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Breves considerações sobre o devido processo legal substantivo no Brasil

Breves considerações sobre o devido processo legal substantivo no Brasil

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Considerações acerca do devido processo legal substantivo como possibilidade de efetiva proteção e garantia de direitos fundamentais no contexto do Direito Brasileiro.

INTRODUÇÃO

O tema do caráter substantivo do devido processo legal permeia considerável parte das discussões sobre a jurisprudência do Supremo Tribunal (STF), daí a decisão de empreender um trabalho modesto acerca do tema da materialidade do due process of law.

Para tanto, partimos da consideração das instituições como criações do sentimento, das necessidades e criatividade humanas. Neste sentido, as constituições, ao mesmo tempo que estabelecem as garantias dos indivíduos, devem possuir eficácia, consubstanciando a sua força normativa. Assim, passa a ser imprescindível, para a proteção efetiva de direitos, que os procedimentos a serem analisados pelo Poder Judiciário, particularmente, o STF, observem não somente a formalidade da lei, ou os procedimentos processuais estritamente, mas que se busque preservar e garantir, efetivamente o direito.

Buscou-se, ainda, realizar um estudo prático, a partir da análise da ADIn de nº 1753, no âmbito do Supremo Tribunal Federal.


1. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS INDIVÍDUOS E DAS INSTITUIÇÕES.

Quando Sófocles trata do drama de Antígona, está, de certa maneira, abordando o problema da relação entre o indivíduo e as instituições. Ao buscar viver em sociedade, o ser humano pretende viver e desenvolver-se, sob as condições que lhe pareçam as mais adequadas.

As instituições se constituem no sentido de assegurarem a plena existência do homem.

Para alcançar a felicidade, ou a eudaimonia, na concepção de Aristóteles, o homem pelo uso da autonomia da vontade abre mão de sua liberdade natural para receber a liberdade civil. Ou seja, a liberdade política. A partir de então o indivíduo torna-se cidadão, subordinando-se às leis do Estado. Desta forma, conserva-se livre, uma vez que está subordinado às leis que ele mesmo prescreveu.[1]

Com o objetivo de que cada pessoa pudesse alcançar o bem-estar individual, através de suas próprias capacidades e meios, concebeu-se na Europa, a partir do século XIII até os fins do séc. XVIII ou inícios do XIX, uma forma de ordenamento político, a idéia de estado, o qual tinha por objetivo afastar os obstáculos a esta busca pela felicidade pessoal.

Para Emanuel Kant, a felicidade é algo absolutamente pessoal e incomunicável. Não existe uma regra geral da felicidade, cada um coloca a felicidade naquilo que deseja. E a finalidade do Estado é, portanto, o bem público entendido como aquilo que deve ser levado em máxima consideração, isto é, a constituição legal, que garanta para cada um a liberdade por meio da lei, de modo que se possa alcançar, no exercício dessa liberdade, a realização pessoal.[2]

Passa, desse modo a democracia a não ser apenas a pura expressão da criatividade humana, mas a pautar-se, na dinâmica de sua concretização pelos princípios democráticos e pelos direitos fundamentais da cidadania. São limitações objetivas, às quais o poder público, bem como seus órgãos, não podem se furtar.

Segundo definição de Norberto Bobbio[3], o termo “Democracia formal” indica um certo número de meios, que são precisamente as regras de comportamento a serem observadas para que se possa chegar a uma satisfatória decisão política, e tais regras não estabelecem obrigatoriamente o que decidir, ou seja, tais regras são independentes da consideração dos fins. Já “Democracia substancial” aponta “um certo conjunto de fins, entre os quais sobressai o fim da igualdade jurídica social e econômica, independentemente dos meios adotados para os alcançar.”


2. A EFICÁCIA (JURÍDICA) DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS COMO ENSEJADORA DA MATERIALIDADE DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.

As constituições têm se debatido na busca do satisfatório equilíbrio de atuação, entre as posições de, por um lado pretenderem – com vistas ao princípio da segurança jurídica – conformar a atuação do estado e dos cidadãos; por outro lado  querem manter sua atualidade, correspondendo à realidade social. E, consubstanciando a manifestação do poder constituinte originário, as constituições têm como objetivo maior a efetiva realização do conteúdo presente, tanto nas regras constitucionais, quanto nos princípios.

A afirmativa de Paulo Bonavides é neste sentido quando diz: “O drama jurídico das constituições contemporâneas assenta, como se vê, na dificuldade senão impossibilidade de passar da enunciação de princípios a disciplina, tanto quanto possível rigorosa ou rígida, de direitos acionáveis, ou seja, passar da esfera abstrata dos princípios à ordem concreta das normas.”[4]

A eficácia[5] das normas corresponde à possibilidade de sua aplicação, isto é, à efetividade ou vivência constitucional; como a constituição está sendo aplicada no dia a dia. Não existem normas puramente diretivas nas constituições contemporâneas; portanto, há que se empreender a caracterização das normas constitucionais, do ponto de vista de sua eficácia jurídica, a qual constitui a base de sua aplicabilidade.[6]

As normas constitucionais apresentam uma tríplice característica quanto a sua eficácia e aplicabilidade; levando-se em conta, obrigatoriamente, que “não há norma constitucional alguma destituída de eficácia.” Portanto, elas se diferenciam, tão somente, em relação ao grau de seus efeitos jurídicos, compondo três categorias:[7]

I –       normas constitucionais de eficácia plena;

II –      normas constitucionais de eficácia contida;

III –    normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida.

Previamente, faz-se uma advertência de que não é questão pacífica determinar um critério para distinguir as normas de eficácia plena daquelas de eficácia contida ou limitada. No entanto, mesmo não havendo um critério seguro e único para distinguir as normas constitucionais, regras gerais podem ser estabelecidas sobre o tema. Segundo a doutrina norte-americana, “uma norma constitucional é auto-aplicável (correspondente, mutatis mutandis, às de eficácia plena) ‘quando, completa no que determina, lhe é supérfluo o auxílio supletivo da lei, para exprimir tudo o que intenta, e realizar tudo o que exprime.’”[8]É completa, portanto, a norma que contenha todos os elementos e requisitos para realizar sua incidência direta.

As normas de eficácia contida ou contível são aquelas que dependem de legislação superveniente para sua contenção. Sob certo prisma, pode-se compreendê-las como sendo de eficácia plena, que se veem restringidas por legislação infraconstitucional. Tal restrição é permitida constitucionalmente. Sua aplicabilidade é imediata e direta, mas fica dependente de limites que se lhe estabeleçam por lei, ou pela ocorrência das circunstâncias restritivas admitidas constitucionalmente.[9]

Quanto às normas de eficácia limitada, carecem de densidade suficiente para sua aplicação. Sua integração se dá por meio de legislação subseqüente ou por atuação dos demais órgãos públicos. Todavia, sua juridicidade é afirmada pelo só fato de constarem de um texto jurídico (constitucional). O melhor exemplo destas normas são aquelas de princípio programático, inclusas no texto constitucional como esquemas genéricos, como programas a serem desenvolvidos, quer pela atividade dos legisladores ordinários, quer vinculando todo o Poder Público; ou ainda determinando a observância de toda ordem sócioeconômica para qualquer sujeito, público ou privado.[10]

E aqui, depara-se com a questão fundamental, com a conclusão de que “a relevância hodierna do estudo da eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais manifesta-se mais acentuadamente na sua consideração em relação às chamadas normas programáticas.”[11]

Com o método de interpretação orientado às ciências da realidade há a possibilidade de amoldar a constituição às realidades sociais mais vivas. Este método teve à frente de seu desenvolvimento Rudolf Smend. Este jurista alemão concebeu a Constituição como força integrativa. Desse modo, na concepção de Smend: [12]

“A Constituição consubstancia todos os momentos de integração, todos os valores primários e superiores do ordenamento estatal (direitos humanos, preâmbulo, território do Estado, forma de Estado, pavilhão nacional), enfim, a totalidade espiritual de que tudo mais deriva, sobretudo sua força integrativa.”

A hermenêutica concretizadora, tendo como maior referência Konrad Hesse, é uma interpretação que pretende preencher o sentido da constituição. Segundo Bonavides, o método concretista de interpretação apoia-se em três elementos básicos: “a norma que se vai concretizar, a ‘compreensão prévia’ do intérprete e o problema concreto a resolver.” Ainda, conforme Bonavides, a interpretação concretista: pode ser compreendida como “uma espécie de metodologia positivista, de teor empírico e casuístico”, neste caso, utiliza-se as categorias constitucionais para resolver os problemas, tendo como parâmetro a realidade concreta. E tal realidade não pode conter-se em formalismos abstratos ou ser explicada "pela fundamentação lógica e clássica dos silogismos jurídicos”.[13]

A crítica que se faz ao referido método diz respeito à sua excessiva abrangência, no comprometimento da segurança jurídica. Para Müller as normas de decisão e os conceitos são obtidos a partir das concretizações dos direitos. A eficácia da norma não está restrita a um texto da lei, e se alarga a espaços materiais e fáticos de máxima amplitude. Deve ser reconhecida em moldes jurídicos de acordo com a hierarquia estabelecida no processo interpretativo.[14]

Na evolução das operações dos diversos métodos de interpretação, é de se destacar, contemporaneamente, o papel destacado dos direitos fundamentais na interpretação constitucional. O que corresponderia a um exercício de realização efetiva da “ponderação entre valores individuais e limitações sociais objetivas”, na caracterização das conquistas da democracia substancial.[15]

No entendimento de Inocêncio Mártires Coelho, apresentou-se aos estudiosos o “problema hermenêutico criado pela constitucionalização dos direitos fundamentais”. E mais, a positivação desses direitos tinha que se fazer sob estruturas normativo materiais necessariamente abertas e indeterminadas, em contraposição aos procedimentos lógico-subsuntivos da aplicação das leis em geral. A solução aponta para a formulação de uma teoria hermenêutica adequada do ponto de vista principiológico, “na medida em que responde à necessidade de interpretar e aplicar princípios.”[16]

Há, portanto, neste tema de interpretação constitucional que se admitir a prevalência dos direitos fundamentais - estejam eles positivados nos textos constitucionais ou tão-só ali implicitamente presentes, como valores ou princípios - buscando-se, ao mesmo tempo, reduzir um grau indesejável de subjetividade (do intérprete) por meio de balizas, de parâmetros jurídicos, presentes, por exemplo, nas garantias institucionais.[17]

A partir do que foi acima exposto pode-se empreender (de forma até mesmo obrigatória) uma conexão com o princípio do devido processo legal; o qual surge, com os contornos que o caracterizam na atualidade, na doutrina constitucional norte-americana, com vistas a amparar os direitos à vida, à liberdade, e à propriedade contra legislação opressiva. Portanto, “o procedural due process está ligado à necessidade formal e efetiva de a pessoa ficar a par do que lhe vai acontecer, dos instrumentos legais que se acham a seu dispor...”[18]


3. ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

De acordo com sua concepção inicial a cláusula do devido processo legal não visava a questionar a substância ou o conteúdo dos atos do poder público, mas sim assegurar o direito a um processo regular e justo. Daí a denominação de procedural due process.

SAN TIAGO DANTAS[19] já apontava o problema da lei arbitrária que reunia formalmente os elementos da lei, contrariando, entretanto, a consciência jurídica pelo tratamento desarrazoado que impunha a certos casos. Para o autor, a doutrina do due process of law teve origem histórica com o Capítulo 39 da Magna Carta, referente ao habeas corpus. O seu significado era o da garantia de todo indivíduo ter o direito de ser julgado per legem terrae, tal expressão passou a várias constituições estaduais norte-americanas (law of the land). Quer dizer:[20]

“Na Inglaterra, como nos Estados Unidos, a expressão serviu de base à construção de uma jurisprudência de proteção aos direitos do indivíduo, especialmente em matéria de garantias processuais, os tribunais repelindo os estatutos judiciários que lhes pareciam ferir os princípios inerentes ao common law. Posteriormente, alargou-se o âmbito da doutrina, e em lugar de uma garantia em face do juízo, a cláusula passou a assegurar uma igualdade de tratamento por qualquer autoridade, sem jamais se chegar, porém, na Grã-Bretanha, a considerar submetido a ela o próprio Parlamento.” (Grifamos).

“Em 1791, foi emendada a Constituição dos Estados Unidos (5ª Emenda), e entre as proibições incidentes sobre o Governo Federal, declarou-se que ‘ninguém será privado da vida da liberdade ou da propriedade without due process of law’.”

Na sua concepção de origem, a cláusula do devido processo legal não tinha por objetivo mais direto discutir a substância dos atos do Poder Público. Pretendia “assegurar o direito a um processo regular e justo. Por isso, nesse sentido, aplica-se a denominação procedural due process.” Isto é: “A cláusula do devido processo legal no Direito Constitucional Americano refere-se, numa primeira fase, como se sabe, apenas a garantias de natureza processual propriamente ditas, relativas ao Direito a ordelly proceedings.”[21]

Com a 14ª Emenda (1880), a mesma interdição foi estendida aos Estados, quando também, pela primeira vez, se introduziu o princípio da equal protection of the law. Conforme entendimento de José Alfredo de Oliveira Baracho, a Suprema Corte, antes da 14ª Emenda, jamais havia reconhecido, como oponíveis aos governos estaduais, os direitos declarados nas Emendas I a X. Ao inverso, os direitos ali declarados eram direitos contra o governo central. “Em Dred Scott v. Sandford, o respeito à dignidade dos Estados alcançou um patamar dramático”. Atuando neste caso, a Suprema Corte norte-americana, afirmou que os escravos não eram considerados cidadãos dos Estados Unidos, ou seja, a definição de sua condição jurídica dependeria dos Estados.[22]

Dred Scott, portanto, foi um dos elementos que conduziram à guerra civil. E, esta, uma vez encerrada, com a vitória dos Estados do norte, teve como consequência, a promulgação de três emendas: a décima terceira, a décima quarta e a décima quinta; sendo que dentre elas, a décima quarta é considerada a mais importante. “Foi interpretada pela Suprema Corte como a extensão dos direitos declarados nas oito primeiras emendas aos cidadãos dos Estados.” [23]

Com o início do século XX, a Suprema Corte marcou importantes intervenções nas decisões dos Estados. O substantive due process teve como ponto de partida de seu primeiro período o caso Lochner v. New York (1905). E, para Edward S. Corwin[24], a evolução do devido processo, como um limite substantivo ao governo, partiu de preocupações com a regulamentação do direito de propriedade e de interesses econômicos.

Interessante ressaltar que, sob a presidência de Earl Warren, nomeado em 1953, a Suprema Corte atuou vigorosamente, no sentido de implementar os princípios consagrados na décima quarta emenda. Por isso, sob a presidência de Warren, “a Suprema Corte proporcionou um grande impulso no desenvolvimento dos direitos fundamentais”. Atuando também, de maneira importante, na defesa da liberdade de expressão e liberdade de imprensa.[25]


4. O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO NO BRASIL

Ao tratar da questão da introdução do devido processo legal no Brasil, entendemos oportuno frisar o próprio surgimento do Supremo Tribunal Federal. Em 1890, o Supremo Tribunal Federal foi criado, gerando em todos, grandes expectativas em torno de sua atuação na defesa dos direitos e liberdades individuais. Rui Barbosa, nesta empreita, do surgimento do STF, teve participação decisiva, fosse pela sua reconhecida capacidade intelectual, fosse pela própria atuação decidida, de implementar no Brasil, uma Corte constitucional, nos moldes da norte-americana.

De fato, “O discurso liberal de Rui Barbosa foi o mais empregado pelos juristas brasileiros no final do século XIX. Com fundamento nesses argumentos liberais, o Supremo Tribunal Federal proferiu, no final do século XIX, algumas decisões importantes, em que pesem os graves conflitos que teve com o Presidente Floriano Peixoto.” [26]

Ao longo do tempo, apesar de toda sorte de interferência, o Supremo Tribunal Federal foi afirmando uma jurisprudência consistente de proteção aos direitos fundamentais, especialmente, a partir do ideário liberal que possibilitou sua criação.

A peculiaridade do devido processo legal substantivo no Brasil é a sua implicação com a defesa dos direitos fundamentais, bem como com a referência teórica do princípio da proporcionalidade. Realmente, “a procura de um equilíbrio entre o exercício do poder estatal e a preservação dos direitos fundamentais do homem fez brotar na jurisprudência e doutrina pátrias exames que ora chamou de razoabilidade, ora de proporcionalidade, não só da atuação administrativa, mas também legislativa.” Enfim, “É comum encontrarmos na doutrina e jurisprudência nacionais, o princípio do devido processo legal substantivo conectado com as idéias de razoabilidade e proporcionalidade.”  [27]

O Min. Moreira Alves, a propósito da argüição de inconstitucionalidade do art. 5º da Lei 8.713, de 30.09.1993, fundamenta o seu voto na razoabilidade, como sendo esta integrante do devido processo legal:[28]

“(...) a meu ver, o problema capital que se apresenta, em face desta lei, é que ela fere, com relação aos dispositivos que estão sendo impugnados, o princípio constitucional do devido processo legal, que evidentemente, não é apenas o processo previsto em lei, mas abarca as hipóteses em que falta razoabilidade à lei.”

A Constituição Federal de 1988, inovando em relação às constituições brasileiras anteriores, referiu-se expressamente, no artigo 5º, LVI, ao devido processo legal. Fez também, referência explícita à privação de bens como matéria a beneficiar-se dos princípios próprios do direito processual penal. Quer dizer, “O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade e propriedade quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (...).” [29](Sem grifos no original).


5. ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIA NO ACÓRDÃO REFERENTE À ADIN N. 1753/DF

O julgamento foi proferido em 16/04/1998.

O Conselho Federal da OAB pede a suspensão cautelar do art. 4º da MPr. 1577-6, de 27/11/97, por meio de proposta de Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE

Requerente: Conselho Federal da OAB

Advogado: Marcelo Mello Martins e outro

Requerido: Presidente da República

O Conselho Federal da OAB, conforme o relatório do Min. Sepúlveda Pertence, encaminhou ao Supremo Tribunal Federal, a proposta de ação direta de inconstitucionalidade, pedindo suspensão cautelar do art. 4º da MPr. 1577-6, de 27/11/1997, o qual tem o seguinte conteúdo:

“Art. 4º O direito de propor ação rescisória por parte da União, dos Estados, dos Municípios, bem como das autarquias e das fundações instituídas pelo Poder Público extingue-se em cinco anos, contados do trânsito em julgado da decisão.”

“Parágrafo único. Além das hipóteses referidas no art. 485 do Código de Processo Civil, será cabível ação rescisória quando da indenização fixada em ação de desapropriação, em ação ordinária de indenização por apossamento administrativo ou desapropriação indireta, e também em ação que vise a indenização por restrições decorrentes de atos do Poder Público, em especial aqueles destinados à proteção ambiental, for flagrantemente superior ao preço de mercado do bem objeto da ação judicial.”

Quer dizer, o primeiro preceito impugnado, constante do caput do art. 4º, aumenta de dois para cinco anos, o prazo da ação rescisória proposta pelas entidades de Direito Público. Já o segundo preceito impugnado, no parágrafo único acrescenta às hipóteses previstas no Código de Processo Civil, uma outra de rescindibilidade da sentença de mérito, qual seja, a indenização flagrantemente superior ao preço de mercado do bem, nas situações alentadas.

Após a apresentação do relatório pelo Min. Pertence, com vistas à decisão da medida cautelar, o feito foi levado à mesa do plenário.

No acórdão em análise, segue-se o voto do relator.

Em seguida há o voto do Min. Maurício Corrêa, acompanhando o relator.

Adiante, na medida liminar registra-se o voto do Min. Marco Aurélio, o qual deferiu a liminar, suspendendo a eficácia do ato impugnado.

Segue-se, ainda o voto do presidente, o Min. Carlos Veloso, que também acompanhou o voto do relator.

Transcrevemos abaixo a decisão do tribunal, presente no extrato de ata:

“Decisão: O Tribunal, por unanimidade, deferiu o pedido de medida cautelar, para suspender, até a decisão final da ação direta, os efeitos do art. 4º e seu parágrafo único da medida provisória n. 1632-11, de 09/04/98. Votou o Presidente. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Celso de Mello, Presidente, e Moreira Alves. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Carlos Velloso, Vice-Presidente. Plenário, 16.04.98.”

A petição do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil apoia-se em três razões, quais sejam:

1º) ausência de relevância e urgência para a edição de medida provisória acerca desse tema;

2º) ofensa ao princípio da isonomia e

3º) ofensa ao princípio do devido processo legal.

Adiante procuramos demonstrar, conforme o entendimento do requerente (o Conselho Federal da OAB), o alcance desfavorável à justificativa de relevância e urgência para a edição da medida provisória em questão. De fato considera o relator, em seu voto, que o Tribunal, apesar de se impor uma tendente auto-restrição no que respeita à avaliação do caráter da urgência na edição de medidas provisórias, “na espécie, a afirmação da urgência à edição da medida provisória questionada raia pela irrisão.”

Sob o enfoque da coisa julgada, o relator, adiante define que, “Se ainda não há coisa julgada, a presunção há de ser a de possibilidade de reverter a decisão ainda pendente de recurso, cuja absurdez se teme.”

E considera ainda, “Se ao contrário, já se formou a coisa julgada – além de casuística, o que lhe pode custar a irrogação de outros vícios – a medida provisória já não pode alegar urgência, porque terá chegado tarde demais.”

Mas, importa, desde já, empreender um corte na análise da decisão que implique no seu entendimento de acordo com o devido processo legal material.

Já a partir da ementa, no trabalho do relator, está a afirmação de que a igualdade das partes decorre, obrigatoriamente do devido processo legal. No caso de ser o Estado uma das partes, há em favor deste a existência de favores legais, bem como outras vantagens processuais da Fazenda Pública. Todavia, tais concessões, em favor de uma das partes podem ter a “consequência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular já reconhecido em juízo.”

E se estes favores - mesmo reconhecidos em lei - estiverem a desafiar “a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, passam a caracterizar privilégios inconstitucionais”, ofendendo evidentemente a essência do substantive due process of law, o qual tem por escopo proteger os direitos e as liberdades dos indivíduos contra a legislação que se revele opressiva ou, destituída do esperado coeficiente de razoabilidade.

Entendeu o Min. Relator que os privilégios processuais, porventura conferidos ao Estado são justificáveis apenas na medida em que apoiados nos fatos, e de acordo com o interesse público, afirmando que “a igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law.” E, finalmente, que as discriminações, favorecendo o Poder Público em juízo teriam uma aura de respeitabilidade porque não arbitrárias, na medida em que tenham por escopo compensar as deficiências da defesa das entidades estatais.

Por isso adverte: “Se ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais.” Isto por tratar de forma não razoável e desproporcional, o Estado, como parte, e os cidadãos comuns.

O Min. Marco Aurélio, por sua vez quando profere seu voto, considera que o prazo maior, aludido no par. 4º da MPr. em questão, é previsto exatamente em favor do Estado (que tudo pode). Prosseguindo o Min. Afirma que “o Estado legisla, o Estado executa as leis, o Estado, em si, julga a execução das leis. Logo, considerados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, não vejo base para chegar-se a esse tratamento diferenciado.” A administração pública deve estar aparelhada visando a defender os interesses públicos.

O Min. Carlos Veloso, citando dissertação de Paolo Biscaretti di Ruffia, defende que se for identificada a falta de urgência, como requisito da medida provisória, “o legislador terá praticado o que os administrativistas denominam de excesso de poder, excesso de poder de legislar, no caso. Consequentemente, conforme a lição do Min. Do STJ, Adhemar Ferreira Maciel [na obra citada no trabalho], o Estado, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das suas atividades legislativas, não dispõe de competência para legislar “de forma imoderada e irresponsável” para que não venha a gerar - com o seu comportamento institucional – situações normativas de distorção ou mesmo a subversão dos fins previstos como sua função estatal.


6. À GUISA DE CONCLUSÃO

O exame da substância do direito, sob compreensão na atualidade, deve necessariamente prevalecer sobre antigos procedimentos formais.

Há que se buscar, tomando como base critérios de razoabilidade, a promoção efetiva dos direitos fundamentais contra ação irrazoável e arbitrária. E aqui, de maneira sintetizada encontram-se as razões do desenvolvimento da teoria do devido processo legal material (substantive due process).

Passa-se, portanto, a proteger o cidadão no aspecto material, impedindo que o Congresso ou os legislativos (não se deixando de considerar também os atos emanados dos poderes executivo ou judiciário, com força legislativa) estaduais elaborassem leis, embora formalmente constitucionais, mas que substancialmente estivessem despidas de razoabilidade. Há que se proteger enfim, o cidadão, no contexto do Estado Democrático de Direito, contra toda forma de arbítrio dos poderes constituídos, por meio do devido processo legal substantivo.

Neste sentido, enfim, apesar de todas as dificuldade históricas, tem sido a atuação do Supremo Tribunal Federal. Por meio de uma interpretação concretizadora, fazendo valer a aplicabilidade das normas constitucionais, consolidando seu entendimento jurisprudencial de conferir efetiva proteção aos indivíduos quanto aos direitos fundamentais.


7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANHA, Márcio Nunes. As dimensões objetivas dos direitos e sua posição de relevo na interpretação constitucional como conquista contemporânea da democracia substancial. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 35 n. 138 abr/jun. 1998.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. A interpretação dos direitos fundamentais na Suprema Corte dos EUA e no Supremo Tribunal Federal. In Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. José Adércio Leite Sampaio (Org.). Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

______. Teoria Geral do Constitucionalismo. In R. Inf. Legisl. Brasília a. 23 n. 91 jul./set. 1986.

BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Jurídica, 1996.

BOBBIO. Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: EdUnB, 1995.

_____ Dicionário de Política. Brasília: EdUnB, 1997.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999.

BRINDEIRO, Geraldo. O devido processo legal e o Estado Democrático de Direito. Notícia do Direito Brasileiro. Nova Série / organizado por Ronaldo Rebello de Britto Poletti. N. 2 (jul/dez, de 1996) – Brasília: UnB, Faculdade de Direito, 1996.

COELHO, Inocêncio Mártires. Temas e problemas da interpretação constitucional.  Notícia do Direito Brasileiro. Brasília, p. 185. N. 2. 2 semestre de 1996.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1991.

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MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2000.

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SAN TIAGO DANTAS, F. C. de. Problemas de direito positivo: Estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1953. p. 35-64.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. rev. amp. atual. São Paulo: Malheiros, 1998.


Notas

[1] Cf. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. De Alfredo Fait, 3. ed. Brasília: Editora UnB. p. 62: Segundo Norberto Bobbio, “se por autonomia, se entende a faculdade de dar leis a si mesmo é certo que a vontade moral é por excelência uma vontade autônoma; porque, como já muitas vezes foi dito, a vontade moral é aquela, segundo Kant, que não obedece a outra lei a não ser à lei moral e não se deixa determinar por inclinações ou cálculos interessados. Lembramos que esta definição de autonomia coincide com a definição dada por Rousseau à liberdade, entendida como a obediência à lei que cada um prescreve para si mesmo.”

[2] Apud Norberto Bobbio, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 134.

[3] Dicionário de Política. Brasília: EdUnB, 1997. p. 327-329.

[4] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 207.

[5] Na lição de SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, 3.ed. rev. amp. atual. São Paulo: Malheiros,1998, p. 64-66: eficácia “é a capacidade de atingir objetivos previamente fixados como metas. Tratando-se de normas jurídicas, a eficácia consiste na capacidade de atingir os objetivos nelas  traduzidos, que vêm a ser, em última análise, realizar os ditames jurídicos objetivados pelo legislador.”[Grifo nosso]. Sob a ótica do normativismo, distingue-se, com precisão, a vigência da eficácia. De fato, para Hans Kelsen (apud) a vigência da norma pertence à ordem do dever-ser, e não à ordem do ser; significa, enfim a existência específica da norma. Dizer de uma norma que ela vale, ou que é vigente significa algo diferente de afirmar que ela é efetivamente aplicada e respeitada, apesar de[Kelsen(apud)] considerar que “um mínimo de eficácia é condição de vigência da norma.” Entretanto, destaca, e consideramos relevante: “Uma norma jurídica, no entanto, entra em vigor antes de tornar-se eficaz, isto é, antes de ser seguida e aplicada.”

[6] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 81.

[7] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p.82.

[8] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 99 e apud Rui Barbosa apud Aplicabilidade das normas constitucionais, p.99.

[9] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p.116.

[10] Aplicabilidade das normas constitucionais. p. 79 e p. 145-151.

[11] Aplicabilidade das normas constitucionais, p.138.

[12] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 435-438.

[13] Curso de Direito Constitucional. p. 440.

[14] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 464-465.

[15]Cf. ARANHA, Márcio Nunes. As dimensões objetivas dos direitos e sua posição de relevo na interpretação constitucional como conquista contemporânea da democracia substancial. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 35 n. 138 abr/jun. 1998. 

[16] COELHO, Inocêncio Mártires. Temas e problemas da interpretação constitucional.  Notícia do Direito Brasileiro. Brasília, p. 185. N. 2. 2 semestre de 1996.

[17] Cf. a respeito deste tema ARANHA, Márcio Iorio. Interpretação constitucional e garantias institucionais dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas. A garantia institucional tem sua existência condicionada pelo Estado(especialmente cf. o entendimento de Schmitt), e por seu turno, o direito realiza a sua conexão com a sociedade a partir do “sentimento uniforme de instituições e de necessidades”.p54    

[18] MACIEL, Adhemar Ferreira. O devido processo legal e a Constituição brasileira de 1988. In Revista de Processo, São Paulo, ano 22, n. 85, jan./mar. De 1997. p. 175-180.

[19] Problemas de direito positivo: Estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1953, p. 37

[20] Problemas de direito positivo: Estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1953, p. 41-42.

[21] BRINDEIRO, Geraldo. O devido processo legal e o Estado Democrático de Direito. Notícia do Direito Brasileiro, p. 109.

[22] A interpretação dos direitos fundamentais na Suprema Corte dos EUA e no Supremo Tribunal Federal. In Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. José Adércio Leite Sampaio (Org.). Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 315-345, p. 319.

[23] José Alfredo de Oliveira Baracho. A interpretação dos direitos fundamentais na Suprema Corte dos EUA e no Supremo Tribunal Federal. In Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, p. 320.

[24] Apud José Alfredo de Oliveira Baracho, A interpretação dos direitos fundamentais na Suprema Corte dos EUA e no Supremo Tribunal Federal. In Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, p. 320.

[25] José Alfredo de Oliveira Baracho. A interpretação dos direitos fundamentais na Suprema Corte dos EUA e no Supremo Tribunal Federal. In Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. José Adércio Leite Sampaio (Org.). Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 315-345, p. 325.

[26] José Alfredo de Oliveira Baracho, A interpretação dos direitos fundamentais na Suprema Corte dos EUA e no Supremo Tribunal Federal. p. 332.

[27] LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1999. p. 273-274.

[28] Apud Maria Rosynete Oliveira Lima, Devido Processo Legal, p. 279.

[29] MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2000. p. 255.


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SILVA, Alex da. Breves considerações sobre o devido processo legal substantivo no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4175, 6 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30899. Acesso em: 2 maio 2024.