Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/4326
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990)

questões polêmicas acerca de sua aplicabilidade

Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990): questões polêmicas acerca de sua aplicabilidade

Publicado em . Elaborado em .

Sumário: 1. Introdução; 2. O art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos: sua parcial inconstitucionalidade; 3. Problemática acerca da revogação do art. 14 da Lei nº 6.368/76 pelo art. 8º da Lei nº 8.072/90; 4. Art. 263 da Lei nº 8.069/90 x arts. 6º e 9º da Lei nº 8.072/90: discussão superada; 5. Conclusões; 6. Bibliografia.


1. Introdução

Diariamente somos testemunhas de vários delitos. Todavia, há alguns crimes que extrapolam tão bruscamente o sentido médio da moral e do pudor públicos que nos criam uma ânsia por castigos mais severos ao infrator.

Tendo em vista esse sentimento de inconformismo populacional e tentando diminuir o cometimento de determinados crimes, tidos como mais ofensivos e repudiáveis frente aos demais dentro de uma sociedade institucionalmente organizada, é que o legislador, no dia 25 de julho de 1990, promulgou a Lei nº 8.072 que veio a enumerar, entretanto sem definir, os crimes mais graves dentro do ordenamento jurídico brasileiro, cominando-lhes novas penas e majorando outras, com o fim de inibir o delinqüente a praticá-los.

Não obstante a necessidade presente de maior represália aos crimes hediondos (que são aqueles única e exclusivamente contidos na Lei nº 8.072/90) [1], o diploma legal criado foi alvo, e ainda o é, de várias críticas acerca de sua real aplicabilidade. Isto porque o legislador não teve o cuidado de elaborar uma lei observando sistematicamente o ordenamento jurídico federal, principalmente nossa Carta Magna, fonte e suporte do Direito Brasileiro, e o próprio Código Penal, em seus princípios e previsões.

Por tais motivos, fala-se até da inconstitucionalidade, e conseqüente inaplicabilidade, de alguns de seus artigos por confrontarem princípios dogmaticamente árduos de serem construídos e altamente respeitados, tamanha sua utilidade na preservação dos direitos e garantias individuais.

No presente trabalho analisarem os pontos controvertidos da Lei nº 8.072/90, os quais alteram de maneira a tornar mais gravoso o sistema penal até então vigente, principalmente seus arts. 8º e 9º, os mais observados pela doutrina e jurisprudência e, em decorrência, mais atingidos pelas críticas.


2. O art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos: sua parcial inconstitucionalidade

Prevê o art. 9º da Lei nº 8.072/90: "as penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos artigos 157, § 3º, 158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput, e sua combinação com o artigo 223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o artigo 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas da metade, respeitado o limite superior de trinta anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no artigo 224 também do Código Penal" (grifo nosso). O artigo 224 do Código Penal, por seu turno, trata das hipóteses de presunção de violência em relação aos crimes sexuais, quais sejam, ser a vítima menor de quatorze anos; ser alienada ou débil mental, desde que o agente conheça essa circunstância; ou não puder, por qualquer outra razão, opor resistência.

Dividiremos os tipos penais discriminados no art. 9º em dois grupos - crimes contra o patrimônio (roubo qualificado pelo resultado, extorsão qualificada pelo resultado e extorsão mediante seqüestro, e seus gravames) e crimes contra os costumes (estupro e suas formas qualificadas e atentado violento ao pudor e suas formas qualificadas)- tentando, deste modo, possibilitar melhor entendimento acerca das críticas que se formam sobre esta previsão normativa contida na Lei dos Crimes Hediondos.

No primeiro grupo observamos que, ao se aplicar a majorante descrita no art. 9º da Lei nº 8.072/90 a alguns tipos nela previstos, tais como o latrocínio (art. 157, §3º, in fine), extorsão com resultado morte (art. 158, §2º) e extorsão mediante seqüestro com resultado morte (art. 159, § 3º), haverá uma equiparação entre os limites mínimo e máximo da pena em trinta anos de reclusão, impossibilitando a perfeita individualização da sanção penal pelo juiz [2], o que afronta à Constituição Federal.

Com efeito, o art. 5º, XLVI, da Carta Magna inclui entre os direitos e garantias fundamentais em matéria penal o princípio da individualização da pena [3].

Leciona Cezar Roberto Bitencourt que a individualização da pena ocorre em três momentos distintos: individualização legislativa – processo através do qual são selecionados os fatos puníveis e cominadas as sanções respectivas; individualização judicial – elaborada pelo juiz na sentença, concretizando a individualização legislativa que cominou as sanções penais e, finalmente, individualização executória, que ocorre no momento mesmo do cumprimento da pena [4]. A individualização judicial, necessária à efetivação do princípio constitucional previsto no art. 5º, XLVI, da Carta Suprema, depende da fixação dos limites mínimo e máximo da pena pelo Poder Legislativo ao criar as normas penais em seu processo de individualização legislativa. Limites são necessários, mas não a imposição de quantum determinado. Afirma Aníbal Bruno, com toda sua maestria, que "no Direito Penal moderno, a medida punitiva não é determinada na Lei de maneira absoluta. O que se oferece ao juiz não é uma sanção rígida e invariável a aplicar, como réplica constante, à realização de cada figura típica. Nem determinação absoluta nem absoluta indeterminação", continua o grande mestre afirmando que "a pena absolutamente determinada impediria o seu ajustamento, pelo juiz, ao fato e ao agente, na realidade do caso concreto" [5]. A imposição pelo legislador de uma pena fixa a um tipo de delito poderia nos levar ao absurdo de punir igualmente um criminoso habituado à prática de estupros e um delinqüente eventual, que praticou o delito levado pelo comportamento da vítima. Representaria um retrocesso à Idade Média, onde se adotou a pena fixa como "mal justo" na exata medida do "mal injusto" praticado pelo delinqüente [6]. Como poderia o juiz, utilizando-se do art. 59 do Código Penal, através das circunstâncias judiciais, mensurar a pena mais justa ao sujeito ativo, de acordo com cada caso concreto, observando sua culpabilidade, os motivos determinantes, conduta social, conseqüências do delito e até mesmo o comportamento da vítima se a pena for fixada em medida certa? Impossível seria efetivar-se o princípio constitucional da individualização da pena. Delinqüentes por estado e ocasionais seriam sancionados indiferentemente.

Prática legislativa que impede o exercício judicial de adequação do quantum penal ao agente de acordo com cada caso concreto fere o princípio da individualização da pena previsto na Constituição, além de afrontar o moderno Direito Penal da Culpabilidade, o qual preleciona, como uma das funções da pena, a retribuição do mal causado pelo infrator através de uma sanção ajustada à sua culpabilidade, e não previamente determinada pelo legislador.

Como afirma Alberto Silva Franco, "se a Constituição Federal, nesse capítulo (Dos direitos e deveres individuais e coletivos, principalmente o art. 5º), consagrou o princípio da individualização da pena, não terá o legislador ordinário possibilidade de tangenciá-lo, estruturando uma lei que não deixe ao juiz nenhum espaço para o processo individualizador da pena. O princípio constitucional é, portanto, flagrantemente lesionado quando o mínimo e máximo punitivos são eqüipolentes" [6]. Poderia-se ainda afirmar, com total propriedade, que a equiparação entre mínimo e máximo das penas viola, outrossim, o princípio da isonomia, na medida que dá tratamento punitivo igual a agentes que, eventualmente, podem estar em situações jurídicas e sociais diversas.

De qualquer forma, resta indubitável que para estes delitos onde os limites mínimo e máximo da pena se equiparam, há uma inconstitucionalidade patente, sendo, por isso, inaplicável o art. 9º da Lei nº 8.072/90.

Com relação ao segundo grupo (crimes contra os costumes ou crimes sexuais), a questão que se propõe é diversa, uma vez que não há caso em que exista equiparação entre os limites da pena. Aqui o que se averigua é a inaplicabilidade do art. 9º da Lei nº 8.072/90 por ofensa ao princípio ne bis in idem in idem, ou dupla valoração fática.

Propõe o art. 9º do diploma legal em debate, como visto, que haja um acréscimo de cinqüenta por cento da pena caso o delito seja cometido estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no artigo 224 do Código Penal. Ocorre que, para configuração dos delitos de estupro ou atentado violento ao pudor, deve ocorrer o uso de violência ou grave ameaça pelo agente contra a vítima. Tal necessidade advém do fato de ser essa circunstância elementar dos tipos em questão. Porém, como bem afirma Noronha, há casos em que a violência real não se torna necessária, pela existência de circunstâncias que a dispensam, dada a impossibilidade de o ofendido opor-se à ação do agente [7]. Estando o sujeito passivo em qualquer das condições previstas no art. 224 do Código Penal, a lei dispensa a existência da violência real, presumindo-se sua utilização, por não ter a vítima maturidade suficiente para entender o caráter do ato que com ela está a ser praticado (casos das alíneas "a" – vítima menor de catorze anos, e "b" – vítima alienada ou débil mental) ou apresentando tal maturidade, não poder, no momento da ação delituosa, comportar-se de acordo com tal entendimento (caso da alínea "c" – a vítima não pode, por qualquer outra razão, por resistência ao ato).

Nestes casos, onde não existiu realmente o uso da força física ou grave ameaça para a prática do crime sexual, ocorre o que se chama de violência ficta, ou seja, uma presunção de violência, para se possibilitar a tipificação da conduta do agente em um dos delitos que dela necessite para ser aplicado. Porém, sendo a violência elementar dos crimes sexuais em tela, a utilização de uma circunstância prevista no art. 224 do Código Penal com o fim de dar nascedouro à violência ficta que tipificaria a conduta do ofensor, bloquearia a incidência da majorante prevista no art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos. Isto porque o referido artigo requer que esteja a vítima em qualquer das hipóteses do art. 224 do Código Penal para que se possa aplicar o gravame. Mas, se uma dessas circunstâncias for valorada para possibilitar o enquadramento da conduta no tipo de estupro, por exemplo, não poderá ela ser novamente valorada para majorar a pena, melhor explicando, ocorrendo a violência ficta para tipificação da conduta delituosa não poderá a circunstância da qual se fez presumir a violência ser novamente valorada com o escopo de aumentar a pena do agente, pois haveria flagrante bis in idem, isto é, o agressor seria duplamente prejudicado em face da mesma circunstância, que serviria para tipificar sua conduta ao crime sexual e majorar sua pena na metade. Como afirma Bustos Ramirez, um único e mesmo pressuposto não pode dar lugar a mais de uma pena ou modificação dela [8]. Adotaria a Lei dos Crimes Hediondos como causa de aumento de pena fato considerado como elemento constitutivo de tipos básicos ou qualificados [9].

O princípio nullum crimen, nulla poena sine lege stricta constitui um limitador formal tanto da atividade legislativa quanto da atividade judicial, visto que, enquanto a proibição está adstrita à existência de um diploma legal formal, a repressão, ademais, está condicionada à aplicação restritiva do direito [10]. Corrobora-se a impossibilidade de dupla valoração de um mesmo fato em prejuízo do réu. Este princípio levou Alberto Silva Franco a afirmar que "embora a redação dada ao princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX) não aclare todos os seus efeitos, é fora de dúvida que o princípio ne bis in idem é um de seus corolários [11], já que, como a lei deve ser estrita, não se pode utilizar uma mesma circunstância para impor pena mais rígida. Completa o referido autor dizendo que "na medida em que o legislador desprezou o princípio do ne bis in idem, permitindo nessa situação o duplo exercício do jus puniendi, afrontou ao princípio da legalidade e, portanto, a Constituição Federal" [12].

Tal inconstitucionalidade levou a grande maioria dos Tribunais, inclusive o Superior Tribunal de Justiça, em seus entendimentos dominantes, a apenas aplicar a majorante prevista no art. 9º da Lei nº 8.072/90 quando do estupro ou atentado violento ao pudor resultar lesão corporal grave ou morte da vítima, ou seja, apenas ocorrendo as hipóteses previstas nos artigos 213 e 214 do Código Penal combinados com o artigo 223 caput ou parágrafo único, sob afirmação de que "resultado mais grave, lógico, reclama sanção mais severa" [13]. A interpretação e a solução mais corretas, porém, não são estas.

Data venia, permito-me afirmar que se equivocaram as decisões dominantes dos nossos Tribunais ao restringir às hipóteses qualificadas dos delitos de estupro e atentado violento ao pudor a aplicação da majorante prevista na Lei dos Crimes Hediondos, limitando ainda mais sua aplicabilidade. O que se afirmou acima foi que seria inaplicável a majorante caso houvesse necessidade de se valorar uma das circunstâncias previstas no art. 224 do Código Penal no sentido de se presumir a violência para tipificar a conduta do delinqüente. Não obstante, não podemos descurar que pode perfeitamente ser utilizada a violência real ou grave ameaça contra uma vítima menor de quatorze anos, por exemplo. Neste caso, a circunstância da menoridade da vítima não fora utilizada para tipificação da conduta, presumindo-se a violência, uma vez que esta de fato ocorreu. Em tal situação é perfeitamente aplicável o gravame previsto na Lei nº 8.072/90, isto porque a vítima encontra-se em uma das condições previstas no artigo 224 do Código Penal, qual seja, ser menor de catorze anos, e esta circunstância não fora duplamente valorada. Respeitado o princípio da legalidade (ne bis in idem) e, conseqüentemente, a Carta Fundante de nosso ordenamento jurídico, não há razões para se impossibilitar a aplicação da majoração penal, independentemente de ter havido lesões graves ou morte da vítima.

A interpretação dada pelo STF é no sentido de se reconhecer a inexistência de bis in idem, sob o argumento de que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor independem da idade da vítima, dependendo apenas da violência real ou ficta, e que o agravamento da pena aplica-se ao caso, entre outros, em que a vítima é menor de catorze anos [14].

Pode-se concluir do exposto que o art. 9º da Lei nº 8.072/90 possui inconstitucionalidade parcial, já que inaplicável aos casos de latrocínio, extorsão com resultado morte e extorsão mediante seqüestro com resultado morte, por violar o princípio constitucional da individualização da pena, sendo também inaplicável aos delitos sexuais quando, para tipificá-los, tenha ocorrido a presunção de violência (violência ficta), uma vez que haverá afronta ao princípio da legalidade, mais precisamente ao seu corolário, o princípio do ne bis in idem.


3. Problemática acerca da revogação do art. 14 da Lei nº 6.368/76 pelo art. 8º da Lei nº 8.072/90

Ponto que merece apreciação é o que respeita sobre a permanência ou não em nosso ordenamento jurídico da regra prevista no art. 14 da Lei nº 6.368/76 (Lei de Tóxicos) em face no disposto no art. 8º da Lei dos Crimes Hediondos.

Prevê o art. 14 da Lei de Tóxicos que a associação de duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos artigos 12 e 13 do mesmo diploma legal, será apenada com reclusão de três a dez anos, além de multa. Trata-se, aparentemente, de um crime de quadrilha qualificado pelo fim dos agentes ao tráfico ilícito de entorpecentes. Mera aparência. Como se sabe, em nosso ordenamento jurídico o crime de quadrilha ou bando é previsto no art. 288 do Código Penal e requer para sua tipificação a presença de, ao menos, quatro integrantes no grupo delinqüente e também que este se forme para, de forma estável, praticar delitos indeterminados, configurando crime autônomo em relação aos demais praticados pelo bando [15]. Analisando-se o que leciona o art. 14 da Lei de Tóxicos, percebemos que nenhum desses pressupostos encontra-se presente. Numericamente o art. 14 requer o mínimo de apenas dois integrantes no grupo. Não é preciso, de acordo com a disposição legal, que a associação pratique o crime de tráfico reiteradamente, ou seja, não é necessária a estabilidade e podem ser os delitos previamente acordados entre os agentes. Devido a estas divergências, alguns autores afirmaram que se trata de crime autônomo de associação voltada para cometimento de tráfico de drogas [16] e não uma espécie de quadrilha propriamente dita.

Apesar de tal entendimento, veio a Lei nº 8.072/90, em seu art. 8º, determinar que será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no artigo 288 do Código Penal (quadrilha ou bando) quando se tratar de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, dentre outros delitos.

Frente a esta colocação, o que fazer? Qual diploma legal deve ser aplicado a um caso concreto?

Surgiram para esta discussão três teorias. A primeira afirma que a norma do art. 14 da Lei nº 6.368/76 continua em plena vigência, não se aplicando a regra prevista na Lei dos Crimes Hediondos. Uma segunda corrente afirma, ao contrário, que a Lei de Tóxicos em seu artigo 14 foi revogada, uma vez que a clareza do disposto no artigo 8º da Lei nº 8.072/90 não deixa sombra de dúvidas. Uma terceira opinião sustenta que a Lei dos Crimes Hediondos apenas derrogou o art. 14 da Lei de Tóxicos no que concerne ao preceito sancionatário, isto é, quanto à tipificação, aplica-se o art. 14 da Lei nº 6.368/76; quanto à pena, aplica-se o art. 8º da Lei nº 8.072/90. Dentre as três correntes, a que melhor atende aos requisitos da hermenêutica e da necessidade de integração harmônica do ordenamento jurídico é a terceira.

À primeira vista, impressão que se tem, realmente, é que o texto do art. 8º da Lei nº 8.072/90 é tão claro e direto que revoga o art. 14 da Lei nº 6.368/76, passando a sancionar com pena de três a seis anos de reclusão apenas a quadrilha ou bando, nos termos e requisitos do art. 288 do Código Penal, que tiver como fim o tráfico ilícito de entorpecentes.

Entretanto, o art. 10 do mesmo diploma legal altera a redação do art. 35 da Lei de Tóxicos, acrescendo-lhe um parágrafo único. Este parágrafo, por seu turno, faz menção expressa ao art. 14 da Lei nº 6.368/76. Isto nos leva a crer, de forma inequívoca, que o legislador não quis revogar realmente o art. 14 da Lei de Tóxicos por meio do art. 8º da Lei dos Crimes Hediondos [17].

Versa-se aqui sobre um conflito de normas, que deve ser determinado se aparente, e portanto solúvel, permitindo a conciliação dos dispositivos antinômicos através de interpretação corretiva, ou se real e insolúvel, não possibilitando ajuste normativo [18]. Neste caso a interpretação corretiva é plenamente aplicável. De acordo com Damásio de Jesus, a Lei nº 8.072/90 manteve o art. 14 da Lei nº 6.368/76, que descreve o delito de associação para fins de tráfico de drogas. Foi, este artigo, derrogado e não revogado [19].

Desta forma, pela aplicação do princípio da especialidade [20], continua o crime de associação para tráfico de drogas como delito autônomo de associação, sendo necessário para sua tipificação o preenchimento dos requisitos previstos no art. 14 da Lei nº 6.368/76. Porém, por aplicação do princípio da lei penal mais benéfica e sua retroatividade, previstos no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, a pena para esta associação especial, será a prevista no artigo 8º da Lei nº 8.072/90, que prevê sanção com limite superior de seis anos, inferior ao limite de dez anos previsto pela Lei de Tóxicos, aplicando-se, inclusive, a fatos pretéritos à sua promulgação quando em benéfico do réu.

Ressalte-se que, apesar da promulgação da Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002, que veio substituir a Lei nº 6.368/76, houve o veto de seu art. 15 [21], o qual tratava da associação para fins de tráfico de drogas, bem como do art. 59, o qual revogava expressamente a Lei de Tóxicos [22], o que fez permanecer em vigor o art. 14 do antigo diploma legal, bem como todos os outros dispositivos que com a nova lei não conflitem ou tenham sido por ela validamente revogados.


4. Art. 263 da Lei nº 8.069/90 x arts. 6º e 9º da Lei nº 8.072/90: discussão superada

Discussão que se apresentava antes da edição da Lei nº 9.281/96 era se, havendo crime de estupro ou atentado violento ao pudor contra menor de quatorze anos, aplicava-se o Estatuto da Criança e do Adolescente ou a Lei dos Crimes Hediondos. Divergências existiam entre doutrinadores e principalmente na jurisprudência acerca desta questão.

Em 13 de julho de 1990 foi editada a Lei nº 8.069, Estatuto da Criança e do Adolescente, que previa em seu art. 263 o acréscimo de um parágrafo único aos arts. 213 e 214 do Código Penal, qualificando os delitos de estupro e atentado violento ao pudor, respectivamente, quando tais crimes fossem praticados contra menores de quatorze anos.

O art. 213 do Código Penal ficaria acrescido de um parágrafo único, que preconizava pena de reclusão de quatro a dez anos se a ofendida fosse menor de quatorze anos, o art. 214 de seu parágrafo único cominando pena de três a nove anos de reclusão nas mesmas circunstâncias.

Ocorre, porém, que com a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos, mais precisamente com as alterações trazidas em seu art. 6º, ao caput dos delitos de estupro (art. 213) e atentado violento ao pudor (art. 214) foram cominadas penas de seis a dez anos de reclusão aos seus tipos simples, independentemente de qualquer circunstância pessoal do ofendido. Sendo a vítima menor de quatorze anos, aplicar-se-ia a majorante prevista no art. 9º alínea a do mesmo diploma legal, elevando-se a pena na metade. Assim, a pena para estupro ou atentado violento ao pudor, desde que praticados com violência real ou grave ameaça, contra menor de quatorze anos seria de nove a quinze anos de reclusão.

Neste caso, qual diploma legal a ser aplicado? O Estatuto da Criança e do Adolescente, por ser lei penal mais benéfica ao acusado e atender ao princípio da especialidade, ou a Lei dos Crimes Hediondos?

Estabelece o art. 266 do Estatuto da Criança e do Adolescente um período de vacatio legis de noventa dias, só podendo esta lei ser aplicada aos fatos ocorridos a partir de outubro de 1990. Contudo, em 25 de julho do mesmo ano, foi promulgada a Lei nº 8.072, prevendo em seu art. 12 o início de sua vigência na data de sua publicação, a qual fora realizada no dia seguinte. Entendimento majoritário e acertado da doutrina e jurisprudência é no sentido de que se aplica a tais casos a Lei dos Crimes Hediondos.

Com efeito, há duas razões principais e uma eventual para que se aplique a Lei nº 8.072/90 em detrimento da Lei nº 8.069/90: I) a primeira razão é a prevista no art. 2º, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil, a qual determina que a lei posterior revoga a anterior quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. O que ocorre neste conflito normativo é justamente a questão de que a Lei dos Crimes Hediondos, em seus arts. 6º e 9º combinados, regula a mesma matéria prevista no art. 263 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por ser lei posterior, deve a Lei nº 8.072/90 prevalecer, uma vez que sua aplicação imediata derrogou a Lei nº 8.069/90 no que concerne aos delitos de estupro e atentado violento ao pudor praticados contra menores de quatorze anos. Leciona Dias Marques que "de duas leis, uma das quais foi promulgada primeiro e entra em vigor depois, e outra que foi promulgada depois e entra em vigor primeiro, será esta que, em caso de contradição, deve prevalecer sobre aquela" [23]. É exatamente o caso que se propõe; II) a segunda razão lógica é que se fosse aplicado o Estatuto da Criança e do Adolescente, cominando-se pena de quatro a dez anos de reclusão no caso de estupro e três a nove no de atentado violento ao pudor praticados contra menores de catorze anos, espécie de qualificadora, haveria uma incongruência total entre os caputs destes artigos e seus parágrafos únicos, os quais teriam penas menores do que aqueles, apesar de preverem uma circunstância qualificadora, já que a pena destes crimes, cometidos em suas formas simples, de acordo com a nova redação que lhes fora dada pela Lei nº 8.072/90, passaria a ser de reclusão de seis a dez anos. Então, é de se admitir que esses parágrafos únicos foram tacitamente revogados pela Lei nº 8.072/90. Interpretação contrária conduziria ao absurdo de ter o caput uma pena mais gravosa do que o parágrafo único, tipo qualificado. Demais disso, o tipo básico seria considerado crime hediondo e o tipo derivado não poderia ser reputado como tal [24]. Chega-se à inadmissível conclusão de que o Estatuto da Criança e do Adolescente, cujo principal objetivo é a proteção da criança, reduz as penas quando as vítimas forem exatamente crianças e adolescentes [25]; III) por fim, se fosse aplicado o art. 263 da Lei nº 8.069/90 restaria impossibilitada a incidência do art. 9º da Lei nº 8.072/90, que prevê majorante para o estupro e o atentado violento ao pudor praticados contra menores de catorze anos (art. 224, "a"), uma vez que haveria flagrante bis in idem.

Apesar de o art. 263 da Lei nº 8.069/90 ser mais benéfico ao agente, não pode ser utilizado pelo simples fato de que, tecnicamente, nem chegou a ingressar em nosso ordenamento jurídico, já que fora revogado antes de sua entrada em vigor. Pelo mesmo fato não se pode argüir a prevalência do princípio da especialidade.

Isto posto, percebe-se que a melhor interpretação é aquela que entende ter sido revogado o art. 263 do Estatuto da Criança e do Adolescente pela Lei dos Crimes Hediondos, lei posterior, além do que se presume a harmonia entre os dispositivos de um mesmo Código [26], o que restaria impossível se a forma simples do delito fosse apenada mais severamente do que sua forma qualificada.

Pondo fim a qualquer dúvida, como já fora dito, a Lei nº 9.281/96 revogou expressamente os parágrafos únicos dos arts. 213 e 214 do Código Penal, que haviam sido acrescidos pelo art. 263 do Estatuto da Criança e do Adolescente [27].


5. Conclusões

Conclui-se que, apesar de movido por sentimento de maior represália aos crimes de maior ofensividade à sociedade, o legislador ordinário cometeu algumas falhas técnicas quando da redação da Lei dos Crimes Hediondos, tornado-a parcialmente inconstitucional e, conseqüentemente, inaplicável a certos casos, o que levou Alberto Silva Franco a afirmar que a causa de aumento de pena do art. 9º da Lei nº 8.072/90 é um caso de exagero legislativo que torna o referido dispositivo um gravame desproporcionado em relação à conduta criminosa já seriamente punida [28].

A quantidade de imperfeições trazidas pela Lei nº 8.072/90 são tão significativas que conduziram João José Leal a dizer que "tantas são as afrontas a princípios constitucionais, tantas são as ofensas a princípios básicos do Direito Penal contemporâneo; enfim, tamanha é a carga punitiva contida em seu texto, que a melhor alternativa seria a de sua própria ab-rogação pelo Congresso Nacional" [29].

Em relação aos crimes de latrocínio, extorsão com resultado morte e extorsão mediante seqüestro com resultado morte, por ofensa ao princípio da individualização da pena, não se aplica a majorante do art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos. Em contra partida, em relação aos delitos de estupro e atentado violento ao pudor tipificados por uso de presunção prevista no artigo 224 do Código Penal, também não se aplica a majorante em questão por ofensa ao princípio da legalidade, importando, pois, bis in idem. Ressalte-se, todavia, que se houver utilização de violência real ou grave ameaça para a prática de um dos delitos sexuais em foco, será perfeitamente aplicável o aumento de pena.

No que respeita à associação para tráfico de drogas (art. 14 da Lei de Tóxicos), demonstrou-se que a questão se refere a um crime autônomo de associação que ainda está vigente, no que concerne ao seu preceito primário, descritivo da conduta típica. O seu preceito secundário ou sancionatário, entretanto, foi revogado pelo art. 8º da Lei nº 8.072/90, pois este trás pena mais benéfica ao agente.

O conflito aparente entre o art. 263 da Lei nº 8.069/90 (ECA) e a Lei dos Crimes Hediondos, não obstante superado pela edição da Lei nº 9.281/96 que revogou expressamente os parágrafos únicos dos arts. 213 e 214 do Código Penal, acrescidos pelo art. 263 do Estatuto da Criança e do Adolescente, já havia tido entendimento pacificado pela maior parte da doutrina e jurisprudência no sentido de interpretar prevalente a Lei dos Crimes Hediondos, por ser posterior e reguladora da mesma matéria tratada no referido Estatuto.


Notas

1. MONTEIRO. Antônio Lopes. Crimes hediondos. 7. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2002, p. 16.

2. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 4. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2000, p.300.

3. Idem, p. 301.

4. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 5. ed. - São Paulo: RT, 1994, p. 577.

5. BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. Tomo III : pena e medida de segurança. 4. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 102.

6. BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit. P. 576.

7. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. P. 302.

8. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. vol. 3, 23. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 1998, p. 182.

9. BUSTOS RAMIREZ, Juan. Manual de derecho penal español: parte general - Barcelona: Ariel, 1984, p. 77.

10. TJSP – AC 112.456-3/6 – Voto vencido: Luiz Betanho in FRANCO, Alberto Silva et alli. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. vol 1, tomo II: parte especial. 6. ed. rev. e atual. – São Paulo: RT, 1997, p. 2.936.

11. SCHIMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade no estado democrático de direito – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 147.

12. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 303.

13. Idem. p. 304.

14. Idem. p. 307.

15. RT 751/530 in MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. vol. 2 - parte especial. 18. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2001, p. 447.

16. MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal. vol. 3: parte especial. 16. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2001, p. 200-203.

17. FRANCCO, Alberto Silva (coord.), STOCO, Rui (coord.) et alii. Leis Penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. vol. 2, 7. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2001, p. 3.208.

18. JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal anotado. 9. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 1999, p. 822.

19. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos... p. 281.

20. JESUS, Damásio Evangelista de. Op cit. p. 822.

21. JESUS, Damásio Evangelista de. Lei antitóxicos anotada – São Paulo: Saraiva, 1995, p. 61.

22. Dispõe o art. 15 da Lei 10.409/02: "Art. 15. Promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de 3 (três) ou mais pessoas que, atuando em conjunto, pratiquem, reiteradamente ou não, algum dos crimes previstos nos arts. 14 a 18 desta Lei – Pena: reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, e multa. – Publicado no D.O.U. em 14 de janeiro de 2002.

23. Dispõe o art. 59 da Lei 10.409/02: "Art. 59. Ficam revogados a Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, mantido o Sistema Nacional Antidrogas de que trata o art. 3º daquela Lei, e o art. 1º da Lei nº 9.804, de 30 de junho de 1999". Razões do veto deste dispositivo – "Conquanto repleto de positivas inovações, o projeto, por razões já expostas, não logra êxito quanto à juridicidade de vários de seus artigos. Isso compromete a substituição plena da Lei que regula a matéria. Portanto, a cláusula que revoga a Lei nº 6.368/76 não deve persistir, sob pena de abolição de diversos tipos penais, entre outros efeitos nocivos ao interesse público" – Mensagem de Veto nº 25, de 11 de janeiro de 2002. - Publicados no D.O.U. em 14 de janeiro de 2002.

24. Citado por JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado. 9.ed. ver. e atual. – São Paulo: Saraiva, 1999, p. 677.

25. PRADO. Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. vol. 3: parte especial – São Paulo: RT, 2001, p. 200.

26. TJSP – AC 117.796-3/0 – Rel. Ivan Marques. in FRANCO, Alberto Silva et alii. CódigoPenal e sua interpretação jurisprudencial... p. 2.928.

27. TJSP – AC 105.609-3/6 – Voto vencido: Cunha Camargo. Idem, p. 2.927.

28. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. vol. 2... p. 412.

29. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos... p. 300.

30. LEAL, João José. Crimes hediondos: aspectos político-jurídicos da Lei nº 8.072/90 – São Paulo: Atlas, 1996, p. 150.


Bibliografia

1. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 5. ed. – São Paulo: RT, 1994.

2. BUSTOS RAMIREZ, Juan. Manual de derecho penal español: parte general -Barcelona: Ariel, 1984.

3. BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. Tomo III: penas e medidas de segurança. 4. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 1984.

4. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 4. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2000.

5. FRANCO, Alberto Silva et alii. Código Penal e sua interpretação jurispru-dencial. vol.1, tomo II: parte especial, 6. ed. – São Paulo: RT, 1997.

6. ___________. et alii. Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. vol.2, 7.ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2001.

7. JESUS, Damásio Evangelista de. Código penal anotado. 9.ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 1999.

8. ___________. Lei antitóxicos anotada – São Paulo: Saraiva, 1995.

9. LEAL, João José. Crimes hediondos: aspectos político-jurídicos da Lei nº 8.072/90 – São Paulo: Atlas, 1996.

10. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. vol. 2 e 3: parte especial – São Paulo: Atlas, 2001.

11. MONTEIRO. Antônio Lopes. Crimes hediondos. 7. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2002

12. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. vol. 3, 23. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 1998.

13. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. vol. 3 – São Paulo: RT, 2001.

14. SCHIMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade no estado democrático de direito – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VAREJÃO, José Ricardo do Nascimento. Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990): questões polêmicas acerca de sua aplicabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 126, 9 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4326. Acesso em: 13 jun. 2024.