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O “estado de perigo” como causa de nulidade absoluta do negócio jurídico

O “estado de perigo” como causa de nulidade absoluta do negócio jurídico

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Quando um negócio jurídico é formado diante de um “Estado de Perigo, o Código Civil de 2002 preceitua que o mesmo deve ser considerado meramente anulável e não nulo de pleno direito. O presente trabalho defende sua nulidade absoluta.

introdução

O negócio jurídico trata-se da principal espécie de ato jurídico presente no direito brasileiro e tem o contrato como o principal instrumento que movimenta a economia e possibilita o ajuste de expectativas e vontades baseada na ideia de autonomia privada. A liberdade que se tem para definir o conteúdo e os efeitos jurídicos que se espera de um contrato é a principal característica do negócio jurídico, noção que vem do conceito de autonomia privada.

Sendo assim, a autonomia privada e a liberdade de contratação fazem parte da noção de negócio jurídico, que tem na manifestação de vontade livre e de boa fé uma das condições de validade do contrato. Porém, pode ser que essa manifestação de vontade livre e de boa fé seja viciada por algum dos defeitos do negócio jurídico, como é o caso do contrato firmado em que uma das partes se encontra em estado de perigo e a outra, com pleno conhecimento disso, se aproveita para impor uma condição excessivamente onerosa. Neste caso, o agente que se encontra em estado de perigo não possui liberdade de escolha: ele precisa salvar-se ou salvar a outrem e adere a qualquer condição imposta, até mesmo agindo com instinto de sobrevivência.

Diante dessa situação, o ordenamento jurídico brasileiro atribui a este negócio jurídico a condição de anulabilidade (nulidade relativa) e não uma nulidade absoluta. Entende o ordenamento que o contrato pode ou não ser tomado como válido e vai depender da provocação do interessado para que o Judiciário se manifeste sobre sua mantença no mundo jurídico ou não.

O presente trabalho defenderá a ideia de que o estado de perigo, como defeito invalidade do negócio jurídico, deve ser encarado como uma nulidade absoluta, podendo inclusive ser reconhecido de ofício pelo juiz. Não há sentido em considerar que, identificado que o negócio jurídico foi firmado em legítimo estado de perigo, com preenchimento de todos os seus requisitos, possa vir a ser considerado apenas anulável.


1 - O NEGÓCIO JURÍDICO NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

O desenvolvimento da teoria do negócio jurídico foi feito pela escola alemã, inicialmente no Século XVIII.  O primeiro a utilizar o termo negócio jurídico foi Nettelbladt, em 1749, tendo sido acolhido no Código Civil Alemão sob a denominação de Reschtsgeschäfte. O Código Civil brasileiro de 1916, elaborado por Clóvis Bevilácqua em 1899, não utilizou a expressão negócio jurídico, seguindo a doutrina unitária francesa e não o distinguindo de ato jurídico (GONÇALVES, 2013).

Com o advindo do Código Civil de 2002, houve uma mudança substancial na forma de enquadramento do negócio jurídico dentro do ordenamento civil pátrio. Até então, o negócio jurídico era tratado com sinônimo de ato jurídico¸ o que se pode facilmente perceber comparando a estruturação do Livro III da Parte Geral do Código de 1916 com o do Código Civil de 2002. Inclusive, ao pronunciar-se sobre a mudança trazida pelo novo CC/02, o autor do anteprojeto da Parte Geral, o Min. Moreira Alves, assim se manifestou: “o Projeto de Código Civil Brasileiro, no Livro III da sua Parte Geral, substitui a expressão genérica ato jurídico, que se encontra no Código em vigor, pela designação específica de negócio jurídico, pois é a este, e não necessariamente àquele, que se aplicam todos os preceitos ali constantes” (MOREIRA ALVES apud GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 353).

Portanto, a partir do novo CC/02, foi adotada a concepção dualista e não mais unitária na análise do instituto negócio jurídico. A doutrina moderna claramente se coloca no sentido de que a categoria dos fatos jurídicos lato sensu subdivide-se em fato jurídico stricto sensu, ato-fato, ato jurídico lato sensu, que se subdivide ainda em ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico, sendo que este último instituto é um dos mais importantes e mais presentes nas relações cíveis, tendo como uma das suas principais características a manifestação livre de vontade (GONÇALVES, 2013).

O Fato jurídico stricto sensu são os acontecimentos naturais que interferem na esfera jurídica de alguém, mas sem intervenção do homem. Ex: Uma manga que cai em cima de um carro; um furacão que arrasta uma casa etc.

Por sua vez, ato-fato são fatos jurídicos com atuação humana que não dependem da vontade nem da intenção do agente que os pratica, mas que geram consequências jurídicas. Um exemplo clássico é a criança que compra um doce no mercadinho do bairro; ela não tem intenção nem consciência para firmar um contrato de consumo, mas assim o faz. O que se leva em consideração é a consequência do ato e não a intenção de praticá-lo.

No ato jurídico lato sensu, temos a presença da atividade humana, sendo que este ainda é subdividido em ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico, constituindo este último no objeto principal do estudo deste trabalho. O ato jurídico stricto sensu é o chamado “Ato não negocial”, ou seja, traduz um comportamento humano voluntário e consciente cujos efeitos jurídicos são previamente determinados por lei. Neste, não há liberdade na escolha dos efeitos jurídicos. Como exemplo, podemos citar uma notificação, intimação, confissão etc. Como afirmam os professores Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona,  

Neste tipo de ato, não existe propriamente uma declaração de vontade manifestada com o propósito de atingir, dentro do campo da autonomia privada, os efeitos jurídicos pretendidos pelo agente (como no negócio jurídico), mas sim um simples comportamento humano deflagrador de efeitos previamente estabelecidos por lei (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 341).

Este instituto tem sua previsão no artigo 185 do Código Civil Brasileiro, ditando que “aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber as disposições do Titulo anterior”, demonstrando que estes atos não se confundem com os negócios jurídicos.

Por fim, como prova da adoção da então Teoria Dualista, o Código Civil de 2002 traz o Negócio jurídico no seu Livro III, trazendo no seu Título I “Do Negócio Jurídico”, sendo este tratado a partir do seu artigo 104, enquanto foi visto que o ato jurídico em sentido estrito está disciplinado no artigo 185, que está no Título II deste mesmo Livro.

O negócio jurídico constitui uma categoria, como já citado, desenvolvida pela escola Alemã e que abrange a grande maioria das relações jurídicas cíveis firmadas no âmbito social, tendo o “contrato” como um dos seus principais instrumentos. Está intimamente relacionado a autonomia privada, pois é por meio da vontade que as partes definirão as diretrizes, condições e cláusulas a que o negócio jurídico estará sujeito.

Para se estabelecer um conceito de negócio jurídico capaz de trazer elementos suficientes para identificá-lo, duas importantes teorias são citadas pela doutrina: A teoria da vontade (Willenstheorie) e a teoria da declaração (Erklarungstheorie). Pela teoria da vontade ou subjetiva, a vontade interna é a que produz os efeitos jurídicos; e quando a vontade interna não coincide com a vontade declarada, deve prevalecer a intenção. Esta corrente inclusive se apresenta na ideia consubstanciada no artigo 112 do Código Civil, in verbis:

“Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.”

Ou seja, em caso de contradição entre a intenção ao se firmar o negócio jurídico e o que foi declarado, será dada mais importância àquela do que a declaração propriamente reduzida a termo. Em contrapartida, pela teoria da Declaração, se defende que deve ser dada validade ao que foi declarado, uma vez que o que é capaz de produzir efeitos jurídicos é o que foi declarado.

Frente a estas teorias, várias definições sobre o que vem a ser negócio jurídico foram desenvolvidas. Conforme a doutrina de Miguel Reale, negócio jurídico recebe a seguinte definição:

Negócio jurídico é aquela espécie de ato jurídico que, além de se originar de um ato de vontade, implica a declaração expressa da vontade, instauradora de uma relação entre dois ou mais sujeitos tendo em vista um objetivo protegido pelo ordenamento jurídico. Tais atos, que culminam numa relação intersubjetiva, não se confundem com os atos jurídicos em sentido estrito, nos quais não há acordo de vontade, como por exemplo, se dá nos chamados atos materiais, como os da ocupação ou posse de um terreno, a edificação de uma casa no terreno apossado etc. Um contrato de compra e venda, ao contrário, tem a forma específica de um negócio jurídico (REALE, 1981, p. 206-207)        

Segundo a doutrina de Maria Helena Diniz, o conceito de negócio jurídico é “o poder de auto-regulação dos interesses que contém a enunciação de um preceito, independentemente do querer interno” (DINIZ, 2004, p. 305). Para Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, negócio jurídico seria a “a declaração de vontade, emitida em obediência aos seus pressupostos de existência, validade e eficácia, com o propósito de produzir efeitos admitidos pelo ordenamento jurídico pretendidos pelo agente” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 351). Para Antônio Junqueira de Azevedo, por sua vez, negócio jurídico é:

“Todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele incide” (AZEVEDO, 2002, p. 16)

Em seu turno, Francisco Amaral traz, com precisão, algumas considerações sobre o negócio jurídico, a saber:

Por negócio jurídico, deve-se entender a declaração de vontade privada destinada a produzir efeitos que o agente pretende e o direito reconhece. Tais efeitos são a constituição, modificação ou extinção de relações jurídicas, de modo vinculante, obrigatório para as partes intervenientes. De qualquer modo, o negócio jurídico é o meio de realização da autonomia privada, e  contrato é o seu símbolo” (AMARAL, 2002, p.359-360)

Pode-se afirmar então, que o negócio jurídico é a declaração de vontade que visa produzir efeitos jurídicos perseguidos pelos agentes que o firmam de forma voluntária. Estes sujeitos de direito dão origem a determinadas relações jurídicas por meio do exercício voluntário de acordos e em conformidade com a lei.  

Portanto, possuindo o negócio jurídico uma declaração de vontade e que respeite os pressupostos de existência, validade e eficácia exigidos pela norma jurídica, pode-se afirmar que o negócio jurídico está formado à apto para produzir os efeitos que dele se esperam. A vontade interna e a declaração de vontade caminham juntas, pois até se alcançar a formação plena do negócio jurídico, houve a passagem pela vontade interna, pela expressão desta e pela declaração da mesma. Assim, uma declaração de vontade viciada, como ocorre no caso da coação, retira a validade do negócio jurídico firmado, demonstrando que a vontade interna faz parte sim, do conceito de negócio jurídico, o que leva a conclusão que as teorias da vontade e da declaração possuem conteúdos que se agregam e não necessariamente se repelem.


2 - PLANOS DE ANÁLISE DO NEGÓCIO JURÍDICO

A análise dos planos de análise do negócio jurídico foi construída por Pontes de Miranda, ficando conhecida como “Escada Ponteana”. Por esta doutrina, é preciso primeiramente analisar se o negócio jurídico possui todos os elementos essenciais exigidos pela norma jurídica, ou seja, se o que foi firmado pelos agentes no mundo fático possui estrutura suficiente para entrar no mundo jurídico. Em caso afirmativo, tem-se o primeiro degrau da escada superado, que se reconhece por “plano de existência do negócio jurídico”.

A partir da constatação positiva da existência do negócio jurídico, será possível a sequência do estudo para os dois degraus seguintes de análise, quais sejam, dos “planos de validade e eficácia do negócio jurídico”, tornando-se o plano de existência uma verdadeira “preliminar”, da qual dependem os demais planos de análise. Assim, caso o negócio jurídico seja considerado inexistente, não será possível a continuação do estudo do mesmo. Confirmada a existência do negócio jurídico, então é possível avaliar sua validade e sua capacidade de produzir efeitos no mundo jurídico.

2.1 – Plano de Existência

No plano de existência do negócio jurídico, o que se procura estudar são os elementos essenciais que compõe o negócio jurídico e se eles estão presentes para configurar sua efetiva existência. Para superar o plano da existência e seguir para a análise dos planos da validade e eficácia, é necessário descobrir se o negócio existe juridicamente.

Para tanto, conforme explica Marcos Ehrhardt, deve haver um suporte fático suficiente capaz de tornar o fato existente para o direito.  Este “suporte fático suficiente” seria aquele que preenche todos os requisitos da norma em abstrato para ingressar no mundo jurídico, normas esta que está positivada no Código Civil. A norma presente no Código será o ponto de partida, pois ela é quem vai explicar o que é essencial para preencher este suporte fático e considerar o fato existente no mundo jurídico. A migração do mundo fático para o mundo jurídico é o que se chama de “Juridicização” (EHRHARDT, 2011).

A norma jurídica, portanto, dispõe quais os elementos devem se fazer presentes para que haja a Juridicização do suporte fático e, no caso em análise, para que se possa caracterizar o negócio jurídico. Quando se fala em essencialidade destes elementos, significa que a ausência destes leva a inexistência, por si só, do próprio negócio jurídico; constituem a própria estrutura de qualquer negócio jurídico.

Os elementos essenciais (essentialia negotii) que precisam estar presentes no negócio jurídico para que ele seja declarado existente são a declaração de vontade, agente, objeto e forma. Assim, caso haja uma coação física, por exemplo, não se pode dizer que houve vontade, o que retira um dos elementos do negócio jurídico e o torna inexistente. Da mesma forma, há que haver um agente, pessoa física ou jurídica; um objeto, sobre o qual recai o negócio; e a forma, através do qual a vontade é manifestada. Estes elementos essenciais estão subdivididos ainda em particulares ou gerais. Elementos essenciais gerais são aqueles que estão presentes em todos os negócios jurídicos, como por exemplo, a declaração de vontade. Elementos essenciais particulares são peculiares a alguns negócios jurídicos, como é o caso do preço no contrato de compra e venda.

Em suma, no plano de existência não há qualificação dos elementos para saber se são válidos ou não. Não se questiona a capacidade do agente, a liberdade da vontade, a licitude do objeto. Apenas analisa-se se o suporte fático é suficiente para entrar no mundo jurídico, ou seja, se houve a chamada “Juridicização”; em caso positivo, então, parte-se para o próximo campo de análise que é o plano de validade. O Código Civil de 2002 não trata diretamente do plano de existência do negócio jurídico, uma vez que o artigo 104 do presente diploma legal inicia o tratamento do negócio jurídico pelos seus requisitos de validade. Por isso, para alguns autores como Carlos Roberto Gonçalves, o novo Código Civil não adotou a “Escada Ponteana”, confundindo-se o plano de existência com os elementos do negócio jurídico. De qualquer forma, ausentes os elementos essenciais constitutivos do negócio jurídico, este não existirá para o mundo jurídico (GONÇALVES, 2013).

2.2 – Plano de VALIDADE

Neste plano de análise, é imprescindível seguir os requisitos enumerados no artigo 104 do Código Civil de 2002, que dispõe o seguinte:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Em verdade, estes requisitos são os elementos constitutivos do negócio jurídico, porém, adjetivados. Com relação a capacidade, a sua verificação deve ser feito por meio dos artigos 3º, 4º e 5º do Código Civil Brasileiro, pois é lá que se encontram as condições para a avaliação das capacidades dos agentes no ordenamento jurídico. Quanto ao objeto, pode-se usar como forma ilustrativa para melhor entendimento o fato de o agente comercializar um terreno no planeta Marte; pois bem, o objeto será tido como impossível e o negócio jurídico invalidado. Por fim, com relação a forma, ela deve estar prevista em Lei ou, pelo menos, não proibida.

Contudo, o rol de situações que podem causar invalidade não se restringe a estes, cabendo indicar ainda que a manifestação de vontade livre e de boa fé é um requisito de validade do negócio jurídico, em nome inclusive da boa fé objetiva e da função social. Neste sentido, doutrina Marcos Bernardes de Mello no seguinte sentido:

Essa enumeração legal, como se vê, é insuficiente, incompleta, porque não menciona todas as causas de invalidade, deixando-se de referir-se, explicitamente, à possibilidade do objeto e sua compatibilidade com a moral (cuja falta implica nulidade – Código Civil, art. 145, II), como também à inexistência de deficiência de negócios jurídicos, dentre os quais se incluem os vícios que afetam a manifestação da vontade e outros que comprometem a perfeição e causam a invalidade, por anulabilidade, do ato jurídico (Código Civil, art. 147), além da anuência de outras pessoas, que, em certas situações, é exigida. (MELLO, apud GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 370)

Assim, a manifestação de vontade não pode estar maculada de má fé ou ter sido feita sob qualquer tipo de fraude. O Código Civil traz um rol de vícios do negócio jurídico que atingem justamente a livre manifestação da vontade, provocando ora a nulidade, ora a anulabilidade do negócio jurídico.

Estes vícios trazidos no atual Código Civil de 2002, que coincidem com os mesmos vícios que eram previstos no Código Civil anterior de 1916, são os seguintes: Erro, previsto no artigo 138 do CC/02; o Dolo, previsto no artigo 145 do CC/02; a Coação, prevista no artigo 151 do CC/02; a Simulação, prevista no artigo 167 do CC/02; e a Fraude contra credores, prevista no artigo 158 do CC/02. Então, o Código Civil em vigor acrescentou ainda mais dois novos institutos que viciam o negócio jurídico, que são a Lesão, prevista no artigo 157 do CC/02 e o Estado de Perigo, previsto no artigo 156 do diploma legal, sendo que este último será o objeto principal de análise deste trabalho mais a frente.

Portanto, estes são os parâmetros que podem provocar a invalidade de um negócio jurídico. A invalidade, em verdade, é uma espécie de sanção, pois o agente que celebrou o negócio não usufruirá das consequências que gostaria quando celebrou o ato. É o caso de um contrato de compra e venda de um imóvel celebrado por um agente absolutamente incapaz; este contrato não será considerado válido, pois um dos requisitos da norma, que é a exigência de agente capaz para celebrar o negócio jurídico, não foi preenchido. A invalidade do ato jurídico pode provocar no atual sistema jurídico brasileiro, duas sanções: nulidade ou anulabilidade; e quem determina quando estes atos serão considerados nulos ou anuláveis é o legislador.

Diante de um ato nulo, pode o juiz, assim que tomar conhecimento do ato, desfazer o ato, agindo de ofício e independente de provocação. O vício presente é insanável, imprestável, não cabendo nem convalidação com o decurso do prazo, conforme previsão expressa do artigo 169 do CC/02. Os artigos 166 e 167 do Código Civil trazem o rol de situações em que o negócio jurídico é considerado nulo, in verbis:

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;

II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;

III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;

IV - não revestir a forma prescrita em lei;

V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;

VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;

VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

§ 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;

III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

§ 2o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.

Da leitura dos dois artigos, tem-se enumeradas todas as condições que tornam um negócio jurídico nulo. Dos vícios que maculam a manifestação de vontade, percebe-se que apenas a simulação é tratada como caso de nulidade absoluta. É importante ressaltar que o ato nulo, como jamais poderia ter produzido efeitos, sua anulação terá efeitos ex tunc, ou seja, a anulação retroagirá a data de sua criação e nenhum efeito decorrerá da sua prática. Todos os efeitos que dele emanaram deverão ser extirpados do ordenamento jurídico. Além disso, é imprescindível lembrar que, apesar da nulidade absoluta não convalesce pelo decurso do tempo e ser imprescritível, os efeitos patrimoniais eventuais que decorram do negócio jurídico são passíveis de prescrição. Até porque, se assim não fosse, a outra parte do negócio ficaria eternamente sujeita ao arbítrio da outra, o que geraria insegurança jurídica.

Por outro lado, quando tratamos da Nulidade Relativa ou Anulabilidade, o magistrado não pode atuar de ofício; apenas mediante provocação da parte prejudicada, conforma artigo 177 do CC/02. Portanto, o vício até pode ser sanado, desde que a parte interessada não deixe passar tempo excessivo capaz de permitir a ocorrência da chamada “convalidação”. A “convalidação” acontece quando o prazo para alegar o vício que torna o ato anulável já transcorreu sem provocação das partes. Ainda, conforme artigo 172 do CC/02, o negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro. Em suma, o vício presente no negócio jurídico não necessariamente levará o mesmo a sua invalidação, podendo o mesmo ser sanado (DINIZ, 2004).        

Caso o negócio jurídico seja questionado e anulado, o mesmo produzirá efeitos até o momento em que for retirado do ordenamento, pois a eficácia da nulidade tem efeitos ex nunc. Portanto, a cessação dos efeitos se dará a partir do momento do reconhecimento da nulidade via sentença anulatória, mas os efeitos que já ocorreram terão validade, o que a doutrina chama de “Eficácia Interimística”. O artigo 171 do Código Civil dispõe algumas situações de anulabilidade, conforme descrito abaixo:

Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:

I - por incapacidade relativa do agente;

II - por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.

Além disso, o prazo decadencial para se pleitear essa anulabilidade é de 4 anos,conforme artigo 178 do CC/02. Porém, nos casos em que a lei disciplina que determinado ato é anulável, mas sem determinar o prazo para impugná-lo, o artigo 179 do CC/02 determina que o prazo será e 02 anos. É o caso do artigo 496 do CC/02, onde o mesmo diz que a venda feita de ascendente para descendente é anulável, mas não diz qual o prazo; então, o mesmo será de 02 anos.

Os atos anuláveis podem sofrer de “vícios de consentimento” ou “vícios sociais”. Nos vícios de consentimento, temos o erro, dolo, coação, lesão e estado de perigo, que atingem a manifestação livre da vontade. No vício social, temos a fraude contra credores (e também a simulação), uma vez que o dano além de ser direcionado às partes, também atinge a sociedade (EHRHARDT, 2011).

2.3 – Plano de EFICÁCIA

A eficácia do negócio jurídico está relacionada a sua capacidade de produzir efeitos. Assim, o negócio jurídico pode existir, ser válido e desde já produzir os efeitos que dele se espera. Em contrapartida, pode ser que este negócio jurídico esteja condicionado a algum elemento que pode interferir nesta eficácia, como é o caso da presença do Termo, Encargo ou Condição. São os chamados “elementos acidentais”, pois podem ou não ocorrer no negócio jurídico.

O Termo está previsto no artigo 131 do CC/02, fazendo com que a eficácia do negócio jurídico dependa da ocorrência de um evento futuro e certo, como por exemplo, ocorre quando se subordina os efeitos do negócio jurídico ao alcance de certa data ou com a morte de determinada pessoa. Como se percebe, são eventos futuros e certos que impedem que o negócio jurídico, apesar de existente e válido, possa começar a produzir efeitos. (TARTUCE, 2013).

A Condição é também um elemento acidental do negócio jurídico a qual suspenderá a eficácia do negócio jurídico até que um evento futuro e incerto ocorra. Sua previsão está no artigo 121 do CC/02 e a diferença entre esta e o Termo é que na Condição, não há certeza que o evento futuro ocorrerá. Por fim, temos o Encargo, outro elemento acidental do negócio jurídico. Por meio dele, impõe-se que ao beneficiário de um negócio jurídico um ônus para que tenha direito a algo maior. Possui previsão nos artigos 136 e 137 do CC/02.

Por meio de toda a contextualização introdutória feita até este momento sobre Negócio Jurídico e seus planos de análise, é possível efetivamente analisar o problema acerca da invalidade do negócio jurídico viciado na manifestação de vontade decorrente de um estado de perigo. Como já mencionado, o estado de perigo prejudica a livre manifestação de vontade, o que, segundo o ordenamento cível brasileiro, provoca a anulabilidade do negócio jurídico. Contudo, conforme visto na análise dos planos de existência e validade, a manifestação de vontade faz parte do núcleo principal de todo negócio jurídico, integrando seu próprio conceito. Portanto, questionar se o vício na manifestação de vontade, que é ocasionada pelo estado de perigo, provoca a anulabilidade ou a nulidade absoluta do negócio jurídico é um estudo que se impõe, até mesmo pelas consequências práticas que essa conclusão provoca no mundo jurídico.


3 - O ESTADO DE PERIGO E A INVALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO

O estado de perigo é um instituto que atinge a livre manifestação de vontade de modo a provocar a sua invalidade. Surgiu no Código Civil de 2002 e tem ligação íntima com o estado de necessidade. Está disciplinado no artigo 156 do CC/02, in verbis:

Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte,   assume obrigação excessivamente onerosa.

Portanto, é um defeito invalidante do negócio jurídico que faz com que uma das partes assuma obrigação excessivamente onerosa para salvar a si ou outrem. Está relacionada diretamente à vida, a saúde, a integridade física daquele que adere a um negócio jurídico sem ter nenhum tipo de liberdade contratual: valor, condição, taxa de juros, prazos etc. Assim, o negócio jurídico é firmado de forma totalmente desequilibrada, pois uma parte se aproveita da situação de desespero da outra, impondo-lhe condições totalmente inaceitáveis, as quais em uma negociação normal, jamais seriam acatadas.  

A jurisprudência[1], para que reste configurado o estado de perigo, exige o chamado “dolo de aproveitamento”, ou seja, exige que a parte beneficiada saiba da situação de perigo do outro ao impor condições exorbitantes. Analisando o dispositivo legal, pode-se afirmar que o estado de perigo possui os seguintes requisitos: situação de necessidade, dano eminente atual e grave; nexo de causalidade entre o perigo de dano e a manifestação; ameaça de dano a própria pessoa ou de sua família; dolo de aproveitamento e assunção de obrigação excessivamente onerosa (VENOSA, 2013).

A doutrina cita algumas situações ilustrativas para definir a situação de estado de perigo. É o caso de uma vítima de naufrágio, onde um pescador oferece salvamento sob a condição de ser agraciado com toda a fortuna da vítima; ou ainda, quando o doente assume uma dívida excessivamente onerosa junto ao hospital. Neste sentido, Washington de Barros Monteiro e Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto esclarecem:

O estado de perigo leva a crer que se trata de situação que diga respeito mais a um dano físico, a risco à integridade física do agente, do que a um dano moral. Assim, para custear dispendioso e inadiável tratamento médico de que necessita seu filho, a vítima dá em pagamento ao médico o imóvel em que reside a família, de valor muitas vezes superior ao dos serviços médicos (MONTEIRO; PINTO, 2012, p. 268-269).

Importante lembrar que o estado de perigo não estava previsto no Código Civil de 1916, assim como a lesão, outro defeito invalidante do negócio jurídico, mas que são institutos que não se confundem. Na lesão, há uma situação de necessidade econômica ou inexperiência da outra parte que faz com que ela aceite um negócio jurídico extremamente desproporcional. No estado de perigo, o negócio jurídico não é feito por inexperiência ou necessidade econômica: há, em verdade, uma efetiva situação de perigo à vida, tanto do contratante quanto de outrem.

No estado de perigo¸ a situação constrangedora pode ser causada por evento da natureza, como terremoto, enchentes, maremotos, ou então por ação humana, como o caso de um sequestro, um assalto, ou até mesmo pela exigência de cheque caução ou assinatura de nota promissória em branco para atendimento emergencial em hospital (ULHOA, 2013). Não se pode confundir ainda estado de perigo com coação. No estado de perigo, há uma parte que não é responsável pelo estado em que se encontra a vítima, diferente do que ocorre na coação. O perigo é de conhecimento do beneficiário, mas não foi ele quem provocou a situação, não tendo empregado violência ou ameaça para que a vítima assumisse a obrigação desproporcional (VENOSA, 2013).

Com a conceituação de estado de perigo delineada e seus requisitos demonstrados, mister se faz entender como o código civil trata os negócios jurídicos firmados nestas condições. Conforme artigo 171, II do CC/02 já apresentado no capítulo II, o negócio jurídico firmado sob estado de perigo é considerado anulável, ou seja, invalidá-lo ou não vai depender de inúmeros fatores, como a provocação do interessado, juiz não poderá conhecer de ofício, é prescritível, pode inclusive ser convalidado e terá efeitos ex nunc. A partir desta constatação, é que surge o questionamento: como é possível um negócio jurídico firmado sob condições extremas de anseio de sobrevivência, completamente viciado em sua manifestação de vontade, firmado com dolo de aproveitamento da outra parte, ter a possibilidade de ser convalidado, prescrever e não pode ser reconhecido de ofício pelo juiz? A nulidade absoluta deste negócio jurídico é uma questão de aplicação da boa fé objetiva e da função social do contrato, conforme se defenderá a seguir.

3.1 - A boa fé objetiva e a função social do contrato como causas de validade do negócio jurídico

A validade do negócio jurídico, em especial dos contratos, está associada diretamente com a aplicação dos princípios da boa fé objetiva e da função social dos contratos. A constitucionalização do direito civil brasileiro e os princípios norteadores do novo CC/02 trazidos por Miguel Reale, quais sejam, da “Eticidade”, “Socialidade” e “Operabilidade”, informam que qualquer contrato firmado fora destes padrões deve ser considerado inválido, pois a vítima deixa de ser apenas o contratante lesado, mas também, toda a sociedade.

O princípio da boa fé objetiva representa uma evolução do conceito de boa fé, enfatizando a lealdade e a exigência de comportamento probo e cooperativo entre os contratantes. Há, por certo, a mitigação da autonomia privada e da força obrigatória do contrato com vistas a proteger um bem muito maior, que é a dignidade da pessoa humana.

Acerca da função social do contrato, deve ser visto como uma relação intersubjetiva, baseada em um solidarismo constitucional e que traz efeitos existenciais e patrimoniais não somente em relação ás partes contratantes, mas também, em relação à terceiros. Superou-se o caráter exclusivamente patrimonial do direito civil, com enfoque especial para o caráter existencial. A ideia de que um contrato rege apenas uma relação jurídica entre as partes foi superada, pois este contrato pode atingir terceiros e a própria sociedade, o que expressa a função social do contrato. O conceito de Função Social do contrato pode ser definido como um princípio de ordem pública pelo qual o contrato deve, necessariamente, ser interpretado e visualizado de acordo com o contexto da sociedade.

A função social do contrato, conforme doutrina majoritária, possui dupla eficácia: Eficácia interna, ou seja, aplicável entre as partes contratantes; e Eficácia externa, que expande para além das partes. A eficácia interna traz os seguintes aspectos no contrato: deve proteger a dignidade humana no contrato; reconhece cláusulas anti-sociais; veda o desequilíbrio contratual e tenta preservar o contrato, quando possível. A eficácia externa traz a ideia de tutela externa do crédito, pois o contrato gera efeitos inclusive perante terceiros (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011).

Trazendo os dois institutos para análise do contrato firmado em situação de estado de perigo, temos um típico caso de ferimento a estes dois princípios. Não é aceitável dizer que um contrato em que uma das partes se aproveita da situação desesperadora da outra e mesmo assim, impõe uma condição, em alguns casos, até desumana, pode ser meramente anulável. A obediência a função social do contrato e a atuação conforme a boa fé é medida impositiva pelo ordenamento jurídico cível e constitucional, de ordem pública, e que é condição de validade do negócio jurídico. Ausentes estes dois institutos no processo de formação do contrato, este é nulo de pleno direito, cabendo ao magistrado anulá-lo de ofício. Perante o ordenamento jurídico e o direito civil constitucionalizado, não é mais razoável nem aceitável dizer que um contrato em que há dolo de aproveitamento e, ainda, locupletamento ilícito, seja convalidado pelo decurso do tempo.

3.2 - Nulidade absoluta ou Anulabilidade que possibilite Revisão contratual?

O negócio jurídico firmado sob o estado de perigo, quando da revisão de seu conceito, ficou claro a exigência de alguns requisitos que, quando ausentes, não autorizam seu reconhecimento. Portanto, caso não haja dolo de aproveitamento, não se pode falar em invalidade; quando ausente a imposição de onerosidade excessiva, também não se conclui pela invalidade decorrente do estado de perigo. Ou seja, existem requisitos que possibilitam a identificação da situação de invalidade. Por exemplo, quando um pescador exige como condição para o salvamento a quantia relativa ao seu custo de deslocamento, não temos aqui a onerosidade excessiva; portanto, o contrato é válido, pois presentes a boa fé e a solidariedade humanas que se exige atualmente em qualquer tipo de contratação.

Contudo, existem casos extremamente paradigmáticos. Se, no exemplo, citado, o pescador exigisse da vítima que esta lhe transferisse todos os seus bens como condição para o salvamento, temos dolo de aproveitamento e onerosidade excessiva. Neste caso, é que surge a discussão sobre a nulidade ou anulabilidade do contrato. Flávio Tartuce, ao tratar do assunto, assim se manifesta:

A sanção a ser aplicada ao ato eivado de estado de perigo é a sua anulação – arts. 171, II e 178, II do CC. O último dispositivo consagra prazo decadencial de quatro anos, a contar da data da celebração do ato, para o ingresso da ação anulatória. Para afastar a anulação do negócio e a correspondente extinção, poderá o juiz utilizar-se da revisão do negócio. Desse modo, filiamo-nos ao entendimento de aplicação analógica do art. 157, §2º do CC também para os casos de estado de perigo. (...) Com a revisão, busca-se a manutenção do negócio, o princípio da conservação contratual, que mantém íntima relação coma função social dos contratos. (TARTUCE, 2013, p. 381).

Este instituto é inclusive tratado no Código Civil italiano no seu artigo 1.447, legitimando o promitente a postular a rescisão do contrato, mas admite que o juiz assegura uma compensação a outra parte pelo serviço que prestou (PEREIRA, 2013).

Data vênia aos entendimentos contrários, não se deveria aplicar o princípio da conservação dos contratos neste caso, pois não há margem para considerar como expoente da função social a manutenção de um contrato completamente inquinado de má fé e tentativa de enriquecimento ilícito; e pior, por meio da exploração do desespero e do sofrimento psicológico alheio. Nelson Nery e Rosa Maria Nery defendem inclusive que a própria oferta feita pela vítima ao beneficiado já não é válida, pois já se encontra viciada pela ausência de liberdade, in verbis:

Ao conceito dado pela norma comentada, pode-se acrescentar a obrigação assumida por aquele que se encontra em estado de perigo é sempre de dar ou de fazer, e a contraprestação será sempre de fazer. Essa é a razão pela qual não se pode suplementar a contraprestação para validar o negócio. A oferta de quem se encontra em estado de perigo não vincula, pois a manifestação de vontade, nesse caso, é viciada. Em outras palavras, a simples oferta vicia o negócio (NERY JUNIOR e NERY, 2005, p. 248).

A preocupação no presente caso é o fato de que, se nenhuma das partes contribuiu para a situação de perigo em que a vítima se encontra e o beneficiário teve custo para ajudá-la, não pode este ficar no prejuízo, assim como a vítima não pode assumir obrigação excessivamente onerosa. Discute a equidade no negócio jurídico. Contudo, não se defende que o beneficiário saia prejudicado. Se há um equilíbrio no serviço prestado e no valor cobrado, não estamos diante de um negócio viciado: a vítima, em situação de normalidade, provavelmente firmaria o mesmo contrato, pois ele é lícito e equilibrado. O vício na manifestação de vontade se apresenta quando a vítima aceita um contrato, extremamente oneroso, que o chamado “homem médio” jamais aceitaria. Este sim, é o contrato defeituoso em que se fere a igualdade, a boa fé e a função social do mesmo.

Sílvio Rodrigues, refletindo sobre a mesma ideia e preocupado com a equidade, afirma que se não houve culpa por nenhuma das partes na produção do evento danoso que gerou o contrato e não houve extorsão na promessa de recompensa, aí sim o negócio deve prevalecer, embora o consentimento possa estar viciado. Portanto, não havendo onerosidade excessiva, não agiu o beneficiário com má fé, se aproveitando da situação. Neste caso, o contrato é válido e deve ser mantido (RODRIGUES, 2003). Em contrapartida e na sintonia do que se defende neste trabalho, o mesmo doutrinador afirma que:

Contudo, se o indivíduo que contratou com a vítima da pressão externa se valeu do terror que lhe inundou o espírito, para impor o negócio ou fixar-lhe cláusulas excessivamente onerosa, não pode mais ser considerado contratante de boa fé. E, nesse caso, como seu interesse não merece proteção da ordem jurídica, o vício que incide sobre a vontade do declarante opera e o negócio pode ser anulado. O elemento que impedia a atuação do mecanismo de anulabilidade – respeito à boa fé do outro contratante – cessou de existir; e, assim, entra ele a funcionar, invalidando o negócio jurídico. (RODRIGUES, 2003, p. 223).

Assim, configurado o dolo de aproveitamento e a onerosidade excessiva, não cabe mais análise de validade ou não do negócio jurídico, se caberia a sua conservação ou revisão. A nulidade absoluta do contrato se opera, pois cessa a boa fé e o contrato não cumpre sua função social, requisitos para sua validade. Caso se admita a revisão e continue se considerando este negócio jurídico firmado em estado de perigo meramente anulável, há um estimulo legislativo para a atuação de má fé, pois se a vítima não procurar o Judiciário no tempo previsto, o negócio jurídico será convalidado pelo decurso do tempo e haverá o locupletamento ilícito. Assim, no caso do pescador que exigiu toda a fortuna da vítima para salvá-la, ele realmente terá direito a retirar todo o patrimônio da mesma, inclusive o mínimo existencial que garantiria sua mantença, o que é juridicamente inaceitável.

A guisa conclusiva, deveria haver uma modificação legislativa para retirar o estado de perigo do artigo 171 e incluí-lo no artigo 166, tornando todo negócio jurídico firmado em legítimo estado de perigo nulo de pleno direito e não apenas anulável. Essa mudança viria consagrar os princípios da boa fé e da função social dos contratos de modo a não incentivar condutas abusivas e injustas, pois não há situação mais revoltante do que validar um contrato em que uma parte condiciona a vida de alguém à obtenção patrimonial. O direito não pode tutelar atitudes como estas.


4 - CONCLUSÃO

No decorrer do presente trabalho, primeiramente trabalhamos com o conceito de negócio jurídico, a fim de entender como ocorre a “Juridicização” dos fatos para sua efetiva entrada no mundo jurídico. A partir de então, delimitado o conceito de negócio jurídico e suas características, foi possível avançar para o estudo de seus defeitos, o que foi possível por meio da análise dos planos do negócio jurídico. No plano de existência, dentre vários elementos essenciais que compõe o negócio jurídico, percebemos que a declaração de vontade é um deles e integra o próprio conceito de negócio jurídico. No plano de validade, concluímos que esta declaração de vontade deve ser livre e de boa fé para não viciar o negócio jurídico, pois o defeito nesta manifestação pode tornar o negócio jurídico nulo ou anulável. No plano da eficácia, foi possível constatar que os efeitos do negócio jurídico podem estar ou não condicionados a elementos acidentais, como o termo, a condição e o encargo.

Aprofundando a análise do plano de validade do negócio jurídico para estudarmos efetivamente o estado de perigo, foco principal do trabalho, procuramos primeiramente conceituar o instituto abrangendo todos os seus requisitos, nuances e diferenciando-o de outros institutos semelhantes, como a lesão e a coação. Então, percebemos que o estado de perigo possui alguns elementos que possibilitam sua identificação, como a ocorrência do chamado “dolo de aproveitamento”, a excessiva onerosidade, a existência de uma situação de necessidade, o dano eminente atual e grave, o nexo de causalidade entre o perigo de dano e a manifestação e a ameaça de dano a própria pessoa ou de sua família. A enumeração destes requisitos, com amparo legal, facilita a identificação da situação de estado de perigo, evitando que se possa defender a nulidade absoluta de um contrato válido.

A partir deste rol de conceituações, levantamos o questionamento acerca da previsão do CC/02 de que o contrato firmado por agente que se encontra em estado de perigo não deveria ser considerado nulo de pleno direito e não apenas anulável, uma vez que o vício na manifestação de vontade é insanável. A fundamentação para tanto é que o agente que se aproveita de outrem em situação de iminente dano a sua saúde ou de outrem age com má fé e que a vítima não possui liberdade de escolha das condições contratuais, ferindo os princípios basilares do ordenamento civil e constitucional, que são a boa fé objetiva e a função social do contrato.

Apesar de alguns defenderem que o contrato deve ser mantido e suas cláusulas revisadas para evitar uma situação de desigualdade ou de locupletamento ilícito, não há como considerar um contrato firmado com base no sofrimento e no desespero de um dos contratantes como lícito. Mesmo que um contrato seja firmado sob condições extremas de perigo à saúde, se as cláusulas são justas e não abusivas, não há que falar em estado de perigo. Apesar do sofrimento e desespero do outro contratante, ele deverá arcar com o contrato, pois o mesmo é justo e equilibrado, o que não configura o indigitado estado de perigo. O que defendemos é que o contrato abusivo, feito com “dolo de aproveitamento” e que coloca a vítima em situação de sujeição total às condições excessivamente onerosas, é que deve ser considerado nulo, pois neste caso, temos tipicamente um contrato que fere qualquer conceito de boa fé, socialidade e eticidade.

Sendo assim, é fundamental uma mudança legislativa para transformar o negócio jurídico firmado em situação de estado de perigo em negócio nulo e não apenas anulável, possibilitando o magistrado reconhecer de ofício esta nulidade. O beneficiário de um contrato que auxilia outrem tem a opção de agir com boa fé e de forma proba, cobrando da vítima o justo para auxiliá-la ou à outrem; se não o faz, não merece proteção do ordenamento jurídico. Assim, cabe ao legislador a sensibilidade de perceber essa situação de incompatibilidade entre os princípios que orientam o novo direito civil constitucional e esta situação do negócio jurídico viciado na vontade e promover uma mudança que desestimule a conduta do contratante de má fé.


5 - BIBLIOGRAFIA

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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Parte geral. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2013.

Endereços eletrônicos

AREF ABDUL LATIF, Omar. Estado de perigo. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, X, n. 41, maio 2007. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br>


Nota

[1] Assim decidiu o STJ no REsp 918.392/RN, de relato da Ministra Nancy Andrigui. (...) O estado de perigo é tratado pelo Código Civil de 2002 como defeito do negócio jurídico, um verdadeiro vício do consentimento, que tem como pressupostos: (i) a “necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família”; (ii) o dolo de aproveitamento da outra parte (“grave dano conhecido pela outra parte”); e (iii) assunção de “obrigação excessivamente onerosa” (...).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALIB, Marta Luiza Leszczynski. O “estado de perigo” como causa de nulidade absoluta do negócio jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4268, 9 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31313. Acesso em: 1 maio 2024.