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O crime de infanticídio e a perícia médico-legal.

Uma análise crítica

O crime de infanticídio e a perícia médico-legal. Uma análise crítica

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Objetivo

:

A caracterização do crime de infanticídio, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento do " estado puerperal " é um desafio à perícia médico-legal. Ao estabelecer um critério biopsíquico em contraposição ao critério de defesa da honra, o Código Penal de 1940 transferiu a responsabilidade de documentação material deste crime ao exame médico. O autor procura discutir as implicações desta mudança, como também apresentar uma revisão da literatura sobre o tema, estabelecendo ao final um juízo sobre o real papel do exame pericial no crime de infanticídio.


Histórico

O infanticídio - " lato sensu " - entendido como o assassinato de crianças nos primeiros anos de vida, é praticado em todos os continentes e por pessoas com diferentes níveis de complexidade cultural desde a antiguidade. Existe ampla evidência histórica para documentar a impressionante propensão de alguns pais a matarem seus próprio filhos sob a pressão de condições estressantes. O relato bíblico no livro do Gênesis (1) a respeito do sacrifício de Isaac, filho de Abraão é uma das primeiras referências históricas sobre o infanticídio. No Império Romano e entre algumas tribos bárbaras o infanticídio era uma prática aceita. Como a oferta de comida era pequena, uma das formas de se combater a fome era restringir o número de crianças. Ainda se a criança fosse malformada, ou mesmo se o pai tivesse algum outro motivo, a criança seria abandonada para morrer por falta de cuidados básicos. Se uma criança não era aceita era como se ela não tivesse nascido. Assim o infanticídio não era encarado como um assassinato.(2)

No século IV o Cristianismo torna-se a religião oficial do Império, e o infanticídio passa a ser encarado como um pecado. Mais e mais crianças são batizadas e os recém-nascidos passam a ter uma identidade na comunidade.

O infanticídio seletivo de recém-nascidos do sexo feminino, oriundo do sexismo patriarcal, era bastante comum no mundo árabe pré-maometano (570-632 a.D). Com o advento do Alcorão, o infanticídio seletivo feminino foi considerado prática criminosa.(3) Contudo, ainda hoje, especialmente na China continental, esta modalidade de infanticídio é muito praticada.

Estes antecedentes históricos revelam algumas aspectos importantes do infanticídio, e transportam ao tempo atual algumas de suas causas latentes.


Conceito e Legislação

A legislação penal brasileira, através dos estatutos repressivos de 1830, 1890 e 1940, tem conceituado o crime de infanticídio de formas diversas. O Código Penal de 1890 definia o crime com a seguinte proposição:

" Matar recém-nascido, isto é infante, nos sete primeiros dias de seu nascimento, quer empregando meios diretos e ativos, quer recusando à vítima os cuidados necessários à manutenção da vida e a impedir a sua morte "

O parágrafo único cominava pena mais branda " se o crime for perpetrado pela mãe, para ocultar a desonra própria ".

O Código Penal de 1940 adotou critério diverso, ao estabelecer em seu artigo 123:

" Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante ou logo após o parto ".

A legislação vigente adotou como atenuante no crime de infanticídio o conceito biopsíquico do " estado puerperal ", como configurado na exposição de motivos do Código Penal, que justifica o infanticídio como delictum exceptum, praticado pela parturiente sob influência daquele tal estado puerperal. Assim, como nos lembra DAMÁSIO DE JESUS, trata-se de crime próprio, pois só pode ser cometido pela mãe contra o próprio filho (4).

Percebe-se portanto, que houve alteração radical do conceito do crime, quando em vez de, segundo a lei anterior, adotar o sistema psicológico, fundado no motivo de honra ( honoris causa ), que é o temor à vergonha da maternidade ilegítima, optou o legislador pelo sistema biopsíquico ou fisiopsicológico, apoiado no estado puerperal (5). Esta orientação tem merecido críticas e é motivo de controvérsia, muito por se entender não comprovada a suposta problemática influência do estado puerperal no psiquismo da parturiente.

Buscar as reais motivações de tão especial delito, sempre amparado nos mais atualizados conceitos científicos e na análise dos levantamentos epidemiológicos e relatos de casos disponíveis na literatura, e, ainda, estabelecer um novo paradigma para a perícia médico-legal nestes casos é o que se propõe esse artigo.


Etiopatogenia e Perícia Médico-Legal

Como apresentado no conceito, o infanticídio se dá em período de puerpério imediato. O puerpério é o período de tempo entre a dequitação placentária e o retorno do organismo materno às condições pré-gravídicas, tendo duração média de 6 semanas. Já o chamado estado puerperal seria uma alteração temporária em mulher previamente sã, com colapso do senso moral e diminuição da capacidade de entendimento seguida de liberação de instintos, culminando com a agressão ao próprio filho.

A discussão que se impõe é se tal estado puerperal realmente poderia acontecer ou como diz FRANÇA (6), trata-se de mera ficção jurídica. O mesmo autor afirma, textualmente: " nada mais fantasioso que o chamado estado puerperal, pois nem sequer tem um limite de duração definido (...) o que acontece no infanticídio é que numa gravidez ilegítima, mantida em sobressaltos e cuidadosa reserva, pensa a mulher dia e noite em como se livrar do fruto de suas relações clandestinas (...) e como maneira de solucionarem seu problema praticam o crime devidamente premeditado em todas as suas linhas, tendo o cuidado, entre outras coisas, de esconder o filho morto, dissimular o parto, tudo isso com frieza de cálculo, ausência de emoção, e, às vezes, requintes de crueldade ".

Já para MARANHÃO (7), o chamado estado puerperal constitui uma situação sui generis, pois não se trata de uma alienação, nem de uma semi-alienação, mas também não se pode dizer que seja uma situação normal. Seria " um estado transitório, incompleto, caracterizado por defeituosa atenção, deficiente senso-percepção e que confunde o objetivo com o subjetivo ". E ainda, segundo ALCÂNTARA (8) " é uma obnubilação mental seguinte ao desprendimento fetal que só se manifesta na parturiente que não recebe assistência, conforto ou solidariedade, e é um quadro mais jurídico do que médico, embora haja algumas explicações etiopatogênicas ".

A doutrina médico-legal tradicional, como se vê, não é consensual. E essa tem seguido ainda um caminho paralelo à Psiquiatria, especialidade médica em que dever-se-ia ancorar. O fato é que o infanticídio tem sido negligenciado como campo de estudo, desde o trabalho pioneiro de RESNICK (9), há cerca de 30 anos. Relatos de caso bem documentados de infanticídio, raros, descrevem um quadro de negação da gestação, sintomas dissociativos ou mesmo psicose. Todavia, não há muitos estudos de investigação sistemática usando critérios de diagnóstico contemporâneos.

MENDLOWICZ e cols.(10) em recente publicação avaliaram 53 casos de infanticídio no Rio de Janeiro, observando que 88,2% das mulheres eram solteiras, usualmente mantinham a gravidez em segredo (94,1%) e tiveram parto não assistido (100%), além de maior necessidade de atendimento psiquiátrico. SPINELLI (11) em uma investigação sistemática de 16 casos de infanticídio nos Estados Unidos da América observou que todas as mulheres apresentavam negação da gestação e parto não assistido e em segredo. Nesse mesmo estudo, entrevistas psiquiátricas revelaram que todas as mulheres relatavam que "se visualizaram" durante o parto. Doze (75%) delas experimentaram alucinações dissociativas com comentários críticos internos e vozes argumentativas. Catorze (87,5%) experimentaram breve amnésia.

É fato biológico bem estabelecido que a parturição desencadeia uma súbita queda em níveis hormonais e alterações em bioquímicas no sistema nervoso central.(12) A disfunção ocorreria no eixo Hipotálamo-Hipófise-Ovariano, e promoveria estímulos psíquicos com subsequente alteração emocional. Em situações especiais, como nas gestações conduzidas em segredo, não assistidas e com parto em condições extremas, uma resposta típica de transtorno dissociativo da personalidade e com desintegração temporária do ego poderiam ocorrer.

A Associação Americana de Psiquiatria, em seu manual DSM-IV (13), estabelece os critérios diagnósticos para uma entidade nosológica denominada Transtorno de Estresse Agudo (TEA). A característica essencial do TEA é o desenvolvimento de uma ansiedade característica, sintomas dissociativos e outros, que ocorrem dentro de até um mês após a exposição a um agente estressor externo. Enquanto vivencia o evento traumático ou logo após ( grifo nosso ), o indivíduo tem pelo menos três dos seguintes sintomas dissociativos: um sentimento subjetivo de anestesia; distanciamento ou ausência de resposta emocional; redução da consciência sobre aquilo que o cerca; desrealização; despersonalização ou amnésia dissociativa. A perturbação dura pelo menos dois dias e não persiste além de quatro semanas após o evento traumático. Os sintomas não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância ( droga de abuso, medicamento ), ou a uma condição médica geral; não são melhor explicados por um Transtorno Psicótico Breve; nem representam uma mera exacerbação de um transtorno mental preexistente.

Constata-se, dessa forma, que o sintoma característico desse transtorno é uma alteração súbita e geralmente temporária nas funções normalmente integradas de consciência, identidade e comportamento motor, de modo que uma ou duas dessas deixa de ocorrer em harmonia com as outras. Os relatos de MENDLOWICZ e SPINELLI supracitados demonstram de forma taxativa a presença de alguns destes sintomas nas autoras de infanticídio. A amnésia, as alucinações auditivas e o transtorno de despersonalização são quase que regra. No transtorno de despersonalização ocorre uma alteração na percepção de si mesmo, a um grau em que o senso da própria realidade é temporariamente perdido. Os pacientes com transtorno de despersonalização podem sentir-se mecânicos, autômatos, que estão em um sonho, ou distanciados do próprio corpo.(14)

Diante dessa evidente superposição de características epidemiológicas e clínicas, poder-se-ia admitir que o chamado " estado puerperal " oriundo de nosso Código Penal, trata-se de uma modalidade do " Transtorno de Estresse Agudo " estabelecido na DSM-IV da Academia Americana de Psiquiatria. Em decorrência desse fato a perícia médico-legal disporia de elementos para a comprovação material do estado puerperal. Contudo, a curta duração dos sintomas, o caráter transitório dessa perturbação, e a ausência de distúrbio mental prévio, fazem desse diagnóstico pericial um verdadeiro desafio, pois muitas vezes, ao realizar o exame, os sintomas já desvaneceram. Ao examinar uma puérpera o legista nem sempre disporá de elementos para concluir pela realidade de um estado puerperal.


Conclusão

A mudança no conceito do crime de infanticídio contextualizada no Código Penal de 1940 transferiu à perícia médico-legal a responsabilidade pela comprovação material desse delito. A definição e a existência do chamado estado puerperal têm sido motivo de controvérsia, tanto do ponto de vista jurídico quanto médico-legal. Os recentes avanços científicos no campo da psicobiologia, com maior esclarecimento da dinâmica dos eventos fisiológicos no período pós-parto contribuem decisivamente para o estabelecimento de novos critérios diagnósticos. A categorização dos distúrbios mentais transitórios em resposta a eventos traumáticos como o Transtorno de Estresse Agudo (DSM-IV) e os estudos sistemáticos de casos de infanticídio possibilitam uma nova visão sobre tão difícil situação. Apesar desses avanços, a avaliação pericial ainda reveste-se de grande dificuldade, graças à transitoriedade dos sintomas nesses transtornos.

Sob o ponto de vista jurídico, a condição de estado puerperal ou Transtorno de Estresse Agudo, como ora propomos, levanta uma outra questão. Frente a esses elementos todos, qual a capacidade de imputação da examinanda ? Não será plena, por certo. Uma personalidade transitoriamente desarmônica, reagindo a emoções primárias e tendo uma acentuada deficiência de crítica, não poderá ser completamente responsável por seu ou seus delitos. Se a emoção sobrepuja a crítica, se o impulso primário se efetiva sem a contenção de fatores éticos; se a impulsividade é evidente, como se falar em plena capacidade de imputação ? Concluir-se-ia ser ela inexistente ? Se o agente não praticou o delito em estado crepuscular, se ele tem do mesmo memória ou noção de certo modo aceitáveis; se a privação de sentidos não foi integral, restará uma parcela de responsabilidade por parte do agente criminoso. Trata-se, então, de uma delinqüente semi-imputável, e que deve ser penalizada pela ordem jurídica.

A autoridade judiciária ao interpelar o perito, com respeito a suposta autora de infanticídio, geralmente elabora o seguinte quesito: Ela encontrava-se em estado puerperal quando cometeu o delito ? Como podemos concluir da discussão apresentada, ao perito caberá, a nosso ver duas possibilidades de resposta, a saber: sim, quando ficar patente o diagnóstico psicodinâmico de Transtorno de Estresse Agudo, ou sem elementos quando da impossibilidade de se estabelecer esse diagnóstico.


Referências

Livro do Gênesis 22, 1-19. Bíblia Sagrada - Editora Ave Maria 29 ª edição.

Gies, F : Marriage and the Family in the middle ages- Harper e Row 1987; pp 34-35.

Hanawalt, B: Growing up in medieval London - Oxford University Press 1993; p45.

Jesus, DE: Direito Penal - Editora Saraiva 2001; pp 105-110.

Mirabete, JF: Manual de Direito Penal - 19ª Edição Atlas 2002; pp 88-90.

França, GV: Medicina Legal- 5ª Edição Guanabara Koogan 1998; p 240.

Maranhão, OR: Curso Básico de Medicina Legal - 8ª Edição Malheiros Editores; p202.

Alcântara, HR: Perícia Médica Judicial - Editora Guanabara; pp 115-116.

Resnick, PJ: Child murder by parents: a psychiatric review of filicide. Am J Psychiatry 1969; 126:325-334.

Mendlowicz, MV : Neonaticide in the city of Rio de Janeiro: forensic and psycholegal perspectives. J Forensic Sci 1999 Jul; 44(4): 741-745.

Spinelli MG: A systematic investigation of 16 cases of neonaticide. Am J Psychatry 2001; 158:811-813.

Wisner KL, Stowe ZN: Psyschobiology of postpartum mood disorders. Semin Reprod Endocrinology 1997 Feb; 15:77-89.

DSM-IV Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 4ª Edição Artmed 1995; pp 409-411.

Kaplan, HI & Sadock, BJ: Compêndio de Psiquiatria - Editora Artes Médicas 1993; pp 454-462.


Autor


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Roberson. O crime de infanticídio e a perícia médico-legal. Uma análise crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 maio 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4066. Acesso em: 28 mar. 2024.