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O conceito de soberania na teoria de Carl Schmitt

O conceito de soberania na teoria de Carl Schmitt

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Para Schmitt, soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção. Ele não vê na concepção liberal de estado de sítio e estado de emergência como suficientes para definir o estado de exceção; é no estado de necessidade que ele se mostra, pois há uma situação especial onde a lei perde os seu caráter obrigatório.

RESUMO: Carl Schmitt, em sua obra Teologia Política (Politische Theologie), trabalha o conceito de soberania de maneira atípica, relacionando esse com o Estado de Exceção; não uma situação emergencial como ele mesmo se justifica, mas o Estado de Exceção propriamente dito. Nessa oportunidade, nos propomos analisar suas conceituações que demonstram uma de suas concepções de política, mas que traz conseqüências no campo filosófico-jurídico e, em especial, no âmbito constitucional. Para tanto, lançaremos mão de outros termos também presentes no texto de Schmitt, que nos auxiliará na melhor compreensão da noção de Schmitt de soberania, tais como a sua noção de legitimidade, o que é decisionismo e sua concepção de Estado de exceção, entre outros.

Palavras chaves: Soberania. Exceção.  Decisionismo. Normativismo. Constituição.

RESUMEN: Carl Schmitt en su obra Teología Política (Politische Theologie), trabaja el concepto de soberanía forma atípica, que une este con el Estado de Excepción; no es una situación de emergencia mientras se justifica, sino la excepción del propio Estado. En ese momento, nos proponemos analizar sus conceptos que demuestran sus concepciones de la política, sino que tiene consecuencias en ramo filosófico-jurídico y, en particular, dentro del marco constitucional. Por lo tanto, vamos a lanzar la mano de otros términos también presentes en el texto de Schmitt, que nos ayudan a una mejor comprensión de la noción de soberanía, como su concepto de legitimidad, que es decisionismo y su concepción del estado de excepción, entre otros.Palabras clave: Soberanía. Excepción. Decisionismo. Normativismo. Constitución.


1 - INTRODUÇÃO

Carl Schmitt foi um pensador intrigante. Sua genialidade não se contesta face a adesão ao nacional-socialismo alemão.

Em sua obra Teologia Política (Politische Theologie), Schmitt trabalha o conceito de soberania, mas de maneira atípica, relacionando este com o Estado de Exceção; não uma situação emergêncial como ele mesmo se justifica, mas o Estado de Exceção propriamente dito. Nessa oportunidade, nos propomos analisar sua conceituação que demonstra uma de suas concepções de política, mas que traz conseqüências no campo filosófico-jurídico e, em especial, no âmbito constitucional.

Para tanto, lançaremos mão de outros termos também presentes no texto de Schmitt, que nos auxiliarão na melhor compreensão da noção de Schmitt de soberania, tais como a sua noção de legitimidade, o que é decisionismo e sua concepção de Estado de exceção, entre outros, em que pese concentrarmos nossa atenção especificamente no texto da Teologia Politica.

No nosso entender, o critério de soberania também é estabelecido a partir dos adversários que Schmitt tem no momento. Nesse sentido destacamos Hans Kelsen como um desses adversários. Kelsen e o grupo de juristas positivistas do qual o pensador austríaco era o seu principal expoente e a quem Schmitt posiciona-se contrário às idéias referentes ao normativismo jurídico e à democracia liberal. A oposição a  Kelsen é constante na obra de C. Schmitt. O conceito de soberania é em certa medida desenvolvido no sentido de oferecer uma resposta contra Kelsen e a corrente de juristas positivistas a que ele se filia, bem como ao liberalismo político.

Queremos, no entanto, reforçar  a nossa intenção ao apontarmos esses autores paralelamente à obra de Schmitt.  Quando fazemos referência ao nome de Hans Kelsen não estamos propondo estabelecer comparações entre as obras desse autor e a obra de C. Schmitt. A referência se dá de maneira a estabelecermos uma estratégia metodológica no intuito  de aclarar a compreensão do problema da soberania que se encontra  no texto schmittiano e que, no nosso entender, tem sua motivação no debate que estabelece com a  obra de outros autores, e por isso, o uso que se faz deles é apenas acessório e no sentido de  atingirmos o objetivo proposto de nossa investigação, o  problema da soberania

Nosso marco teórico será a soberania presente na Teologia Política (Politische Theologie) e suas possíveis implicações.


2 – AMBIENTE HISTÓRICO.

A produção intelectual de Carl Schimitt ocorreu, basicamente, durante o conturbado período da República de Weimar, que sobreviveu na Alemanha durante o curto período entre 1918 e 1933, sendo seu fim registrado em 24 de março de 1933 quando Adolf Hitler, após assumir o cargo de Chanceler, obteve sem seu favor plenos poderes.

2.1 – A República de Weimar.

A República de Weimar surgiu em 9 de novembro de 1918, proclamada pelo social democrata Philipp Scheidemann momentos antes da proclamação por Karl Liebknecht de uma República socialista.

Surgiu após a Primeira Guerra numa expectativa de superação das políticas parlamentaristas européias. Era fruto de um embate progressista entre a social-democracia e o liberalismo e, por esse motivo, considerada artificial já que sua base estava apoiada sobre as idéias que representavam uma ruptura com a história e a tradição da Alemanha.

Diante da decepção do Império na Guerra, o novo regime tendia nascer de um viés socialista já que desde 1914 era um movimento expressivamente forte dentro da Alemanha. No entanto, havia um racha irreconciliável dentro do movimento entre social-democratas e revolucionários marxistas liderados por Rosa Luxemburgo e Liebknecht. A divisão sofreu seus reais efeitos quando os marxistas, também chamados de Espartacistas, formaram o Partido Social-Democrata Independente disputando a predominância na nascente República com o partido do qual se desvincularam, denominado Partido Social-Democrata, com o firme propósito de transformarem a Alemanha em uma República Soviética, em contraposição a esses que pretendiam um regime parlamentar.

Vitoriosa na disputa saiu o projeto social-democrata com o regime parlamentarista e com isso a unidade socialista nunca mais foi restaurada e a dissidência se mostrou perniciosa à jovem República, pois a proclamação de Schidermann foi um ato dirigido não somente contra a Monarquia que evadia mas também aos Espartacistas.

Nesse ambiente conturbado do núcleo da República, a direita germânica se fortalecia sob o argumento de que a República era uma afronta à Nação alemã e suas tradições e que apenas uma ditadura resolveria o caos da República. Assim, a partir da década de 1920 se percebe um crescente movimento de rejeição a República democrática-parlamentar com argumento de que tal regime feria o espírito alemão.

A Constituição de Weimar que consagrava o sistema parlamentar, apesar de herdeira das tradições liberais, a contrariava, pois previa a existência de um presidente forte com poderes para suspender os direitos individuais e dissolver o Parlamento, mas ao mesmo tempo previa em sua segunda parte, de modo extremamente precursor, direitos fundamentais de segunda geração. Assim a Constituição era o embate entre o Estado Social nascente e o Estado liberal moribundo. Dessa forma, por mais que o regime de Weimar pretendesse, suas intenções se chocavam tanto com a realidade interna alemã, quanto com os eventos que assolavam a Europa.

O principal desses eventos, e por muitos considerados como determinantes para o fracasso de Weimar, foi o tratado assinado em 28 de junho de 1919, denominado Tratado de Versalhes, que estabeleceu as condições de paz pós Primeira Guerra.

Para a Alemanha, o Tratado foi um fiasco, pois além de estabelecer uma humilhante declaração de culpa como causadora do conflito, ainda teve como sanção a perda de todas as suas colônias, cito Togo, Camarões e o Sudoeste africano; a Alsácia-Lorena, uma parte da região de Schleswing-Holstein, as cidades de Danzing, Memel, uma parte da Baixa-Silésia, as regiões de Eupen e Malmedy, importantes territórios na Polônia; o que totaliza 1/8 de seu território e 1/10 de sua população; além da limitação de seu exército em 100.000 homens e a altíssima reparação econômica arbitrada posteriormente que, diante da impossibilidade da Alemanha  efetivar o pagamento, teve como conseqüência a invasão por parte da França e da Bélgica do vale do rio Ruhr em 11 de janeiro de 1923 agradando ainda mais a crise política na Alemanha, resultando .em uma inflação astronômica ao ponto de um dólar equivaler a 160 milhões de marco.

Externamente, outro evento que acirrou ainda mais a crise da República de Weimar foi a Grande Depressão de 1929.

Essa instabilidade propiciada por esses eventos foi terreno fértil para o fortalecimento direitista e o florescimento anti-governista aliada a um discurso anti-semita, um dos carros chefes da propaganda nazista.

Segundo Cardoso (2009), o Tratado de Versalhes e a invasão do Ruhr coincidem com a conturbada primeira fase da República de Weimar, que vai de sua criação no final 1918 até 1923. A crise econômica de 1929 e morte do brilhante Ministro do Exterior alemão, Gustav Stresemann, marcam o início de sua decadência, que se estende de 1930 até seu fim com a ascensão de Hitler, em 1933. Entre as duas fases, ressalta Cardoso (2009), insinua-se timidademente um segundo período, entre o fim de 1923 e o início de 1929, em que a República de Weimar viveu seu período dourado.

Foi nesse período de apogeu da República de Weimar que floresceu um amplo ambiente artístico, aliado a tranqüilidade política e estabilidade econômica. A política externa trouxe certo prestígio para a Alemanha, sendo habilmente  conduzida por Stresemann. A economia após a vertiginosa inflação havia sido controlada por meio de uma reforma do marco. E o ambiente artístico, remontava às glorias do século passado, a Goethe e Schiller. Em 1923 é publicado os Sonetos a Orfeu de Rainer Maria Rilke; em 1924 Thomas Mann publica  A montanha mágica; em 1925 Franz Kafka publica O Processo e no ano seguinte O castelo; em 1928 estréia a famosa Ópera dos três vinténs de Bertold Brecht.

E é nesse ambiente de efervescência cultural que Carl Schmitt publica suas principais obras, com críticas fervorosas a República vigente, acusando a de ingovernabilidade, das quais cito algumas delas, muito embora tenhamos nos dedicado especificamente à obra Teologia Política, publicada pela editora Scritta, juntamente com A crise da democracia parlamentar, ambas traduzidas por Inês Lohbauer: Die Diktatur ("A Ditadura") em 1921; "Politische Theologie" ("Teologia Política") em 1922 e "Der Begriff des Politischen" ("O Conceito do Político") publicada em 1932, mas que é uma extensão de um artigo publico em 1927 que recebe o mesmo nome.

2.2 – Breve biografia de Carl Schmitt.

O constitucionalista católico alemão Carl Schmitt nasceu em 11 de julho de 1888 em Plettenberg, na Vestfália, cidade de maioria protestante. Freqüentou escolas católicas durante toda sua vida secundarista, entrando para a Universidade de Berlim para cursar Direito, migrando posteriormente para a Universidade de Estrasburgo, quando em 1910 termina sua graduação com tese final em direito criminal. Trabalha como assistente de juiz até 1915, quando se alista na infantaria do exército alemão. Em virtude de danos físicos no front em treinamento, é transferido para o Comando-Maior de Guerra em Munique, na seção responsável pela administração e produção de decreto sobre todas as autoridades civis na Alta Bavária. Foi nessa atividade em Munique que Schmitt passou a se interessar pela distinção entre estado de guerra, estado de sítio e ditadura, afirmam Araújo e Santos (2009:373) em referência a Schwab[1] (1989).

Com o fim da guerra, Schmitt passa a lecionar na Escola de Administração de Negócios em Munique, onde permanece de 1919 a 1922. Nesse ano, Schmitt se torna professor de Direito na Universidade de Bonn, passando em seguida à Universidade de Belim onde ocupa a cadeira do autor da redação final da Constituição de Weimar, Hugo Preuss. Como advento da crise de 1929, Schmitt passa a trabalhar com o secretário do ministro das Finanças do Reich, sobretudo em casos relativos à declaração de estado de emergência com base no afamado art. 48 da Constituição de 1919. Sua excelente atuação o leva ao oficialato do Conselho Prussiano de Estado em 1932, nos relatam Araújo e Santos (2009:376) em referência a Schwab (1989:13-16).

Enquanto consultor jurídico do Reich, Carl Schmitt auxiliou praticamente com todos os presidentes, desde Ebert a Hitler. No ano de 1933, já então filiado ao Partido Nacional-Socialista, elaborou o documento jurídico que foi a base de sustentação do golpe de Estado executado por Hiltler.

Em 1936 Schmitt sofre perseguição pública por parte da polícia política do regime nazista por causa de suas antigas ligações com colegas judeus, o que o faz abdicar de suas atividades públicas. Desde então passa a lecionar na Universidade de Berlim até ser capturado em 1945 pelos russos, permanecendo em torno de um ano num campo de internação norte-americano. Em 1947 é convocado como testemunha no Julgamento de Nuremberg, não sendo acusado diretamente. Passa a viver nos arredores de Plettenberg a partir de maio de 1947, permanecendo até falecer em 07 de abril de 1985.


3 – UM BREVE HISTÓRICO DO CONCEITO.

Nosso intuito neste capítulo é traçar um percurso histórico analisando as diferentes matizes e concepções que  o conceito SOBERANIA recebeu ao longo dos anos, a partir do tratamento do termo presente em diferentes autores.

Para nossa análise, não empreenderemos uma investigação histórico social e política do termo, mas tão somente selecionaremos algum viés que nos auxiliem para uma depuração da terminologia empregada por Carl Schmitt em sua obra Teologia Política, que é o nosso principal foco de pesquisa.

Os historiadores dogmáticos costumam atribuir a Bodin como o primeiro a elaborar uma interpretação científica do conteúdo da soberania; fundando, dessa maneira, a moderna teoria política.

Assim sendo, iniciemos a analise do conceito por esse autor.

3.1 – Bodin

Bodin foi o primeiro a formular um conceito claro de soberania, inaugurando o predomínio da doutrina jusnaturalista moderna do Estado.

A soberania é definida como “la puissance absolue et perpetuelle d’une République” na versão francesa de seu livro Lex six livres de la République; e na versão latina a soberania é definida como “summa in cives ac subditos legisbusque soluta potestas”.

Bodin afirma, consciente de seu ineditismo, que nenhum jurisconsulto ou filósofo político até então tinha sido capaz de definir e caracterizar o Estado de semelhante maneira. Realmente, foi no seio da guerra civil em que a independência do rei francês Henrique III perante o Império, possibilitou as condições para a elevação do conceito de soberania, pois não se pode afirmar que existia semelhante consciência na antiguidade ou Idade Média de contestação à autoridade do Estado por um poder político supremo, embora utilizemos o conceito de Estado anacronicamente, pois o Estado tal como se apresenta contemporaneamente é um conceito da era moderna.

Assim, Bodin ainda inclui em sua doutrina a máxima romana legibus soluta, que não significava ilimitação de poder até a Idade Média. Segundo Bodin, qualquer vínculo jurídico imposto pelas leis é inconciliável com a soberania, estabelecendo, dessa maneira,  o interesse público e o princípio de que “ninguém pode obrigar-se em virtude de suas próprias leis” como fundamento para que o soberano viole as leis.

No entanto, o conceito de soberania para Bodin não era absoluto, pois os príncipes deviam se submeter às leis divinas e naturais, sendo o contrato de direito privado uma espécie de lei natural. Ele reconhece como titular do poder um único sujeito, mas que pode se manifestar de maneira singular como príncipe da monarquia, por exemplo, ou coletiva como o povo na democracia. No entanto, qualquer divisão do poder anularia, na concepção de Bodin, o conceito de soberania.

A formulação do conceito de soberania por Bodin, concomitante às lutas políticas e religiosas, fizeram emergir disputas entre juristas sobre a essência do conceito, contestando os partidários da soberania popular, bem como os defensores da soberania monárquica, ambos ancorando-se em bases do direito natural racional para justificarem suas posições.

3.2 – Althusius.

Em que pese a noção de soberania popular ter se originado na Idade Média, com Marsílio de Padua e Nicolau de Cusa, foi o calvinista Althusius quem efetivamente colocou em vigor o conceito de povo como soberano, respaldado na doutrina do direito natural. Ele aplicou ao conceito de soberania (majesta), utilizado pelos defensores da soberania do príncipe, a noção de povo, esclarecendo que ao lado da majestas do povo não haveria lugar para a majestado monarca.

Postulou a absoluta inalienabilidade, imprescritibilidade e indivisibilidade da soberania popular, tal qual como Bodin. Porém, em Althusius o elemneto solutio legis da definição de Bodin não se fazia presente.

Para Althusius o poder soberano do povo encontrava-se limitado não apenas pelas leis divinas e naturais, mas também pelas leis positivas. Ele pode ser considerado um dos fundadores da teoria do contrato social desprovido de um fundamento teocrático, pois concebe como princípio que toda comunidaded humana repousa originalmente sobre um contrato de consociatio ou societas, sendo esse conceito aplicado à coletividade popular, alterando a noção doutrinaria aristotélica de crescimento orgânico da sociedade civil.

A concepção contratual de Althusius foi recepcionada pela escola de direito natural, como se pode observar na doutrina de Grotius.

3.3 – Grotius.

Grotius acolheu a noção contratualista de Althusius, porém esse não concebia o conceito de soberania popular em sua forma pura. Partido de um pressuposto de um sujeito duplo da soberania, tal qual a imagem de que o sujeito de visão é tanto o corpo como os olhos, ele percebe o Estado como subjetum commune da majestas e  define o príncipe como subjetum proprium.

Esta distinção entre estado e príncipe leva-o a afirmar a identidade do Estado através das modificações de sua constituição, embora o subjetum commune ainda seja interpretado em acordo como os princípios jusnaturalistas de soma de indivíduos.

3.4 – Hobbes.

Atribuímos a Hobbes o fim da disputa que surgiu desde que a doutrina de direito político havia se transformado em uma doutrina política da soberania a partir das formulações de Bodin, desencadeando em um desentendimento em torno do sujeito soberano. Foi Hobbes quem conseguiu sistematiza definindo claramente quem era o sujeito da soberania, criando dessa maneira uma nova filosofia política.

Sua importância nesse nosso estudo não se deve apenas em virtude dessa sua sistematização. Schmitt durante toda a sua vida estudou as doutrinas de Hobbes, assumindo-o como representante paradigmático do pensamento decisionista, de quem acolhe o conceito de soberano.

Hobbes busca atribuir ao Estado e ao soberano uma fundamentação contratualista, partindo das premissas de que os indivíduos precedem à sociedade, sendo essa constituída através de um pacto entre aqueles; diferentemente da noção de sujeição entre o povo e o príncipe estabelecido pelos medievais.

A esse respeito, afirma Ferrajoli (2002:19): “É a Hobbes, em particular, que remonta a primeira formulação das idéias do Estado-pessoa e da personalidade do Estado, que servirão para oferecer um firme ancoradouro da definição de soberania.” (grifo nosso).

Enquanto o jusnaturalismo clássico e medieval enfatizava os deveres naturais dos homens, o jusnaturalismo moderno dos séculos XVII e XVIII passou a acentuar os seus direitos naturais. (Solon, 1997: 32-33.) Os clássicos da antiguidade e  os medievais consideravam que a sociedade era anterior ao indivíduo, enquanto os modernos, sendo Hobbes um dos principais expoentes, postulam o contrário.

Assim, o pacto de Hobbes seria a união dos indivíduos para que se auto-preservem, saindo assim do estado de barbárie e de guerra, o estado de natureza, onde não há a presença de um poder soberano.

A noção de estado de natureza para Hobbes deriva da noção clássica e da teologia medieval, mas com o seu significado subvertido. Ele nega à natureza como o summum bonum dos filósofos clássicos da antiguidade para fundamentar a sua teoria de Estado, do qual há a necessidade de um pacto entre todos os indivíduos para constituir uma organização que os proteja da ameaça dos demais, daí a necessidade de um poder soberano ilimitado, a que todos devessem submeter para que não se destruam mutuamente.

Desse movimento do raciocínio de Hobbes, donde partindo do estado de natureza até a sociedade civil, culminando em uma doutrina da soberania, Solon (1997:34) deduz alguma conclusões jurídicas:

“- auctoritas, non veritas facit legem é o cerne da soberania; as leis derivam sua força não mais de sua verdade ou de seu caráter racional, mas da vontade do soberano, que define o justo e o injusto.

- Como nunca existiu uma societas civilis autônoma ou um direito originário do populis, somente quando o estado se constitui, [e que surge uma personalidade jurídica única, que pertence ao soberano, seja a pessoa física de um indivíduo na monarquia, seja a pessoa artificial de uma assembléia. Através da figura jurídica do mandato e da de uma representação, considera-se que a vontade do soberano [e a vontade de cada cidadão, ao lado da qual, não subsiste nenhuma outra pessoa, apenas um amontoado de indivíduos isolados. Está idéia, pela primeira vez proposta, do Estado como sujeito unitário de direito, sem abandonar as premissas individualistas do direito natural moderno, sem incidir no”erro” medieval da persona ficta, será um elemento importante no futuro desenvolvimento da doutrina do direito público.

- Hobbes nega a possibilidade da divisão do poder e atribui ao soberano o direito incondicional de não se submeter a nenhuma limitação legal ou constitucional, embora admita que “a obrigação do súdito com o que ele o protege.” (Solon, 1997: 34).

Na última conseqüência exposta por Solon, reaparece o problema da limitação da soberania pelo direito e pode-se perceber que Hobbes rechaça qualquer vínculo jurídico que não proceda do poder estatal; e é por isso que muitos atribuem a doutrina desse como a culminância do absolutismo.

3.5 – Espinosa.

A doutrina do poder soberano de Espinosa foi fortemente influenciada por Hobbes, de quem se assemelha a identificação do poder soberano com direito e força.

Para Espinosa, o direito natural significa o poder pelo qual as coisas as natureza existem e agem, transcende ao homem atingindo uma dimensão cósmica. (Solon, 1997:35). Tinha uma concepção de direito natural como o sumum naturale jus, ou seja, todo ser tem sobre a natureza tanto direito quanto poder, pois o poder da natureza é o poder de Deus.

Portanto, acredita Espinosa que o direito do soberano está na medida de seu poder. O direito então se define pelo poder, mas ele aponta níveis diferenciados de poder e de direito, sendo que o poder humano somente pode existir dentro do estado e quanto mais forte o estado maior é o direito.

De acordo com Solon (1997), Espinosa concebe que

“(...) se os indivíduos transferiram ao estado todo seu poder e seu direito, tornando-se o poder soberano absoluto sobre os indivíduos, este tem uma limitação fundamental: não pode comandar tudo, pois o indivíduo reserva-se o poder de pensar livremente e expressar suas idéias; onde termina o poder do Estado, termina seu direito e, assim, a razão direciona o Estado a uma auto-limitação, de modo que ele não perca seu poder e seu direito. Uma vez que a autoridade que usa da violência coloca em perigo todo o estado, a pessoa soberana não possui o poder e, conseqüentemente, o direito de exercer seu domínio de modo violento.” Solon, (1997: 36).

Conclui-se, portanto, das palavras de Solon (1997:36), que Espinosa ancora-se em premissas metafísicas para definir um poder soberano para liberdade, rejeitando por completo um Estado para dominação, ou melhor, um Estado absolutista.

3.6 – Rousseau.

A doutrina da soberania popular emergida desde a Idade Média foi decisiva para a filosofia política de Rousseau, pois esse combinou os elementos conflitantes desde o direito natural clássico até as premissas de seus predecessores modernos.

Assim, enquanto o Leviatã hobbesiano era a segurança para indivíduo do estado de barbárie da natureza, Rousseau via exatamente no estado de natureza a solução para os males da sociedade civil. Ele afirma que o contrato social entre os indivíduos é o único fundamento do Estado e não o pacto entre o povo e o governante, como entendia Hobbes. Os seus princípios da soberania do povo exposta no Contrato Social são, portanto:

- Todo o poder é estabelecido em favor dos governados e o conteúdo da soberania é colocado exclusivamente na legislação como expressão da vontade geral. Disto decorre que o governo não nasce diretamente do contrato social, mas de uma comissão do soberano que lhe delega a função de executar as leis, revogáveis a qualquer momento.

- Sendo a soberania o exercício da vontade geral, que não pode ser transmitida, ela é inalienável, indivisível, insuscetível de representação ou limitação. (Solon, 1997: 38)

Rousseau, então, reformula a questão da limitação da soberania, transferindo-a da lei para o povo. Ele diz que “não há no Estado nenhuma lei fundamental que não possa ser revogada, nem mesmo o pacto social” (Rousseau, (1978:48), citado in Solon, 1997:39). Assim ele sinaliza a sua clara concepção da plena soberania dos homens em contraposição a noção clássica de supremacia da lei.

3.7 – Kant.

A concepção kantiana de soberania se fundamenta, essencialmente, na tradição do direito alemão de Puffendorf, mas na mesma esteira de Rousseau o filosofo alemão define a soberania popular como pertencente à vontade coletiva do povo, se expressando no poder legislativo.

O princípio da soberania popular para Kant seria uma idéia da razão ou pressuposto lógico derivado da vontade unificada de um povo considerando cada um como súdito, enquanto cidadão, como se estivesse participando da vontade de fazer as leis.

Assim, a soberania guia o detentor da autoridade política, mas não o limita em seus direitos de governante efetivo, que se legitima pela evolução histórica e não pela noção de soberania.

Nesse sentido, diz Kant (1993:160)

(...) que é preciso obedecer ao poder legislativo atual, não importa qual sua origem. Daqui provém o princípio: o soberano da cidade tem em relação ao súdito somente direitos, não deveres (de coração); ademais, se o órgão do soberano, o governante, agisse contra as leis, por exemplo, em matéria de impostos, de quintas etc., contra lei da igualdade na distribuição dos ônus públicos, o súdito poderia interpor queixas (gravamina) contra essa injustiça, porém jamais qualquer resistência.

E Kant (1993:161) complementa na seqüência que “[N]ão há, assim, contra o poder legislativo, soberano da cidade, nenhuma resistência legítima da parte do povo; porque um estado jurídico somente é possível pelas submissões à vontade universal legislativa; (...).”

Segundo Solon (1997:39), a soberania kantiana seria uma espécie de entronização da Razão, mas isso não impede que Kant concorde com a assertiva formulada por Puffendorf de que uma vez delegada a soberania ao rei, este só estaria limitado pela consciência moral.

Kant reacende e reformula o problema dos limites da soberania, alegando que o soberano só tem para com o súdito direitos, estando acima das leis, pois mesmo um monarca quando deposto só pode ter agido de maneira extrinsecamente justa; pois o soberano enquanto soberano deve agir racionalmente, constituindo a racionalidade uma limitação da soberania.

Portanto, podemos concluir com Solon (1997:40) que para Kant, “Soberano mesmo é a abstrata lei da razão”. Solon (1997:41) diz ainda que

Com a reformulação feita pelo idealismo alemão da doutrina da soberania popular, iniciamos uma fase de superação do direito natural, na qual se procurará decidir o conflito sobre o sujeito da soberania, que perturbou as mentes dos homens durante séculos, apelando-se ao princípio da soberania do estado, frente à construção do Estado constitucional do século XIX.

Percebemos, então, em Kant uma soberania que oscila entre o governante e o povo, transformado em comunidade soberana.

3.8 – Gerber.

Alguns juristas do Império Alemão do século XIX desenvolveram um conceito de soberania se baseando no método positivista com o intuito de delimitar o domínio jurídico de qualquer conceituação política; entre eles Gerber.

Para Gerber, as expressões de soberania, tais como soberania do príncipe, soberania do povo e soberania da nação somente são frases que se aplicam as diferentes teorias políticas (Solon, 1997:41). Os positivistas rejeitam por completo as concepções jusnaturalistas de soberania que tendem localizar o conceito em algum órgão ou pessoa, acusando-a de falaciosas.

Segundo Gerber, o conceito de soberania não tem nenhuma relação estrita com a noção de direito do monarca, o que não impede a  confusão freqüente entres os termos monarquia e soberania.

3.9 – Jellinek.

Jellinek também compõe o grupo de positivistas que rejeitam a noção jusnaturalista de soberania.

Com o intuito de resolver a confusão entre soberania do órgão com soberania do estado, Jellinek observa a necessidade de haver no Estado homens a quem corresponda à soberania por direito.

Partidário da doutrina jurídica alemã, tentou ainda resolver o problema da limitação do Estado pelo Direito recorrendo à noção kantiana de autonomia moral e rejeitando o princípio da legibus absoluta potesta.

Para Jellinek, o elemento essencial do Estado é sua capacidade de auto-organizar pela lei e o seu poder, excluindo assim da essência do Estado a soberania. A esse respeito, Solon (1997) leciona que

(...) doutrina da não essencialidade da soberania pretendia justificar o caráter de Estado das unidades que passaram a integrar o recém-criado Império Alemão, na medida em que se podia interpretar que possuíam poderes inerentes e indivisíveis, mas não supremos como o do Império. Evidencia-se, pois, que Jellinek servia a dois senhores: o Imperador da Alemanha e o rei do estado confederado de Baden.” (Solon, 1997: 42).

Assim, com Jellinek há um deslocamento do foco da soberania para o poder, como característica essencial do Estado, passando este a ser concebido como pessoa jurídica, dotada de vontade, identificada com o poder. (Solon, 1997: 43).

3.10 – Laband.

Laband, também partidário da doutrina jurídica alemã, tem o critério de Gerber como norteador de sua doutrina, na qual o princípio do Estado não é a soberania mas a dominação (herrschen). Ele visa afastar toda consideração histórica, filosófica, econômica e política estabelecendo conceitos lógico-positivistas com o intuito de definir com a dominação do Estado, o direito desse estatuir comandos obrigatórios de coação das pessoas, com o intuito de que elas se conformem com as ordens emanadas.

Assim, para Laband como para os demais juristas positivistas alemães, a noção de soberania não fazia parte da propriedade essencial do Estado, pois o conceito tem caráter absoluto, que não permite divisão num Estado Federal, como supunha os teóricos do federalismo.

Dessa forma, Laband tenta solucionar o dilema da constituição do Império Alemão em 1871, formando um Estado Federal, unidades que deixaram de ser soberanas sem deixarem de ser Estados porque mantiveram um direito de dominação próprio; deixando assim de ser a soberania uma idéia importante para a compreensão de Estado.

Observamos, assim, semelhanças incontestavéis nas concepções de Laband, Jellinek e Gerbe com a doutrina normativista de Kelsen, autor que analisaremos sua compreensão de soberania posteriormente e contra quem Carl Schmitt foi um forte opositor.

3.11 – Krabbe.

Na tentativa de superar o dualismo dos juristas alemães entre Estado como manifestação originaria de poder e o Direito como limitação desse, Krabbe sustenta em sua obra Die Lhre der Rechtssouveränität (1906) a tese de que não é o Estado mas o Direito que deve ser considerado soberano. Ele postula a existência de duas finalidades distintas no Estado, uma se refere a criação do direito e a outra a sua realização. Disso, decorre que o Estado enquanto criado do direito é livre, mas enquanto administrador submete-se ao direito positivo.

Assim, segundo Solon (1997:46), a crítica de Krabbe a doutrina alemã substitui o soberano pessoal como governante pela pessoa jurídica do Estado, mas mantém como premissa uma autoridade soberana independente do direito, sendo precursora direta da teoria da soberania kelsiana.

Carl Schmitt concorda com essa base comum entre as teorias de Krabbe e Kelsen, chegando a mencionar a esse respeito em Teologia Política (1922/1933)

“[...] uma apresentação famosa por parte de Krabbe, cujo estudo sobre a soberania do direito (1906, com o título de Die moderne Staatsidee, com o lançamento da 2º edição alemã ampliada, em 1919) baseia-se na tese de que soberano é o direito, e não o Estado. Kelsen parece ver nele só um precursor de sua doutrina da identidade entre Estado e ordem jurídica.” (Schmitt, 1996:99)

No entanto, reservamos a analise da relação entre Carl Schmitt e Kelsen e sua conexão com outros autores a capítulos posteriores.


4 – O CONCEITO DE SOBERANIA NA TEORIA DE CARL SCHMITT

Carl Schmitt, jurista, filósofo, antidemocrata, antiliberalista, nazista, intrigante. Sua teoria condensa particularmente o debate entre liberdade e igualdade; autoridade e democracia; noções cotidianamente presentes na tradição do pensamento europeu contemporâneo.

Ousaremos analisar um dos conceitos mais importantes desse pensador, de conseqüências para o mundo político, jurídico e filosófico: o conceito de SOBERANIA schmittiano, presente especialmente na obra Teologia Política,  a qual o pensador inicia com a celebre frase – “Soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção”. (Schmitt, 1996:87)

Para tanto, será preciso, evidentemente, esmiuçar os conceitos acessórios presentes na afirmação de abertura da obra schmittiana mencionada e, por isso, investigaremos paralelamente a concepção de decisão e exceção que compõem o conceito de SOBERANIA de Carl Schmitt.

4.1 – A soberania schmittiana.

A soberania schmittiana é um complexo conceitual permeada por outros dois conceitos, decisão e exceção, extraídos da frase de abertura de Teologia Política (“Soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção.” Schmitt, 1996:87).

Segundo Felicíssimo (2001),

“A tríade formada pelos conceitos de decisão, soberania e representação é a chave para compreensão do pensamento de Schmitt. ‘A decisão equivale à vontade representada do soberano. Vontade essa que ‘se manifesta com maior firmeza no momento de crise e perigo.’ A exceção surge de uma situação concreta, uma situação excepcional, onde normas gerais, abstratas e impessoais não bastam.” (Felicíssimo, 2001:19)

Para Felicíssimo (2001:19) o conceito de decisão já caracteriza o conceito de soberania schmittiano e “a conseqüência da triangulação: soberania, decisão e representação é a idéia de ordem.” A decisão é a solução para a situação de emergência nas quais as normas já não bastam, sendo essencial para a ordem jurídica, esclarece a Felicíssimo.

Portanto, SOBERANIA para Schmitt é eminentemente uma decisão, não tão somente sobre a existência do Estado em situação extrema, mas inclusive sobre todos os feitos para que cesse tal estado de coisa. O soberano tem autoridade política para suspender direitos a fim de realizá-los. É um paradoxo que Schmitt esclarece alegando que o conceito de SOBERANIA é um conceito-limite em si mesmo.

“O conceito-limite não é um conceito confuso, como na feia terminologia da literatura popular, mas um conceito da esfera extrema; isso quer dizer que sua definição não se encaixa num caso normal, mas sim num caso limite. O fato de se entender o Estado de exceção como um conceito genérico da doutrina de Estado, e não como qualquer situação emergencial ou Estado de sítio (...). E o fato também de o estado de exceção, no sentido eminente, ser adequado para a definição jurídica de soberania, tem razão sistemática lógico-jurídica. A decisão sobre a exceção é, portanto, uma decisão no sentido eminente. Pois uma norma genérica, como se apresenta a norma jurídica válida, não pode nunca assimilar uma exceção absoluta e, portanto, nunca justificar totalmente a decisão tomada em um verdadeiro caso de exceção.” (Schmitt, 1996:87)

Para Schmitt, então, a SOBERANIA não se encaixa numa situação habitual, mas situa-se diante do inesperado, imprevisto, imprevisível. O acesso ao quase intangível faz surgir a forma política onde a SOBERANIA se manifesta eminentemente no sentido schmittiano do termo. Nesse caso o poder político é centrado na figura do representante de Estado, o que traz a luz o binômio SOBERANIA – REPRESENTAÇÃO.

Segundo Araújo e Santos (2009:383), a decisão da concepção schmittiana “remete ao caráter pessoal da manifestação concreta do poder político.”  A exceção “se refere a um estado ou situação (Zustand) excepcional e conflitivo (...) e que se define como um caso de extrema necessidade, de perigo para existência do Estado (...), mas que não pode ser circunscrito numa tipificação (tatbestandsmäbig). Esses autores dizem ainda que a apreciação do conceito de decisão leva às definições centrais da Teoria da Constituição de Schmitt, pois a “definida Constituição como Decisão tratar-se-á de conceituar a situação de exceção na qual se manifesta o Soberano e sua constitucionalização como estado de exceção.” (grifo do autor)

“A própria existência da ordem social – e portanto, da ordem jurídica – pressupõe um ato de decisão constitutiva emanado da unidade política. A decisão é, para Schmitt, a origem e fundamento de toda a fenomenologia do direito (Hofmann[2], 1999, p. 78): as manifestações concretas do direito só são possíveis – o direito só  se realiza – por emanarem de um ato decisório de caráter pessoal. Referendo-se a Hobbes no livro Sobre os três modo de pensar a ciência jurídica (1934), Schmitt compreende todo direito como um ato do soberano: ‘[t]odo direito, todas as normas e leis, todas as interpretações de leis, todas as ordens são para ele essencialmente decisões do soberano, e o soberano não é um monarca legítimo ou uma instância competente, mas o soberano é exatamente aquele que decide soberanamente. Direito é lei e lei é comando que decide uma disputa jurídica: Auctoritas non veritas facit legem. (Schmitt[3], 1996b, p.29).” Araújo e Santos (2009:383).

A decisão representa, portanto, da leitura que Schmitt faz de Hobbes, a eliminação da desordem presente no estado de natureza com a fundação da ordem estatal à partir do soberano. A decisão soberana é, então, o princípio absoluto; uma ditadura criadora da ordem e contra a insegurança anárquica pré e infra-estatal. É a partir da decisão que o soberano, como um juiz, decide efetivamente de acordo com a contingência do caso concreto. A caracterização da soberania em Schmitt aponta para uma formação específica do Estado baseado na decisão da unidade política.

Os conceitos de decisão, representação e soberania dão forma ao conceito de Constituição que, segundo Schmitt, significa em essência a determinação da própria forma de existência. Como para Schmitt soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção, entende-se exceção, portanto, como um conceito geral da doutrina de Estado, e soberano não é aquele que ocupa o cume de uma pirâmide organizacional da burocracia normativa de Estado, mas quem detém a prerrogativa, o poder de decidir sobre a existência dos fatos e acontecimentos, e determina como superá-los.

Em Carl Schmitt não há espaço para ilusões legitimistas no sentido normativista de um fundamento moral ou racional, pois a ordem – seja ela social, política ou jurídica – emana de uma decisão e será legítima se advinda do agrupamento amigo-inimigo, no sentido schmittiano, que constitui a unidade política, residindo nesta o Poder Constituinte quem cabe a decisão soberana de constituir a ordem.

O agrupamento amigo-inimigo schmittiano é um critério da ação política que se difere de toda atividade humana. Como a política para Schmitt é eminentemente uma decisão, decide-se quem é o amigo e quem é o inimigo e, inclusive, sobre a vida e sobre a morte, sobre a paz e sobre a guerra; enfim, a decisão de Schmitt é pela representação que se manifesta pelo poder soberano.

Segundo Silva (2009:454), distinção “amigo-inimigo” schmittiano é um critério para o político, e ainda um posicionamento metodológico, pois possibilita a Schmitt apontar contra quem, ou contra o quê escreve. A esse respeito, Silva (2009:452) ressalta que

“[S]eguindo o caminho trilhado por Maquiavel, Schmitt quer dar à política um caráter autônomo – é, sobretudo sobre esse ponto que Strauss será mais contundente em suas críticas, denunciando a idéia de uma política autônoma e livre de valores – e liberar a teoria política do entrave que se origina da confusão entre a esfera política e os demais campos da ação humana. Ao reconhecer a necessidade de pensar a política em sua especificidade, Schmitt poderá ser  filiado à tradição da filosofo a política que tem como seus expoentes Maquiavel e Hobbes, autores dos quais se sente próximo.Para isso, Carl Schmitt partirá direto para a idéia de fundamento e tentará responder a questão: qual é o objetivo do político? (no que diz respeito aos fundamentos da vida comum). Assim como o domínio da moral é determinado pelas noções de bem e mal, o estético pelas de belo e feio, o econômico pelas categorias do lucro, a política pode ser definida a partir da distinção amigo-inimigo. Schmitt deixa claro que o inimigo ao qual se refere será sempre o inimigo público (hostis), a ênfase que o autor faz, é necessária para evitar que inimigo resvale no indivíduo (liberal) incapaz de produzir identidade e por conseqüência unidade. Há uma relação direta em Schmitt entre Identidade e unidade.”

Sobre o antagonismo amigo-inimigo, Ferreira (2009: 329) esclarece que

“A compreensão do político baseada na distinção entre amigo e inimigo que ele propõe no livro Der Begriff des Politischen (O conceito do político) tem como desdobramento uma imagem do mundo como um pluriversum de unidades políticas que se definem de forma recíproca umas em relação às outras. Nesse contexto, a guerra seria “o pressuposto sempre presente como possibilidade real” (BP, 34-35).”

Quanto à distinção amigo-inimigo e a possibilidade sempre iminente de guerra, Silva (2009:452) orienta que  esse critério do político constitui um conceito-limite, ou seja, define um caso de guerra,  que é a mais extrema demonstração de inimizade e o que nos leva a  conhecer a natureza das formas políticas. Silva afirma que é no caso limite que é manifesto todo caráter particular das oposições políticas. Segundo ele, Schmitt afirma que a guerra nos permite ter uma perspectiva privilegiada daquilo que não podemos perceber no cotidiano. A guerra amplia a visão em relação ao político, o que em situações normais não seria tangível. A possibilidade da guerra é a manifestação do caso de exceção, rompendo a normalidade, desvelando o ser do político.

“Em suma, a guerra traz a tona o político. Isso faz dela uma condição existencial da política. Não significa, porém que guerra seja finalidade da política, mas ela é uma possibilidade inscrita no ser da política. A possibilidade de haver guerra é o que Schmitt chama de político.” Silva (2009:452)

E complementa dizendo que

O conflito para Schmitt é uma condição para a vida política como o é também em autores -cada um ao seu modo- como Hannah Arendt ou mesmo Claude Lefort, o que marca a obra de Schmitt é exatamente a dimensão que é dada ao conflito, afinal o antagonismo amigo-inimigo é de todos, o mais forte e intenso, que não afasta de si a possibilidade de provocar ou mesmo de sofrer a morte física. Mais uma vez ele é o grau extremo dirá Schmitt, é o conceito levado e aplicado ao seu limite, ao extremo. Na situação limite o humano é lançado na sua origem contingente, quer dizer, ele se priva de qualquer garantia e se expõe ao risco da morte. A decisão final será sempre sobre a vida do outro. Essa é a situação política por natureza. Apesar da importância da guerra nessa formulação do político que Carl Schmitt faz isso não implica numa defesa da guerra como tal. Está claro no texto que ela não é o fundamento nem tão pouco a finalidade da política, também não faz parte da definição de amigo-inimigo, a guerra é possibilidade não conteúdo da política, ela é na verdade o reconhecimento de que a guerra está inscrita na possibilidade das relações humanas e é sobretudo uma recusa do pacifismo que vem como conseqüência do estado total, a célebre afirmação de Clausevitz de que a guerra é nada mais que prosseguimento da política por outros meios é resignificada por Schmitt. Silva (2009:453)

Assim, o poder de decidir sobre amigo-inimigo recai sobre Estado, enquanto unidade política soberana e, como a decisão soberana acaba com o caos e instaura uma normalidade que poderá se transformar conforme a dinâmica de suas instituições (Akoncretes Ordnungsdenken), caberá ao soberano definir o inimigo e estabelecer o caso de guerra.

Para Giorgio Agamben, no livro Estado de exceção (2003), a soberania schmittiana tem como escopo regular ou reinstalar a ordem jurídica numa situação de desordem somente mensurada de formar objetiva pelo próprio soberano.

Regular juridicamente a soberania equivale, portanto, a juridicizar a situação de exceção. Porém, tal situação não é passível de circunscrição jurídica porque não seria possível formular abstratamente os tipos de exceção para que se figure em lei. Para Schmitt, a abordagem jurídica tradicional não os alcança, sendo o estado de exceção passível de ser identificado somente na prática.

Nesse sentido, Schmitt não vê na concepção liberal de estado de sítio e estado de emergência como conceitos plausíveis para definir os estado de exceção; é no conceito de estado de necessidade que ele reconhece a substância do estado de exceção, pois há uma situação especial onde a lei perde os seu caráter obrigatório.

O estado de exceção para Schmitt, então, deve ser aquele que permita a suspensão de toda a ordem jurídica vigente, identificando concretamente a própria existência do Estado, com o fim de preservá-lo; “suspende-se toda a ordem jurídica com a finalidade de (re)constituí-la.” (Araújo e Santos, 2009:373)

“É através do estado de exceção que se exerce a soberania: suspende-se toda a ordem jurídica com a finalidade de (re)constituí-la. As teorias do Estado liberais repudiam esta idéia porque ela expõe a decisão inevitável que sustenta toda a normalidade constitucional. O Estado de Direito, ‘ao dividir as competências e instaurar o mútuo controle, procura adiar (hinauszuschieben) a questão da soberania o máximo possível’ (Schmitt, 2001, p.26-27).”

Cardoso (2009:61) esclarece que “o estado de exceção está para jurisprudência assim como o milagre está para teologia – fórmula que expressa o núcleo teológico-positivo do conceito de soberania.” E ressalta ainda a importância dessa concepção para Schmitt porque esse afirma que os conceitos da moderna teoria do estado são conceitos teológicos secularizados.

A exceção em termos schmitianos então versa sobre a questão da validade do direito, porque não existe norma que se possa aplicar ao caos. Ë preciso que a ordem seja estabelecida para que a ordem jurídica tenha um sentido. Não é o mandamento enquanto mandamento que restabelecerá a ordem da situação fática, mas a autoridade ou a soberania de uma decisão última, dada com o mandamento que constitui a fonte de todo “direito”, ou seja, de todas as normas e de todas as ordens que dele derivam. A decisão soberana é começo absoluto e jorra e um nada normativo e de uma desordem concreta. O soberano decide irrestritamente sobre o caso concreto e sua decisão, segundo Schmitt, mesmo sendo apolítica representa sempre uma decisão política, independentemente de quem ela atinge e que roupagem assuma.

Assim, segundo Cardoso (2009:81), a exceção enquanto estado de exceção constitui o pano de fundo da norma na doutrina schmittiana, pois “a situação normal não faz sentido se ela não exclui a situação anormal, excepcional.” A exceção é a situação anormal que institui e confere validade a norma.

“A exceção, desde que não seja sem relação com a norma, confirma a regra, como sublinhava CARL SCHMITT em sua Teologia política, e faz assim aparecer, de encontro à teoria kelsiana, a imanência no direito do elemento decisionista sem o qual a norma seria impensável. A decisão não é exterior ao direito, ela lhe é inerente. Nesse sentido, a exceção serve de mediado entre o fato e (a decisão) e o direito (a norma). Todavia a exceção no sentido da criação de uma ordem jurídica, seja pelo soberano no sentido de HOBBES, seja pelo poder constituinte qualquer que seja sua origem, revolucionária ou não, dissocia a norma da decisão na medida em que a decisão toma o passo sobre a norma. A norma pressupõe a decisão.” Cardoso (2009:81)

A esse respeito, Cardoso ainda cita os ensinamentos de Marramao:

“O significado jurídico do estado de exceção exerce a função de tornar manifesto o âmago da soberania, precisamente destituído pelo racionalismo iluminista que pretende deduzir a decisão segundo o conteúdo de uma norma. Torna-se assim crucial a distinção entre jurídico e normativo. A decisão é de fato extranormativa: livre de todo e qualquer vínculo normativo, absoluta em sentido próprio.” Cardoso (2009:62)

Dessa maneira fica evidente o posicionamento de Schmitt frente ao normativismo, sobre tudo, kelsiano contra quem se opõem ferozmente, pois “para Schmitt, o importante é quem decide, e o normativismo, por seu caráter abstrato, revela-se incapaz de diferenciar a norma e aplicação da norma” porque “o direito não estabelece quem vai e como vai aplicar o Direito.” (Cardoso 2009, p. 86)

4.2 – A concepção de soberania de Kelsen.

“Uma máscara, uma verdadeira máscara trágica, sob a qual se oculta diferentes pretensões de dominação, é a teoria da SOBERANIA.” (SOLON, 1997:47). Essas palavras de Kelsen presentes na obra dedicada a Giordio del Vechchio (“Der Wandel des Souveränitsbegriffs” in Studi filosofici giuridici dedicati a Giorgio del Vechchio, 1931.) traduzem bem a concepção que Kelsen possui a respeito do conceito de SOBERANIA. Para Kelsen, o conceito traz consigo finalidades de interesse estritamente político muito mais do que cientifico.

Em sua obra O problema da Soberania e a Teoria do Direito Internacional, contribuição para uma teoria pura do direito, ele relaciona o conceito com a sua origem etimológica da palavra latina supremitas que teria como significado fundamental uma ordem superior das condutas humanas que, apesar dos disfarces, a definição de soberania não perdeu o seu sentido original sendo aplicado ao domínio do Estado e do Direito como a expressão de uma ordem suprema, nos ensina Solon (1997:48).

No decorrer da obra dedicada ao tema, Kelsen critica desde a concepção medieval sobre as civitates superiorem non cognoscentes, menciona a definição de Bodin da summa potestas; critítica ainda a noção jusnaturalista e rousseauliana de fundamento do Estado num contrato social, mas o auge da critica se encontra, segundo Solon, na teoria geral do Estado dos juristas positivistas alemães do século XIX, do qual Solon  transcreve as palavras de Kelsen:

A afirmação, segundo a qual a Teoria Pura do Direito não passaria de um labandismo é desprovida de sentido. Se é, certamente, verdadeiro que Laband tentou separar o direito positivo da política, é igualmente verdadeiro que ele fracassou. A doutrina de Estado de Laband é, na realidade, uma ideologia do princípio monárquico, estuda de um modo totalmente inadmissível e em oposição ao direito positivo. Diante da aspiração muito conhecida de Ladand a uma distinção entre doutrina do direito positivo do Estado, de um lado, e a política, de outro, a Teoria Pura do Direito se inscreve, com certeza, no prolongamento de uma tradição que, na Alemanha, começou com Gerber.

A diferença fundamental entre a Teoria Pura do Direito e a doutrina de Laband reside no fato que este não enunciou os princípios de uma teoria jurídica, mas se limitou a uma interpretação ad Constituição (...).

Gostaríamos, além do mais, de sublinhar o fato de que já nossa “Hauptprobleme” tomou o cuidado de se distanciar das tend6encias políticas, habilmente disfarçadas, da doutrina do Estado de Ladand.Isso demonstra que a Teoria Pura do Direito nasceu em oposição ao labandismo. É surpreendente que todos aqueles que nos reprovam por seu um adepto do labandismo sejam os mesmos que insistam sobre o perigo que nossa teoria representa ao Estado. O próprio Laband, o jurista mais conservador da coroa prussiana,s e volveria em seu túmulo caso soubesse que a Teoria Pura do Direito lhe fora atribuída.” (Sólon, 1997:49)

Neste trecho citado por Solon em sua obra Teoria da Soberania como problema da norma jurídica e da Decisão (1997) deixa claro a divergência de Kelsen quanto a teoria do Estado dos positivistas dos século XIX.

Kelsen, embora positivista, não concebia a SOBERANIA como uma característica do poder do Estado, mas sua concepção normativista somente poderia considerar a SOBERANIA como um atributo do Estado enquanto ordem jurídica suprema , o que o aproxima da SOBERANIA do direito de Krabbe.

Contudo, Kelsen diverge de Krabbe no ponto em que sua doutrina mantém o dualismo entre Estado e o direito, pois Kelsen entende que mesmo a monarquia absoluta seria um “Estado-de-direito”, pois por mais despótico que seja o governante, o fundamento de seu poder, sempre recairá em uma proposição jurídica originária, que converte comandos pessoais em normas.

Nesse sentido, em Teoria Pura do Direito, Kelsen diz que:

A doutrina tradicional do Estado e do Direito não pode renunciar a esta teoria, não pode passar sem o dualismo de Estado e Direito que nela se manifesta. Na verdade, este desempenha uma função ideológica de importância extraordinária que não pode ser sobreestimada. O Estado deve ser representado como uma pessoa diferente do Direito para que o Direito possa justificar o Estado – que cria este Direito e se lhe submete. E o Direito só pode justificar o Estado quando é pressuposto como uma ordem essencialmente diferente do Estado, oposta à sua originária natureza, o poder, e, por isso, mesmo, recta ou justa em um qualquer sentido. Assim o Estado é transformado, de um simples facto de poder, em Estado de Direito que se justifica pelo facto de fazer o Direito. Do mesmo passo que uma legitimação metafísico-religiosa do Estado se torna ineficaz, impõe-se a necessidade de esta teoria do Estado de Direito se transformar na única possível justificação do Estado. Esta “teoria” torna o Estado objecto do conhecimento jurídico, a saber, da teoria do Estado na medida em que o afirma como pessoa jurídica, e, ao mesmo tempo e contraditoriamente, acentua com todo o vigor que o Estado, porque e enquanto poder e, portanto, algo de essencialmente diverso do Direito, não pode ser concebido juridicamente. Esta contradição, porém, não lhe faz a menor mossa. Aliás, as contradições em que necessariamente as teorias ideológicas se enredam não significam para elas qualquer obstáculo sério. Com efeito, as ideologias não visam propriamente o aprofundamento do conhecimento mas a determinação da vontade. Aqui não se trata tanto de apreender a essência do Estado como antes de fortalecer a sua autoridade. (Kelsen, 1984:384-385).

Dessa maneira, é ponto pacífico para Kelsen identificação do Estado com o  Direito. Mas em todo caso, “[a] idéia essencial da unidade do Estado e do Direito, não exclui a onipotência material daquele como um dos mundos possíveis deste.” (Solon, 1997:53)

A partir desta premissa, tanto o Estado como o Direito formam um complexo normativo, que não pode ser analisado desde uma perspectiva jurídica, na esfera da realidade natural do “ser”, mas sim, no plano normativo ideal do “dever ser”. (Solon, 1997:54)

Assim, podemos concluir que Kelsen liquidou o problema de se saber se a soberania seria uma propriedade do Direito ou do Estado, pois estabeleceu que o Estado somente é soberano enquanto ordem jurídica.

Para Carl Schmitt, Kelsen resolve o problema do conceito de soberania simplesmente negando-o. Analisemos a critica no próximo capítulo.

4.3 – Schmitt contra Kelsen.

Carl Schmitt, em função da abordagem decisionista do Direito, tem Kelsen como um dos seus principais interlocutores, contra quem se opõe asperamente quanto à noção normativista e monista do Direito.

Schmitt afirma que Kelsen ao empreender um dos estudos mais preciosos do conceito de soberania, busca uma solução simplista aplicando a disjunção sociologia–jurisprundência e, com a aplicação desse procedimento, alcança um resultado nada surpreendente de que o Estado deveria ser algo puramente jurídico, identificando assim o Estado com a Constituição.

O estudo mais precioso do conceito de soberania, nos últimos anos, procura uma solução mais simples, na medida em que institui a disjunção “sociologia-jurisprudência”, (...). Kelsen seguiu esse caminho em seus escritos(...)

Com a ajuda desse processo, Kelsen chegou ao resultado nada surpreendente de que o Estado, para contemplação jurídica, deveria ser algo puramente jurídico, algo de valor normativo, portanto, não uma  realidade qualquer ou algo pensado como marginal ou exterior à ordem jurídica, mas nada além dessa própria ordem jurídica, na verdade uma unidade (...) Portanto, no enfoque jurídico, o Estado é idêntico à sua Constituição, isto é, à norma básica unificada. (Schmitt, 1996:97).

Assim, Schmitt acusa Kelsen de não resolver o problema da soberania, mas negá-la, sendo essa atitude uma antiga estratégia liberal desinteressada na concretização do direito, fazendo inclusive referencia a teoria de Krabble.

Kelsen resolve o problema do conceito de soberania simplesmente negando-o. A conclusão de suas decisões é “O conceito de soberania deve ser radicalmente reprimido” (Problem der Soveränität, p.320). Na prática, essa é a velha negação liberal diante do direito e o desdém pela questão independente da concretização do direito. Esse enfoque teve uma apresentação famosa por parte de Krabble, cujo o estudo sobre soberania do direito (1906, com o título de Die moderne Staatsidee, com o lançamento da 2º edição alemã ampliada, em 1919) baseia-se na tese que soberano é o direito, e não o Estado. (Schmitt, 1996: 99)

Outra referência que Schmitt faz da relação existente entre a teoria de Krabble e Kelsen é quando crítica o formalismo deste neokantiano, pois Schmitt (1996:104) afirma que “a idéia jurídica não pode se concretizar a si mesma”.

Kelsen contradiz a si mesmo quando adota esse conceito de forma, criticamente obtido, como ponto de partida subjetivo, e considera a unidade da ordem jurídica como um ato livre de reconhecimento jurídico; mas ali onde ele professa uma visão de mundo, ele exige objetividade e até mesmo critica o coletivismo hegeliano pelo seu subjetivismo estatal. A objetividade que ele reivindica para si esgota-se no fato de evitar tudo o que é personalista e devolver a ordem jurídica ao valor impessoal de uma norma impessoal.

As diversas teorias do conceito de soberania de Krabble, Preus e Kelsen defendem uma objetividade como essa; nelas eles também concordam ao alegar que tudo o que é pessoal deve desaparecer do conceito de Estado. Para eles, a personalidade e o comando estão interligados. (Schmitt, 1996:104).

Para Schmitt, todas essas concepções não consideraram que a idéia da personalidade e sua relação com a autoridade formal evadiram-se do interesse jurídico específico que se constitui no espírito da decisão-jurídica, pois decisão é percepção jurídica. Dessa maneira, toda decisão jurídica contém um instante de conteúdo indiferenciado, porque a conclusão jurídica não é dedutível até a última de suas premissas, por isso a necessidade da decisão em certos momentos determinantes e independentes. Tal circunstância se evidencia, segundo Schmitt, na doutrina do ato falho estatal; não é com auxilio da norma que se confere a competência a alguém, mas o contrário é a partir de um ponto de imputação que se determina o que é norma e precisão normativa. Considerando que toda decisão incorreta ocasiona uma conseqüência jurídica, a decisão incorreta possui um momento constitutivo justamente em função de sua incorreção e não em função de uma norma.

Assim, portanto, é na distinção entre decisão e norma que residem as principais divergências entre os dois autores ora estudados.


5 – CONCLUSÃO.

O realismo de Schmitt é impressionantemente desestabilizador. Ele descortina o caráter obscuro das concepções normativistas do Estado constitucional-liberal que encontra no normativismo jurídico sua formulação mais acabada.

Enquanto uma teoria deontológica, o normativismo jurídico parte da cisão kantiana entre o ser e dever-ser, desconsiderando que nenhuma ordem jurídica pode autoregular-se e nega uma realidade evidente: a existência de exceções.

Schmitt não se furta a essa realidade e concebe importância a quem decide, enquanto o normativismo por seu caráter abstrato demonstra-se incapaz de distinguir validade formal e realidade concreta., diante da sua indistinção entre norma e aplicação.

Não é por acaso que Habermas testemunha a favor de Schmit dizendo que sua influência contemporaneamente se deve, não somente pela qualidade de suas obras, mas pela reconhecida competência como teórico do Direito e por formular conceitos precisos.

Não resta dúvida que um dos conceitos mais precisos de Schmitt foi o presente na Teologia Política, o conceito de SOBERANIA.

A este respeito, atesta Ferrajoli (2002:45): “Não é por acaso, de resto, que o último grande arauto da soberania tenha sido Carl Schmitt, que polemizando com Kelsen, baseou-a sobre uma categoria incompatível com a lógica do estado de direito, como o é a do “estado de exceção””

Walter Benjamin, por ocasião da publicação de seu livro sobre a Origem do Drama Barroco Alemão, é sabido que encaminhou um exemplar com uma dedicatória expressando a importância de Schmitt para sua própria filosofia:

“O Sr. irá constatar o quanto este livro é devedor de sua apresentação da teoria da soberania no século XVII. Permita ainda que lhe diga que, graças aos seus métdodos de investigação em filosofia do direito, descobri em suas obras posteriores, sobretudo, em Die Diktatur, uma confirmação dos meus métodos em filosofia e história da arte. Se a leitura de meu livroi lhe permitir dar conta deste sentimento, a intenção de lho enviar terá sido bem-sucedida... Seu devotado Walter Benjamin. (In. Cardoso, 2009:84).

Portanto, podemos observar não somente a óbvia contribuição de Schmitt e seu conceito de soberania à Teoria da Constituição, mas também o direito e a filosofia como um todo possui seus débitos com o autor.


6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS.

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Notas

[1]           SCHWAB, George. The chalenge of exception:an introduction to the political ideas of Carl Schmitt between 1921 & 1936. 2ed. Com nova introdução. Connecticut: Greenwood Press, 1989 (1970).

[2]           HOFMANN, Hasso. Legitimità contro legalità: la filosofia política di Carl Schmitt. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 1999.

[3]           SCHMITT, Carl. Sobre los tres modos de pensar la ciencia jurídica. Estúdios preliminar, traducción y notas de Montserrat Herrero. Madrid:Tecnos, 1996b


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Artigo apresentado como requisito parcial para obtenção de grau de bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, José Cecílio Neto e. O conceito de soberania na teoria de Carl Schmitt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4877, 7 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35936. Acesso em: 6 maio 2024.