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A coisa julgada em sede de ação civil pública segundo recente jurisprudência dos tribunais

A coisa julgada em sede de ação civil pública segundo recente jurisprudência dos tribunais

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O art. 16 da Lei nº 7.347/85, de forma inconstitucional, impõe obstáculo à tutela de direitos transindividuais, por determinar que a sentença faça coisa julgada apenas nos limites do órgão prolator.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a análise do art. 16 da Lei nº 7.347/85, que prevê o instituto da coisa julgada atrelado à competência territorial do órgão prolator da sentença proferida em ação civil pública. O mencionado dispositivo legal resultou da alteração realizada pela Lei nº 9.494/97, que acabou por redundar em sua inconstitucionalidade, inefetividade e inaplicabilidade. Assim, busca-se levantar os argumentos atinentes a cada uma destas teses, bem como análise de recente jurisprudência dos tribunais.

Palavras-chave: Coisa julgada. Ação Civil Pública. Inconstitucionalidade. Inefetividade. Inaplicabilidade.

Sumário:1. Considerações iniciais. 2. Histórico do art. 16 da Lei nº 7.347/85. 3. Modos de produção da coisa julgada na ação civil pública. 4. Limites objetivos da coisa julgada na ação civil pública. 5. Limites subjetivos da coisa julgada na ação civil pública. 6. A coisa julgada na ação civil pública frente à coisa julgada no Código de Defesa do Consumidor 7. Problemática do art. 16 da Lei 7.347/85. 7.1 Inconstitucionalidade do art. 16 da Lei nº 7.347/85. 7.2 Inefetividade do art. 16 da Lei 7.347/85. 7.3 Outros motivos para a não aplicação do art. 16 da Lei nº 7.347/85. 9. Considerações finais. 10. Referências bibliográficas. 


1. Considerações iniciais

A ação civil pública revela-se um dos principais instrumentos de defesa de interesses transindividuais, especialmente os relacionados com o meio ambiente, consumidor, ordem urbanística, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, infrações à ordem urbanística, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, ao patrimônio público e social, e quaisquer outros interesses difusos e coletivos, conforme delineia o art. 1ª da Lei nº 7.347/85.

Ocorre que o art. 16 da Lei nº 7.374/85, ao estabelecer que a sentença proferida em ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, restringindo seus efeitos à competência territorial do órgão prolator, pode prejudicar a tutela plena dos interesses e direitos transindividuais.

Em sentido oposto, o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, aplicado como regra geral do microssistema da tutela coletiva, estabeleceu relação entre a extensão da coisa julgada e a natureza do direito ou interesse transindividual tutelado na ação, sem qualquer relação com a competência. Assim, pela previsão do CDC, a sentença fazcoisa julgada erga omnes no caso de interesses ou direitos difusos, salvo em caso de julgamento de improcedência por insuficiência de provas; ultra partes, em se tratando de interesses ou direitos coletivos stricto sensu, com exceção da improcedência por insuficiência probatória; Já na hipóteses de direito e interesses individuais homogêneos a coisa julgada tem eficácia erga omnes somente no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores

Apesar da clareza dos dispositivos e também do tempo de sua vigência, a questão continua gerando polêmicas e dificuldades práticas. O objetivo do presente artigo é analisar os seguintes pontos, à luz da doutrina e da jurisprudência dominantes: poderá ocorrer o ajuizamento de diversas ações civis públicas no Brasil com o mesmo objeto, tutelando interesses e direitos pertencentes a toda a coletividade, mas que, devido à limitação territorial dos efeitos da sentença, possibilitaria decisões conflitantes? Em que medida e como se interagem os limites subjetivos coisa julgada e a competência territorial?  Haveria inconstitucionalidade ou inefetividade do art.16 da Lei 7.347/85? Qual a interpretação mais adequada do referido dispositivo face aos aos comandos normativos do Código de Defesa do Consumidor?


2. Histórico do art. 16 da Lei nº 7.347/85

Originalmente, baseado no art. 18 da Lei de Ação Popular, o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública contava com a seguinte redação:

Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. (BRASIL, 1985)

A Lei nº 9.494/97 alterou a redação original do art. 16 da LACP, delimitando a coisa julgada na ação civil pública aos limites da competência territorial do órgão prolator, conforme se segue:

Art. 2º. O art. 16 da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.” (BRASIL, 1994)

A Lei nº 9.494/97 é fruto da Medida Provisória nº 1.570 de 26 de março de 1997, editada sem seus pressupostos autorizadores: urgência e relevância, o que torna a regra consubstanciada no art. 16 da LACP de “duvidosa inconstitucionalidade” (BUENO, 2010). Esta medida provisória foi reeditada cinco vezes (MP nº 1570-1, MP nº 1570-2, MP nº 1570-3, MP nº 1570-4 e MP nº 1570-5) até ser convertida na referida lei.

À época, o Partido Liberal a ajuizou a ADI nº 1576 contra a MP 1.570/97, com pedido liminar para suspender a eficácia da medida provisória. O Supremo Tribunal Federal, a partir do voto do Ministro Relator, Marco Aurélio de Mello, indeferiu a medida cautelar, verbis:

A alteração do art. 16 ocorreu à conta da necessidade de explicitar-se a eficácia erga omnes da sentença proferida na ação civil pública. Entendo que o art. 16 da Lei nº 7.347, de 24 de junho de 1985, harmônico com o sistema Judiciário à área de atuação do órgão que viesse a prolata-la. A alusão à eficácia erga omnes sempre esteve ligada à ultrapassagem dos limites subjetivos da ação, tendo em conta até mesmo o interesse em jogo – difuso ou coletivo – não alcançando, portanto, situações concretas, que sob o ângulo objetivo, quer subjetivo, notadas além das fronteiras fixadoras do juízo. Por isso, tenho a mudança de redação como pedagógica , a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do juízo e, portanto, o respeito á competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não implica esvaziamento da ação civil pública nem, tampouco, ingerência indevida do Poder Executivo no Judiciário. Indefiro a liminar. É o meu voto. (BRASIL, 1997, grifo do autor).           

O art. 2ª-A da Lei nº 9.494/97, com redação dada pela MP 2180-35, de 2001,  atualmente, conta com a seguinte redação:           

Art. 2o-A.  A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator.

Parágrafo único.  Nas ações coletivas propostas contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas autarquias e fundações, a petição inicial deverá obrigatoriamente estar instruída com a ata da assembléia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus associados e indicação dos respectivos endereços. (BRASIL, 1997).

Ainda que os dispositivos legais mencionados possuam o mesmo intuito de delimitar eficácia da coisa julgada, Didier Jr. e Zaneti Jr. (2010) preconizam que art. 16 da LACP e do art. 2º-A da Lei nº 9.494/97 possuem diferentes objetos. É que enquanto aquele se aplica às causas coletivas em sentido estrito – ou seja, que versem sobre direitos difusos e coletivos -, este se aplica às demandam que têm como objeto direitos individuais homogêneos, especificamente nas causas que envolvem associações.

Contudo, considerando que neste trabalho se adota a teoria de que a ação civil pública é aplicável tanto para direitos difusos e coletivos quanto para os individuais homogêneos, tal diferenciação se torna despicienda.

Está em trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 5.100/2005, de autoria do Deputado Federal Maurício Rands, que tem como escopo o retorno da redação original do dispositivo, sem quaisquer restrições territoriais (ZUFELATO, 2011). Contudo, tal projeto se encontra pendente de deliberação sobre Recurso na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados desde 2005.

Zufelato (2011) também menciona a PEC 358/05, que está em tramitação na Câmara dos Deputados e ainda pendente de apreciação no Plenário desde 2010, visando inserir o §2º no art. 105 da Constituição Federal, com a seguinte redação:

Nas ações civis públicas e nas propostas por entidades associativas na defesa dos direitos de seus associados, representados ou substituídos, quando a abrangência da lesão ultrapassar a jurisdição de diferentes Tribunais Regionais Federais ou de Tribunais de Justiça dos Estados ou do Distrito Federal ou Territórios, cabe ao Superior Tribunal de Justiça, ressalvada a competência da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral, definir a competência do foro e a extensão territorial da decisão. (BRASIL, 2005)           

Ou seja, de acordo com a proposta, toda e qualquer decisão em sede de ação civil pública, exceto no que diz respeito à Justiça do Trabalho e à Justiça Eleitoral, deverá ser submetida ao Superior Tribunal de Justiça a fim de que determine o foro competente e a extensão da coisa julgada.

Por um lado, a PEC apresenta aspecto positivo, considerando a tendência de se uniformizar entendimentos acerca extensão da coisa julgada. Todavia, a questão ainda não é pacífica na jurisprudência e, submeter toda e qualquer decisão ao STJ, ao nosso ver, seria um atentado à celeridade e à efetividade processuais.

Por fim, cabe ainda ressaltar a existência do Projeto de Lei nº 5.139/2009, que determina expressamente que a coisa julgada não sofrerá delimitações de cunho territorial, seja da competência territorial do órgão prolator ou o domicílio dos interessados (ZUFELATO, 2011).

Assim como os demais, o projeto de lei está pendente de deliberação na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados desde o ano de 2010, de modo que não há quaisquer perspectivas ou previsão de data para a conversão de tal projeto efetivamente em lei. 


3. Modos de produção da coisa julgada na ação civil pública

De acordo com a doutrina, a coisa julgada se classifica em: pro et contra, secundum eventum litis ou secundum eventum probationis.

Para a doutrina majoritária, a coisa julgada na ação civil pública é secundum eventum litis, pois depende do resultado da demanda para haver sua formação. Assim, em sendo a ACP improcedente em razão da insuficiência de provas, não haverá coisa julgada.

Nesse sentido, Mazzilli (2007, p. 526) defende que “a LACP mitigou a coisa julgada nas ações civis públicas e coletivas, de acordo com o resultado do processo (secundum eventus litis)”.

Almeida, G. (2003) também defende que a coisa julgada ocorrerá segundo o resultado da lide, formada apenas quando o pedido tenha sido julgado procedente ou improcedente por quaisquer fundamentos, salvo deficiência de provas.

Não é outro o entendimento de Bueno (2010), que enfatiza que na ação civil pública a coisa julgada é secundum evetum litis, na medida em que só existe se o exame das provas for exauriente, independente de se tratar de procedência ou improcedência do pedido.

Em contrapartida, Didier Jr. e Zaneti Jr. (2010) esclarecem que a coisa julgada secundum eventum litis é aquela produzida apenas quando a demanda é julgada procedente, ou seja, segundo o resultado do litígio. No caso de indeferimento, portanto, não há formação da coisa julgada. Aqui, o motivo para o deferimento ou indeferimento (e.g. a insuficiência de provas) é irrelevante para a formação da coisa julgada.

Os referidos doutrinadores prosseguem explicando a existência da chamada coisa julgada secundum evetum probationis, formada apenas no caso de esgotamento das vias probatórias. Nesse caso, a coisa julgada é formada quando a lide for julgada procedente, que sempre pressupõe que todas as provas foram exauridas, ou improcedente com suficiência de provas.

No caso do art. 16 da LACP, ,  a situação é diversa, pois  o legislador dispôs expressamente que não haverá coisa julgada apenas no caso de improcedência por deficiência de provas. Assim, condicionou-se ao material probatório, e não ao resultado da lide, o que ocasiona a formação da coisa julgada secundum evetum probationis.


4. Limites objetivos da coisa julgada na ação civil pública

Os limites objetivos da coisa julgada na ação civil pública (e em outras ações coletivas) não possui qualquer particularidade em relação aos limites objetivos da coisa julgada do processo civil comum. Nesses termos, leciona Didier Jr. e Zaneti Jr. (2010, p. 364, grifo dos autores):

Em relação aos limites objetivos, somente se submete à coisa julgada material as eficácias (conteúdo) da norma jurídica individualizada, contida no dispositivo da decisão, que julga o pedido (a questão principal). A solução das questões na fundamentação (incluindo a análise das provas) não fica indiscutível pela coisa julgada, pois se trata de decisão sobre questões incidentes. O regime jurídico da coisa julgada nada tem de especial. Segue-se, aqui, a regra geral.

Não é outro o entendimento de Kluge (2009, p.67), que preconiza que não há diferença entre os limites objetivos da coisa julgada no processo individual em relação à ação civil pública.

Santos (2006), por sua vez, defende que os limites objetivos da coisa julgada se confundem com sua amplitude subjetiva, uma vez que a eficácia da tutela coletiva deve se expandir por toda a esfera territorial na qual se estendem os sujeitos ou bens objetos da tutela.

Ora, tal posicionamento não deve prosperar, eis que a dimensão subjetiva refere-se a quem será submetido aos efeitos da coisa julgada; já o aspecto objetivo relaciona o objeto submetido aos seus efeitos. São aspectos distintos e sequer se confundem, igualmente, com a extensão territorial.

Nesses termos, temos que o entendimento de Didier Jr., Zaneti Jr. e Kluge, colacionado acima, é o mais acertado.


5. Limites subjetivos da coisa julgada na ação civil pública

No que tange aos limites subjetivos, a coisa julgada pode ser inter partes, ultra partes ou erga omnes.

Antes da alteração procedida pela Lei nº 9.494/97 no art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, os limites subjetivos da coisa julgada eram, de fato, erga omnes, sem quaisquer restrições territoriais. Mazzilli (2007, p. 526-527) bem sistematiza o antigo sistema:

a) Em caso de procedência, haverá coisa julgada. Assim, o comando contido na sentença será imutável erga omnes, ou seja, contra todos. Isso significa que nem as próprias partes da ação civil pública originária (co-legitimado ativo versus causador do dano) nem quaisquer outros co-legitimados ativos, nem quaisquer outras pessoas, tenham ou não tomado parte efetiva no processo de conhecimento, - ninguém, enfim, poderá discutir em juízo, novamente, a mesma questão;

b) Em caso de improcedência por qualquer motivo que não a falta de provas, também haverá coisa julgada. Assim, como na hipótese da letra anterior, o decisium será imutável erga omnes;

c) Em caso, porém, de improcedência por falta de provas, não haverá coisa julgada; outra ação poderá ser proposta, com base em nova prova. A nova ação civil pública ou coletiva poderá ser ajuizada pelo mesmo autor que tinha proposto a ação de conhecimento anterior, ou por qualquer co-legimimado.

Isso significa que quem se submetia aos efeitos da coisa julgada - ou seja, seus limites subjetivos - eram todos os indivíduos da coletividade, salvo as exceções mencionadas.

Contudo, após a alteração procedida pela Lei nº 9.494/97 no art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, os efeitos da coisa julgada foram restringidos à competência territorial do órgão prolator da sentença.           

Ainda sobre o tema de quais pessoas se submetem à coisa julgada produzida na ação civil pública, o art. 103, §3º, do Código de Defesa do Consumidor elenca que:

 §3º - Os efeitos da coisa julgada de que cuida o Art. 16, combinado com o Art. 13 da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste Código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos artigos 96 a 99. (BRASIL, 1990).

Isso significa que, se o pedido da ação civil pública for julgado improcedente, os interessados não serão prejudicados pela formação da coisa julgada, podendo propor ações indenizatórias individuais. Em sendo a demanda coletiva julgada procedente, poderá haver o transporte da coisa julgada formada para as ações individuais de indenização, nas quais os interessados poderão promover a liquidação e execução da sentença (ALMEIDA, W., 2009). Trata-se do transporte in utilibus da coisa julgada formada na ação civil pública para a esfera individual dos interessados.

A utilização na esfera individual de um julgado coletivo é típico caso de aplicação prática do princípio dos instrumentalidade do processo, do acesso à justiça, da efetividade da jurisdição e a reparação efetiva dos danos, conforme observa Zufelato (2011, p. 405-406).

Cumpre mencionar, ainda, o art. 104 do Código de Defesa do Consumidor, que prevê que somente se beneficiarão da coisa julgada coletiva os autores de ações individuais que requererem a suspensão de sua demanda no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da ciência do ajuizamento da ação coletiva. Caso contrário, o processo individual seguirá normalmente, podendo inclusive ter decisão contrária àquela proferida na ação civil pública.


6. A coisa julgada na ação civil pública frente à coisa julgada no Código de Defesa do Consumidor

A aplicação da coisa julgada instituída no art. 16 da Lei 7.374/85 apresenta um conflito aparente com os ditames estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), diploma legal que contém regras gerais do processo coletivo.

Conforme art. 103 do diploma consumerista, a coisa julgada depende da espécie de direitos transindividuais que a ação visa tutelar:

Art. 103 - Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada:

I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do artigo 81;

II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do artigo 81;

III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do artigo 81. (BRASIL, 1990).

Assim, em sendo interesse ou direito difuso, a coisa julgada será erga omnes- oponível perante todos, tendo participado do processo ou não. Caso a sentença seja julgada improcedente por falta de provas, não fará coisa julgada, podendo qualquer legitimado propor nova ação lastreada em novo material probatório.

Caso a ação trate de interesse ou direito coletivo stricto sensu, a sentença produzirá coisa julgada ultra partes, atingido determinados terceiros, salvo se o pedido for julgado improcedente por deficiência de provas, caso em que também poderá ser proposta nova ação com base em novas provas.

Já quando se trata de interesse ou direito individual homogêneo, o CDC prevê que a coisa julgada seja erga omnes apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar as vítimas e seus sucessores. Conforme ensinamento de Didier Jr. e Zaneti Jr. (2010), para a doutrina majoritária, não há exceção da coisa julgada no caso de insuficiência de provas como nos casos de interesses ou direitos difuso ou coletivo. Não obstante, os autores defendem que em caso de ausência de provas não haverá coisa julgada.

Portanto, diferentemente do art. 16 da Lei nº 7.347/85, a Lei nº 8.078/90 não impôs quaisquer restrições territoriais à coisa julgada coletiva.

Maciel (2002) destaca que a Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor devem ser interpretados reciprocamente, por força do art. 21 da Lei nº 7.347/85 e o art. 90 da Lei nº 8.078/90. Assim, defende que, perante o CDC, o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública perdeu a sua eficácia e atualidade, devendo ser aplicado os comandos consumeristas no que diz respeito à coisa julgada na ação civil pública, uma vez que se trata de regra geral dos processos coletivos.

Nessa linha de pensamento, Souza (2003, p. 202) ensina que:

Com efeito, ao regular inteira e detidamente a matéria ventilada pelo art. 16 da Lei 7.347/1985, o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor culminou por lhe impor evidente defasagem (para não falarmos em revogação implícita, nos termos do art. 2º, §1º, da LICC, com a consequente conclusão de que a Lei 9.494/1997, no particular, conferiu efeito repristinatório ao art. 16 da Lei 7.347/1985 sem expressamente o prever, o que é vedado pelo art. 2º, §2º, do Decreto-lei 4.657/1942).

Von Adamovich (2005) leciona que, sobrevindo o Código de Defesa do Consumidor com todo o regramento da coisa julgada e considerando a interação entre o CDC e LACP, o tema restou superado pelo maior detalhamento que o art. 103 do CDC oferece.

O autor adverte que, quando o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública foi modificado, o legislador se esqueceu da remissão do art. 21 da mesma lei ao CDC. Sendo assim, o tratamento da matéria pelo art. 103 do diploma consumerista persiste intacto, de modo que a coisa julgada disciplinada na Lei nº 7.347/85 não deve ser aplicado.

Bezerra Leite (2011) também adverte que a alteração da disciplina da coisa julgada na ação civil pública pretendida pelo legislador somente surtiria efeito caso tivesse sido modificada também a redação do art. 103 do CDC. Como isto não ocorreu, é o diploma consumerista que possui eficácia atualmente.

Por outro lado, em posicionamento minoritário, Bueno (2010) levanta o argumento de que, do ponto de vista infraconstitucional, a Lei nº 9.494/97 é posterior ao Código de Defesa do Consumidor, que foi promulgado em 1990, devendo, portanto, prevalecer.

O autor defende que os incisos I e II do art. 103 do CDC se limitaram a reproduzir o disposto na redação original art. 16 da LACP, de modo que o diploma consumerista também haveria sido revogado pelo art. 2º da Lei nº 9.494/97, que alterou a Lei de Ação Civil Pública. Assim sendo, a Lei nº 9.494/97, ao conferir nova redação à Lei de Ação Civil Pública, teria revogado o dispositivo revogador anterior, ou seja, houve revogação do art. 103, I e II do CDC, que anteriormente, por sua vez, teria revogado a redação original do art. 16 da LACP.

Data venia, tal entendimento não se revela como o mais adequado, uma vez que acredita-se que somente uma interpretação sistêmica dos dispositivos legais acerca da coisa julgada pode solucionar, com êxito, os desafios impostos à ação civil pública, tais como: tutelar interesses e direitos pertencentes à hipossuficientes, proporcionar solução de conflitos comuns a diversos indivíduos de uma só vez, o que presta à economia e celeridade processual, bem como evita decisões contraditórias sobre o mesmo fato, dentre outros. Além disso, conforme Zufelato (2011) aponta, que o CDC trata a matéria de maneira mais ampla do que a LACP, não podendo, portanto, esta revogar aquele.


7. Problemática do art. 16 da Lei 7.347/85

7.1 Inconstitucionalidade do art. 16 da Lei nº 7.347/85

Dizer que uma norma é constitucional ou inconstitucional traduz-se em uma análise preliminar, de cunho normativo e valorativo, que permite auferir a obrigatoriedade do texto constitucional e a ineficácia do ato normativo que não se amolde à Constituição (MENDES, 2009).

Assim, a noção de constitucionalidade e inconstitucionalidade não se refere apenas à conformidade com a Constituição Federal, mas também à ideia de obrigatoriedade do cumprimento da Constituição, traduzida por meio de sanções.

Dispõe Mendes (2009, p. 1053) que “é inegável, todavia, que a ausência de sanção retira o conteúdo obrigatório da Constituição, convertendo o conceito de inconstitucionalidade em simples manifestação de censura ou crítica”.

A verificação da constitucionalidade de uma norma é feita mediante o controle de constitucionalidade que, no Brasil, possui os seguintes pressupostos:

1) existência de uma Constituição formal e rígida;

2) o entendimento da Constituição como norma jurídica fundamental (que confere fundamento de validade para o restante do ordenamento);

3) existência de, pelo menos, um órgão dotado de competência para a realização da atividade de controle;

4) uma sanção para a conduta (positiva ou negativa) realizada contra (em desconformidade) a Constituição. (FERNANDES, 2010, p. 854).

Assim, a Constituição deve ser formal e rígida, uma vez que é necessário a sua supremacia perante as outras normas do ordenamento jurídico, bem como seu processo de alteração deve ser mais especial e dificultoso, sob pena da norma infraconstitucional alterar a Constituição.

Já a atribuição de competência a um órgão para realizar o controle de constitucionalidade dependerá com o sistema de controle adotado.

Por sua vez, a sanção para a conduta realizada em desconformidade com a Constituição representa aquilo já explicitado por Mendes (2009), que leciona que a falta de sanção incorre na sua ausência de obrigatoriedade da de agir conforme a Constituição.

Dentre os diferentes tipos de inconstitucionalidade, destaca-se, para os fins deste trabalho, a formal e a material.

A inconstitucionalidade formal é aquela que denota algum vício na formação da norma jurídica, que pode ser pela inobservância de algum princípio de ordem técnica ou procedimental ou pela violação de regras de competência (MENDES, 2009). Pode ser classificada em: inconstitucionalidade formal orgânica, inconstitucionalidade formal por violação a pressupostos objetivos do ato normativo e inconstitucionalidade formal propriamente dita (LENZA, 2009).

A inconstitucionalidade formal orgânica representa o descumprimento de normas de competência delineadas na Constituição Federal na produção da norma. A inconstitucionalidade formal por violação a pressupostos objetivos do ato normativo é aquela na qual há inobservância de determinados requisitos para a edição do ato normativo. Já a inconstitucionalidade formal propriamente dita denota violação das normas do processo legislativo, seja pela existência de vício formal subjetivo, no qual, na fase de iniciativa, não há observância de qual sujeito detém a competência ou legitimidade legislativa; seja por vício objetivo, verificado nas fases do processo legislativo chamadas de constitutiva e complementar (FERNANDES, 2010).

A inconstitucionalidade material diz respeito ao conteúdo ou a matéria do ato, que detém no seu cerne um conflito entre regras ou princípios constitucionais (MENDES, 2009).

Conforme demonstrar-se-á, o art. 16 da LACP, após a modificação empreendida pelo art. 2º da Lei nº 9.494/97, incorre em inconstitucionalidade formal e material.

A inconstitucionalidade formal decorre do fato dea Medida Provisória nº 1.570, de 26 de março de 1997, ter sido editada sem os seus pressupostos autorizadores, estatuídos no art. 62 da Constituição Federal.[1]

É evidente a ausência de relevância e urgência (requisitos cumulativos, e não alternativos) na edição da medida provisória. Zufelato (2011, p. 471) explica:

No que diz respeito ao critério formal, pode-se afirmar ainda que a lei é inconstitucional pois provém de Medida Provisória editada sem estarem presentes os requisitos do art. 62 da CF, quais sejam, relevância e urgência, pois a LACP está em vigor desde 1985, e somente em 1997, 12 anos após, foi editada a Medida Provisória.

A referida MP foi reeditada cinco vezes (MP nº 1.570-1, MP nº 1.570-2, MP nº 1.570-3, MP nº 1.570-4 e MP nº 1.570-5) e, em 10 de setembro de 1997, por fim, foi convertida na Lei nº 9.494/97. Observa-se que, após a edição da Emenda Constitucional nº 32/2001, a medida provisória não pode mais ser reeditada tantas vezes quanto o Presidente da República entender necessário, como ocorria à época da MP nº 1.570, mas apenas uma única vez, prorrogando seu período de vigência por mais apenas 60 (sessenta) dias, conforme dispõe o art. 62, §7º da Constituição Federal de 1988.

A seu turno, a inconstitucionalidade material pode ser sustentada por diversos fundamentos.

O primeiro deles consiste no fato de o art. 16 da LACP, em sua atual redação, ofender o princípio estatuído no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, in verbis:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. (BRASIL, 1988).

O art. 2º da Lei nº 9.494/97, com a sua atual redação, fere o princípio da inafastabilidade da jurisdição elencado acima, uma vez que, ao  restringir a coisa julgada à competência territorial do órgão julgador, o controle da ofensa a interesses transindividuais ocorridos em uma região mais abrangente é dificultado, restando necessária a propositura de uma ação em cada comarca, o que obsta o acesso efetivo à Justiça (SOUZA, 2003).

Dessa forma, ao restringir territorialmente a coisa julgada, o legislador obstou o acesso ao Judiciário de pessoas que não estejam na circunscrição territorial do órgão prolator da decisão. O fato é agravado na medida em que esses indivíduos excluídos desta decisão, muitas vezes não gozam de condições de pleitear a observância de seus direitos em juízo, o que fere seu direito constitucional de ação.

Neste exato sentido, leciona Moraes (2005):

As inconstitucionalidades que decorrem da incorreta interpretação principiam pela exigência da Lei nº 9.494/97 de que sejam propostas tantas ações iguais quantas sejam as divisões da competência, ferindo, assim, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, consubstanciado no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, no qual é dito que "...a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito...". 

De fato, dando a entender que deveriam ser intentadas várias ações com o mesmo objeto e os mesmos interesses lesados em juízos com competência distinta, muitas lesões ou ameaças de lesões seriam perpetradas, tendo em vista que são inúmeras e variadas as dificuldades de demandar, seja por carência de poder econômico, por falta de informação, pela incrível diferença entre as condições gerais de litigar entre o litigante habitual e o eventual Ver Adroaldo Furtado Fabrício, Revista Direito do Consumidor nº 7, editora RT, p. 30., pela inexistência de associações que congreguem consumidores, pela ausência de promotorias e varas específicas nas comarcas e sequer nas grandes capitais, tudo isto a ressaltar que, em realidade, e não meramente em forma, estaria sendo negada a legítima prestação jurisdicional e estaria sendo negada, também, vigência ao artigo 6º, incisos VI ("efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos") VII(" o acesso aos órgãos judiciários...com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos...") e VIII ("facilitação da defesa dos seus direitos..."), todos do CDC.

Nesta esteira de ideias, alerta Ramos (1998 apud MANCUSO, 2007) que a tutela de interesses transindividuais é realizada por substitutos processuais, como o Ministério Público. Desta feita, se o autor é substituto processual de todos os jurisdicionados, não deve haver limitação dos efeitos da decisão somente àqueles que estejam domiciliados no âmbito da competência territorial do magistrado.

Além disso, como ressalta Zufelato (2011, p. 472), “restringindo os efeitos da coisa julgada, a Lei restringe a prestação jurisdicional, e, portanto, a efetividade do processo”.

Assim, é patente que a atual redação do art. 16 da Lei nº 7.347/85 afronta o amplo acesso ao Judiciário, considerando que se exclui da abrangência da decisão judicial todas as pessoas que não estejam circunscritas no território de competência do magistrado, cerceando a apreciação de lesões ou ameaças de lesões massificadas pelo órgão jurisdicional (MORAES, 2005).

Correlato ao exposto, tem-se ainda que o dispositivo é inconstitucional por ser desprovido de proporcionalidade e razoabilidade.

Conforme observam Barroso e Barcellos (2002), a proporcionalidade tem origem romano-germânica, evoluindo a partir do Direito Administrativo como mecanismo de controle dos atos do Poder Executivo. Em contrapartida, anotam os autores que a razoabilidade é originária do sistema do common law do direito norte-americano, surgindo no Direito Constitucional como um critério para aferição de constitucionalidade das leis.

Não obstante essa diferenciação, sabe-se que os dois princípios frequentemente são aplicados como sinônimos em inúmeros trabalhos acadêmicos, relatórios de comissões do Poder Legislativo e na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (SILVA, V., 2002). Assim, em virtude de abrigarem ideias similares, quais sejam racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum e rejeição de atos arbitrários ou caprichosos (BARROSO; BARCELLOS, 2003), neste trabalho também se adotará tal equivalência, eis não ser nosso objeto o estudo aprofundado destes princípios.

Pois bem. Ao obstar o acesso ao Judiciário para alguns indivíduos, mediante delimitação territorial da coisa julgada, é certo que haverá a proliferação de demandas com o mesmo objeto, causando o chamado demandismo exacerbado, o que vai de encontro com as ideias de razoabilidade e proporcionalidade esposada supra. Nesses termos:

Os dispositivos são irrazoáveis, pois impõem exigências absurdas, bem como permitem o ajuizamento simultâneo de tantas ações civis públicas quanto sejam as unidades territoriais em que se divida a respectiva Justiça, mesmo que sejam demandas iguais, envolvendo sujeitos em igualdade de condições, com a possibilidade teórica de decisões diferentes e até conflitantes em cada uma delas. (DIDIER JR.; ZANETI JR.; 2010, p. 144).

A pluralidade de demandas acarreta a desarrazoada (e desproporcional) proliferação de decisões conflitantes versando sobre o mesmo objeto. A título exemplificativo, imagine-se uma ação civil pública proposta a fim de impedir que uma empresa localizada entre a divisa das cidades “A” e “B” polua rio fronteiriço entre essas duas cidades. Impossível conceber que na comarca da cidade “A” haja procedência do pedido, sendo que na cidade “B” houve sua improcedência, ou até mesmo procedência parcial em uma comarca e procedência total em outra.

A título exemplificativo, cita-se o recente caso do rompimento da barragem de Fundão na cidade de Mariana/MG, em que o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública em face das empresas Samarco Mineração S.A, Vale S/A e BHP Billiton Brasil Ltda., bem como a União e os Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo[2]. Considerando que o dano se estendeu por toda a bacia do rio Roce, chegando ao mar, no município de Linhares/ES, é impensável que os efeitos da sentença sejam adstritos ao órgão prolator da sentença.

Desse modo, outra conclusão não há senão que o art. 16 da Lei nº 7.347/85 em sua redação atual não se coaduna com os ideais de proporcionalidade e razoabilidade.

A inconstitucionalidade material do dispositivo legal também é ventilada sob a óptica do princípio da igualdade, que, segundo Piovesan (2010), pode ser entendido sob três aspectos:

  1. a igualdade formal, que se traduz exclusivamente na fórmula de que “todos são iguais perante a lei”;
  2. a igualdade material, que corresponde ao ideal de justiça social e distributiva, ou seja, a igualdade pautada no critério socioeconômico;
  3. a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça enquanto reconhecimento de identidades, que se traduz na igualdade orientada pelos critérios gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia, dentre outros.

Com efeito, tem-se que o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública é inconstitucional por excluir indivíduos que estão na mesma situação jurídica de outros apenas porque se encontram em localidade diversa.

Um exemplo recente, do ano de 2016, que ilustra bem essa distorção é a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que reformou a sentença de 1º grau do juízo da Seção Judiciária de Roraima que, ao julgar procedente o pedido do Ministério Público Federal em ação civil pública que buscava a gravação e publicidade dos testes físicos para provimento de cargos em concursos da Polícia Federal, limitou os efeitos da decisão ao referido estado. O argumento principal do TRF da 1ª Região é o de que a decisão em ação coletiva que tutele direitos difusos e coletivos em sentido estrito não sofre a restrição propugnada pelo art. 16 da Lei nº 7.347/85.[3]

Assim, “admitir-se a constitucionalidade do dispositivo em comento implicaria em permitir que pessoas que possuam exatamente a mesma situação jurídica venham a ser tratadas desigualmente – o que sabe a disparate” (SOUZA, 2003, p. 201).

Dantas (2010) ainda adverte que o objeto da ação civil pública é indivisível, de modo que alguns lesados não seriam beneficiados pela sentença, ferindo o art. 5º, caput, da Constituição Federal, que consagra o princípio da igualdade no ordenamento jurídico brasileiro.

Ante o exposto, nota-se que a inconstitucionalidade formal e material do art. 16 da Lei de Ação Civil Pública encontra respaldo praticamente unânime da doutrina especializada, uma vez que é patente que os obstáculos inseridos pelo legislador infraconstitucional, além de não obedecerem ao processo legislativo, obstam a tutela célere, igualitária e adequada de situações que manejam direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.

7.2 Inefetividade do art. 16 da Lei 7.347/85

Antes de expor os motivos que os doutrinadores processualistas elencam para a inefetividade do art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, cumpre esclarecer que muitos deles estabelecem que se trata de ineficácia, e não de inefetividade.

O estudo da eficácia representa a aptidão de uma norma jurídica produzir efeitos, irradiando as consequências que lhes são próprias (BARROSO, 2002). Nesses termos, ensina Diniz (2009, p. 407):

O problema da eficácia da norma jurídica diz respeito à questão de se saber se os seus destinatários ajustam ou não seu comportamento, em maior ou menor grau, às prescrições normativas, isto é, cumprem ou não os comandos jurídicos, se os aplicam ou não.

Ferraz Junior (2003) sistematiza a eficácia da norma jurídica sob duas vertentes: social e técnica.

A eficácia técnica diz respeito à presença de determinados requisitos técnicos, de modo a proporcionar o enlace entre várias normas, sem o qual a norma carece de capacidade de produção de efeitos.

Já a eficácia social de uma norma jurídica refere-se à quando encontra na realidade fática condições adequadas para produzir seus efeitos. A eficácia social não se confunde com a ideia de obediência, mas sim com o “sucesso normativo”, conforme leciona o doutrinador:

Não se reduzindo à obediência, a efetividade ou eficácia social tem antes o sentido de sucesso normativo, o qual pode ou não exigir obediência. Se o sucesso normativo exige obediência, devemos distinguir, presentes os requisitos fáticos entre a observância espontânea e a observância por imposição de terceiros (por exemplo, sua efetiva aplicação pelos tribunais). Uma norma é, então, socialmente ineficaz de modo pleno se não for observada nem de um modo nem do outro. Isto é, nem é observada pelo destinatário, nem os tribunais se importam com isso. (FERRAZ JUNIOR, 2003, p.200, destaque do autor).

Conforme se observa, tem-se que eficácia social é também denominada de efetividade, de modo que neste trabalho será adotada a terminologia “inefetividade”, a fim de se evitar confusão com ineficácia técnica.

A efetividade significa “a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social” (BARROSO, 2002, p. 85).

Assim, tem-se que a problemática do art. 16 da Lei de Ação Civil Pública refere-se à questão da efetividade e não da eficácia técnica.

Isto porque o mencionado dispositivo legal é apto a produzir efeitos do ponto de vista técnico, tanto é que já produz em diversas decisões judiciais que seguem exatamente o mandamento legal. Não obstante, não há efetividade, uma vez que o art. 2ª da Lei nº 9.494/97 alterou o art. 16 da LACP sem alterar o art. 103 do CDC, causando dificuldades para a sua real aplicação e obstando a realização da função social da norma, conforme já exposto.

O art. 103 do Código de Defesa do Consumidor regulamenta o regime geral da coisa julgada nos processos coletivos, não só de matéria consumerista, como explicado alhures. Assim, para que a alteração procedida pela Lei nº 9.494/97 detivesse efetividade, deveria ter sido alterado o dispositivo do CDC, visto que “entre a ação civil pública e o Código de Defesa do Consumidor vige um sistema imbricado de dispositivos (art. 21, LACP, e art. 90, CDC)” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2010, p. 147).

Conforme já exposto alhures, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto a Lei de Ação Civil Pública fazem parte do microssistema de tutela coletiva brasileira, de modo que um não exclui o outro, mas sim devem ser interpretados e aplicados reciprocamente.

Desta feita, a alteração apenas do art. 16 da LACP não teria o condão de obstar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, ainda porque este é considerado a regra geral da tutela coletiva.

Nesses termos, leciona Mazzilli (2007, p. 527-528):

[...] a alteração procedida no art. 16 da LACP incidiu apenas sobre esta lei, mas não alcançou o sistema do CDC. Ora, é de elementar conhecimento que é um só sistema da LACP e do CDC, em matéria de ações civis públicas e coletivas, pois ambos os diplomas legais se interpenetram e se completam, ensejando um todo harmônico (LACP, art. 21, e CDC, art. 90). Pois bem, de um lado, o CDC estende a competência territorial do juiz prolator a todo o Estado ou a todo o País, conforme se trate de dano regional ou nacional (art. 93, II); de outro lado, o CDC disciplina adequadamente a coisa julgada na tutela coletiva (art. 103) – e seus princípios aplicam-se não só à defesa coletiva do consumidor, como também à defesa judicial de quaisquer interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, tenham ou não origem nas relações de consumo (como os interesses ligados ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, às pessoas portadoras de deficiência etc.). Naturalmente, em face dessa conjugação de normas, restou ineficaz a alteração que o art. 2º da Lei n. 9.494/97 procedeu no art. 16 da LACP. 

Zufelato (2011) também alerta que a Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor são complementares em virtude da regra estabelecida no art. 21 da LACP e art. 90 do CDC, de modo que o art. 16 da Lei nº 7.347/85 é desprovido de efetividade por razão de sistemática legislativa, ou seja, pelo diploma consumerista gozar de tratamento mais completo. 

Ainda que grande parte da doutrina brasileira[4] defenda a inefetividade deste dispositivo legal, em virtude de sua patente discrepância com o art. 103 do CDC, não é possível constatar unanimidade.

Bueno (2010) sustenta que o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, com as modificações da Lei nº 9.494/97, é mais recente que o art. 103 do CDC, vez que foi editado em 1990, entrando em vigor em 1991. Assim, para ele, a lei mais recente tem prevalência sobre a lei anterior.  

O autor também defende que o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor repetiu a regra consubstanciada na antiga redação do art. 16 da LACP, que teria sido revogado com a promulgação do CDC. Quando o art. 2º da Lei nº 9.494/97 acrescentou a restrição territorial da coisa julgada à ação civil pública, teria revogado tacitamente a coisa julgada tratada no CDC.

Data venia, o entendimento colacionado acima não deve prevalecer, uma vez que a inefetividade se dá em razão de sistemática legislativa, ou seja, pelo art. 103 do CDC trata a matéria de maneira mais ampla do que o art. 16 da LACP. Assim, a norma posterior tem o condão de prevalecer e, da mesma forma, não houve revogação tácita do CDC pelo o art. 16 da LACP alterado pela Lei nº 9.494/97.

   Dessa forma, não há dúvidas que o art. 16 da LACP é inefetiva no ordenamento jurídico brasileiro.

7.3 Outros motivos para a não aplicação do art. 16 da Lei nº 7.347/85

Além dos motivos supracitados, a doutrina nacional elenca uma série de elementos vocacionados a impedir a aplicação da restrição territorial imposta no art. 16 da Lei nº 7.47/85 no ordenamento jurídico brasileiro.

Em primeiro lugar, destaca-se a confusão do legislador ao disciplinar dois institutos completamente diversos: os limites subjetivos da coisa julgada e a competência territorial do órgão prolator (MAZZILLI, 2007).

Os limites subjetivos da coisa julgada, conforme exposto supra, podem ser auferidos através do questionamento “quem são as pessoas que se submeterão à coisa julgada?”. Aqui, essas pessoas podem ser apenas os sujeitos da relação processual (inter partes), um determinado grupo ou classe que não compõem o processo (ultra partes) ou toda a coletividade (erga omnes).

Já a competência territorial, medida da jurisdição, é aquela atribuída aos diversos órgãos jurisdicionais levando-se em conta a divisão do território nacional em circunscrições judiciárias (THEODORO JÚNIOR, 2009), revelando-se como um critério de repartição da jurisdição (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2010).

Mancuso (2007, p. 98) bem explicita a questão:

Com efeito, a questão de saber quais as pessoas atingidas pela imutabilidade do comando judicial deve ser retratada, naturalmente, sob a rubrica dos limites subjetivos desse instituto processual dito “coisa julgada”, e não sob a óptica de categorias outras, como a jurisdição, a competência a organização judiciária. Aqueles limites, quando se trata das lides intersubjetivas, no plano da jurisdição singular, ficam contingenciados às partes, “não beneficiando, nem prejudicando terceiros” (CPC, art. 472), mas no âmbito das ações de tipo coletivo – justamente porque aí se lobrigam sujeitos indeterminados, concernentes a um objeto indivisível – o critério deve ser outro, cabendo atentar para a projeção social do interesse metaindividual judicializado. Tudo assim conflui para que a resposta judiciária, no âmbito da jurisdição coletiva, desde que promanada de juiz competente, deve ter eficácia até onde se irradie o interesse objetivado, e por modo a se estender a todos os sujeitos concernentes. Assim se dá por conta do caráter unitário desse tipo de interesse, a exigir uniformidade do pronunciamento judicial. (destaque do autor).

Assim, observa-se que a eficácia da coisa julgada não se restringe à circunscrição territorial na qual foi proferida a sentença, ainda que o processo seja individual (ZUFELATO, 2011).

Os doutrinadores brasileiros criaram inúmeros exemplos elucidativos do problema em questão, dentre os quais se destaca a proposição de Nery Jr. e Nery (2001), que observam que uma sentença de divórcio proferida por um juiz na comarca de São Paulo não poderia produzir efeitos no Rio de Janeiro, local onde o casal continuaria casado.

No campo da ação civil pública, Mancuso (2007) exemplifica com o caso de ação ingressada perante o juiz competente (art. 2º, LACP) para que se impeça a fabricação de medicamento considerado nocivo à saúde humana, a sentença não pode sofrer restrições territoriais, considerando que não existe “tipos” de saúde diversas no Brasil (“saúde paulista”, “saúde gaúcha”, “saúde mineira”, etc.). Caso se admitisse a aplicação do art. 16 da Lei nº 7.347/85, deveria trabalhar com a ideia de haver outras ações concomitantes, em outras localidades, potencializando o risco da prolação de decisões conflitantes entre si e, ainda considerando que a coisa julgada em todos esses casos é erga omnes.

Percebe-se, portanto, que a confusão da competência com os limites subjetivos da coisa julgada é patente.

Fundamenta-se, igualmente, a inaplicabilidade do art. 16 da Lei nº 7.347/85 na indivisibilidade dos interesses e direitos tutelados via ação civil pública. Zufelato (2011) observa que os interessados frequentemente não se localizam na mesma circunscrição territorial, uma vez que o dano, em razão da sua amplitude, pode ter efeitos em todo o território nacional.

A lesão de um interessado acarreta na lesão de todos os interessados, de modo que a divisão da tutela destes interesses e direitos em várias ações coletivas acarretaria prejuízos. Dessa forma, “o caráter unitário da tutela dessa espécie de direitos impõe uma decisão única” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2010, p. 149). 

Nessa esteira, Mancuso ensina (2007, p. 300):

No presente estágio evolutivo da jurisdição coletiva em nosso País, impende compreender que o comando judicial daí derivado precisa atuar de modo uniforme e unitário por toda a extensão e compreensão do interesse metaindividual objetivado na ação, porque de outro modo esse diferenciado regime processual não se justificaria, nem seria eficaz, e o citado interesse acabaria provado de tutela judicial em sua dimensão coletiva, reconvertido e pulverizado em multifárias demandas individuais, assim atomizando e desfigurando o conflito coletivo. (destaque do autor).

Ainda que se considere que na defesa de direitos e interesses individuais homogêneos há possibilidade de divisão, esta não é recomendável, uma vez que haveria o enfraquecimento da demanda, pulverizada em inúmeras ações individuais, cada qual julgada conforme o entendimento de um julgador diverso, ainda que tenham origem comum.

Nesta direção de ideias, denota-se outro fundamento para a inaplicabilidade do dispositivo legal em comento, representado pela multiplicação desordenada de ações coletivas, acompanhada pelo risco de ocorrência de decisões contraditórias (ZUFELATO, 2011).

Diante desse quadro, vislumbra-se que os tutelados se veriam perante situações de insegurança jurídica, pois uma decisão envolvendo o mesmo objeto, mas que visasse à defesa de interesses e direitos pertencentes a pessoas de mais de uma circunscrição territorial, em nada significaria para aqueles que estejam na comarca oposta.

Outrossim, Mazzilli (2007) revela a incoerência técnica trazida pela Lei nº 9.494/97, pois as mesmas questões discutidas na ação civil pública podem ser examinadas via ação popular, regida pela Lei nº 4.717/65, que, por sua vez, não possui as restrições territoriais impostas na LACP.

Assim, o art. 18 da Lei de Ação Popular tem redação muito semelhante àquela do art. 16 da LACP antes das alterações impostas pela Lei nº 9.494/97, prevendo apenas que

 A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível "erga omnes", exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. (BRASIL, 1965).

Por fim, outro motivo para a inaplicabilidade do art. 16 da LACP revela-se no fato que o alcance da coisa julgada é determinado não pela competência territorial do órgão prolator, mas pelo pedido, conforme já exposto supra. É nesse sentido o posicionamento de Mancuso (2007, p. 309, destaques do autor):

Existe uma íntima correlação entre três pontos nevrálgicos do processo civil: o pedido, que, por sua vez fixa os limites da sentença (CPC, arts. 2º, 128, 460), os quais, na sequencia, irão circunscrever a extensão e a compreensão da coisa julgada (CPC, arts. 468, 472).          


8. Decisões recentes do STF e STJ

Com fito de ilustrar o tema, selecionamos dois julgados recentes das Cortes Superiores correlatos ao tema.

No Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário 612.043, em que foi fixada tese de repercussão geral (tema nº 499), houve declaração de constitucionalidade do art. 2º-A da Lei nº 9.494/97, no sentido de que a sentença civil em ação coletiva proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da demanda, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator da decisão. Destaca-se a ementa:

Decisão: O Tribunal, apreciando o tema 499 da repercussão geral, por maioria e nos termos do voto do Relator, desproveu o recurso extraordinário, declarando a constitucionalidade do art. 2º-A da Lei nº 9.494/1997. Vencidos o Ministro Ricardo Lewandowski, que dava provimento ao recurso, e os Ministros Alexandre de Moraes e Edson Fachin, que a ele davam parcial provimento, nos termos de seus votos. Em seguida, o Tribunal, nos termos do voto do Relator, fixou a seguinte tese: “A eficácia subjetiva da coisa julgada formada a partir de ação coletiva, de rito ordinário, ajuizada por associação civil na defesa de interesses dos associados, somente alcança os filiados, residentes no âmbito da jurisdição do órgão julgador, que o fossem em momento anterior ou até a data da propositura da demanda, constantes da relação jurídica juntada à inicial do processo de conhecimento”. Na redação da tese, a Ministra Rosa Weber acompanhou o Ministro Relator com ressalva. Ausentes, justificadamente, os Ministros Dias Toffoli e Celso de Mello. Impedido o Ministro Roberto Barroso. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 10.5.2017. (BRASIL, 2017).

Já no Superior Tribunal de Justiça, as decisões de Turma [5]tem seguido o entendimento da Corte Especial firmou entendimento no sentido de que é indevida a limitação da eficácia das decisões proferidas em ação civil pública à competência territorial do órgão prolator da sentença. Neste sentido:

"DIREITO PROCESSUAL. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (ART. 543-C, CPC). DIREITOS METAINDIVIDUAIS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. APADECO X BANESTADO. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. EXECUÇÃO/LIQUIDAÇÃO INDIVIDUAL. FORO COMPETENTE. ALCANCE OBJETIVO E SUBJETIVO DOS EFEITOS DA SENTENÇA COLETIVA. LIMITAÇÃO TERRITORIAL. IMPROPRIEDADE. REVISÃO JURISPRUDENCIAL. LIMITAÇÃO AOS ASSOCIADOS. INVIABILIDADE. OFENSA À COISA JULGADA. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC: 1.1. A liquidação e a execução individual de sentença genérica proferida em ação civil coletiva pode ser ajuizada no foro do domicílio do beneficiário, porquanto os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo (arts. 468, 472 e 474, CPC e 93 e 103, CDC). 1.2. A sentença genérica proferida na ação civil coletiva ajuizada pela Apadeco, que condenou o Banestado ao pagamento dos chamados expurgos inflacionários sobre cadernetas de poupança, dispôs que seus efeitos alcançariam todos os poupadores da instituição financeira do Estado do Paraná. Por isso descabe a alteração do seu alcance em sede de liquidação/execução individual, sob pena de vulneração da coisa julgada. Assim, não se aplica ao caso a limitação contida no art. 2º-A, caput, da Lei n. 9.494/97. 2. Ressalva de fundamentação do Ministro Teori Albino Zavascki. 3. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido. " (REsp 1243887/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/10/2011, DJe 12/12/2011)


9. Considerações finais

A defesa de direitos pertencentes a mais de um indivíduo encontra inúmeras dificuldades, tais como a hipossuficiência da parte, alto custo do processo, morosidade da justiça e fragilidade da demanda em virtude da pulverização de ações individuais. Assim, visando suprir essa deficiência, o legislador dotou o ordenamento jurídico brasileiro de diversos instrumentos que tutelam os direitos transindividuais, dentre os quais se assenta a ação civil pública.

Não obstante, em sentido diametralmente oposto às suas finalidades, o art. 16 da Lei nº 7.347/85, alterado pela Lei nº 9.494/97, impõe obstáculo à tutela efetiva destes direitos, uma vez que determina que a sentença faça coisa julgada apenas nos limites do órgão prolator.

A inconstitucionalidade, tanto formal quanto material, do referido dispositivo é patente. Formal, considerando que a Medida Provisória nº 1.570/97, convertida na referida Lei nº 9.494/97, foi editada sem seus pressupostos autorizadores, quais sejam a urgência e a relevância. Material, uma vez que há transgressão de preceitos constitucionais do amplo acesso ao Poder Judiciário, proporcionalidade, razoabilidade e igualdade.

Além de ser inconstitucional, conclui-se que o dispositivo em comento também é inefetivo, pois a Lei nº 9.494/97 alterou apenas da Lei de Ação Civil Pública, deixando de proceder modificações no Código de Defesa do Consumidor, que, além de formar um sistema integrado de tutela coletiva conjuntamente com a LACP, regulamenta o instituto da coisa julgada de maneira mais ampla do que a ação civil pública.

Nesses termos, vislumbra-se que a norma é ineficaz do ponto de vista social, ou seja, inefetivo, uma vez que não houve alteração do sistema do Código de Defesa do Consumidor, de modo que a aplicação isolada do art. 16 da LACP não é plausível.

No decorrer deste trabalho, ainda foram elencadas diversas teses que corroboram para a não aplicação do art. 16 da Lei nº 7.347/85, que são: a confusão dos limites subjetivos da coisa julgada com a competência territorial do órgão prolator da sentença; a indivisibilidade dos direitos tutelados via ação civil pública, de modo que a lesão de um interessado acarreta na lesão de todos eles; a multiplicação desordenada do número de demandas, o que, consequentemente, causa decisões contraditórias sobre uma mesma situação; o fato que a extensão da coisa julgada é determinada pelo pedido autoral e não pela competência territorial do julgador.      


      10. Referências bibliográficas

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BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 6 ed. São Paulo: Renovar, 2002.

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Notas

[1] “Art. 62 - Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional” (BRASIL, 1988).

[2] Notícia disponível em: http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/noticias-mg/mpf-entra-com-acao-para-total-reparacao-dos-danos-sociais-ambientais-e-economicos-causados-pelo-rompimento-da-barragem-da-samarco-1. Acesso em: 16 out. 2017.

[3] Notícia disponível em: http://www.mpf.mp.br/regiao1/sala-de-imprensa/noticias-r1/policia-federal-tera-que-gravar-testes-fisicos-dos-concursos-para-provimento-de-seus-cargos. Acesso em: 16 out. 2017.

[4] A inefetividade, independente da sua nomenclatura, nos ditames expostos é defendida também, a título meramente exemplificativo, por Von Adamovich (2005), Didier Jr. e Zaneti  Jr. (2010), Almeida, G. (2003), Souza (2003), dentre inúmeros outros doutrinadores.

[5] A título de exemplo, cita-se a recente decisão (26/06/2017) da Terceira Turma do STJ, que consignou que: “A  Corte  Especial deste Tribunal, no julgamento dos Embargos de Divergência  em  REsp  n. 1.134.957/SP, firmou entendimento de que é indevido  limitar,  em princípio, a eficácia das decisões proferidas em  ações  civis  públicas coletivas ao território da competência do órgão judicante. A   vedação   dessa  limitação  estende-se  aos  direitos  coletivos indistintamente  (direito  coletivo  em  sentido  estrito, difuso ou individual  homogêneo),  sendo  que, no caso dessa última espécie, a coisa  julgada  atingirá  todos  aqueles  beneficiários  do  comando exarado na decisão que se pretenda executar” (STJ. AgInt no REsp 1628619 / PR. Terceira Turma. Data de Julgamento: 20/06/2017. Data de Publicação: 26/06/2017).



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ALCANTARA, Amanda Fanini Gomes. A coisa julgada em sede de ação civil pública segundo recente jurisprudência dos tribunais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5346, 19 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61628. Acesso em: 6 maio 2024.