responsabilidade de interpretar e criar, pois precisa ler tudo o que foi feito antes para estabelecer, no sentido interpretativista, o que é o romance criado até então. Deve decidir como os personagens são “realmente”, que motivos os orientam, qual é o tema ou o propósito do romance em desenvolvimento, até que ponto algum recurso ou figura literária, consciente ou inconscientemente usado, contribui para estes, e se deve ser ampliado, refinado, aparado ou rejeitado para impedir o romance em uma direção e não em outra. Isso deve ser interpretação em um estilo não subordinado à intenção porque, pelo menos para todos os romancistas após o segundo, não há um único autor cujas intenções qualquer intérprete possa, pelas regras do projeto, considerar como decisivas.[44]

Mas mesmo o primeiro autor do romance terá a tarefa de interpretar a obra em elaboração, bem como o gênero que se propõe a escrever. Assim, Dworkin (2001:236) afirma que cada romancista não tem liberdade criativa, pois há um dever de escolher a interpretação que para ele faça da obra em continuação a melhor possível.[45]O que se espera nesse exercício literário é que o romance seja escrito como um texto único, integrado, e não simplesmente como uma série de contos espaçados, independentes que somente tem em comuns os nomes dos personagens. 

Mas qual a relação com o problema da interpretação jurídica? Para a teoria de Dworkin, a decisão de casos controversos - dos hard cases – é mais ou menos como esse exercício literário.

Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance escrito até então. Qualquer juiz obrigado a decidir uma demanda descobrirá, se olhar nos livros adequados, registro de muitos casos plausivelmente similares, decididos há décadas ou mesmo séculos por muitos outros juízes, de estilos e filosofias judiciais e políticas diferentes, em períodos nos quais o processo e as convenções judiciais eram diferentes. Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturadas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção.[46]

Mas qual, então, seria o objeto de discordância de quem oferta objeções à melhor interpretação do precedente jurídico? No caso da interpretação artística, demonstrou-se a tese de que uma interpretação para ver a obra à sua melhor luz, deve levar em consideração tanto características formais - de identidade, de coerência e de integridade - como características substantivas de valor artístico. Acontece que ambas as dimensões também estão presentes na interpretação jurídica.

Mas a finalidade ou valor, aqui, não pode significar valor artístico, porque o Direito, ao contrário da literatura, não é um empreendimento artístico. O Direito é um empreendimento político, cuja finalidade geral, se é que tem alguma, é coordenar o esforço social e individual, ou resolver disputas sociais e individuais, ou assegurar a justiça entre os cidadãos e entre eles e seu governo, ou alguma combinação dessas alternativas.[47]

É por isso mesmo que se pode afirmar contra os céticos e os defensores da discricionariedade para os magistrados: nenhum juiz é livre para descobrir na história jurídica o que for que ache que deveria estar lá. Há um dever de interpretar a história jurídica, ao invés de inventá-la. Obviamente, que com isso Dworkin não está afirmando ser possível o uso de um método capaz de determinar a interpretação, pois estaria com isso negando o giro linguístico, bem como base teórica, a hermenêutica filosófica.[48]

Quando uma lei, Constituição ou outro documento jurídico é parte da história doutrinal, a intenção do falante desempenhará um papel. Mas a escolha de qual dos vários sentidos, fundamentalmente diferentes, da intenção do falante ou do legislador é o sentido adequado, não pode ser remetida à intenção de ninguém, devendo ser decidida, por quem quer que tome da decisão, como uma questão de teoria política (DWORKIN, 2001:240).

Nenhuma sequência de decisões, contudo, é isenta de apresentar contraexemplos, que sugiram direções diferentes. Para tanto, se exige o desenvolvimento de uma doutrina do erro no julgamento dos casos anteriores. Importante esclarecer que essa flexibilização não destrói a distinção entre interpretação e decisões novas sobre o que o direito deve ser (DWORKIN, 2001:240-241). Um juiz ao verificar a finalidade ou função do direito acabará por incluir uma concepção de integridade e de coerência do direito, tomado como uma instituição, o que irá tutelar e limitar suas convicções pessoais.

Mesmo assim, dois magistrados poderão apresentar interpretações divergentes. Do mesmo modo que um poema pode permitir duas leituras coerentes, decisões do passado podem fornecer apoio a dois princípios diferentes, satisfazendo duas teorias distintas de adequação ao caso concreto. Por isso mesmo, Dworkin (2001:241) chama a atenção para o fato de que uma teoria política substantiva pode ser decisiva.[49]

Poderíamos resumir esses pontos desta maneira. Os juízes desenvolvem uma abordagem particular da interpretação jurídica formando e aperfeiçoando uma teoria política sensível a essas questões, de que dependerá a interpretação em casos específicos, e chamam isso de sua filosofia jurídica. Ela incluirá características estruturais, que elaborem a exigência geral de que uma interpretação se ajuste à história doutrinal, e afirmações substantivas sobre os objetivos sociais e os princípios de justiça. A opinião de um juiz sobre a melhor interpretação será, portanto, a conseqüência de convenções que outros juízes não precisam compartilhar. Se um juiz acredita que o propósito dominante de um sistema jurídico, o principal objetivo a que deve servir, é o econômico, então verá nas decisões passadas sobre acidentes alguma estratégia para reduzir os custos econômicos dos acidentes de modo geral. Outros juízes, que acham repugnante qualquer imagem desse tipo da função do Direito, não descobrirão nenhuma estratégia assim na história, mas apenas, talvez, uma tentativa de reforçar a moral convencional referente à falta e a responsabilidade. Se insistirmos em uma grau elevado de neutralidade na nossa descrição da interpretação jurídica, portanto, não podemos tornar nossa descrição da natureza da interpretação jurídica muito mais concreta do que fiz.[50] 

3.2 – A INTENÇÃO DO AUTOR NO DIREITO.

Importante, então, ter em mente a distinção entre subjetividade e objetividade na interpretação para que seja possível escapar dos argumentos levantados, quer por convencionalista - que esperam encontrá-lo na história -, quer por adeptos do pragmatismo - que acreditam que o direito é algo criado por juízes de uma maneira individualista, conforme critérios pessoais.[51]Assim, o direito não apresenta nenhuma vantagem - principalmente quanto ao problema da objetividade - frente a literatura em termos de representar uma melhor interpretação, ao contrário do que alguns podem pensar. Trata-se mais de um problema geral de bases filosóficas que permite o desenvolvimento de níveis de concepção do direito e, consequentemente, da conclusão por um tipo de interpretação tida como certa.

Contudo, mesmo após todo o debate acima travado, uma importante questão ainda se mostra pertinente: a hipótese política sobre a interpretação jurídica desenvolvida por Dworkin é realmente contrária ao argumento a favor da intenção do autor?

Como já explicado, para os intencionistas, o direito é o sentido pretendido pelos vários atores do processo jurídico em sentido amplo – ou seja, constituintes, parlamentares, magistrados, administradores públicos, etc. No entanto, tais defensores poderiam, então, afirmar que a hipótese estética levantada por Dworkin não é contrária à tese da intenção do autor, já que a interpretação dos legisladores, bem como dos juízes, pode representar a melhor teoria política. É por isso mesmo que a questão deve ser posta sob outra luz como vai compreender Dworkin:

[...] se a presente objeção é realmente uma objeção à argumentação desenvolvida até aqui, ela deve ser compreendida de modo diferente, como propondo, por exemplo, que o próprio “significado” da interpretação no Direito exige que apenas essas intenções oficiais sejam consideradas ou, que, pelo menos, haja um firme consenso entre juristas nesse sentido.[52]

Mas se considerarmos pertinente essa objeção e admitirmos que ela ofereça uma base sólida, ela deverá se voltar para um texto jurídico canônico. Mas assim, será possível notar que a intenção do legislador é complexa, tal e qual a intenção de um romancista. Dworkin então elabora o seguinte exemplo:

Suponha que um constituinte vote a favor de uma cláusula que garante a igualdade de tratamento, sem distinção de raça, em questões que afetam interesses fundamentais das pessoas; mas ele pensa que a educação não é uma questão de interesse fundamental e, portanto, não acredita que a cláusula torna inconstitucionais escolas segregadas.[53]

Podem ser identificadas duas intenções, uma abstrata e outra concreta: proibir discriminação no que é realmente de interesse fundamental; e não proibir escolas segregadas. Mas, pode-se ver que tais intenções estão em polos isolados, sendo a mesma intenção, só que descrita de duas maneiras diferentes. Então qual descrição dessa mesma intenção será tomada como canônica para uma teoria da intenção legislativa?

Se aceitarmos a primeira descrição, então um juiz que deseja seguir as intenções do constituinte, mas acredita que a educação é uma questão de interesse fundamental irá considerar a segregação inconstitucional. Se aceitarmos a segunda, não o fará. A escolha entre as duas descrições não pode ser feita mediante nenhuma reflexão adicional sobre o que uma intenção realmente é. Deve ser feita decidindo-se que uma descrição é mais adequada ou com base em outros fundamentos abertamente políticos.[54]

Deve-se, então, lembrar que a teoria da intencionalista se mostra por demais pobre. Se fossem examinadas todas as decisões judiciais sobre uma determinada matéria, talvez fosse possível chegar (ou pelo menos especular com uma probabilidade de certeza maior) às explicações de ordem psicológicas, econômicas ou sociais que levaram o juiz pensar o que de fato pensou. Mas o resultado da pesquisa seria diferente para cada juiz anterior e uma ordem só apareceria por meio da inclusão de alguma espécie de sumário estatístico. Mas tudo isso ainda não apresentaria utilidade para um juiz decidir um caso semelhante hoje, do que seria uma informação similar para um romancista da participante da cadeia imaginária. Ainda se exige um novo exercício de interpretação que não será nem uma pesquisa histórica pura, nem uma ideia completamente nova de como as coisas deveriam ser.

A saída que parece ser posta para um defensor da tese do intencionalismo seria a seleção de um juiz em particular ou de um pequeno grupo de magistrados situados no passado. Assim poder-se-ia perguntar sobre qual regra esse juiz ou esse grupo pretendeu fixar para o futuro. Mas ao fazer isso, ele estaria tomando os juízes como legisladores e, retendo a todos os problemas que surgem ao se interpretar uma lei.

Mesmo assim, no fim das contas, não evitaria os problemas especiais da prestação jurisdicional no Common Law, porque o juiz que assim interpretasse teria de supor-se com o direito de examinar apenas as intenções do juiz ou juízes anteriores que selecionou, e não poderia supor tal coisa, a menos que acreditasse que ser isso o que juízes na sua posição deveriam fazer era fruto da prática judicial como um todo.[55] 

3.3 – A POLÍTICA NA INTERPRETAÇÃO.

Dworkin reconhece que a partir de suas afirmações sobre o papel da política na interpretação jurídica dever-se-ia encontrar opiniões que fossem de cunho liberal, radical ou conservadora sobre o que a Constituição e as leis deveriam ser, mas ainda, como elas são, o que de fato acontece mesmo. Um exemplo que pode ser ricamente explorado é a interpretação da cláusula de igual proteção da Constituição norte-americana, pois esta não pode ser compreendida apartada de alguma teoria sobre o que seja a igualdade política e até que ponto a igualdade é exigida. Por isso mesmo, juristas conservadores argumentam a favor de supostas ideias ligadas às intenções do autor e acusam os demais de estarem inventando o direito.

Mas trata-se de uma vociferação com o intuito de ocultar o papel que suas próprias convicções políticas desempenham na sua escolha do estilo interpretativo, e os grandes debates jurídicos quanto à cláusula da igualdade de direitos teriam sido mais esclarecedores se fosse mais amplamente reconhecido que valer-se de uma teoria política não é uma corrupção da interpretação, mas parte do que significa interpretação.[56]

Mas qual o papel da política no desenvolvimento de uma determinada interpretação? Segundo Stanley Fish,[57]no caso da literatura, as disputas são mais políticas que lógicas. Trata-se de uma busca por parte dos professores por domínio. Mas trata-se também de um olhar externo sob a questão, pois refere-se as causas de ascensão de uma ou de outra abordagem.

Por isso mesmo, a proposta dworkiana passa por um olhar interno, ou seja, ao invés de se discutir a política da interpretação, um debate sobre a política na interpretação. Em outros termos, significa indagar os limites para o uso de princípios de moralidade política a favor de uma interpretação particular de uma obra. Para o autor,

Há muitas possibilidades, [...]. Disseram que nosso compromisso com o feminismo, nossa fidelidade à nação ou nossa insatisfação com a ascensão da nova direita devem influenciar nossa avaliação e apreciação da literatura. [...] mas se nossas convicções a respeito dessas questões políticas especificas contam na decisão de até que ponto um romance, uma peça ou um poema são bons, então devem contar também na decisão de qual interpretação é a melhor, entre várias interpretações particulares dessas obras. Ou assim deve ser se meu argumento for fundamentado.[58]

Há, então, uma ligação entre teoria estética e política. Assim como uma teoria estética irá demandar uma teoria de identidade pessoal adequada para marcar os limites entre pessoas e circunstâncias, ou entre pessoas ou negar tais fronteira, uma teoria abrangente de justiça social também encontrará suas raízes sob as mesmas questões ou em outras similares.[59]Deste modo, Dworkin conclui seu pensamento no sentido de questionar se uma solução não seria indagar sobre a existência de bases filosóficas compartilhadas por teorias estéticas, teorias políticas e teorias jurídicas.


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Notas

[1] Publicado para o português como o capítulo 6 da obra DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, mas publicado pela primeira vez em setembro de 1982, na Critical Inquiry.

[2]DWORKIN. O Império do Direito. p. 63-64.

[3]{C}Dworkin busca demonstrar em suas obras como o convencionalismo - o que inclui o positivismo jurídico - e o pragmatismo – que inclui o realismo jurídico - se mostram como respostas inadequadas à compreensão do direito democrático. Para o convencionalismo, as decisões políticas do passado constituem os critérios que deverão fundamentar as decisões do presente e, na falta delas, ou seja, no caso de lacunas, abre-se para que o próprio magistrado crie normas por meio de um poder discricionário, como esclarece Calsamiglia (El Concepto de Integridad em Dworkin. Doxa. p. 161). Desta forma, a prática jurídica se resume na obediência às convenções anteriormente estabelecidas, portanto, ignora-se que com tempo decorram graduais modificações na forma como os operadores do Direito se apropriam dessas convenções. Diferentemente, para o pragmatismo, os juízes não devem ficar presos às convenções do passado, mas sim devem se preocupar com a justiça da decisão, mas de modo a vincular esse ideal a uma questão de bem estar geral. Essa tradição, então, volta-se para uma perspectiva utilitarista do direito. Nega-se, com isso, que as pessoas possuam qualquer direito subjetivo garantido, de modo que os juízes agem como se as pessoas tivessem esses direitos se em longo prazo isso servir melhor à sociedade (DWORKIN. O Império do Direito, p. 187).

[4]O presente trabalho faz uso da expressão resposta correta ao invés de resposta certa, pois ao contrário da opção feita pelos tradutores nacionais (DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 175), pode-se perceber que a resposta correta encerra em si uma pretensão de validade universalizável referente às normas deontológicas. Para melhor compreensão ver: HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004; e GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriateness: application discourses in morality and law. Trad. John Farrell. New York: State University of New York, 1993. O presente trabalho faz uso da expressão resposta correta ao invés de resposta certa, pois ao contrário da opção feita pelos tradutores nacionais (DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 175), pode-se perceber que a resposta correta encerra em si uma pretensão de validade universalizável referente às normas deontológicas. Para melhor compreensão ver: HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004; e GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriateness: application discourses in morality and law. Trad. John Farrell. New York: State University of New York, 1993.

[5]Conforme o posicionamento de Gadamer (Verdade e método: Fundamentos de uma hermenêutica filosófica, p.28): “O objetivo de Dilthey é manifesto: ele pretende descobrir, nos confins da experiência humana e da herança idealista da escola histórica, um fundamento novo e epistemologicamente consistente; é isso que explica a sua ideia de completar a crítica da razão pura de Kant com uma ‘crítica da razão histórica’”.

[6]{C}Conforme lição de Giovanni Reale (História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. Trad. Dario Antiseri. São Paulo: Paulus, 1991. v. 3, p. 583), o ser-aí “indica o fato de que o homem está sempre em uma situação, lançado nela e em relação ativa com ela”.

[7]{C}GRONDIN. Introdução à hermenêutica filosófica. Trad. Benno Dischinger. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 159.

[8]CARVALHO NETTO. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado. Belo Horizonte. v. 3. mai./1999. p. 475.

[9]O conceito de interpretação construtiva leva em conta as críticas feitas por Habermas (Dialética e Hermenêutica, p. 92-93) a Gadamer. A crítica reside na visão por demais passiva que a Hermenêutica Filosófica assume, compreendendo como unilateral o fluxo comunicativo. Nesse sentido, o próprio Dworkin justifica sua posição: “o intérprete deve esforçar-se por aprender e aplicar aquilo que interpreta com base no pressuposto de que está subordinado ao seu autor. Habermas faz a observação crucial (que aponta mais para a interpretação construtiva que para a conversacional) de que a interpretação pressupõe que o autor poderia aprender com o intérprete” (O Império do Direito, p. 63). Um bom exemplo é a conversa imaginária entre Cavell e Fellini retratada por Dworkin (op. cit., p. 69-70).

[10]BILLIER. MARYIOLI. História da Filosofia do Direito. Trad. Maurício de Andrade. Barueri: Manole, 2005. p. 422.

[11]Trata-se do texto Model o f Rules, publicado originalmente na Chicago Law Review no. 35 (1967-1968), sendo depois republicado como o capítulo 2 da obra Levando os Direitos a Sério (com tradução para o português pela Editora Martins Fontes, em 2002).

[12]DWORKIN. Levando os Direitos a Sério, p. 39.

[13]DWORKIN. Levando os Direitos a Sério, p. 40.

[14]DWORKIN. Levando os Direitos a Sério, p. 43. Oportuno, então, lembrar que Habermas (A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002) percebe que a maneira como Alexy (Teoría de los Derechos Fundamentales, 1993) entende a ponderação de princípios, implica uma concepção axiologizante do Direito, porque a ponderação só seria possível ao se poder preferir um princípio a outro, o que somente seria permitido se os princípios fossem considerados como valores. Assim, as normas, como princípios ou como regras, são enunciados deontológicos, isto é, visam ao que é devido. Já os valores, diferentemente dos padrões normativos citados, são enunciados teleológicos, de modo que objetivam o que é bom, melhor ou preferível, sendo condicionados a uma determinada cultura. Dessa forma, a norma para Alexy perde a característica de código binário para se transformar em um código gradual, ao passo que a adequabilidade sede espaço para uma aplicação dos princípios tidos como comandos otimizáveis (CATTONI DE OLIVEIRA, Direito Constitucional, p. 88-90).

[15]DWORKIN. Levando os Direitos a Sério, p. 36.

[16]DWORKIN. O Império do Direito, p. 165. Trata-se do texto Hard Cases, presente como o capítulo 4 da obra Levando os Direitos à Sério, mas originalmente publicado como um ensaio na Harvard Law Review no. 88 (1974-1975). É de chamar à atenção as diversas leituras feitas dessa figura de linguagem, o que levou a formulação de diversas críticas ao solipsismo de Hércules, que se mostram infundadas por olvidarem das demais construções de Dworkin que complementam a metáfora, bem como sua herança hermenêutica, como se fez questão de destacar no início do presente trabalho.

[17]DWORKIN. O Império do Direito, p. 272. Contudo, cabe lembrar que o assunto foi primeiro tratado em DWORKIN, Ronald. Law’s Ambitions for Itself. In: Virginia Law Review. v. 71. n. 2. mar./1985.

[18]HABERMAS. Facticidade y Validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. p. 272, tradução livre.

[19]Dworkin denomina de proposições jurídicas “todas as diversas alegações e afirmações que as pessoas fazem sobre aquilo que a lei lhes permite, proíbe ou autoriza” (O Império do Direito, p. 6). Para a Teoria do Direito como Integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras “se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade” (op. cit., p. 272).

[20]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 218.

[21]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 219.

[22]Como exemplo se encontrará em uma obra clássica para o direito: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

[23]Sobre isso ver OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2001.

[24]{C}Para ilustrar isso, tem-se a hipótese da tia que pelo telefone sofreu dano emocional ao saber que sua sobrinha tinha sido atropelada, vindo a ingressar em juízo argumentando a seu favor a aplicação de um precedente da Suprema Corte do Estado de Illinois, que considerou indenizável o dano emocional de uma mãe que presenciasse o atropelamento de sua filha por um motorista negligente (DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 220).  

[25]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 220. Vale lembrar que a experiência artística é também para Gadamer uma referência importante. Desse modo que o autor faz uso dela para iniciar a explicação sobre a experiência hermenêutica: “A obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá transformar aquele que a experimenta. O ‘sujeito’ da experiência da arte, o que fica e persevera, não é a subjetividade de que a experimenta, mas a própria obra de arte” (GADAMER, 2001, p. 32).

[26]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 221.

[27]Seria o caso de se perguntar - tomando por base a tragédia shakespeariana - se Hamlet realmente amava sua mãe; ou se haveria realmente um fantasma ou apenas uma manifestação esquizofrênica do próprio Hamlet; ou ainda, se Hamlet amava (ou não) Ofélia desde o início da peça. Outras indagações seriam da ordem do tema, do significado e do sentido da obra como um todo. Assim, a peça Hamlet, seria uma peça sobre morte? Ou sobre política? Talvez sobre um conflito de gerações?

[28]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 223, grifos no original.

[29]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 223. Ilustrando tal raciocínio, Dworkin traz a ideia de considerar um romance de Agatha Christie como se fosse algo mais valioso que uma história de mistério, quase um tratado sobre a morte. Ora, tal pretensão fracassa não somente porque faria com que a obra de Christie se transformasse em um péssimo tratado sobre a morte, ao invés de considerá-lo como um bom livro de mistério. Apenas poucas frases ao longo do texto permitiriam sustentar a tese do tratado sobre a morte, o que tornaria quase a totalidade das demais como algo supérfluo, irrelevante.

[30]{C}Diferentemente de como era compreendido pela tradição iluminista, a Hermenêutica Filosófica se apropria do termo, de modo a destituí-lo de sua carga pejorativa, transformando em “pré-conceitos”. São juízos que se formam antes mesmo da coisa em si, antes mesmo do conceito, como antecipações de sentido que moldarão a visão do intérprete, possibilitando o conhecimento (GADAMER. Verdade e método: Fundamentos de uma hermenêutica filosófica, p. 407).

[31]{C}DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 225.

[32]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 227.

[33]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 227.

[34]HIRSCH JR., E. D. Vality in Interpretation. New Heaven: Yale University Press, 1967.

[35]{C}DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 228.

[36]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 229.

[37]Dworkin lembra que a própria noção de “intenção” pode ser mais problematizada, do que uma mera descrição de um estado mental do autor. Através do exemplo de uma montagem contemporânea da peça shakespeariana O Mercador de Veneza, Dworkin ilustra que a repetição estrita das intenções do autor ao conceber a personagem Shylock pode representar uma traição ao próprio propósito do autor ao imaginá-lo e construí-lo inicialmente. O intérprete, então, tem a tarefa de fazer o que Gadamer nomeou de fusão de horizontes, de modo que a “interpretação deve, de alguma maneira, unir dois períodos de ‘consciência’ ao transportar as intenções de Shakespeare para uma cultura muito diferente, situada no término de uma história diferente” (DWORKIN. O Império do Direito, p. 68).

[38]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 231.

[39]FOWLES, John. A mulher do tenente francês. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

[40]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 233.

[41]Dworkin novamente resgata como pano de fundo dessa discussão as críticas feitas por Habermas à Hermenêutica Filosófica de Gadamer, no que em obra posterior chamou de interpretação construtiva, conforme note 2 do presente trabalho. Destarte, a interpretação construtiva, tanto das obras de arte como das práticas sociais – que inclui o direito -, “é uma questão de impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina que pertençam. Daí não se segue, [...] que um intérprete possa fazer de uma prática ou de uma obra de arte qualquer coisa que desejaria que fossem; [...]. Pois a história ou a forma de uma prática social ou objeto exerce uma coerção sobre as interpretações disponíveis destes últimos, ainda que, como veremos, a natureza dessa coerção deva ser examinada com cuidado. Do ponto de vista construtivo, a interpretação criativa é um caso de interação disponíveis entre propósito e objeto” (DWORKIN. O Império do Direito, p. 64).

[42]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p 234.

[43]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p 235. A relação entre interpretação, compreensão e criação fica muito bem ilustrada na concepção gadameriana de applicatio. Assim como no exemplo da tradução, de modo que ao traduzir um texto, a pessoa deve se colocar no lugar e no contexto para melhor compreendê-lo e assim, conseguir efetuar a fusão de horizontes, conforme explicitado pela nota 20 do presente trabalho através do exemplo da adaptação teatral do Mercado de Veneza.

[44]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 235-237.

[45]A questão pode ser, então, examinada pelo prisma de duas dimensões muito utilizadas: “a dimensão ‘formal’, que indaga até que ponto a interpretação se ajusta e se integra no texto até então concluído, e a dimensão ‘substantiva’, que considera a firmeza da visão sobre o que faz que um romance seja bom, da qual se vale a interpretação” (DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 236). Mas o que acontece que ainda assim é possível uma discordância razoável, sem que, contudo, se caia no ceticismo de afirmar que tudo é uma questão meramente subjetiva. “Nenhum romancista, em nenhum ponto, será capaz de simplesmente ler a interpretação correta do texto que recebe de maneira mecânica, mas não decorre dessa fato que uma interpretação não seja superior às outras de modo geral. De qualquer modo, não obstante, será verdade, para todos os romancistas, além do primeiro, que a atribuição de encontrar (o que acreditam ser) a interpretação correta do texto até então é diferente da atribuição de começar um novo romance deles próprios” (DWORKIN, 2001:236-237).

[46]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 238, grifos no original. Assim, ao se retomar o exemplo do caso sobre danos emocionais sofridos pela tia apresentado na nota 14 desse trabalho, pode-se perceber que “o juiz deve decidir qual é o tema, não apenas do precedente específico da mãe na rua, mas dos casos de acidente como um todo, inclusive esse precedente. Ele pode ser obrigado escolher, por exemplo, entre estas duas teorias sobre o ‘significado’ da corrente de decisões. Segundo a primeira, os motoristas negligentes são responsáveis perante aqueles a quem sua conduta pode causar dano físico, mas são responsáveis perante essas pessoas por qualquer dano – físico ou emocional – que realmente causem. Se esse é o princípio correto, então a diferença decisiva entre esse caso e o caso da tia consiste apenas em que a tia não corria o risco físico e, portanto, não pode ser indenizada. Na segunda teoria, porém, os motoristas negligentes são responsáveis por qualquer dano que é razoável esperar que prevejam, se pensarem sobre sua conduta antecipadamente. Se é esse o princípio correto, então a tia tem direito à reparação. Tudo depende de determinar se é suficientemente previsível que uma criança tenha parentes, além de seus pais, eu possam sofrer choque emocional ao saber de seu ferimento. O juiz que julga o caso da tia precisa decidir qual desses princípios representa a melhor ‘leitura’ da corrente de decisões a que deve dar continuidade” (DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 238-239). Para um outro exemplo de como pode ser compreendida a prática jurídica à luz dessa cadeia de decisões, ver: DWORKIN, Ronald. Law’s Ambitions for Itself. In: Virginia Law Review. v. 71. n. 2. mar./1985.

[47]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 239.

[48]O mesmo, contudo, não pode ser afirmado quanto ao jurista de Kiel, Robert Alexy, que parece ainda buscar no método a expressão de uma racionalidade capaz de neutralizar toda a complexidade inerente à linguagem (ALEXY, 1998:32). Desde Gadamer esta questão adquiriu outros contornos, pois do contrário estar-se-ia deixando de lado o fato de que razão humana é limitada (CARVALHO NETTO, 2003:105).

[49]No caso dos danos por acidentes, a interpretação que afirma que o motorista negligente é responsável perante aqueles cujo dano é substancial e previsível, somente se mostra melhor por enunciar um princípio que pode ser considerado como mais sólido em termos de justiça da decisão (DWORKIN, 2001: 241). Sob o prisma da teoria do direito como integridade, exige-se dos juízes que compreendam o direito como se fosse estruturado por um conjunto coerente de princípios compartilhados por uma determinada comunidade de princípios (DWORKIN, 1999:255).

[50]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 241-242.

[51]Contra esses, Dworkin (Uma Questão de Princípio, p. 242) afirma que o direito não é “fruto do que juízes comeram no café da manhã”, ao contrário do que sugere a frase atribuída ao Justice Oliver Wendell Holmes.

[52]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 243.

[53]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 244.

[54]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 244.

[55]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 246.

[56]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 246-247.

[57]FISH, Stanley. Is there a text in this class? The authority of interpretative communities. Cambridge: Harvard University Press, 1980.

[58]DWORKIN. Uma Questão de Princípio, p. 247-248.

[59]No caso de Dworkin, o Liberalismo pode ser um exemplo do afirmado acima, pois em razão do reconhecimento da importância da autonomia privada, compreende as convicções das pessoas como crenças abertas à revisão em processos argumentativos e não meros dados da personalidade, fixados por fatores genéticos e sociais.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDRON, Flávio Quinaud. Interpretação e aplicação do Direito em Ronald Dworkin. O que o Direito pode aprender com a teoria da Literatura?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3936, 11 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27384. Acesso em: 4 maio 2024.