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Consolidação das leis de cada tributo

Consolidação das leis de cada tributo

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1. Introdução

Tenho afirmado em diversas oportunidades, em seminários e congressos nos quais tenha feito palestras, que o Estado é, infelizmente, um contumaz violador da lei tributária. A norma do art. 212 do Código Tributário Nacional é um exemplo evidente e incontestável dessa postura do Estado.

"Art. 212. Os Poderes Executivos federal, estaduais e municipais expedirão, por decreto, dentro de noventa dias da entrada em vigor desta Lei, a consolidação, em texto único, da legislação vigente, relativa a cada um dos tributos, repetindo-se esta providência até o dia 31 de janeiro de cada ano."

O Código Tributário Nacional entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1967 (Código Tributário Nacional, art. 218). Os Poderes Executivos federal, estaduais e municipais, tinham o dever de editar decretos consolidando em texto único as leis respectivas, até o dia 30 de abril de 1967. E de repetir essa providência até o dia 31 de janeiro de cada ano. Não o fizeram, o que comprova nossa insistente afirmação de que os governantes não têm o menor respeito pelos direitos do contribuinte.


2. Dever Jurídico da Administração Pública

Ao estabelecer que os Poderes Executivos federal, estaduais e municipais expedirão, por decreto, dentro de noventa dias da entrada em vigor desta Lei, a consolidação, em texto único, da legislação vigente, relativa a cada um dos tributos, repetindo-se esta providência até o dia 31 de janeiro de cada ano, o Código Tributário Nacional criou importante dever jurídico para a Administração Tributária da União, dos Estados e dos Municípios.

O descumprimento desse dever apenas confirma que o Estado é na verdade um contumaz violador da lei. É um exemplo indiscutível dessa conduta ilícita, que demonstra de modo eloqüente e incontestável que temos razão quando, em diversas oportunidades, temos afirmado que o Poder Público geralmente não tem nenhum respeito pelos direitos do cidadão, atitude que se explica por ser o sistema normativo um sistema de limites, ao qual nenhum governante quer submeter-se.

Há quem afirme que se trata de norma simplesmente programática (Cfr. Ricardo Abdul Nour, em Comentários ao Código Tributário Nacional, coordenação de Ives Gandra da Silva Martins, Saraiva, São Paulo, 1998, vol. 2, pág. 536). Há quem se refira a ela dizendo que esta disposição transitória determinava, como se, porque encartada entre as disposições finais e transitórias do Código, tivesse tido sua vigência exaurida (Cfr. Láudio Camargo Fabretti, Código Tributário Nacional Comentado, Saraiva, São Paulo, 1998, pág. 180). E também há quem a ela se referira dizendo tratar-se de outro sino sem badalo, porque um dispositivo desprovido de sanção prática (Cfr. Aliomar Baleeiro, Direito Tributário Brasileiro, 11ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1999, pág. 1026). Há, é certo, quem reconheça a necessidade da providência prescrita pelo art. 212 do Código, afirmando que diante da "grande quantidade de leis emitidas para cada imposto, depois de certo tempo, a consolidação dessas leis em um texto único traria uma certeza para o contribuinte sobre as normas jurídicas que estão em vigor, e às quais deve dar cumprimento." (Aurélio Pitanga Seixas Filho, Comentários ao Código Tributário Nacional, cord. Carlos Valder do Nascimento, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2000, pág. 508). A doutrina majoritária não indica, porém, nenhuma conseqüência prática do descumprimento, pelas autoridades da Administração Tributária, do dispositivo albergado pelo art. 212 do Código Tributário Nacional, nem esclarece, com vista a sua possível alteração por lei ordinária, e de sua aplicação aos Estados e Municípios, se o mesmo deve ser considerado como preceito de lei complementar, ou de lei ordinária.

Registre-se a existência de texto de excelente feitura, no qual o autor sustenta, com inteira razão, como uma conseqüência da não obediência ao dispositivo em tela, a impossibilidade de aplicação de multa ao sujeito passivo da obrigação tributária (Júnio Torres, Penalidades fiscais e consolidação anual da legislação tributária, Revista dos Tribunais, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, nº 506, dezembro de 1977, págs. 15 a 26).

Assim, a Administração Tributária da União, dos Estados e dos Municípios, vem sendo poupada de sua responsabilidade pelo não cumprimento do dispositivo em questão, embora nenhuma razão jurídica na verdade exista para tanto. No sentido de demonstrá-lo, vamos fazer a sua análise, apreciando especialmente as questões de saber (a ) se o art. 212 do Código Tributário Nacional cuida de matéria reservada à lei complementar; (b) se a norma por ele albergada é de natureza programática; ou (b ) se é de natureza transitória; ou (c) se é uma norma sobre requisitos formais da legislação, e ainda ( d ) se é mesmo uma norma desprovida de sanção; (e) não sendo, qual a sanção, ou quais as sanções cabíveis em face de sua violação; e finalmente, (f ) a quem cabe a responsabilidade por tais violações e, finalmente, qual o meio processual adequado para esse fim.


3. Natureza da norma do art. 212

3.1. Matéria reservada à lei complementar

A questão de saber se a norma albergada pelo art. 212 do Código Tributário Nacional trata de matéria reservada à lei complementar é de grande relevância porque o Código na verdade é uma lei ordinária. Assim, se entendermos que a matéria de qualquer de seus dispositivos não está no campo reservado à lei complementar teremos de concluir que o aquele dispositivo tem a natureza de lei ordinária. Se, pelo contrário, entendermos que a matéria nele tratada está no campo reservado à lei complementar, teremos de concluir que aquele dispositivo tem a natureza de lei complementar. Em outras palavras, na primeira hipótese teremos um dispositivo legal que pode ser alterado por lei ordinária, enquanto na segunda teremos um dispositivo legal que somente por lei complementar pode ser alterado.

Ressalte-se que tais conclusões independem da postura que eventualmente seja adotada a propósito da questão de saber o que é uma lei complementar e se existe ou não supremacia desta em relação à lei ordinária. Aquelas conclusões serão, isto sim, decorrentes da aplicação do dispositivo constitucional que reserva à lei complementar certas matérias, e do qual a supremacia é inquestionável.

Além disto, se entendermos que a matéria de que trata o art. 212 do Código Tributário Nacional não é reservada à lei complementar, fica difícil de sustentar que o referido dispositivo prevalece também contra Estados e Municípios.

A vigente Constituição Federal estabelece que à lei complementar cabe estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre os assuntos que indica (Constituição Federal de 1988, art. 146, inciso III). Está, portanto, incluído no campo reservado à lei complementar o estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária. Resta sabermos, então, se o art. 212 do Código Tributário Nacional alberga uma norma geral em matéria de legislação tributária.

Penso que essa questão deve ser respondida afirmativamente. As circunstâncias de fato que justificaram, e a cada dia mais justificam, a norma que impõe aos Poderes Executivos o dever de consolidar em texto único a legislação de cada tributo são circunstâncias comuns à União, aos Estados e aos Municípios. Sua disciplina, portanto, há de ser a mesma para todas essas entidades públicas. E a disciplina adotada pelo art. 212 do Código Tributário Nacional, devendo ser, como é, comum à União, aos Estados e aos Municípios, configura matéria típica de normas gerais em matéria de legislação tributária.

Por outro lado, na vigente Constituição também está dito expressamente que "lei complementar disporá sobre a elaboração, alteração e consolidação das leis." (Constituição Federal de 1988, art. 59, parágrafo único ). Assim, o estabelecimento de normas a respeito da consolidação de leis é hoje matéria reservada à lei complementar, de sorte que se faz irrelevante saber se o art. 212 do Código Tributário Nacional consubstancia, ou não, norma geral de Direito Tributário. Veiculando ele, como veicula, norma concernente à consolidação de leis, só poderá ser alterado, ou revogado, por lei complementar.

Não há dúvida, portanto, de que a norma albergada pelo art. 212 do Código Tributário Nacional, típica norma geral em matéria de legislação tributária, está no campo reservado à lei complementar, e só por lei complementar poderá ser alterada ou revogada.

3.2. Norma programática

A expressão norma programática tem sido utilizada especialmente no campo da doutrina do Direito Constitucional, para significar "aquela em que o constituinte não regula diretamente os interesses ou direitos nela consagrados, limitando-se a traçar princípios a serem cumpridos pelos Poderes Públicos (Legislativo, Executivo e Judiciário ) como programas das respectivas atividades, pretendendo unicamente à consecução dos fins sociais pelo Estado." (Maria Helena Diniz, Dicionário Jurídico, Saraiva, São Paulo, 1998, vol. 3, pág. 371).

A norma programática tem sido entendida por alguns como simples enunciado de princípios, sem efeito normativo. Neste sentido, a rigor não seria norma, porque não albergaria prescrição jurídica nenhuma. Essa doutrina, que empresta a tais normas a condição de pura retórica, está hoje superada (Cf. Eduardo Garcia de Enterria e Tomás-Ramón Fernandez, Curso de Direito Administrativo, tradução de Arnaldo Setti, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1991, pág. 141). Na verdade as normas programáticas, como bem demonstra Maria Helena Diniz, possuem efeito normativo e podem gerar conseqüências de ordem prática como qualquer norma jurídica (Maria Helena Diniz, Dicionário Jurídico, Saraiva, São Paulo, 1998, vol. 3, pág. 371 e 372). Seja como for, aqui não se faz necessário enfrentarmos essa questão, porque na verdade o art. 212 do Código Tributário Nacional não é uma norma programática.

Realmente, esse dispositivo não se limita a estabelecer princípios. Muito pelo contrário, ele alberga uma típica prescrição de conduta. Diz que os Poderes Executivos federal, estaduais e municipais expedirão ... Dúvida, portanto, não pode haver, de que expressa uma norma jurídica no sentido estrito, rigorosamente técnico, que tem essa expressão na Teoria Geral do Direito. É sem nenhuma consistência, portanto, qualquer argumento que pretenda negar-lhe efeito normativo a pretexto de que se trata de norma programática.

Também não se trata de uma norma transitória, como a seguir se verá

3.3. Norma transitória

É certo que em certo sentido tudo no universo é transitório, mas é evidente que não é neste sentido que se fala em disposições ou normas transitórias em uma lei.

Norma transitória é aquela que regula situação de fato passageira. A transitoriedade qualifica a situação do que é temporário, ou do que está de passagem (Maria Helena Diniz, Dicionário Jurídico, Saraiva, São Paulo, 1998, vol. 4, pág. 609). O art. 212 do Código Tributário Nacional, diversamente, estabelece um dever a ser cumprido no prazo de 90 dias da entrada em vigor do Código, e ainda, anualmente, até o dia 31 de janeiro de cada ano subsequente. Cuida-se, como facilmente se vê, de um dever duradouro, sem prazo para terminar, que não tem de nenhum modo o caráter da transitoriedade.

Assim, qualquer argumento que pretenda negar os atuais efeitos normativos do art. 212 do Código Tributário Nacional revela-se totalmente insubsistente. A norma nele albergada tem induvidoso efeito permanente. Além do mais, note-se que o Código, na parte em que está encartado o art. 212, não cuida apenas de normas transitórias, mas de normas finais e transitórias, de sorte que nem mesmo o argumento topográfico, por si mesmo insubsistente, socorre tal argumento.

3.4. Norma sobre requisitos formais da legislação

A Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, cumprindo o disposto no parágrafo único, do art. 59, da Constituição, estabeleceu normas sobre a redação, a alteração e a consolidação das leis, mas deixou evidente que as normas na mesma contidas são meras indicações para o legislador, pois "eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento." (Lei Complementar nº 95, de 26.02.98, art. 18).

Poder-se-ia, então, alegar que o art. 212 do Código Tributário Nacional alberga uma norma sobre requisitos formais da legislação, e assim, por força do disposto da referida Lei Complementar nº 95, a não consolidação da legislação não constituiria escusa válida para o seu descumprimento.

O argumento, porém, seria improcedente por pelo menos duas razões, cada uma delas bastante em si para afastá-lo. A primeira delas consiste em que o não cumprimento do art. 212 do Código Tributário Nacional não configura "eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular." Configura, isto sim, o evidente descumprimento de um dever jurídico pela Administração Tributária. "A consolidação da legislação tributária, cada vez mais copiosa, é medida benéfica para todos (contribuinte e funcionários ), e deve ser empreendida anualmente. Se assim não tem sido feito, configura-se flagrante violação da parte final deste artigo." (José Jayme de Macedo Oliveira, Código Tributário Nacional, Saraiva, São Paulo, 1998, pág. 588). E a segunda consiste em que não se cogita aqui de escusa para o descumprimento da legislação não consolidada, posto que a não consolidação efetivamente não pode ser alegada como causa para o não pagamento dos tributos nela previstos.


4. A norma, o dever jurídico e a sanção

4.1. A norma, o dispositivo legal e o ordenamento normativo

Como o Direito é um sistema de normas, sempre se há de examinar as normas que o integram em face da idéia de sistema. Elas devem ter, e na verdade têm, entrelaçamento lógico. Por isto mesmo nenhuma norma deve ser interpretada isoladamente.

Pela mesma razão não se deve identificar a norma com o dispositivo legal. Muita vez o dispositivo de uma lei alberga duas ou mais normas, e muita vez a norma se expressa através de dois ou mais dispositivos legais.

O jurista deve, então, distinguir a norma do dispositivo legal. E deve considerar que a norma, como preceito provido de sanção para a sua inobserância, há de ser encontrada no ordenemento, especialmente tendo em vista as relações que sempre existem entre as normas, porque a Ciência do Direito existe para permitir a visão sistêmica do Direito como um ordenamento normativo. Esta é a lição dos grandes teóricos do Direito, que preconiza a necessidade dessa visão sistêmica, como se vê na doutrina de Bobbio, a dizer que:

"A necessidade de investigação neste campo surge da comprovação de que na realidade as normas jurídicas não existem nunca isoladamente, mas sempre em um contexto de normas, que têm entre si relações particulares (estas relações serão em grande parte o objeto de nosso estudo). Este contexto de normas denomina-se "ordenamento". E é importante observar desde o princípio que a palavra "direito" tem, entre os seus muitos significados, também o de "ordenamento jurídico", por exemplo, na expressão "direito romano", "direito italiano, "direito canônico", etc." ( No original: Lesigenza della nuova ricerca nasce dal fatto che nella realtà le norme giuridiche non esistono mai da sole, ma sempre in un contesto di norme, che hanno paraticolari rapporti tra loro ( e questi rapporti saranno in gran parte l´oggetto della nosta trattazione ). Questo contesto di norme si suole chiamare "ordinamento". E sarà bene osservare sin dal principio che la parola "dirrito", trai suoi molti significati, há anche quello di "ordinamento giuridico", per esempio, nelle espressioni "diritto romano", "diritto italiano", diritto canonimo", ecc.) (Norberto Bobbio, Teoria generale del diritto, Giappichelli, Torino (Itália), 1993, p. 159).

Toda norma, como tal entendida a prescrição de um dever jurídico é, pelo menos em princípio, dotada de sanção, embora nem todos os dispositivos legais estabeleçam sanção especificamente para a sua inobservância. Por isto é que, mesmo os autores que se referem à classificação das leis em perfeitas e imperfeitas, dizendo serem desta última categoria aquelas desprovidas de sanção, deixam claro que se estão referindo a ausência de sanção específica.

Ressalte-se que sanção é a conseqüência do ilícito. Não é necessariamente uma penalidade. Pode ser inclusive a execução forçada do dever jurídico, vale dizer, da prestação. E pode ser a reparação dos danos decorrentes dessa não prestação.

4.2. Dever jurídico e sanção concernentes ao art. 212 do CTN.

Recorde-se a estrutura da norma jurídica, assim expressa na Teoria Geral do Direito: dado o fato temporal deve ser a prestação, e dada a não prestação deve ser a sanção. O fato temporal é o fato ou a situação de fato cuja concretização enseja a incidência da norma. A prestação é o dever jurídico. A sanção, finalmente, é a conseqüência jurídica da não prestação.

O art. 212 do Código Tributário Nacional estabelece que os Poderes Executivos da União, dos Estados e dos Municípios, expedirão, por decreto, dentro de noventa dias da entrada em vigor do Código, a consolidação, em texto único, da legislação vigente, relativa a cada um dos tributos, repetindo-se esta providência até o dia 31 de janeiro de cada ano. O fato temporal é a situação de fato configurada pela existência de legislação de cada tributo, a ser consolidada em texto único, e o elemento temporal a ela ligado. Dado esse fato, deve ser a prestação, consistente em baixar decreto reproduzindo aquela legislação em texto único. Não previu, é certo, aquele dispositivo legal, uma sanção específica para a não prestação. Isto, porém, não significa seja ele uma norma sem sanção. Aliás, mesmo os formulam a classificação das normas segundo a sanção, nesta reportam-se à categoria de normas imperfeitas, que definem como as que "não possuem sanções específicas, impondo deveres sem estabelecerem a sanção a ser aplicada no caso de sua inobservância." (Paulo Dourado de Gusmão, Introdução à Ciência do Direito, 2ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1960, pág. 78).

Tal sanção, porém, há de ser localizada em outros dispositivos que integram nosso ordenamento jurídico. A ausência de sanção prevista especificamente na norma que institui o dever jurídico não pode ser entendida como ausência de sanção para o descumprimento do dever jurídico. Existem no ordenamento jurídico várias espécies de sanção de sorte que o descumprimento de um dever jurídico jamais estará a salvo de sanção. Considerando-se que ao dever jurídico contrapõe-se um direito, em último caso caberá ao titular desse direito, em face da não prestação, utilizar-se da ação correspondente. Por isto doutrina Miguel Reale:

"Tudo no Direito obedece a esse princípio da sanção organizada de forma predeterminada. A existência mesma do Poder Judiciário dá-se em razão da predeterminação da sanção jurídica. Um homem lesado em seus direitos sabe de antemão que pode recorrer à Justiça, a fim de que as relações sejam objetivamente apreciadas e o equilíbrio restabelecido.

As leis todas têm, portanto, uma sanção, motivo pelo qual o Código Civil, em seu art. 75, reza que "a todo direito corresponde uma ação que o assegura." (Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, 10ª edição, Saraiva, São Paulo, 1983, pág. 75).

Arnaldo Vasconcelos, preconizando a sanção como uma das características da norma jurídica, afasta a idéia de norma jurídica sem sanção, reportando-se também ao art. 75 do Código Civil, para ensinar que

"Aí está exarado o princípio da ação, que constitui o meio próprio de efetivar-se a sanção. Daqui por diante o raciocínio dedutivo esclarece tudo: se a sanção se efetiva pela ação, que decorre do Direito e, este, da norma, logo, toda norma possui sanção." (Arnaldo Vasconcelos, Teoria da Norma Jurídica, 4ª edição, Malheiros, São Paulo, 1996, pág. 160).

4.3. O ilícito pressuposto da sanção no art. 212 do CTN

Não temos dúvida de que toda norma jurídica tem como uma de suas características a sanção, e por isto acolhemos a doutrina segundo a qual sua estrutura realmente se expressa pela fórmula dado o fato temporal deve ser a prestação ou dada a não prestação deve ser a sanção, a propósito da qual já escrevemos:

"Nessa fórmula, a disjuntiva ou separa o lícito do ilícito. Em face de determinada situação, descrita na norma, deve ser determinada conduta. Essa conduta que deve ser é o lícito. Conduta diversa será a não prestação. É o ilícito, que constitui o pressuposto da sanção." (Hugo de Brito Machado, Uma Introdução ao Estudo do Direito, Dialética, São Paulo, 2000, pág. 73).

Está evidentíssimo que em face do art. 212 do Código Tributário Nacional a prestação será a consolidação em texto único, mediante Decreto baixado até o dia 31 de janeiro de cada ano, pelos Poderes Executivos da União, dos Estados e dos Municípios, da legislação de cada um dos respectivos tributos. A omissão configura, evidentemente, a não prestação, e enseja, portanto, a sanção.

Tudo isto é de meridiana clareza.

4.4. Sanções cabíveis pela violação do art. 212

Entre as sanções decorrentes do não cumprimento, pela Administração Tributária, do dever que a esta impõe o art. 212 do Código Tributário Nacional, podem ser identificadas, além de outras, pelo menos duas em nosso ordenamento jurídico: a ) a exclusão do direito de impor penalidade ao sujeito passivo da obrigação tributária que deixar de observar a norma da legislação tributária não consolidada; e b) a indenização, ao sujeito passivo da obrigação tributária, dos danos que tenha sofrido em decorrência da insegurança gerada pela ausência daquela consolidação.

A primeira é, sem dúvida, a sanção mais eficaz no caso. Entendido que a Administração Tributária não pode punir o infrator de dispositivo da legislação que não tenha sido consolidado, essa Administração hoje inadimplente vai, com certeza, cuidará de cumprir o seu dever legal.

A segunda, recomenda-se tanto para os casos nos quais o sujeito passivo da obrigação tributária tenha sido compelido a pagar penalidades, como para os casos em que tenha sofrido prejuízos outros, desde que se possa sustentar que sua conduta resultou de desconhecimento ou de incorreta interpretação do dispositivo que deveria ter sido e não foi consolidado.

4.4.1. Inaplicabilidade de sanções ao sujeito passivo de obrigação tributária

É certo que ninguém pode escusar-se de cumprir a lei alegando que a desconhece. Não se trata, porém, de invocar o desconhecimento da lei para deixar de cumpri-la. Ninguém se escusará de cumprir a lei tributária, vale dizer, ninguém deixará de pagar tributos, alegando que desconhece a lei que o instituiu, ou aumentou. Em face do não cumprimento, pela Administração Tributária, do dever de consolidar anualmente em texto único a legislação de cada tributo, o que na verdade se há de questionar é o poder da Administração inadimplente de impor penalidades ao sujeito passivo da relação tributária.

Ressalte-se, em primeiro lugar, que a imposição de penalidades, pela Administração inadimplente, carece de todo e qualquer respaldo moral. Nada justifica a inércia da Administração no cumprimento do seu dever, que corresponde ao direito do sujeito passivo da obrigação tributária à certeza jurídica. É princípio universal de Direito, fundado em regra moral de reciprocidade e de lealdade, aquele segundo o qual, em uma relação jurídica, a parte que não cumpre os seus deveres não pode exigir o cumprimento dos deveres da outra.

Assim, mesmo que se reconheça o caráter impositivo da relação tributária, que até certo ponto justificaria a desconsideração de sua bilateralidade, no sentido de que nela o sujeito passivo só tem deveres, isto somente pode levar à conclusão de que o tributo será em qualquer caso devido, ainda que deveres eventualmente estabelecidos para o sujeito ativo da relação sejam por este descumpridos. Não será razoável, porém, chegar-se ao extremo de admitir que o sujeito passivo pode punir o sujeito passivo, porque este, em face da falta das informações que lhe foram negadas por aquele, deixou de cumprir os seus deveres na relação tributária.

É certo que estamos falando de situações nas quais o descumprimento da lei, pelo sujeito passivo, possa ser razoavelmente admitido como fruto da ausência daquela consolidação, em texto único, da legislação tributária respectiva. Nossa tese, assim, não se aplica a todos os casos de infração de lei tributária. Preconizamos, simplesmente, a não aplicação de sanções ao sujeito passivo da obrigação tributária por infrações que possam ser atribuídas a erros de direito escusáveis.

O erro de direito, a final, pode ser causa de absolvição do réu. A moderna doutrina do Direito Penal o admite, a partir da distinção entre erro de tipo e erro de proibição. Neste sentido é a lição de Assis Toledo:

"O equívoco da doutrina tradicional foi não perceber que o denominado "erro de direito" englobava várias formas de erro, totalmente diferentes entre si, e que, portanto, não podiam estar contidas em um único conceito, com idênticos efeitos jurídicos." E ainda, referindo-se ao erro de tipo e ao erro de proibição:

"Como ambas essas formas de erro são igualmente relevantes para o direito penal, a antiga antinomia que se criara entre elas cede lugar a uma distinção puramente conceitual, da qual não se podem extrair efeitos opostos – a escusabilidade de uma e a inescusabilidade da outra. O certo será dizer-se que ambas podem, ou não, ser escusáveis, dentro de certos critérios.

Não se trata – frise-se, para evitar equívocos – de uma substituição meramente terminológica, como se o erro de fato passasse a denominar-se erro de tipo e o de direito, erro de proibição. É muito mais que isso, pois o erro de tipo abrange situações que, antes, eram classificadas ora como erro de fato, ora como de direito. O erro de proibição, por sua vez, além de incluir situações novas, abarca uma séria de hipóteses antes classificadas como erro de direito." (Francisco de Assis Toledo, Princípios Básicos de Direito Penal, 5ª ed., Saraiva, São Paulo, 1994 p. 267).

Nosso Código Penal estabelece expressamente que "o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei." (Código Penal, art. 20). Distingue-se, porém, o erro evitável, do erro inevitável. "O erro de tipo evitável exclui o dolo, o inevitável exclui o dolo e a culpa, estrictu sensu." (Ney Moura Teles, Direito Penal, LED, São Paulo, 1996, Parte I, volume 1, p. 303). O Código Penal, aliás, reconhece expressamente essa distinção, posto que embora afirme que o desconhecimento da lei é inexcusável, acrescenta no mesmo dispositivo que o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço (Código Penal, art. 21).

Júlio Fabrini Mirabete adita esclarecimento a respeito do assunto, ensinando:

"Um erro que recai sobre elemento normativo do tipo também é erro de tipo excludente do dolo (pela lei anterior era considerado erro de direito inescusável)." E explica: "O erro é uma falsa representação da realidade e a ele se equipara a ignorância , que é o total desconhecimento a respeito dessa realidade. No caso de erro de tipo, desaparece a finalidade típica, ou seja, não há no agente a vontade de realizar o tipo objetivo. Como o dolo é querer a realização do tipo objetivo, quando o agente não sabe que está realizando um tipo objetivo, porque se enganou a respeito de um dos seus elementos não age dolosamente: há erro de tipo." (Julio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, Atlas, São Paulo, 1995, volume 1, p. 167).

Como se vê, a afirmação segundo a qual ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que a desconhece tem seus temperamentos. Por isto acolhemos a tese de Júnio Torres, Advogado no Rio de Janeiro, que em excelente artigo de doutrina conclui que o art. 212 do Código Tributário Nacional

... é dotado de eficácia jurídica, porque o seu desatendimento caracteriza uma contribuição mais ou menos decisiva do fisco para a inobservância, pelo contribuinte, das regras jurídicas tributárias não consolidadas ou indevidamente omitidas na última consolidação publicada, com as conseqüências de se tornar possivelmente indicada a exclusão ou a mitigação das sanções que seriam aplicáveis em circunstâncias normais e de se abrir ao contribuinte a discussão da sua responsabilidade com a máxima amplitude, tornando-se inoperantes as restrições que a legislação subordinada ao Código oponha a essa investigação. (Júnio Torres, Penalidades fiscais e consolidação anual da legislação tributária, Revista dos Tribunais, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, nº 506, dezembro de 1997, pág. 26).

A não aplicação de penalidade ao contribuinte que deixe de observar norma da legislação tributária em virtude de sua não consolidação é, sem dúvida, uma sanção cabível em face da flagrante inobservância pela Administração Tributária, de dever estabelecido pelo art. 212 do Código Tributário Nacional. Há, porém, outra sanção que nos parece igualmente cabível, a ser utilizada nos casos em que o contribuinte já tenha sido compelido a suportar aquelas penalidades, ou que eventualmente tenha sofrido outros danos que possam ser tidos como decorrência da ausência da consolidação anual da legislação tributária. É o que a seguir vamos examinar.

4.4.2. Indenização dos danos sofridos pelo contribuinte

A mais geral das sanções consiste na indenização dos danos decorrentes do ato ou da omissão que consubstanciam o ilícito. Assim, como a não consolidação anual em texto único da legislação tributária é, inegavelmente, uma omissão ilícita, não há dúvida quanto ao direito do sujeito passivo da obrigação tributária que tenha sofrido qualquer dano em decorrência daquela omissão, de haver a indenização respectiva.

Aliás, com a não observância do dever que lhe impõe o art. 212 do Código Tributário Nacional, a Administração Tributária produz para o sujeito passivo da obrigação tributária, desde logo, um ônus significativo, representado pelo custo da informação a respeito das leis vigentes sobre cada um dos tributos a que está sujeito. No mais das vezes ele sente-se obrigado a contratar serviços de empresas ou profissionais especializados para lhe prestar assessoramento, o que poderia ser desnecessário se dispusesse até o dia 31 de janeiro de cada ano de um Decreto consolidando a legislação de cada um daqueles tributos. Esse ônus, facilmente demonstrável, pode ser objeto de indenização a que tem direito o contribuinte.

Finalmente, casos podem ocorrer nos quais o sujeito passivo de obrigações tributária tenha de defender-se de ações fiscais que seriam evitadas se os próprios servidores da Administração Fiscal estivessem melhor informados a respeito da legislação vigente. É sabido que, na dúvida, o agente fiscal prefere cobrar o tributo, ou impor a penalidade, até para não ser acusado de negligência no cumprimento de seus deveres. E muitas dúvidas podem assaltar os agentes fiscais exatamente em decorrência da não consolidação de que trata o art. 212 do Código Tributário Nacional. Assim, o ressarcimento dos danos decorrentes de tais ações fiscais improcedentes também pode ser pleiteado pelo sujeito passivo de obrigações tributárias.

Sem a consolidação das leis de cada tributo, nega-se ao contribuinte o mínimo de segurança e certeza a que tem direito em suas relações com o fisco. Direito que se faz mais importante na medida em que inúmeras obrigações acessórias são a ele impostas, quase todas para dar maior comodidade à Administração Tributária. Não se justifica, portanto, que o sujeito passivo de tais obrigações, que a rigor está, ao atendê-las, desempenhando atividade que em princípio deveria ser desempenhada pelos servidores públicos, fique submetido ao risco da desinformação.


5. O conteúdo e a utilidade da consolidação

5.1. Consolidação e regulamento

Consolidação de leis em texto único não se confunde com regulamento. Neste, as normas destinam-se a explicitar o que está nas leis. Naquela, as normas são exatamente as mesmas que estão nas leis consolidadas. Mesmo assim, nada impede que em um regulamento se faça a consolidação de algumas normas tal como estão nas leis. Nem que em uma consolidação de leis se incluam algumas normas de natureza regulamentar. Aliás, como lembra Baleeiro, o art. 212 do Código Tributário Nacional não manda fazer a consolidação das leis, mas a consolidação da legislação vigente (Aliomar Baleeiro, Direito Tributário Brasileiro, 11ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1999, pág. 1026), e legislação abrange, na terminologia adotada pelo Código Tributário Nacional, não apenas as leis, mas também os decretos e regulamentos, além das normas ditas complementares, como as instruções, portarias e outras de natureza infra legal.

Pode-se, pois, concluir que a consolidação determinada pelo art. 212 do Código Tributário Nacional inclui os dispositivos de leis e de regulamentos. Impõe-se, todavia, a distinção entre a consolidação das leis, e os dispositivos meramente regulamentares, que além de ser teoricamente muito clara tem inegável efeito prático.

É sabido que o alcance dos regulamentos é limitado, como explicita o art. 99, do Código Tributário Nacional. Em vista dessa limitação fica evidente a diferença entre um regulamento e uma consolidação de leis.

O regulamento não pode conter norma cuidando de matéria reservada à lei, porque isto violaria o princípio constitucional da legalidade, explicitado, em matéria tributária, pelo art. 97 do Código Tributário Nacional. Pode, porém, explicitar o que está nas normas contidas em leis, e até instituir obrigações acessórias. Não obrigações que não sejam realmente qualificáveis como acessórias, embora sem conteúdo patrimonial. Só obrigações que tenham nítido caráter instrumental, vale dizer, obrigações cujo cumprimento viabiliza o controle do cumprimento de obrigações principais.

A consolidação de leis não pode conter norma que não seja simples reprodução de outra contida nas leis consolidadas. Consolidação das leis é uma expressão da Teoria Geral do Direito que designa a "reunião, num só diploma legislativo, de leis esparsas sobre determinada matéria, uniformizando-as, sem, contudo, fazer qualquer inovação." (Maria Helena Diniz, Dicionário Jurídico, Saraiva, São Paulo, 1998, vol. 1, pág. 805).

Porque não há de conter inovações a consolidação deve indicar, em seguida a cada dispositivo, o dispositivo da lei consolidada que está reproduzindo. A rigor, portanto, uma verdadeira consolidação de leis pode ser veiculada até por ato administrativo de posição hierárquica inferior. Não se há de exigir que seja um Decreto. A vantagem de ser a consolidação feita por Decreto é permitir que no mesmo texto sejam encartadas normas de natureza regulamentar. Normas que não reproduzem literalmente outras existentes em leis, mas as explicitam.

Como a consolidação não inova a ordem jurídica, há de conter apenas os dispositivos vigentes na data em que é elaborada, sendo recomendável a indicação, entre parênteses, do dispositivo da lei que deu origem ao dispositivo da consolidação.

5.2. Consolidação e dispositivos revogados

O fato de constar da consolidação um dispositivo de lei que tenha sido revogado não o fará retomar a vigência. Esse dispositivo, em princípio, não obrigará a autoridade, e menos ainda o contribuinte.

Se o dispositivo de lei não foi expressamente revogado, o fato de constar da consolidação pode ser alegado pelo contribuinte como argumento a sustentar que não se deu a revogação, na medida em que consubstancia uma interpretação do Chefe do Poder Executivo. E se a conduta do contribuinte foi desenvolvida em observância daquele dispositivo, pode ele ser invocado para excluir a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo, nos termos do art. 100, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, posto que será sempre um dispositivo de regulamento, e portanto, mais do que uma norma complementar da legislação tributária.

Não se trata de questão de interesse meramente acadêmico. Muito ao contrário, ela tem grande interesse prático, como demonstra o que ocorreu no Município de Fortaleza. O art. 153, da Lei nº 4.144/72, autoriza a compensação do ISS devido pelos colégios com a prestação de serviço escolar consubstanciada em bolsas de estudo oferecidas ao Município, nos termos que indica. Esse dispositivo foi incluído na consolidação aprovada pelo Decreto nº 9.757/95, e também na consolidação aprovada Decreto nº 10.827, de 18.07.2000. Não obstante, o Contencioso Administrativo Tributário do Município entendeu que o mesmo estaria revogado pelo art. 229, § 3º, da Lei Orgânica do Município de Fortaleza. A compensação estaria, assim, desautorizada.

Tal revogação na verdade não ocorreu. É certo que o dispositivo Lei Orgânica veda a destinação de recursos públicos do Município a estabelecimentos particulares de ensino. Ocorre que imposto ainda não arrecadado não pode ser considerado como recurso público. Seja como for, a consolidação das leis tributárias do Município, aprovada por um Decreto do Chefe do Poder Executivo, é uma interpretação que vincula toda a Administração Municipal. Não pode ser simplesmente desconsiderada por órgãos dessa Administração. Muito menos para punir aqueles que se comportaram de acordo com os dispositivos consolidados.

5.3. Utilidade da consolidação

A utilidade, ou mais exatamente, a absoluta necessidade da consolidação da legislação tributária, é algo indiscutível, pelo menos em relação a alguns tributos. Qualquer pessoa que lida nessa área o sabe sobejamente.

A propósito do art. 212 do Código Tributário Nacional, Seixas Filho sustenta a necessidade da consolidação no mesmo determinada, para a garantia da certeza para o contribuinte. Em suas palavras:

"Conhecendo-se a grande quantidade de leis para cada imposto, depois de certo tempo, a consolidação dessas leis em um texto único traria uma certeza para o contribuinte sobre as normas jurídicas em vigor, e às quais deve dar cumprimento." (Aurélio Pitanga Seixas Filho, Comentários ao Código Tributário Nacional, cord. Carlos Valder do Nascimento, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2000, pág. 508)

E em seguida aquele eminente tributarista reconhece a insuficiência dos regulamentos eventualmente expedidos pelas autoridades da Administração Tributária, e afirma, com razão pelo menos em relação a vários dos principais impostos de nosso sistema tributário, que não tem sido alcançada "a intenção do legislador, no sentido de uma freqüência que permita uma certeza razoável quanto à vigência das leis tributárias." Aurélio Pitanga Seixas Filho, Comentários ao Código Tributário Nacional, cord. Carlos Valder do Nascimento, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2000, pág. 508).

Nesse clima de insegurança jurídica, então, é razoável pretender-se a exclusão de penalidades para a inobservância das leis tributárias, pelo menos em relação a impostos cuja legislação tem sido alterada com muita freqüência, como é o caso, por exemplo, do imposto de renda, do imposto sobre produtos industrializados. A omissão da autoridade no cumprimento do art. 212 do Código Tributário Nacional poderá ser alegada pelo sujeito passivo da obrigação tributária, como causa excludente da punibilidade, e ao menos em algumas situações essa alegação deve ser acolhida, assegurando-se ao interessado o direito de pagar apenas o tributo devido, sem os acréscimos decorrentes da inobservância da lei.

Dizemos em algumas situações porque reconhecemos ser desnecessária, em muitos casos, a consolidação de que se cuida. Se existe apenas uma lei tratando do tributo, e essa lei não foi alterada nos últimos 12 meses anteriores à data prevista para a consolidação, certamente está não se faz necessária. Se no ano anterior a consolidação foi feita e, em seguida, não surgiram alterações das leis consolidadas, também não é razoável afirmar a necessidade da consolidação. É inegável, porém, a necessidade desta em relação a tributos como o imposto de renda, por exemplo, que tem leis alteradas várias vezes durante o ano.


6. Responsabilidade gerada pelo ilícito e ação cabível

6.1. O dever e a responsabilidade

O dever jurídico situa-se no momento da liberdade e, por isto mesmo, eventualmente não é cumprido. Mas do não cumprimento do dever, por pessoa responsável, resulta sempre a responsabilidade, que é um estado de sujeição.

É mais do que evidente o dever jurídico atribuído aos Poderes Executivos da União, dos Estados e dos Municípios, de consolidarem anualmente em texto único a legislação de cada um de seus tributos. O não cumprimento desse dever, isto é, a não observância do art. 212 do Código Tributário Nacional é, sem dúvida, uma omissão ilícita, que gera a responsabilidade pelos danos daí decorrentes.

Essa responsabilidade é atribuída pelo art. 37, § 6º, da vigente Constituição Federal, ao ente público. Responsabilidade objetiva que independe, portanto, de ter havido dolo ou culpa da Administração. Responsabilidade que decorre da má qualidade dos serviços de administração e arrecadação dos tributos, desenvolvidos sem que disponham, servidores públicos e contribuintes, das informações quanto ao que a própria Administração entende serem as normas vigentes da legislação tributária.

6.2. Responsabilidade do ente e do agente públicos

A responsabilidade objetiva é do ente público. Isto, porém, não quer dizer que o agente público não possa também ser responsabilizado nos casos em que tenha havido dolo ou culpa.

Como na generalidade dos casos não é razoável admitir-se que a Administração Tributária não disponha de condições para o cumprimento do dever que lhe é atribuído pelo art. 212 do Código Tributário Nacional, tem-se de concluir que a culpa estará em geral presente.

Seja como for, não basta a responsabilidade dos entes públicos.

Com efeito, consagrada a responsabilidade objetiva, pensou-se que o cidadão estivesse finalmente protegido contra os abusos do poder estatal. Essa proteção, porém, tem se mostrado precária e em muitos casos praticamente inútil. Privilégios processuais permitem uma quase infindável protelação do processo que, a final, esbarra no precatório, hoje aviltado com o parcelamento em dez anos. Além disto, mesmo quando efetivada a indenização, esta não tem o efeito que se espera das sanções em geral, de inibir a conduta abusiva, posto que sai dos cofres públicos e não do patrimônio de quem exerce a vontade estatal.

Essa realidade em que o Direito se revela ineficaz já fez com que o Ministro Marco Aurélio de Farias Mello, Presidente do STF, em debate no site UOL, reconhecendo não ser possível consertar o Brasil com novas leis, afirmasse, com inteira razão, que "precisamos, na verdade, de homens que cumpram as existentes, e isso engloba aqueles que, nos diversos segmentos, dirigem o País." (INFORME, do TRF da 1ª Região, nº 102, julho/2001, pág.7). E o caminho para fazermos com que os dirigentes do País cumpram as leis é a responsabilidade pessoal destes pelos danos que eventualmente causam aos particulares, por seus abusos, inclusive com o descumprimento de decisões judiciais. Responsabilidade civil, porque a experiência tem demonstrado ser impraticável a efetivação da responsabilidade penal.

Para Hely Lopes Meirelles, em face da responsabilidade objetiva do ente público, estabelecida pelo art. 37, § 6º, da vigente Constituição Federal, não existe a responsabilidade pessoal do agente público, a não ser perante o ente público a que serve, titular da ação regressiva contra ele nos casos de dolo ou culpa. Entretanto, em sentido contrário manifestam-se, entre outros, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello e Celso Antônio Bandeira de Mello, este último invocando em seu apoio a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, segundo verificamos, efetivamente tem reconhecido que o lesado pode mover ação contra o Estado e contra o agente, conjuntamente (STF, RE 90.071, em RTJ 96, pág. 237; RE 94.121-MG, rel. Min. Moreira Alves, RTJ nª 105, págs. 225 a 234; entre outros julgados).

O descumprimento, pelo Poder Público, da norma albergada pelo art. 212 do Código Tributário Nacional constitui verdadeira afronta ao contribuinte. E como não há no referido dispositivo a previsão explícita de uma sanção, para que tal dispositivo não continue sendo o que Baleeiro denominou sino sem badalo (Aliomar Baleeiro, Direito Tributário Brasileiro, 11ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1999, pág. 1026), tem-se de buscar o caminho da responsabilidade civil pelos danos decorrentes da omissão no cumprimento do dever de fazer a consolidação das leis de cada imposto.

Valerá a pena tentarmos esse novo caminho. Buscará o interessado demonstrar que a omissão lhe causou danos, o que não será difícil nos casos em que tenha deixado de auferir alguma vantagem prevista em lei não consolidada, ou tenha sofrido alguma punição. E a culpa dos agentes públicos, que neste caso, aliás, é evidente, pois não podem eles desconhecer as normas do Código Tributário Nacional.

A propósito da responsabilidade do agente público pelo descumprimento do art. 212 do Código Tributário Nacional, note-se que Aliomar Baleeiro, comentando esse dispositivo, cogitou da possibilidade de impeachement, reconhecendo portanto a responsabilidade do Chefe do Poder Executivo inadimplente.

No plano da Administração Pública da União, e dos Estados, e da grande maioria dos Municípios, dúvida não pode haver. Os agentes públicos que servem a essas entidades dispõem de sobradas condições para a consolidação anual, em texto único, da legislação de cada um de seus tributos. Nenhuma escusa pode ser admitida. Restaria apenas saber qual o agente público responsável pela omissão.

À primeira vista pode parecer que a omissão de que se cuida é imputável ao Chefe do Poder Executivo, posto que a este compete baixar decretos. Não nos parece, porém, que seja assim, salvo em alguns municípios de muito pequeno porte. Relativamente à União, e aos Estados, e à maioria dos Municípios, penso que o responsável pela omissão é a autoridade incumbida de chefiar a arrecadação tributária. O Secretário da Receita Federal, na União, os Secretários de Fazenda, ou Finanças dos Estados, e os Secretários de Finanças dos Municípios.

6.3. A ação cabível

Dúvida não há de que o sujeito passivo da obrigação tributária tem direito de ser indenizado pelos danos de que se cuida. Para tutelar esse direito pode, pois, promover ação ordinária tanto com o objetivo de livrar-se de penalidades, como também com o objetivo de obter a indenização devida pelos danos suportados.

A ação, quando tenha por objetivo elidir penalidades, deve ser promovida contra o ente público. Seja ação declaratória, seja anulatória de auto de infração, seja embargos à execução fiscal, conforme o caso.

Pode também o sujeito passivo da obrigação tributária, tendo sofrido qualquer dos danos decorrentes da ausência da consolidação anual da legislação, promover ação de indenização contra o agente público responsável pela omissão de que se cuida, como acima explicado. A ação, aliás, pode e deve ser um só. Contra o ente e contra o agente públicos.

Pedirá o autor a condenação do agente público fundada na culpa, caracterizada pela negligência deste no cumprimento do dever que lhe decorre do cargo, de adotar as providências que a lei determina para a Administração, vale dizer, no caso de que se cuida, o dever de fazer anualmente a consolidação da legislação de cada tributo. E também a condenação do ente público, que há de ocorrer, fundada na responsabilidade objetiva deste, na hipótese de não ser admitido pelo julgador aquele elemento subjetivo. Acolhido o pedido principal e condenados ambos os réus, a execução poderá ser feita diretamente contra os agentes públicos, sem necessidade de precatório. Acolhido apenas o pedido subsidiário, estará o autor na mesma situação em que estará se promover a ação apenas contra o Estado.

Por outro lado, só o fato de serem chamados a juízo como réus, e terem de contratar advogado para se defenderem, posto que em geral haverá conflito entre a defesa do ente público e a de seus agentes, impedindo o procurador do primeiro de atuar como advogado do segundo, já fará com que o agente público passe a atuar com mais cuidado com os direitos alheios. Além disto, uma condenação ao pagamento de indenização, por pequena que seja esta, certamente terá muito mais efeito contra as práticas ou omissões abusivas do que uma vultosa indenização a ser paga pelo ente público, que a final sai do bolso de todos nós contribuintes.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Hugo de Brito. Consolidação das leis de cada tributo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3140. Acesso em: 26 abr. 2024.