Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/33065
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A configuração criminal da prorrogaçao indevida do contrato administrativo

A configuração criminal da prorrogaçao indevida do contrato administrativo

Publicado em . Elaborado em .

A prorrogação de contratos administrativos muitas vezes esconde um centro de desvios de recursos públicos e concessão de vantagens indevidas aos contratados. A ausência de uma aplicação mais efetiva da configuração criminal da prorrogação contratual indevida perpetua a sensação de impunidade dos transgressores, legitimando irregularmente a conduta indevida.

RESUMO: Este artigo busca desenvolver o raciocínio de configuração criminal nas licitações e contratações da Administração Pública e, especificamente, quanto à prorrogação contratual indevida e suas consequências no processo licitatório originário. Embora tratado como um procedimento comum por grande parte dos gestores públicos, a prorrogação contratual muitas vezes esconde um centro de desvios de recursos públicos e concessão de vantagens indevidas aos contratados. A ausência de uma aplicação mais efetiva da configuração criminal da prorrogação contratual indevida perpetua a sensação de impunidade dos transgressores, legitimando irregularmente a conduta indevida. A nova Lei Anticorrupção, embora ainda sem caso registrado de aplicação em concreto, complementa um sistema de proteção aos fundamentos da Administração Pública, mas que somente terão a eficácia pretendida se houver uma maior atuação do fiscal da lei nas esferas criminal, civil e administrativa.

Palavras-chave: crimes, licitações, corrupção, alterações contratuais, prorrogação de tempo, Lei Federal n. 8666/93.

Sumário: 1 Introdução. 1.1 Os Princípios da Administração Pública e das Licitações. 2 Configuração da Ilegalidade. 2.1. O procedimento de licitação como balizador do futuro contrato. 2.2 A modificação do contrato administrativo. 2.2.1 As alterações unilaterais e bilaterais. 2.2.2 A questão temporal e de execução do contrato. 2.3.2 As hipóteses de prorrogação em espécie. 2.3.3 A configuração da prorrogação irregular. 2.3.4 A configuração de vantagem indevida na prorrogação. 3 O Aspecto Criminal da Prorrogação Contratual. 3.1 O crime em espécie do art. 92 da Lei n. 8666, de 1993. 3.2 A configuração do crime licitatório em virtude da prorrogação contratual indevida. 3.3 A ação penal. 4 Conclusão.


1 INTRODUÇÃO

A tortuosa relação entre a definição do público e o privado se desenvolve desde a concepção da ideia de Estado, da definição da res publicae que remonta ao início da própria existência do direito romano (CASTRO, 2004, p. 69) – base do ordenamento jurídico brasileiro atual.

O caráter punitivo das desvirtuadas relações entre o público e o privado tem sido objeto do desenvolvimento legislativo e normativo da maioria das organizações sociais estruturadas e não estruturadas, de maneira a manter o equilíbrio, a probidade e a proteção das instituições públicas, do bem comum e da paz social que originaram o “Estado de Direito” contemporâneo.

Esse desenvolvimento estruturado das definições de público, privado e suas relações era indicado pelo direito romano como as Leges Privatae (leis privadas, oriundas dos contratos), das Lex Colegii (leis locais), e, em maior instância, referindo-se às deliberações dos órgãos do Estado, aplicavam-se as Lex Publica (CASTRO, 2004, p. 87).

Como leciona o mestre Mirabete (2002, p. 34), “em Roma, a separação entre delicta publica (crimes contra a segurança das cidades, parricidium, etc.) e delicta privata (infrações menos graves) determinava também a distinção dos órgãos competentes para julgamento”, onde se verifica que os atentados à coletividade eram tratados com maior rigor que os ataques individuais.

A mútua interferência do direito público e do direito penal é observada em diversos sistemas jurídicos, como referencia o próprio Alcorão dando luz ao Direito Islâmico: “(...), e não os empregueis [os bens] para subornar os juízes e apoderar-vos, intencional e injustamente, de bens alheios” (Alcorão, II, 188), de maneira a proteger o sistema de controle e organização social.

A concepção da estrutura pública como hoje se apresenta é oriunda dos pensamentos de Montesquieu (1985, pp.148s) e da tripartição dos poderes do Estado, baseada na ideia de contrato social de Rosseau, onde há a busca do Estado pelo interesse comum, pelo bem de todos, sendo repudiados os atos atentatórios contra a ordem estabelecida.

No Brasil, a estrutura administrativo-pública atual estabelece uma ampla legislação que rege as relações públicas de Estado com o privado, incluindo-se, nesse escopo, o processo de contratação das necessidades da Administração Pública, definido pelo art. 37, inc. XXI da Constituição da República.

Os procedimentos referentes às contratações públicas são regulados pela lei de licitações e contratos da Administração Pública, constituída como norma destinada a regulamentar o preceito constitucional, que se estendeu à incriminação de disfunções administrativas em substituição às disposições anteriores do Código Penal de 1940.

Trata-se do procedimento licitatório em uma visão sistêmica com o contrato subsequente, especialmente em razão do ponto focal do trabalho, no qual se busca estabelecer a íntima relação do certame preliminar à contratação e os atos de execução e modificação do instrumento pactuado, especialmente quanto à prorrogação contratual.

Parte-se da constatação do mestre Hely Lopes Meirelles (2010, p. 30), para quem a:

[…] licitação e contrato administrativo são, pois, temas conexos, porque este depende daquela. Toda licitação conduz a um contrato; todo contrato objetiva uma obra, um serviço, uma compra ou uma alienação de interesse público. Daí por que a licitação e o contrato administrativo aconselham estudo conjunto ou, pelo menos, sucessivo.

Todo o procedimento licitatório, desde a sua concepção até a contratação e finalização da execução, é permeado pela determinação da observância de diversos princípios que regem a Administração Pública e, especificamente, primados que orientam as licitações públicas. A inobservância dos preceitos fundamentais que regem os atos da licitação e contratação públicas gera infringência à norma legal, muitas vezes constituindo mera irregularidade administrativa, mas, em muitos casos, sujeitam a aplicação de sanções criminais.

Um ato administrativo em particular desperta especial atenção: a prorrogação do contrato administrativo. Esse procedimento é um dos atos contratuais mais adotados na modificação dos contratos firmados com a administração pública, contudo muitas vezes executado de forma insubsistente e ferindo os preceitos que orientaram todo o processo licitatório.

Pela simplicidade superficial característica da prorrogação contratual, a sua configuração não estabelece uma relação imediata com todo o procedimento que orientou o certame ou o processo de contratação, visto que é realizado com o aspecto de mero ato de expediente no curso da execução do contrato.

Além da configuração da prorrogação contratual como um ilícito penal, com suas respectivas responsabilização cível, criminal e administrativa, busca-se demonstrar a relevância do ato administrativo como interferente em todo o processo e suas implicações acerca dos ditames fundamentais das licitações públicas, concentrando-se no tipo preconizado pelo art. 92 do Estatuto Licitatório, ou seja, nas contratações onde a Administração Pública figura como contratante de bens e serviços, excluindo-se da análise deste trabalho outros tipos de contratações, como as concessões, concursos, convênios, que, mutatis mutandi, obedecem aos mesmos parâmetros de julgamento.

A tutela penal das licitações é disciplinada pela Lei n. 8666, de 21 de junho de 1993, que regulamenta o inc. XXI do art. 37 da Constituição Federal, sendo alvo de inúmeras críticas, enveredando para a incriminação e apresentando defeitos preocupantes de técnica e de conceito (GRECO FILHO, 2007, p. 3) e, apesar de representar um progresso em relação ao Decreto-lei n. 200, de 27 de fevereiro de 1967, e ao Decreto-lei n. 2300, de 21 de novembro de 1986, pecou pelo excesso de ultrapassar os limites constitucionais disciplinando regras específicas e detalhamentos desnecessários (DALLARI, 2006, pp. 10 e 50).

Apesar de pouco comentada e, de certa forma pouco aplicada, verifica-se que uma das inovações significativas estabelecidas pela Lei n. 8666, de 1993, foi a consagração da tutela penal específica relativamente às infrações cometidas nesses procedimentos até a finalização dos compromissos fixados (PELLEGRINO, 2003, pp. 149-154), configurando importante medida saneadora das ações públicas em prol dos interesses da sociedade.

Verifica-se, pois, um novo horizonte de aplicação dos dispositivos atinentes à prorrogação irregular do contrato administrativo, especialmente em razão da entrada em vigor da chamada Lei Anticorrupção (Lei n. 12846, de 1º de agosto de 2013), assumindo o Ministério Público fundamental importância em razão do disposto pelos procedimentos específicos dessa lei e, especialmente, pelo art. 100 da Lei n. 8666, de 1993.

1.1 Os princípios da Administração Pública e das licitações

Para circunstanciar o estudo do ato administrativo indevido como uma transgressão penal licitatória, há necessidade de estabelecer o sistema de primados no qual a Administração Pública está inserida, especialmente sob o prisma das licitações. Essa vinculação da prorrogação aos princípios norteadores da licitação foi anotada pelo Tribunal de Contas do estado de Santa Catarina da seguinte forma[1]:

Prorrogação indevida e desproporcional de prazo para conclusão dos serviços contratados para reforma geral da (…), inicialmente fixado em licitação para 60 (sessenta) dias, sendo prorrogado para 390 (trezentos e noventa) dias, importando em violação ao art. 3º, § 1º, inc. I, art. 8º e art. 65 da Lei n. 8.666/93, que abriga o princípio da competitividade inerente à licitação, ante a previsão de cláusula contendo prazo exíguo para a realização dos serviços.

Como referencia Niebuhr (2008, p. 31), “para compreender a licitação pública, as leis e os decretos que a disciplinam, é fundamental compreender os princípios que a disciplinam, o que, verdadeiramente, está por trás ou na base destas leis e decretos”. Prossegue ainda o autor, ressaltando a importância dos primados para o devido entendimento das regras que as compõe, que “sem recorrer aos princípios, não se alcança à essência da licitação pública e, em razão disso, muitas questões a respeito dela acabam sendo interpretadas de forma equivocada”.

Do prisma administrativo, os princípios conduzem todos os atos da Administração, sendo a sua violação correntemente prevista na norma com a sanção do responsável. Tal importância é referenciada por Bandeira de Mello (2000, p. 748) da seguinte forma:

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

Como primeira diretriz de atuação da Administração Pública, verifica-se o estabelecimento de princípios administrativos insculpidos na cabeça art. 37 da Constituição da República de 1988, que estabelece que a “administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”[2]. Mais adiante, no inc. XXI do mesmo dispositivo constitucional observa-se o primado central das contratações públicas, ou seja, a contratação realizada por “processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes”, resultando, em regra, na obrigatoriedade da licitação, da competição, e a igualdade entre os concorrentes.

Decorre dos princípios constitucionais a importância da reflexão acerca dos atos administrativos durante todo o processo de licitação e contratação, pois, como leciona Canotilho (1993, p. 199-200):

Os princípios constitucionais fornecem sempre diretivas materiais de interpretação das normas constitucionais. E, mais, os princípios beneficiam de (1) uma objetividade e presencialidade normativa que os dispensa de estarem consagrados expressamente em qualquer preceito particular (por ex., não era pelo fato de CRP em 1976 não ter consagrado o princípio do Estado de Direito que ele deixava de ter presença normativa e valor constitucional, dado que ele podia deduzir-se de vários preceitos constitucionais); (2) os princípios carecem de uma mediação semântica mais intensa, dada a sua idoneidade normativa irradiante ser, em geral, acompanhada por uma menor densidade concretizadora.

Adicionam-se aos princípios gerais da Administração Pública preconizados pela Constituição da República os estabelecidos pelo art. 3º da Lei n. 8666, de 1993, caracterizados pela vinculação ao instrumento convocatório, pela probidade administrativa e pela adjudicação compulsória; além de estabelecer, de início, as vedações aos agentes públicos por força dos fundamentos descritos.

Delineado o aspecto dos princípios gerais e específicos que regem as licitações e contratações públicas, verifica-se que outras fundamentações decorrem da aplicação dos primados: supremacia do interesse público sobre o interesse privado; indisponibilidade dos interesses públicos pela Administração; presunção de legitimidade dos atos administrativos; necessidade de poderes discricionários para o administrador atender ao interesse público (DI PIETRO, 2001, p. 69).

Não se pretende a descrição de todos os princípios, sejam eles primários, secundários, originários ou decorrentes, inclusive diante do fato de que, como bem leciona Niebuhr (2008, p. 31), “atualmente há uma profusão de princípios, de todos os gêneros, de toda sorte. Muitos autores esforçam-se em conceber novos princípios, boa parte deles bem excêntricos e sem muita utilidade prática”.


2 CONFIGURAÇÃO DA ILEGALIDADE

2.1 O procedimento de licitação como balizador do futuro contrato

Um dos primeiros pontos que remetem o contrato administrativo a todo o procedimento licitatório que lho deu origem é a própria determinação legal contida no inc. XI do art. 55 da Lei n. 8666, de 1993, que estabelece como cláusula necessária ao instrumento “a vinculação ao edital de licitação ou ao termo que a dispensou ou a inexigiu, ao convite e à proposta do licitante vencedor”.

Nas palavras de Marçal Justen Filho (2008, p. 633), “o contrato administrativo filia-se ao ato que lhe deu origem”, onde “todo contrato deve ser interpretado em consonância com o ato convocatório da licitação”.

Na lei de regência das contratações públicas, verificamos que a primeira diretriz que vincula o contrato é prestada pela proibição contida no inc. I, do §1º, do art. 3º, estabelecendo que todos os atos vetados aos agentes públicos no início, desenvolvimento e conclusão do processo licitatório deverão considerar o “específico objeto do contrato”. Ou seja, o objeto do futuro contrato, de início, delimita toda a atuação do agente público no decorrer do desenvolvimento do certame licitatório, da dispensa ou da inexigibilidade de licitação.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2001, p. 249) ressalta que, “na redação do termo de contrato ou outro instrumento equivalente deverão ser observadas as condições constantes do instrumento convocatório da licitação (edital ou carta-convite, conforme o caso)”, já que o mesmo é a lei do contrato e da licitação. Nenhuma cláusula poderá ser acrescida ao contrato contendo disposição não prevista na licitação, sob pena de nulidade do acordo, por burla aos demais licitantes e aos primados licitatórios.

Estabelece ainda a Lei de Licitações que o contrato formado a partir da prestação de serviços técnicos, ressalvados os casos de inexigibilidade, está vinculado ao concurso que lho originou. De acordo com o §3º do art. 13 da mesma lei, as empresas contratadas por caracterização de seu corpo técnico durante a licitação, dispensa ou inexigibilidade, deverão manter o compromisso de execução pessoal e direta durante o desenvolvimento contratual.

Da mesma forma cumpre salientar que as hipóteses de contratação direta, via dispensa ou inexigibilidade de licitação, também se coadunam com as determinações de vinculação, todavia, em substituição ao instrumento editalício, encontram-se atreladas ao termo que as orientou, nos termos exatos do §2º do art. 54, da Lei n. 8666, de 1993.

O termo de contrato ou instrumento equivalente deverá ser juntado ao processo licitatório em atendimento ao disposto pelo inc. X do art. 38 da Lei n. 8666, de 1993, devendo sua minuta ser previamente analisada e aprovada pela assessoria jurídica do órgão licitante.

As próprias condições de execução do contrato e de entrega do objeto deverão ser explicitadas pelo instrumento convocatório, nos termos do inc. II do art. 40 da Lei de Licitações, assim como a minuta do futuro instrumento a ser pactuado deverá integrar a parte anexa do edital, de acordo com o inc. III do §2º do mesmo artigo e do §1º do art. 62 da mesma lei.

Tais são a interferência e a vinculação do instrumento convocatório ao contrato que a lei, por mais das vezes, estabelece determinações características do contrato em dispositivos inerentes ao edital, como no caso do §3º do art. 40 da Lei n. 8666, de 1993:

Art. 40. (…)

§ 3º Para efeito do disposto nesta Lei, considera-se como adimplemento da obrigação contratual a prestação do serviço, a realização da obra, a entrega do bem ou de parcela destes, bem como qualquer outro evento contratual a cuja ocorrência esteja vinculada à emissão de documento de cobrança.

A determinação legal de vinculação do contrato ao instrumento convocatório é estabelecida pelo inc. XII do art. 55 do Estatuto Licitatório, implicando na inclusão de cláusula necessária a ser estabelecida no termo de contratação. Ressalta Jessé Torres Pereira Júnior (2007, p. 439) que a divergência entre o edital e a minuta do contrato a ele anexada é, destarte, vício grave no ato convocatório, porquanto afeta a formulação das propostas na medida em que, “descurando do dever de bem especificar o objeto, cria dúvida entre os licitantes acerca de qual comando atender – se ao do corpo do edital ou se ao da minuta de contrato, que a integra.” Nesses casos, assevera o mesmo autor que a “Administração deve invalidar o edital, corrigi-lo e reabrir o prazo integral da licitação”.

Extrema a vinculação dos procedimentos anteriores à contratação que o desfazimento do edital de licitação por vício gera o do contrato, nas palavras de Marçal Justen Filho (2008, p. 634):

Há vínculo lógico-jurídico entre a licitação e o contrato. Portanto, a tardia revelação do vício da licitação produz reflexos sobre o contrato já firmado. A proclamação do vício em momento posterior à assinatura do contrato não impede o desfazimento deste último. Anulada a licitação, a consequência lógica será a anulação do contrato.

Em comentário ao art. 59 da Lei n. 8666, de 1993, Marçal Justen Filho (2008, p. 634) pondera que:

[...] há dificuldade na aplicação desses princípios ao direito público, inclusive porque a questão da nulidade do ato administrativo tem que ser harmonizada com os princípios norteadores da responsabilidade civil do Estado. Os efeitos da invalidade do ato administrativo são muito mais extensos do que os constantes do parágrafo único do art. 59. Sob o prisma do direito público, cabe um aprofundamento do exame da questão.

Hely Lopes Meirelles (2010, p. 222) vincula o edital como “matriz do contrato”, ressaltando que não seria compreensível que a Administração formulasse seu desejo no edital e contratasse em condições diversas do pedido na licitação, sendo permitido, porem, que as necessárias adequações sejam procedidas em conformidade à condição mais vantajosa à Administração, sendo vedadas as clausulas que a prejudiquem.

Em síntese, “a vinculação ao instrumento convocatório é princípio do procedimento licitatório e, ao mesmo tempo, cláusula necessária no contrato” (BAZILLI, 1996, p. 66), não permitindo ao administrador público o desvirtuamento de todo o processo formal estabelecido pela lei.

2.2 A modificação do contrato administrativo

2.2.1 As alterações unilaterais e bilaterais

As alterações unilaterais do contrato administrativo constituem uma das prerrogativas conferidas à Administração pelas cláusulas exorbitantes.

Segundo Joel de Menezes Niebuhr (2008, pp. 511-512):

[…] o princípio da supremacia do interesse público outorga à Administração série de vantagens e prerrogativas, que a colocam em posição de superioridade em relação aos particulares, a fim de evitar que o interesse público gerido por ela seja prejudicado ou sacrificado em contraste com os interesses particulares. […]

A prerrogativa da Administração de alterar unilateralmente contrato administrativo provoca repercussão, haja vista que destoa da própria essência da figura contratual concebida em teoria geral, que pressupõe o acordo de vontades e a igualdade entre as partes. Ou seja, as artes contratam, definem, por consequência, o objeto do contrato, e a Administração altera o objeto da avença sozinha, ainda que o contratado não queira ou se oponha a ela. Trata-se, a bem da verdade, da expressão máxima da supremacia do interesse público na esfera dos contratos administrativos, que rompe, como dito, o acordo de vontades que lhe é pressuposto, fazendo prevalecer o interesse público sobre a vontade do particular.

Convém ressaltar que a primazia administrativa na alteração unilateral dos contratos não é absoluta, uma vez que a regra é a manutenção do pacto tal como foi concebido no procedimento anterior, seja a licitação, a dispensa ou a inexigibilidade, devendo a modificação, necessariamente, estar prevista em lei. Para melhor entendimento, Marçal Justen Filho (2008, p. 653) alerta:

A distinção entre alterações unilaterais e consensuais pode conduzir a uma conclusão incorreta. Não significa que a alteração convencional seja facultativa, enquanto a unilateral seria compulsória. É certo que a alteração unilateral imposta pela Administração tem que ser acatada pelo particular. Mas não é correto que a alteração convencional seja, em todos os casos, meramente facultativa (podendo ou não ser aceita pelas partes). Há casos em que a alteração faz-se por acordo entre as partes, mas é obrigatória, na acepção de que a Lei determina que não pode deixar de ser realizada sempre que ocorrerem certos pressupostos. O conteúdo da modificação dependerá do acordo entre as partes, mas sua produção será obrigatória, na acepção de que a lei determina seus pressupostos. Uma vez verificados, deverá produzir-se seu aperfeiçoamento.

As alterações contratuais estão expressamente previstas pelo art. 65 da Lei n. 8666, de 1993, onde Jessé Torres Pereira Júnior (2007, p. 649) ressalta que “a cabeça do art. 65 traz advertência importante para a Administração, qual seja a de que os atos autorizadores de alterações em seus contratos são necessariamente motivados”, vinculando o ato do administrador público a todos os preceitos que regem a Administração na busca do atendimento do interesse público, onde o mesmo autor descreve que “a justificativa a que a lei se refere englobará as razões de fato e de direito que hajam resultado demonstradas no respectivo processo administrativo”, logo não basta a existência do fato, ele deverá taxativamente previsto pela lei e reconhecido pela Administração na motivação do Administrador.

Há necessidade de especial cuidado no entendimento da questão, uma vez que as alterações, sejam elas unilaterais ou bilaterais, não poderão interferir em critérios que estavam expressamente previstos no edital ou na proposta, visto que poderão impactar diretamente sobre os critérios de competitividade do certame, maculando todo o procedimento, como, por exemplo, o estabelecimento de prazos especialmente curtos de execução, para depois serem estendidos a rigor do cumprimento necessário do objeto.

Reside na alteração contratual, tanto unilateral quanto bilateral, o principal fator de análise observado sob a ótica de incidente criminal, com a instrumentalização proporcionada pelo fator tempo. Nesse sentido, interessante trazer os comentários de Niebuhr (2008, p. 512), que pode sintetizar a questão da alteração contratual como disfunção do sistema licitatório:

Infelizmente os contratos administrativos são alterados com muita frequência para criar vantagens indevidas ao contratado, tudo em detrimento do interesse público. Ocorre que a majoração dos encargos do contratado implica majoração dos valores devidos a ele por obséquio ao direito constitucional dos contratantes ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Então, muitos agentes administrativos alteram os contratos administrativos, por vezes sem qualquer justificativa, apenas para majorar os valores a serem pagos ao contratado. Em meio a isso, infelizmente, é usual que o contratado ofereça percentagem disso ganhos ao agente administrativo que autorizou a alteração ou ao partido dele por ocasião das eleições. Essa praxe alimenta ciclo vicioso de corrupção, bastante arraigado no cenário político nacional.

É também comum que agentes administrativos utilizem-se do poder de alterar os contratos administrativos como forma para direcionar a licitação pública que os antecede. Costuma haver um acerto prévio entre empresa e agente administrativo, em razão do qual ela, por ocasião da licitação, subestima os preços cotados para a administração, oferecendo-os por vezes em valores abaixo dos praticados no mercado. Assim a empresa vence a licitação e assina o contrato. Depois disso, para que a empresa não opere em prejuízo, promovem-se sucessivas alterações contratuais, majorando os ganhos do contratado.

Em síntese, lamentavelmente as alterações dos contratos administrativos têm sido utilizadas como instrumentos para o direcionamento das licitações, para o superfaturamento de contratos administrativos e para todo o tipo de corrupção, em afronta aberta ao princípio da moralidade administrativa. Por isso, antes de tudo, os órgãos de controle devem averiguar os aditivos com bastante rigor e cautela, para o efeito de identificar tais desvirtuamentos.

Da mesma forma verificamos o desvirtuamento da alteração contratual indevida em relação aos aspectos temporais do contrato, tanto de vigência, quanto de execução das obrigações, notadamente em virtude das imprevisões e deficiência de planejamento das ações público-administrativas, que acabam por orientar condições nem sempre favoráveis ao adequado desenvolvimento contratual, gerando situações de vantagem indevida ou modificação não admitida em lei, sujeitando os responsáveis às sanções previstas. Na tradução mais adequada para a consideração do tempo como valoração do ilícito na alteração contratual, as palavras de Benjamin Franklin (1702-1790): “time is Money”.

2.2.2 A questão temporal e de execução do contrato

É necessária, para uma adequada análise dos fatores que determinam regularidades ou irregularidades do cumprimento contratual, a localização do contrato em relação ao decurso de tempo de sua execução.

O quesito temporal estabelecido pela Administração assume vital importância para a própria existência e obrigatoriedade do instrumento, consoante se depreende do disposto pelo §4º do art. 62 da Lei n. 8666, de 1993.

A duração dos contratos administrativos, especificamente em relação aos seus prazos, é tratada pelo art. 57 da Lei de Licitações e Contratações da administração pública, versando sobre matérias diversas e distintas (JUSTEN FILHO, 2008, p 665), como se observou, é, na visão de Joel de Menezes Niebuhr (2008, p. 451), “um dos piores artigos da referida lei. Para tentar apreendê-lo é necessário determinar alguns conceitos operacionais introdutórios”.

Em inúmeros casos se observa certa confusão entre os prazos de vigência e os prazos de execução da prestação assumida. A diferenciação é de fundamental importância para as definições de analise temporal dos contratos administrativos, pois neste ponto reside um dos principais quesitos de equívocos cometidos pela Administração. Assim, Marçal Justen Filho (2008, p. 665) enfatiza:

A questão de duração dos contratos não se confunde com a prorrogação dos prazos neles previstos para execução das prestações. O prazo de vigência dos contratos é questão enfrentada no momento da elaboração do ato convocatório; a prorrogação do prazo para execução das prestações é tema relativo á execução do contrato. Portanto, lógica e cronologicamente as questões são inconfundíveis.

O prazo de execução possui diversidade de ocorrência num mesmo contrato administrativo, podendo ser configurados os prazos de “início, o das etapas de execução, o de conclusão, o de entrega, o de observação, [o de recebimento provisório], o de recebimento definitivo. Esses prazos não estão necessária e concomitantemente presentes em todos os contratos administrativos” (BAZILLI, 1996, p. 63).

As questões de vigência envolvem a definição do próprio ciclo de vida do contrato, em que as partes podem executar seus atos validamente sob cobertura contratual. Nesse aspecto, salientam-se os ensinamentos de Niebuhr (2008, p. 451):

O contrato é valido a partir do momento em que ocorre o acordo de vontades entre as partes, o que se opera, em relação aos contratos escritos, com a assinatura das partes no instrumento contratual. Além disso, para que o contrato seja válido, é necessário que ele tenha sido produzido formal e substancialmente de acordo com as normas jurídicas. Então, os contratos administrativo, via de regra, são válidos a partir do momento em que o instrumento é assinado pelas partes e desde que ele não se oponha à legalidade.

Contrato vigente é aquele que está apto a produzir efeitos. Não significa que ele produza efeitos; apenas que está apto, que pode produzir efeitos. Enquanto o contrato estiver apto a produzir efeitos ele permanece vigente. Em relação aos contratos administrativos, via de regra, a vigência inicia-se com a publicação do extrato do contrato na Imprensa Oficial, a teor do parágrafo único do artigo 60 da Lei n. 8666/93, e estende-se até o momento em que as partes cumprirem integralmente suas obrigações. Enquanto houver obrigações pendentes, o contrato permanece vigente.

Contrato eficaz é aquele que produz efeitos, isto é, que é cumprido pelas partes. Ao contrário, contrato ineficaz é aquele que não produz efeitos, ignorado pelas partes. A eficácia não é um conceito eminentemente jurídico, mas sociológico. A rigor, é um conceito sociológico que repercute no Direito. Isso porque para saber se o contrato é eficaz ou ineficaz o interlocutor não deve empreender raciocínio jurídico; ele deve analisar os fatos, o que acontece concretamente, se as partes cumprem ou não as suas obrigações, repercute no Direito, porquanto ela caracteriza o adimplemento ou o inadimplemento e, por corolário, dela advém inúmeras consequências jurídicas.

2.3.2 As hipóteses de prorrogação em espécie

As possibilidades de prorrogação dos prazos de vigência e execução estão taxativamente estabelecidas pela legislação, notadamente em relação ao previsto pelo art. 57 da Lei de Licitações.

A compatibilidade da previsão legal para a alteração de prazos dos contratos com a conduta dos agentes envolvidos na prorrogação configura o principal fator de enquadramento no tipo penal previsto pelo art. 92 do Estatuto Licitatório, sendo que o art. 57 reflete a disciplina constitucional prevista pelo art. 167 da Constituição da República (JUSTEN FILHO, 2008, p. 667).

Marçal Justen Filho (2008, p. 667) ressalta que “deve-se insistir em que as exceções consagradas nos incisos não se relacionam propriamente à natureza ou à importância do objeto da contratação”. A disciplina adotada se relaciona com questões orçamentárias, pura e exclusivamente.

A regra geral preconizada pelo art. 57 é que a duração dos contratos fica vinculada à vigência dos respectivos créditos orçamentários, sendo vedado o contrato com vigência indeterminada. Hely Lopes Meirelles (2010, pp. 241-242) ressalta que “o legislador procurou atender preceitos anteriores da lei, que proíbem a licitação e a contratação sem previsão de recursos”. Como os créditos orçamentários normalmente vigoram durante um exercício financeiro, a duração dos contratos ficaria, em princípio, limitada até 12 meses. Anota ainda o autor (GASPARINI, 2006, pp. 513-514. Apud MEIRELLES, 2010, p. 241-424), que “os contratos celebrados no último quadrimestre do ano (por exemplo, em setembro) poderão durar até o fim do exercício seguinte, porque até aquele momento vigorará o crédito orçamentário correspondente”.

As exceções quanto à alteração de prazo estão capituladas pelos inc. I a IV do caput do art. 57 da Lei n. 8666, de 1993, que somente poderão ser validamente utilizadas se previstas no ato convocatório e no contrato; já as alterações previstas pelo §1º do mesmo artigo independem de menção contratual, exatamente por atenderem situações excepcionais, que independem de previsão (DI PIETRO, 2001, pp. 249-251).

A prorrogação propriamente dita dos contratos (JUSTEN FILHO, 2008, p. 674), ou seja, do seu iter de execução, está especifica e taxativamente prevista segundo os dispositivos do rol enunciado pelo parágrafo único do art. 57 da Lei n. 8666, de 1993, podendo ser organizado em duas categorias: eventos causados pela Administração; e causas de força maior ou caso fortuito.

Como eventos da Administração se observam a alteração do projeto ou especificações (art. 57, §1º, I); a interrupção ou retardamento do ritmo de trabalho (art. 57, §1º, III); o aumento das quantidades previstas inicialmente (art. 57, §1º, IV); e o atraso ou omissão nas providências a cargo da Administração (art. 57, §1º, VI). Por outro lado, as decorrentes de força maior ou caso fortuito estão previstas pelos incisos II e V do parágrafo primeiro do art. 57 do Estatuto Licitatório.

2.3.3 A configuração da prorrogação irregular

A prorrogação irregular ocorre toda vez que se admite a alteração de qualquer prazo previsto no contrato sem a devida e expressa previsão legal. Configura também a prorrogação indevida quando os prazos previstos no contrato não são cumpridos e a Administração permanece inerte em relação a tais ocorrências, não adotando medidas corretivas, ou que compactua com os atrasos sem a devida fundamentação legal.

Marçal Justen Filho (2008, p. 674), acerca do tema, ensina que:

Os prazos previstos nos contratos devem ser cumpridos fielmente pelas partes. Seja pelo princípio da obrigatoriedade das convenções, seja pela indisponibilidade dos interesses atribuídos ao Estado, seja pela isonomia, os termos contratuais devem ser respeitados. O ato convocatório define os prazos para execução das prestações. As propostas são formuladas tendo em vista tais exigências. Se a execução de certa prestação poderia fazer-se em prazo mais longo, assim deveria constar do próprio ato convocatório. Afinal, a exiguidade do prazo pode ser fator que desincentive a participação de eventuais interessados. A alteração dos prazos contratuais ofende os princípios fundamentais que norteiam as licitações e contratos administrativos. A prorrogação dos prazos contratuais somente pode ser admitida como exceção se verificados eventos supervenientes realmente graves e relevantes, que justifiquem o não atendimento aos prazos inicialmente previstos.

Para configuração de irregularidades nas prorrogações contratuais basta o não atendimento de quaisquer dos quesitos legais impostos, mesmo estando presente o interesse público, como alerta Bazilli (1996, p. 72), ressaltando que “a prorrogação é vinculada aos motivos expressamente consagrados no estatuto”. Acrescenta ainda o autor que:

[…] a Administração não pode agir discricionariamente, mesmo que haja eventual interesse público na prorrogação; é preciso, para prorrogar os prazos estipulados contratualmente, que ocorra um ou vários dos motivos arrolados no estatuto, aos quais a decisão da Administração está vinculada.

Quanto à irregularidade configurada pela omissão da Administração, especialmente quanto à conivência com ocorrências que importem em prorrogação contratual indevida, que implicaria em caso de rescisão. Todavia, como explica Justen Filho (2008, p. 676) pode “ocorrer situação em que, não obstante o atraso derive de ato culposo imputável ao particular, caberá a manutenção do contrato – ainda que acompanhada da imposição de sanções de outra ordem ao faltoso”.

A implicação da prorrogação indevida do contrato administrativo nos fundamentos que regem todo o processo de contratação pública também é enfatizada por Baltazar Júnior (2011, p. 577), utilizando-se da teoria do potencial licitante, da seguinte forma:

A alteração no curso da execução do contrato pode frustrar a competitividade e a isonomia na medida em que outros podem ter deixado de concorrer ou perdido, por conta do maior preço, vindo a modificação posterior a alterar as condições da competição e favorecer, irregularmente, o contratado.

Alerta ainda Justen Filho (2008, p. 676) que “será imperioso promover a readequação dos prazos contratuais, o que se fará segundo a disciplina dos §§1º e 2º do art. 57 quando da ocorrência da inadimplência com culpa do contratado e que não implique, necessariamente, em rescisão contratual, contudo, inexiste margem discricionária para a aplicação ou não de sanções, sob pena de configurar a vantagem indevida.

A irregularidade da prorrogação pode, adicionalmente, ser configurada pela falta de observância aos requisitos legais de forma exigidos. Como exemplifica Niebuhr (2008, p. 468) “a prorrogação deve ser formalizada por meio aditivo, por ser uma espécie de alteração contratual”.

Para configurar a irregularidade (ou ilegalidade, já que as situações são expressamente previstas em lei), basta a prorrogação indevida realizada fora das hipóteses taxativamente e legalmente estabelecidas, onde o professor Diógenes Gasparini (2011, p. 85) explica que “a palavra lei nesse texto significa lei federal, já que a prorrogação é a exceção à regra de licitar e as ressalvas somente podem ser indicadas em lei da União, como é essa ou outra que venha a ser editada por ela”.

2.3.4 A configuração de vantagem indevida na prorrogação

A configuração da vantagem indevida diante da prorrogação contratual é notória quando ocorrida da forma direta, ou seja, não obedecidas as formalidade legais que determinam as possibilidades de se estender a contratação, em quaisquer de seus prazos estabelecidos, uma vez que o contratado terá, indevidamente, a vantagem de obter prazo superior para as suas obrigações em relação às disposições do edital de seleção, ferindo, gravemente, o princípio da isonomia.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2001, p. 773) ainda enfatiza que a conduta do administrador que atua ou permite a prorrogação indevida gera desvantagem à Administração, capitulada pela Lei de Improbidade Administrativa como ilícito penal, civil e administrativo, uma vez que a incidência se presta pela “ocorrência de fato danoso descrito na lei, causador de enriquecimento ilícito pra o sujeito ativo, prejuízo para o erário ou atentado contra os princípios da administração pública; o enquadramento do ato pode dar-se isoladamente, em uma das três hipóteses, ou, cumulativamente, em duas ou nas três”, as quais estão previstas pelos artigos 9º, 10 e 11 da Lei n. 8429, de 1992.

No mesmo sentido, a prorrogação indevida configurada pode ter origem em um ato de improbidade que corresponda a um ato administrativo, a uma omissão ou uma conduta do administrador; não se exigindo a “efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público”, mas, “ao menos, o dano moral por violação aos princípios da Administração Pública” (DI PIETRO, 2001, p. 780). Essa é a regra, e o desvio do Administrador configura irregularidade prescrita pela lei.

O descumprimento do ajuste, especialmente em relação ao quesito “prazo”, dá ensejo à aplicação de penalidades por parte da Administração e pode resultar numa rescisão contratual (BATISTA DOS SANTOS et al, 2000, p. 296).

A configuração de vantagem indevida indireta em relação à prorrogação pode ser configurada por uma omissão do agente público, uma vez que pode permitir a mora do contratado, autorizando “tacitamente” a prorrogação da execução e não aplicando as penalidades que são devidas. Conforme leciona Lúcia Valle Figueiredo (2004, pp.514-515), a aplicação de sanções, unilateralmente, pela Administração também não é prerrogativa à disposição do administrador, algo a ser desfrutado pelo administrador. Bem ao contrário, entende-se a imposição de sanções como dever administrativo. Logo, além de descumprimento funcional, deve responder o agente público pela prorrogação indevida indireta do prazo contratual, diante da ausência de aplicação das penalidades cabíveis, consistindo em vantagem indevida concedida ao contratado.

Márcia Walquiria Batista dos Santos (2000, p. 297) explica a relação causal da prorrogação de prazo contratual levantando a hipótese de que algum licitante que participara da licitação poderia intentar alguma medida sob o argumento de que a prorrogação de prazo feriu o princípio da igualdade. Alerta a mesma autora que não devem ser admitidos motivos banais, ou previsíveis à época da contratação, ou mesmo empresas que se comprometeram com prazos exíguos de forma insipiente.

De fato, se um prazo maior estivesse disponível no instrumento convocatório, o preço das propostas poderia ser menor[3], ou mesmo outros licitantes poderiam se interessar em participar do certame – fator que determina o extremo cuidado do administrador ao analisar as justificativas de atraso dos contratados (BATISTA DOS SANTOS, 2000, p. 297).

Logo, a irregularidade reside no ato concessivo do Administrador Público, seja ele permitindo formalmente prorrogação não prevista pela lei, seja concedendo dilatação de prazo “tacitamente”, não adotando as medidas coercitivas estabelecidas pela lei e pelo contrato, como bem ressalta Roberto Ribeiro Bazilli (1996, p. 66), “as penalidades decorrentes da inadimplência do contratado devem limitar-se às previstas no instrumento contratual, que, por sua vez, se fundamenta no estatuto, afastadas quaisquer outras sanções não previstas” – isto reflete o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade objetivamente, excluindo a possibilidade discricionária que determinaria a possível infração penal.


3 O ASPECTO CRIMINAL DA PRORROGAÇÃO CONTRATUAL

3.1 O crime em espécie do art. 92 da Lei n. 8666, de 1993.

A concentração do estudo é efetivada no tipo do caput do ar. 92 da Lei n. 8666, de 1993, configurado como cumulativo que contém duas incriminações autônomas: a alteração ilegal do contrato em favor do adjudicatário e o pagamento com preterição da ordem cronológica de apresentação (GRECO FILHO, 2007, p. 86.).

Estabelece o art. 92 da Lei n. 8666, de 1993, in verbis:

Art. 92.  Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei:

Pena - detenção, de dois a quatro anos, e multa.

Parágrafo único.  Incide na mesma pena o contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais.

É considerado crime contra execução do contrato administrativo (POLTRONIERI, 2004, p. 307), uma vez que ataca o iter pactuado que se reflete em todo processo e viola os princípios fundamentais da administração pública, onde são previstas duas situações como ensejadoras da responsabilidade do servidor público, ambas relativas a atos que se colocam em fase posterior à da licitação, ou seja, a fase da execução contratual (FERNANDES, 1994, pp. 41-49), sendo sujeito, inclusive, à configuração cumulativa de improbidade administrativa prevista pelo art. 10 da Lei n. 8429, de 2 de junho de 1992. Conforme Adeildo Nunes (1999, p. 25-37), “cumpre enfatizar, também, que os atos de improbidade administrativa praticados pelos agentes públicos da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da República, são regulados pela Lei de Improbidade Administrativa e inteiramente aplicável nas licitações e nos contratos administrativos”.

O bem jurídico protegido, logo, é a moralidade administrativa e “também a necessidade de os contratos administrativos serem cumpridos como firmados, dentro da lei, para o bom desempenho do serviço público” (GRECO FILHO, 2007, p. 91). Ou seja, a objetividade jurídica “continua sendo a probidade administrativa, em especial a tutela dos contratos administrativos, que haverão de ser cumpridos e executados tais como celebrados” (COSTA JÚNIOR, 2004, p. 35).

A caracterização do tipo penal previsto pelo dispositivo em comento é dada pela simples prorrogação indevida do contrato, seja ela da forma direta ou indireta, formal ou informal, pois “uma vez celebrado o contrato com o Poder Público, nenhuma modificação poderá ser feita, a menos que haja autorização legal. Se as cláusulas contratuais padecerem de alguma modificação que venha a beneficiar o adjudicatário, aperfeiçoa-se o crime licitatório previsto no art. 92” (COSTA JÚNIOR, 2004, p. 37).

Ínsito a especificidade da Lei de Licitações e Contratação da Administração Pública, constata-se que o crime previsto pelo art. 92, assim como os demais, são de consecução instantânea ou permanente; instantâneos porque a consumação ocorre em um momento definido, e permanentes, na medida em que a situação de dano pode se prolongar enquanto durar a conduta do agente (PELLEGRINO, 2003, pp. 149-154).

Há de se observar o equívoco de destinação da norma, uma vez que quem responde não é o adjudicatário, mas sim o efetivo contratado. O adjudicatário meramente recebe a adjudicação do objeto licitado, mas, se não for contratado, não dispõe de capacidade para figurar no tipo. Nas lições de Justen Filho (2008, p. 835), “a expressão “adjudicatário” foi indevidamente utilizada, porquanto a configuração do crime pressupõe, na maioria dos casos, existência de contrato administrativo.”.

Diógenes Gasparini (2011, p. 86), caracterizando a conduta, ou a ação física, prevista pelo tipo penal, estabelece:

Admitir significa aceitar, tolerar, permitir consentir, no caso, com modificação ou vantagem em favor do contratado, ainda que o texto se refira a adjudicatário. Trata-se de comportamento comissivo. Possibilitar, de seu lado, quer dizer tornar possível, das condições para que, no caso, ocorra modificação ou vantagem em benefício do contratado. É comportamento comissivo ou omissivo do agente que viabiliza qualquer modificação ao contratado, chamado imprecisamente de adjudicatário. Dar causa significa ensejar, propiciar a oportunidade por qualquer meio ou modo que redunde, no caso, em modificação do contrato ou em vantagem em prol do contratado, ainda que o texto legal mencione adjudicatário. Trata-se de conduta comissiva.

O sujeito ativo do tipo penal é o servidor público, configurado por crime próprio com definição do agente dada pelo art. 84 da Lei de Licitações. Porém, “o parágrafo único estende a punição ao particular beneficiado pela irregularidade, obviamente desde que tenha concorrido para a consumação da ilegalidade” (JUSTEN FILHO, 2008, p. 835). Logo, as penas previstas também são aplicadas ao contratado que, comprovadamente, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais indevidas, sem prejuízo das penas previstas pela novel Lei Anticorrupção.

Por outro lado, configura-se como sujeito passivo o Poder Público contratante (GASPARINI, 2011, p. 87), ou seja, o Estado, personificado (GRECO FILHO, 2007, p. 91) na pessoa que está sujeita às normas da lei.

Vicente Greco Filho (2007, p. 90) ressalta que os “crimes do caput são crimes de perigo, porque não dependem de prejuízo concreto. O crime do parágrafo é crime de dano, porque exige a obtenção de vantagem indevida ou benefício injusto”.

Há possibilidade de concurso de normas e de crimes, pois, “como o caput é do tipo misto cumulativo, cada conduta nele prevista caracteriza uma infração, de modo que o agente, se além de fazer prorrogação contratual ilegal subverte o pagamento de fatura, incide duas vezes no dispositivo, em concurso material” (GRECO FILHO, 2007, p. 93).

Adicionalmente, poderá haver o “concurso material com a corrupção, porque a vantagem indevida oferecida, aceita ou solicitada é diferente da vantagem prevista no artigo, consistente na simples alteração contratual ou da ordem dos pagamentos das faturas” (GRECO FILHO, 2007, p. 93).

A consumação do crime se dá no momento da modificação do contrato, ou seja, “na assinatura do aditamento contratual ou com a concessão de vantagem que beneficia o contratado” (GASPARINI, 2011, p. 88), sendo que, em qualquer situação, “o crime é de perigo, isto é, aperfeiçoa-se ainda que não ocorra qualquer prejuízo para a Administração Pública”.

Da mesma forma a prorrogação contratual em favor do contratado necessita se pautar nas condições estabelecidas pela lei. Ou seja, conforme leciona Nucci (2007, p. 744), “se um instrumento contratual prever essa possibilidade [prorrogação fora das hipóteses legais], embora de modo ilegal, não há como acolher-se, validamente, a referida prorrogação e a figura típica do art. 92 pode concretizar-se do mesmo jeito”.

Esse tipo de crime prevê o dolo genérico como elemento subjetivo “consistente na vontade livre e consciente em admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagens ilegais em favor do contratado” (GASPARINI, 2011, p. 87), mesmo que essa consciência seja justificada pela ausência de prejuízo ou pelo atendimento ao interesse público. Nesse sentido, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça julgando que “o tipo subjetivo no injusto do art. 92 da Lei n. 8666/93 se esgota no dolo, sendo despiciendo qualquer outro elemento subjetivo diverso[4]”.

Se, por um lado e segundo entendimento da Corte Infraconstitucional[5], a responsabilização penal reclama dolo genérico, cumpre ressaltar que a responsabilização administrativa alcança outro cunho, consoante descrito pelo Ministro-Relator Jose Múcio Monteiro, nos termos do Acórdão nº 1253/2011, do Plenário do Tribunal de Contas da União:

No crime, para a configuração do tipo previsto no art. 92 da Lei nº 8.666/93, e consequente cominação da sanção penal, é preciso que esteja presente o elemento volitivo na conduta do agente, isto é, que ele tenha tido a intenção de conceder vantagens contratuais indevidas.

De outro modo, no exame da gestão pública, verifica-se se os atos praticados estão em conformidade com as leis, a legitimidade (interesse público) e a economicidade, bem como se não provocaram dano ao erário, inclusive por desvio de recursos. Não é necessária a vontade do gestor de agir errado. Basta que ele tenha incorrido em culpa ou, menos até, que tenha sido um gestor inapto, para sua responsabilização administrativa.

Por conseguinte, na gerência de contratos, se a falta de cuidado ou a deficiência do gestor deu causa à concessão de vantagens indevidas, isto é suficiente para condená-lo.

Explica Diógenes Gasparini (2011, p. 87) que “a forma tentada desse crime, tanto no caput como no parágrafo único, é admissível, pois o iter criminis pode ser fracionado”. O mesmo autor ainda ressalva a condição de que não há tentativa no caso de conduta omissiva, “ou seja, quando o agente, por omissão, possibilita condições necessárias à modificação do contrato ou a obtenção de vantagem. Nesse caso a prática da omissão já exaure a previsão da lei”.

Ressalta ainda Franco (2002, pp. 63-68) que “a maioria dos crimes licitatórios admite a tentativa, a exceção daqueles que, por sua característica peculiar, o iter criminis não possa ser fracionado”, o que não ocorre com a prorrogação contratual indevida.

3.2 A configuração do crime licitatório em virtude da prorrogação contratual indevida

A prorrogação contratual, quando feita fora do permitido, também é considerada (POLTRONIERI, 2004, p. 307) como modificação ou vantagem para fins de caracterização do crime previsto pelo art. 92 do Estatuto Licitatório. A própria prorrogação é considerada modificação, mas a lei realiza um reforço didático (GASPARINI, 2011, p. 86) no sentido de enfatizar a questão.

Conforme Costa Júnior (2004, p. 36), “dentre as vantagens enumeradas exemplificativamente pela norma penal mista cumulativa, ressalta aquela referente à prorrogação contratual”, enfatizando o autor que tal conduta burla “o procedimento licitatório inicial, em prejuízo do interesse público e da probidade administrativa”.

A prorrogação do contrato é a ampliação de seus prazos, seja eles de execução ou vigência, cujas hipóteses estão indicadas no §1º do art. 57 da Lei das Licitações e Contratos da Administração Pública. Fora dessas hipóteses a prorrogação é ilegal (GASPARINI, 2011, p. 84).

Conforme leciona Marçal Justen Filho (2008, p. 835), “somente podem ser deferidos ao contratado os benefícios e vantagens previstos na Lei, no ato convocatório ou no contrato (ou instrumento equivalente, tal como previsto no art. 62). A concessão de vantagens indevidas, inclusive prorrogação contratual, é tipificada criminalmente”. Nessa questão, para incidência do dispositivo, não importa a natureza da formalização do ajuste (GASPARINI, 2011, p. 85).

Greco Filho (2007, p. 89) pondera ainda que “procura-se evitar as tão comuns prorrogações ou aditamentos contratuais que fazem com que o contrato original acabe sendo ampliado grande número de vezes”. Em parte essas situações são devidas à falta de planejamento adequado da Administração, que nem sempre tem condições, ao licitar e contratar, de dimensionar corretamente, em todos os seus aspectos, a obra ou serviço, mas também, em muitos casos, tanto o administrador quanto o contratado sabem que o contrato original é inviável, mas celebram-no contando com prorrogações, alterações e aditamentos, evidentemente com burla do procedimento licitatório e sacrifício do interesse público e da moralidade administrativa.

A configuração do crime também se opera de maneira indireta, mesmo sem interferir formalmente no contrato, a partir do momento que o administrador público deixa de aplicar penalidades por eventuais atrasos – se o atraso não foi penalizado, é porque foi permitido, mesmo que tacitamente, pela Administração – logo, foi concedida, na figura de “admitir”, a prorrogação indevida.

Alguns artifícios são utilizados pelos contratados de maneira a buscar uma desconfiguração do ilícito e caracterização da penalização, seja criminal, civil ou administrativa. Uma das operações mais frequentes verificadas, especialmente em contratos de fornecimento, é de a contratada disponibilizar (sem previsão contratual) equipamento similar à Administração enquanto a empresa conclui a fabricação do objeto contratado, de forma a elidir a mora incorrida. Nos casos de serviços, há a lentidão da execução e a busca do Administrador em manter o empenho orçamentário já comprometido.

Em suma, a conduta permissiva dessa espécie de situação premia o licitante temerário, aventureiro, inconsequente, que arrisca a execução contratual calcado na possibilidade da Administração flexibilizar as regras do contrato cuja minuta balizou aspectos competitivos da licitação. Como corolário, a transgressão administrativa prejudica o bom licitante, que apresenta (ou não) proposta séria calcada nas regras estabelecidas pela Administração, assim como degrada todo o sistema licitatório instaurado para a contratação.

Frente essa situação, vemos certa complacência dos Tribunais de Contas e do Ministério Público de Contas, determinando uma atuação mais ativa do Ministério Público estabelecido pelo art. 128 da Constituição da República, pois, em muitos casos, há desvio de conduta com a obtenção de vantagem indevida por parte dos gestores e julgadores nesse processo de isenção.

Quanto à vantagem indireta, convém ressaltar que inúmeras vezes a Administração deixa de aplicar penalidades exigíveis pela motivação de que o adimplemento posterior não causou dano ao erário e o cumprimento, mesmo extemporâneo, atendeu ao interesse público. Tal inferência é extremamente equivocada, pois o fato danoso ocorre pela simples inadimplência ou mora do contratado, não podendo a Administração se calar diante de tal fato. Para diferenciação das configurações da multa administrativa, conveniente trazer a lume os ensinamentos de Fernando Araújo de Novaes (2006, pp. 7597-7605):

A hipótese de incidência da referida multa [moratória] vincula-se a inexecução contratual na forma de atraso provocada pelo particular. Registre-se que tal inexecução diferenciar-se-á da multa do art. 87 por tratar-se de incidente que se considera, ainda, não comprometedor para o cumprimento satisfatório do objeto contratado pela Administração. Ou seja, neste caso haveria tão-somente um retardamento na obra ou na prestação do serviço. Entretanto, ainda que resgatável a execução satisfatória do contrato, há a presença do elemento subjetivo da culpa do contratado, asseverado pela expressão “atraso injustificado”.

Joel de Menezes Niebuhr (2008, p. 632) assevera que, “em muitos casos, a Administração não toma as providências devidas para coibir tais comportamentos, não instaurando os devidos processos administrativos”. Essa postura da Administração produz efeitos nefastos, haja vista que propaga sentimento de impunidade, que acaba por incentivar novos atentados ao interesse público. Prossegue o citado autor enfatizando o alto grau de reprovabilidade da conduta do agente público envolvido em ações que configuram as infrações preconizadas pela lei, que podem ser configuradas pela vantagem indireta descrita:

Dessa sorte, a Administração tem a obrigação de coibir tais práticas, realizando todas as medidas previstas em Lei para punir os licitantes ou contratados faltosos. A administração precisa, de uma vez por todas, exigir ser tratada com o devido respeito e com seriedade. Se ela não o fizer, ninguém o fará.

Nessa perspectiva, o agente administrativo, constatando a prática de fraude ou ilícito por parte do licitante ou do contratado, tem o dever de tomar as providências cabíveis, instaurando o devido processo administrativo, a fim de aplicar as sanções preceituadas. Trata-se, a toda vista, de ato vinculado. Melhor explicando, o agente administrativo não dispõe de liberdade para decidir se instaura ou não o pertinente processo administrativo e se aplica ou não as sanções. Ele está, por imperativo legal, obrigado a fazê-lo, independentemente da conveniência ou da oportunidade da medida. E, se ele não o fizer, estará cometendo ilícito administrativo [e também penal], em razão do qual poder vir a sofrer processo disciplinar [e penal], bem como responder processo por crime de responsabilidade. Em síntese, a abertura do processo administrativo e a aplicação das sanções constituem obrigação dos agentes administrativos.

Marçal Justen Filho (2008, p. 835) observa que, “mesmo quando a lei remeter o administrador ao exame das circunstâncias do caso concreto, a ausência dos requisitos necessários obstaculariza a concessão da vantagem”.

A previsão legal prevê a simples agressão ao procedimento que macula todo o processo da contratação, não exigindo o objetivo dano ao patrimônio público, a ocorrência de má-fé ou qualquer outro prejuízo material à Administração, basta a configuração da ocorrência da prorrogação indevida concedida, direta ou indiretamente, como elucida Vicente Greco Filho (2007, p. 89):

A Lei n. 8666/93 prevê os casos de alterações contratuais no art. 65, unilateralmente por parte da Administração ou por acordo das partes; o art. 57, por sua vez, prevê a duração dos contratos, admitida prorrogação nos casos especificados. A prorrogação também é admitida se prevista no instrumento convocatório, nas mesmas condições originais. Esses são os casos legais de alterações ou prorrogações, de modo que, fora deles, incide a incriminação, desde que isso caracterize vantagem e seja “em favor” do adjudicatário, como consta do texto. [...] Cabe observar que a lei, em seu contexto geral, considera vantagem ou benefício a simples contratação, ainda que não haja o chamado superfaturamento.  Por outro lado, as prorrogações e alterações, para serem legítimas, devem obedecer ao procedimento legal previsto nos dispositivos acima citados.

Nas lições de Diógenes Gasparini (2011, p. 85) tem-se que a modificação é toda alteração que o contrato celebrado pode sofrer durante sua execução, sendo considerado exemplo clássico de modificação contratual a prorrogação do contrato, “se esses comportamentos prestigiarem, ilegalmente, o contratado, configura-se o crime”.

3.3 A ação penal

Por previsão legal expressa, todos os delitos da Lei de Licitações são de ação penal pública incondicionada, sendo que o Superior Tribunal de Justiça assim já se manifestou: “Os delitos da Lei de Licitação são de ação penal pública incondicionada (art. 100). O dispositivo no parágrafo único do art. 101 é abundante, mera reprodução do significado do art. 27 do CPP[6]”.

O Poder Público poderá promover a ação penal privada subsidiária da pública se, conforme estabelece o art. 103 da Lei das Licitações e Contratos da Administração Pública, combinado com o disposto nos artigos 29 e 30 do Código Processual Penal, não for proposta no prazo legal pelo representante do Ministério Público, ou ingressar, como assistente, na ação penal instaurada (GASPARINI, 2011, p. 87).

Importante ressalva faz Diógenes Gasparini (2011, p. 87) ao alertar que, “não obstante o contratado possa ser uma pessoa jurídica, esta não poderá ser apenada dado que societas delinquire non potest”.

Contudo há a possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica em procedimento próprio interdecorrente, consoante determina a al. “f” do inc. IV do art. 5º da Lei n. 12846, de 2013:

Art. 5º  (…)

IV - no tocante a licitações e contratos:

(…)

f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou (…)

Convém ainda enfatizar que o Ministério Público possui ampla e imprescindível atuação em todos os procedimentos delineados pela Lei Anticorrupção, inclusive podendo figurar como autor da ação de responsabilização civil e administrativa nos casos previstos.


4 CONCLUSÃO

Uma das aplicações mais famosas do art. 92 da Lei de Licitações se deu no julgamento da Ação Penal Originária n. 226-SP[7] no Superior Tribunal de Justiça, no qual o Ministro Luiz Fux relatou o caso da construção irregular do Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região, à época presidido pelo então Desembargador do Trabalho Nicolau dos Santos Neto e pelo Desembargador do Trabalho Délvio Buffulin.

Um simples exemplo que se reveste da importância de discussão do tema, uma vez que inúmeros procedimentos administrativos são realizados à revelia do ordenamento regente e, inúmeras vezes, desconsiderados para o adequado atendimento ao interesse público.

Especificamente quanto à prorrogação contratual, foi possível verificar que um procedimento considerado simples pela administração pública, em muitos dos casos, reveste-se de particular gravidade que macula todo o procedimento licitatório que originou a contratação, além de configurar possíveis responsabilizações administrativas, civis e criminais.

Muitos dos atentados ao Erário configurados pela corrupção ou pela concussão possuem um pano de fundo no curso do processo normal da contratação pública, representados por superfaturamentos, direcionamento de licitação, pagamentos indevidos e, principalmente como detalhado, favorecimento ilegal ao contratado. Todo esse desvirtuamento assume a caracterização de uma superficial regularidade sustentada pela justificativa de “ausência de prejuízo à Administração”, mas com grave infração a todos demais postulados que regem a administração pública.

Neste estudo foi possível desenvolver o entendimento da interferência de uma mera prorrogação contratual indevida em todo o processo licitatório, partindo da consideração basilar dos princípios que regem as licitações públicas, passando pela estruturação prévia à contratação e analisando diretamente os quesitos de alteração temporal do contrato quando realizada de forma irregular e suas respectivas implicações no escopo criminal.

A intenção de obter, para si ou para outrem, vantagem nos processos licitatórios não pode ser combatido meramente pelo texto da norma, é necessário que se apliquem as sanções decorrentes, estritamente nos ditames legais impostos. A permissividade pública com as disfunções contratuais tem causado incalculáveis prejuízos à administração pública e aos princípios que a orientam.

A prorrogação indevida dos contratos é apenas um dos pontos de ataque de interesses escusos que são tomados como procedimentos normais, dentre os inúmeros atos decorrentes de licitações e contratos da administração pública, sem maiores avaliações, mas que, conforme demonstrado, podem agredir severamente o ordenamento jurídico e os primados do direito.

Este trabalho procurou demonstrar a gravidade de um ato administrativo-contratual, hodiernamente observado o sob único aspecto de causa ou não prejuízo material à administração pública, todavia sem ser questionado sobre suas implicações morais e principiológicas, que levam à indubitável responsabilização civil, administrativa e penal e, consequentemente, ao grave dano à sociedade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Alcorão. II - Sooratu Albaqarati (???? ??????), 188. Disponível em http://www.centroislamico.com.br/viewpage_kuran.php?page_id=23. Acesso em 10 mai. 2014.

BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes Federais: abuso de autoridade… 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

BATISTA DOS SANTOS, Márcia Walkiria et al. Temas polêmicos sobre licitações e contratos. 4. ed. ver. ampl. São Paulo: Malheiros, 2000.

BAZILLI, Roberto Ribeiro. Contratos Administrativos. São Paulo: Malheiros, 1996.

BRASIL, CGU - Controladoria-Geral da União da Presidência da República. Transparência Pública. Disponível em http://www3.transparencia.gov.br/Transparencia Publica. Acesso em 26 jan 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Brasília: Diário Oficial da União, 1988.

BRASIL. Lei n. 8429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 1992.

BRASIL. Lei n. 8666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 1993.

BRASIL. Lei n. 12846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ação Penal Originária n. 226/SP, Corte Especial, rel. Min. Luiz Fux, j. em 01 ago. 2007, Diário da Justiça, DF, 08 out. 2007.

___________________. Recurso Especial n. 197.775, 5ªT., rel. Min. Félix Fisher, j. em 18 jun. 1999, Diário da Justiça, DF, 21 jul. 1999.

___________________. Recurso Especial n. 545.471, 1ªT., rel. Min. Denise Arruda, j. em 23 ago. 2005, Diário da Justiça, DF, 19 set. 2005, p. 187.

___________________. Recurso Especial n. 702.628, 5ªT., rel. Min. Félix Fisher, j. em 03 set. 2005, Diário da Justiça, DF, 05 out. 2005.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 1253/2011, Plenário, rel. Min. José Múcio Monteiro, Sessão de 18 mai. 2011. Diário Oficial da União, DF, 26 mai. 2011.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 2406/2006, Plenário, rel. Min. Marcos Vinicios Vilaça, Sessão de 06 dez. 2006. Diário Oficial da União, DF, 08 dez. 2006.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1983.

CASTRO, Flávia Lages. História do Direito Geral e do Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito Penal das Licitações: comentários aos arts. 89 a 99 da Lei n. 8666, de 21.06.1993. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

DALLARI, Adilson de Abreu. Aspectos Jurídicos da Licitação. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

FERNANDES, Flávio Sátiro. Dos Crimes Licitatórios. Ciência Jurídica. ano VIII, v. 56, p. 41-49, mar-abr. 1994.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 7. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Malheiros, 2004.

FRANCO, Cláudia Daniela de F. S. A Tutela Penal na Lei de Licitações e Contratos. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Brasília, ano 14, n. 12. p. 63-68. dez. 2002.

GASPARINI, Diógenes. Crimes na Licitação. 4. ed. rev. atual. São Paulo: NDJ, 2011.

__________________. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2000. pp. 513-514. Apud MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 14. ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo e Vera Monteiro. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 241-424.

GRECO FILHO, Vicente. Dos Crimes da Lei de Licitações. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

_____________________. Licitação e Contrato Administrativo. 15. ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo e Vera Monteiro. São Paulo: Malheiros, 2010.

MIRABETE, J.F. Processo Penal. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat – Barão de. Do Espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. Curitiba: Zênite, 2008.

NOVAES, Fernando Araújo de. O Princípio da Proporcionalidade nas Sanções Administrativas da Lei n. 8666, de 21 de junho de 1993. Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP. Belo Horizonte, ano 5, n. 56, p. 7597-7605, ago. 2006.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

NUNES, Adeildo. O Crime nas Licitações. Revista da Esmape, Recife, v. 4, n. 9. p. 025-037, jan-jun 1999.

PELLEGRINO, Carlos Roberto M. Aspectos Penais das Licitações e Contratos Administrativos.  Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 41. p. 149-154. ano 11. jan-mar 2003.

PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários à Lei de Licitações e Contratações da Administração Pública. 7. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

POLTRONIERI, Renato. Licitação e Contratos Administrativos Segundo o Direito Positivo. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.

SANTA CATARINA. Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. RLA-09/00582243. Rel. Júlio Garcia. j. 18.04.2011. Disponível em http://consulta.tce.sc.gov.br/ RelatoriosDecisao/Pareceres/900582243_3464148.htm. Acesso em 28 mar. 2013.


Notas

[1] RLA-09/00582243. Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Rel. Júlio Garcia. j. 18.04.2011.

[2] Para melhor estudo, cf. Cármen Lúcia Antunes Rocha, Princípios Constitucionais da Administração Pública, 1994.

[3] Conforme Acórdão n. 2406/2006 do Plenário do Tribunal de Contas da União.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 702.628, 5ªT., rel. Min. Félix Fisher, j. em 03.09.2005, DJ de 05.10.2005.

[5] “5. O tipo previsto no artigo 92 da Lei 8.666/93 reclama dolo genérico, inadmitindo culpa ou dolo eventual posto dirigido ao administrador desonesto e não ao supostamente inábil.” BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Apelação Penal n. 200201653178, Corte Especial, rel. Min. Luiz Fux, j. em 01.08.2007, DJ de 08.10.2007.

[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 197.775, 5ªT., rel. Min. Félix Fisher, j. em 18.06.1999, DJ de 21.07.1999.

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ação Penal Originária n. 226/SP, Corte Especial, rel. Min. Luiz Fux, j. em 01.08.2007, DJ de 08.10.2007.


Autor

  • Cleverson Lautert Cruz

    Gerente-Executivo de Segurança Institucional do Ministério Público do Trabalho. ex-Diretor-Geral Adjunto do Ministério Público do Trabalho. Ex-Assessor de Controle Interno do Ministério Público do Trabalho. Ex-Assessor Jurídico da Procuradoria-Geral do Trabalho. Graduado em Administração pela Universidade de Brasília e em Direito pela Universidade Paulista. Pós-graduado em Direito Público e em Administração Pública.

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LAUTERT CRUZ, Cleverson. A configuração criminal da prorrogaçao indevida do contrato administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4150, 11 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33065. Acesso em: 30 abr. 2024.