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Apontamentos iniciais sobre o Estatuto do Idoso

Apontamentos iniciais sobre o Estatuto do Idoso

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Sumário: 1- O paradigma do constitucionalismo social e a condição do idoso; 2- Abrangência; 3- Direitos fundamentais: algumas pontuações; 4-Medidas de Proteção; 5-Mecanismos Processuais; 6- Aspectos Penais; 7- Conclusões.


Após vários anos de vigência da Constituição Federal de 1988, foi finalmente suprida a mora legislativa em vista dos direitos do idoso, através da Lei nº 10.741/03, diploma que abre novas perspectivas e que demanda reflexão e estudo por parte de todos os operadores jurídicos.


1- O paradigma do constitucionalismo social e a condição do idoso

A Constituição Federal de 1988 insere-se dentro da fase que podemos denominar constitucionalismo social. O marco desta fase remonta à Constituição Alemã de 1948 e à Carta Constitucional Italiana, que é do mesmo período. Todavia, alguns dos princípios que inspiraram as referidas constituições já existiam consagrados nas Constituições de Weimar e Mexicana, elaboradas na segunda década do século passado.

O constitucionalismo social está assentado em uma visão solidarista, produzindo um modelo de Estado interventor, que discrepa do modelo de Estado mínimo do liberalismo. Este Estado de "bem-estar" consagrado pela Constituição de 1988 tem por fundamentos a dignidade da pessoa humana (artigo 1º. inc. III, da CF/88) e a cidadania (artigo 1º, inc. II), e como objetivos "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (artigo 3º. inc. I, da CF/88) e "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (artigo 3º,inc. IV, da CF/88).

À luz destes preceitos, a cláusula de igualdade insculpida no artigo 5º, caput, e inc. I, da CF/88, deve ser interpretada de modo que os desiguais sejam tratados de forma desigual. Atento a este aspecto, o texto constitucional destinou dispositivos específicos para a criança, o adolescente e o idoso.

Estes artigos careciam, todavia, de regulamentação para que pudessem ir além de meras pautas jurídicas. Assim foi que para o caso das crianças e adolescentes foi criado o ECA, apenas dois anos depois de vigente a Constituição.

O mesmo, porém, não ocorreu em relação aos idosos, com quem o legislador permaneceu em mora, que somente recentemente foi resgatada com o advento da Lei nº 10.741/03.

A referida legislação em muito se assemelha do Estatuto da Criança e do Adolescente, embora se possa afirmar que se verifica, já em uma análise perfunctória, que não é tão completa quanto a legislação menorista.

Ainda assim, trata-se de um diploma que abre novas perspectivas para o resgate da dívida social existente em relação ao idoso.

Nos propomos nas linhas a seguir a lançar alguns apontamentos sobre a novel legislação a fim de fornecer, modestamente, mais um subsídio de análise aos operadores jurídicos, estudantes de direito e interessados em geral.


2- Abrangência

São atributos da norma jurídica a generalidade e a abstratividade. Por isso, a norma jurídica trabalha, invariavelmente, com parâmetros objetivos. As condições peculiares de cada indivíduo, não podem, portanto, sempre serem valoradas.

Exemplos de hipóteses em que a imperativa utilização de parâmetros objetivos é necessária e nem sempre corresponde ao caso posto em análise são o da menoridade penal e da aplicação de medias sócio-educativas somente para os indivíduos com idade superior a 12 anos. Um jovem de 11 anos pode ter mais desenvolvimento psíquico que um de 17.

No caso do estatuto do idoso, o problema se repete. Segundo seu artigo 1º o diploma foi instituído "destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos".

O critério não deixa de ser aleatório, mas a lei tinha de estabelecer um termo.

De gizar que, em alguns dos dispositivos da nova lei, o direito específico tratado é assegurado para pessoas com mais de 65 anos de idade, mas a regra geral para aplicação do diploma é 60 anos, critério de cunho absolutamente objetivo.


3- Direitos fundamentais: algumas pontuações

O artigo 2º da lei afirma que "o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade". Trata-se de verdadeira superfetação, pois é óbvio que a idade não é critério de aplicação dos direitos fundamentais assegurados na Constituição Federal, em especial, no artigo 5º.

Importante foi, porém, carrear especificamente ao Estado, à família, à comunidade e à sociedade a obrigação de dar materialização aos direitos dos idosos, pois com esta especificação, ainda que genérica, rompe-se com a tradição jurídica de tratar do problema do idoso sob a ótica privatista do direito civil. Esta especificação de obrigação à sociedade e à comunidade bem espelha uma visão solidarista do Direito que deve nortear o intérprete-aplicador.

Em complemento, o artigo 5º verbera que "a inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade à pessoa física ou jurídica nos termos da lei".

De suma importância, igualmente, o artigo 9º, que estabelece ser "obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade".

Verdadeira novidade reside na previsão dos artigos 12 e 13, estabelecendo que a obrigação de prestação de alimentos é solidária, sendo que as transações relativas a ela poderão ser celebradas perante o Promotor de Justiça, valendo como título executivo extrajudicial.

Tal possibilidade representa uma alternativa aos modos convencionais de constituição da obrigação ou de seu ajustamento, que ordinariamente devem passar pela chancela judicial, implicando, sem dúvida, na celerização da resolução do conflito eventualmente existente, funcionando como instância prévia ao ajuizamento de ação.

O capítulo IV da nova lei, referente à saúde, traz importantes modificações. Principia o artigo 15 por estabelecer o SUS como mecanismo de atendimento de saúde ao idoso. Uma interpretação restritiva deste dispositivo poderá dar margem à conclusão de que não pode o idoso pleitear, por atuação própria ou por substituição processual, tratamento de saúde fora do SUS contra o Estado.

Qual seria a conseqüência prática desta exegese? O Sistema Único de Saúde encontra assento legal na Lei nº 8.080/90, onde são estabelecidas competências específicas que impossibilitariam que pedidos referentes a obrigações atribuídas a uma determinada esfera estatal fossem buscados junto a outra.

Ocorre que esta atribuição de competências foi, de um modo geral, repelida pela jurisprudência pátria, asseverando-se existir obrigação solidária entre os entes de direito público interno (1). Estaria a nova lei estatuindo a obrigatoriedade de observância da atribuição de competências estabelecidas em lei infraconstitucional?

Se nos parece que não, pois a solidariedade ostenta caráter constitucional, ex vi do artigo 23, inc. II, além de uma tal exigência criar entraves por vezes intransponíveis para a solução de problemas que são no mais das vezes prementes.

Aliás, o parágrafo 2º deste mesmo artigo parece por fim à celeuma em torno da possibilidade de se compelir o poder público a prestar assistência de saúde em casos determinados e individualizados. Havia julgados isolados que afirmavam inviável a obrigação individualizada específica.

O parágrafo 3º do artigo 15 determina que "é vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade". Tal prática era corriqueira.

Surge, porém, a questão da aplicabilidade do dispositivo aos contratos já celebrados, pois se trata de norma de ordem pública e há precedentes doutrinários e jurisprudenciais que advogam a retroatividade da norma de ordem pública. Tal se deu, por exemplo, com a Lei nº 8.009/90, referente à impenhorabilidade, a qual foi largamente aplicada aos processos em andamento, não importando a anterioridade da penhora. O mesmo se deu com a Lei nº 9.032/95, consoante se verifica da seguinte ementa:

"PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DE BENEFÍCIO. AUXÍLIO-ACIDENTE. LEI Nº 9.032/95. RETROATIVIDADE DA NORMA DE ORDEM PÚBLICA QUANDO MAIS BENÉFICA AO HIPOSSUFICIENTE. CUSTAS PROCESSUAIS PELA METADE. REMESSA OFICIAL 1. A Lei nº 9.032/95 alcança os benefícios acidentários já definidos antes de sua vinda ao mundo jurídico, face a aplicação imediata da norma de ordem pública e a aplicação da lei mais benéfica ao hipossuficiente. 2. Precedentes do Egrégio Superior Tribunal de Justiça. 3. Sentença submetida a Reexame Necessário, a teor da Lei nº 9.469, de 10-07-97. 4. Apelação do INSS improvida e remessa oficial parcialmente provida para reduzir a condenação nas custas processuais para metade". (Apelação Cível nº 1999.04.01.087298-6/SC (00079689), 3ª Seção do TRF da 4ª Região, Rel. Juiz Marcos Roberto Araújo Dos Santos. j. 30.05.2000, Publ. DJU 21.06.2000 p. 200).

Teria o caráter público do preceptivo em análise o condão de excepcionar o artigo 5º, inc. XXXVI, da CF/88? O entendimento preponderante afirma que não. É o que verificamos de precedente do STF:

"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. - Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que e um ato ou fato ocorrido no passado. - O disposto no artigo 5, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito publico e lei de direito privado, ou entre lei de ordem publica e lei dispositiva. Precedente do S.T.F.. - Ocorrência, no caso, de violação de direito adquirido. A taxa referencial (TR) não e índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda. Por isso, não ha necessidade de se examinar a questão de saber se as normas que alteram índice de correção monetária se aplicam imediatamente, alcançando, pois, as prestações futuras de contratos celebrados no passado, sem violarem o disposto no artigo 5, XXXVI, da Carta Magna. - Também ofendem o ato jurídico perfeito os dispositivos impugnados que alteram o critério de reajuste das prestações nos contratos já celebrados pelo sistema do Plano de Equivalência Salarial por Categoria Profissional (PES/CP). Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 18, "caput" e parágrafos 1 e 4; 20; 21 e parágrafo único; 23 e parágrafos; e 24 e parágrafos, todos da Lei n. 8.177, de 1 de maio de 1991". (ADI 493 / DF - Distrito Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade Relator(a): Min. Moreira Alves; julgamento: 25/06/1992; órgão julgador: Tribunal Pleno publicação: DJ data-04-09-92 pp-14089;Ement Vol-01674-02 pp-00260; RTJ Vol-00143-03 pp-00724).

Em outra oportunidade, em acórdão da lavra do Eminente Ministro Celso de Mello, o Excelso Pretório assentou posição descrita na seguinte ementa:

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CADERNETA DE POUPANÇA - CONTRATO DE DEPÓSITO VALIDAMENTE CELEBRADO - ATO JURÍDICO PERFEITO - INTANGIBILIDADE CONSTITUCIONAL - CF/88, ART. 5º, XXXVI - INAPLICABILIDADE DE LEI SUPERVENIENTE À DATA DA CELEBRAÇÃO DO CONTRATO DE DEPÓSITO, MESMO QUANTO AOS EFEITOS FUTUROS DECORRENTES DO AJUSTE NEGOCIAL - RE NÃO CONHECIDO. CONTRATOS VALIDAMENTE CELEBRADOS - ATO JURÍDICO PERFEITO - ESTATUTO DE REGÊNCIA- LEI CONTEMPORÂNEA AO MOMENTO DA CELEBRAÇÃO. - Os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As conseqüências jurídicas que emergem de um ajuste negocial válido são regidas pela legislação em vigor no momento de sua pactuação. Os contratos - que se qualificam como atos jurídicos perfeitos (RT 547/215) - acham-se protegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República. Doutrina e precedentes. INAPLICABILIDADE DE LEI NOVA AOS EFEITOS FUTUROS DE CONTRATO ANTERIORMENTE CELEBRADO - HIPÓTESE DE RETROATIVIDADE MÍNIMA - OFENSA AO PATRIMÔNIO JURÍDICO DE UM DOS CONTRATANTES - INADMISSIBILIDADE. - A incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um contrato preexistente, precisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste negocial, reveste-se de caráter retroativo (retroatividade injusta de grau mínimo), achando-se desautorizada pela cláusula constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas definitivamente consolidadas. Precedentes. LEIS DE ORDEM PÚBLICA - RAZÕES DE ESTADO - MOTIVOS QUE NÃO JUSTIFICAM O DESRESPEITO ESTATAL À CONSTITUIÇÃO - PREVALÊNCIA DA NORMA INSCRITA NO ART. 5º, XXXVI, DA CONSTITUIÇÃO. - A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Razões de Estado - que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo - não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição. As normas de ordem pública - que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política (RTJ 143/724) - não podem frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade. (RE 205193 / RS - Rio Grande do Sul. Recurso Extraordinário Relator(a): Min. Celso de Mello Julgamento: 25/02/1997. Órgão Julgador: Primeira Turma Publicação. DJ data-06-06-1997 pp-24891 Ement vol-01872-09 pp-01761; RTJ vol-00163-02 pp-00802 ).

Mais recentemente, este entendimento pode ser visto em julgamento da Min. Ellen Gracie, cuja ementa segue descrita:

"LEI Nº 8.030/90. EFEITOS RETROATIVOS SOBRE CONTRATOS ANTERIORES A SUA EDIÇÃO. ART. 5º, XXXVI, DA CF/88. OFENSA DIRETA. 1. O controle de constitucionalidade exercido em hipóteses de ofensa ao princípio da irretroatividade das leis (art. 5º, XXXVI, da CF/88) pressupõe a interpretação da lei ordinária, cuja validade se pretende questionar, não havendo que se falar em ofensa indireta. 2. O despacho agravado fundou-se em jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, no sentido de que, no nosso ordenamento jurídico, a legislação infraconstitucional, ainda quando de ordem pública, não pode retroagir para alcançar ato jurídico perfeito. 3. Agravo regimental a que se nega provimento". (RE 263161 AgR / BA – BAHIA. AG.Reg. no Recurso Extraordinário Relator(a): Min. Ellen Gracie, Julgamento: 08/10/2002. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ data-06-12-2002 pp-00065. Ement vol-02094-02, pp-00391).

Esta posição se me afigura correta, pois se permitir a retroatividade fora das exceções constitucionais implicaria em medida que faria periclitar a segurança jurídica e a relativa previsibilidade inerente ao trato negocial.

Mas e no caso dos contratos que trato sucessivo, há possibilidade de aplicação da norma para o futuro?

Na hipótese, a aplicação futura é inviável, pois atingiria efeitos futuros de contrato celebrado antes de sua vigência, caracterizando a hipótese suscitada no primeiro precedente do STF acima citado, ou seja, retroatividade mínima, que também é vedada pelo texto constitucional.

Nada impede, porém, que a parte rescinda a avenca e pactue outra, com ou sem novação, que certamente terá de observar os termos da nova lei.

O artigo 27 também vem por fim, ao menos parcialmente, à questão do limite de idade para concursos e vem positivar critério que já era acolhido pela jurisprudência, ou seja, o de que limitações ao ingresso em cargo público somente podem ser estabelecidas em vista das condições peculiares do seu exercício (2), e jamais de forma arbitrária, genérica ou injustificada em vista das atribuições.

O artigo 37 estabelece o direito "a moradia digna, no seio da família natural ou substituta, ou desacompanhado de seus familiares, quando assim o desejar, ou, ainda, em instituição pública ou privada". E como fica a situação dos carentes? Foi criada uma obrigação de prover moradia digna ao idoso carente?

A questão da possibilidade de compelir-se o Estado a atuar em vista de casos isolados para prover condições de vida é espinhosa e demanda reflexões. Há um nítido confronto de valores constitucionais. De um lado, a necessidade de aplicar de forma efetiva os direitos sociais e individuais indisponíveis, de outro os vetores da legalidade da separação de poderes e as limitações orçamentárias.

Corre-se o risco de transformar o Poder Judiciário em sucedâneo da instância administrativa, imiscuindo-se na questão da alocagem de recursos, em típica atividade administrativa. Mas também há o risco de transformar-se direitos fundamentais em letra morta.

Trata-se de uma opção mais política do que jurídica, e se nos parece que o bom senso recomenda a intervenção jurisdicional em casos graves, sempre observados os vetores da razoabilidade e proporcionalidade.

Direito que demanda urgente concretização é o previsto no artigo 40, com a seguinte redação:

"Art. 40- No sistema de transporte coletivo interestadual observar-se-á, nos termos da legislação específica:

I - a reserva de 2 (duas) vagas gratuitas por veículo para idosos com renda igual ou inferior a 2 (dois) salários-mínimos;

II - desconto de 50% (cinqüenta por cento), no mínimo, no valor das passagens, para os idosos que excederem as vagas gratuitas, com renda igual ou inferior a 2 (dois) salários-mínimos.

Parágrafo único. Caberá aos órgãos competentes definir os mecanismos e os critérios para o exercício dos direitos previstos nos incisos I e II".

O idoso tem direito ao convívio familiar e é notório que as dificuldades financeiras acabam, em muitos casos, a impedir que possa utilizar-se de serviços de transporte para visitar familiares. Com a centralização dos serviços de saúde nas capitais e cidades de maior porte, o transporte também tem reflexo direto na questão da saúde.

Referida norma foi regulamentada pelo Decreto nº 5.130/04, aplicando-se o benefício para as pessoas com idade superior a 60 anos. A Associação Brasileira das Empresas de Transporte de Terrestre de Passageiros (ABRATI), ingressou com ação cautelar (nº 20004.34.00.022884-3) na 14ª Vara de Fazenda Pública de Brasília, onde logrou acolhida em pedido de liminar para impedir que a ANTT e o Governo Federal apliquem punições às empresas pelo descumprimento da norma questionada na referida demanda.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres ingressou com agravo onde foram suspensos os efeitos da liminar. A ABRATI, ingressou, porém, com mandado de segurança (nº 2004.01.00037268-5) e obteve, no dia 25/08/2004, restauração da liminar cassada.

Alguns dos argumentos expendidos na ação mandamental de fato merecem reflexão, como, por exemplo a comprovação de renda por documento de recolhimento do INSS, pois o valor recolhido pelo beneficiário nem sempre espelha sua renda.

Outro aspecto que não atendeu à melhor técnica jurídica encontra-se no artigo 9º do Decreto 5.130/04 (3), pois este delega para a ANTT a tipificação de condutas correspondentes às infrações, o que parece violar o artigo 5º, inc. II, da CF/88, de modo que somente lei em sentido formal poderia tratar da matéria.


4-Medidas de Proteção

À semelhança do que ocorre com a legislação de proteção à infância e juventude, também o estatuto do idoso prevê medidas de proteção.

Estas medidas são aplicáveis quando houver ameaça (tutela preventiva) ou lesão (tutela repressiva) aos direitos previstos no estatuto por: I- por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II - por falta, omissão ou abuso da família, curador ou entidade de atendimento; III - em razão de sua condição pessoal.

São elas:

"I - encaminhamento à família ou curador, mediante termo de responsabilidade;

II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;

III - requisição para tratamento de sua saúde, em regime ambulatorial, hospitalar ou domiciliar;

IV - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a usuários dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, ao próprio idoso ou à pessoa de sua convivência que lhe cause perturbação;

V - abrigo em entidade;

VI - abrigo temporário"

O rol não é exaustivo e comporta outras medidas, desde que adequadas ao caso concreto, estando a aplicação de qualquer das medidas, expressas ou não, condicionada, porém, aos "os fins sociais a que se destinam e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários".

Quem poderá aplica-las? O Ministério Público ou o Poder Judiciário, sem qualquer restrição quanto à espécie de medidas.

Recomenda-se, no entanto, que a aplicação das medidas dos incisos V e VI do artigo 45 do estatuto sejam obrigatoriamente judicializadas o mais rápido possível. É que tais medidas podem ser necessárias contra a vontade do idoso e podem implicar em privação de sua liberdade, quando justificada a medida em vista de seu estado.


5-Mecanismos Processuais

Os direitos previstos na lei em análise comportam quatro mecanismos básicos de processualização das pretensões: a ação de aplicação de medida de proteção; o procedimento judicial de apuração de irregularidades, a ação ordinária e a ação civil pública.

A aplicação de medida de proteção poderá ser feita pelo Ministério Público e, pelo que se depreende da lei, não há concurso obrigatório da instância judicial, sendo este recomendável em alguns casos, como já visto. Mas poderá, também, ser objeto de ação diretamente movida pelo órgão ministerial.

A ação ordinária poderá ser movida pelo próprio idoso, ou curador, e pelo Ministério Público, pois está autorizado a atuar como substituto processual (4), em vista do quanto preconiza o artigo 74, inc. III da Lei nº 10.741/03.

Esta possibilidade põe termo à discussão acerca da possibilidade de ingresso, por parte do Ministério Público, de ação para proteção de direito individual indisponível quando o beneficiário seja idoso. É que existem posicionamentos que negavam a legitimidade para o ajuizamento de ações em beneficio de um indivíduo em questões referentes, por exemplo, à saúde. Tal orientação por certo que se escudava no fato de que a ação civil pública é típico instrumento de proteção de direitos coletivos.

Todavia, é bom que se perceba que na hipótese de legitimação prevista pela nova lei não há propositura de uma ação civil pública, mas de uma demanda ordinária.

No que se refere às entidades de atendimento, a lei criou uma série de obrigações, previstas nos incisos do artigo 48, verbis:

"I- oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança;

II - apresentar objetivos estatutários e plano de trabalho compatíveis com os princípios desta Lei;

III - estar regularmente constituída;

IV - demonstrar a idoneidade de seus dirigentes".

Também o artigo 50 especifica uma série de obrigações:

"Art. 50- Constituem obrigações das entidades de atendimento:

I - celebrar contrato escrito de prestação de serviço com o idoso, especificando o tipo de atendimento, as obrigações da entidade e prestações decorrentes do contrato, com os respectivos preços, se for o caso;

II - observar os direitos e as garantias de que são titulares os idosos;

III - fornecer vestuário adequado, se for pública, e alimentação suficiente;

IV - oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade;

V - oferecer atendimento personalizado;

VI - diligenciar no sentido da preservação dos vínculos familiares;

VII - oferecer acomodações apropriadas para recebimento de visitas;

VIII - proporcionar cuidados à saúde, conforme a necessidade do idoso;

IX - promover atividades educacionais, esportivas, culturais e de lazer;

X - propiciar assistência religiosa àqueles que desejarem, de acordo com suas crenças;

XI - proceder a estudo social e pessoal de cada caso;

XII - comunicar à autoridade competente de saúde toda ocorrência de idoso portador de doenças infecto-contagiosas;

XIII - providenciar ou solicitar que o Ministério Público requisite os documentos necessários ao exercício da cidadania àqueles que não os tiverem, na forma da lei;

XIV - fornecer comprovante de depósito dos bens móveis que receberem dos idosos;

XV - manter arquivo de anotações onde constem data e circunstâncias do atendimento, nome do idoso, responsável, parentes, endereços, cidade, relação de seus pertences, bem como o valor de contribuições, e suas alterações, se houver, e demais dados que possibilitem sua identificação e a individualização do atendimento;

XVI - comunicar ao Ministério Público, para as providências cabíveis, a situação de abandono moral ou material por parte dos familiares;

XVII - manter no quadro de pessoal profissionais com formação específica."

O cumprimento destas obrigações e a observância dos princípios inscritos no artigo 49 serão levados a efeito "pelos Conselhos do Idoso, Ministério Público, Vigilância Sanitária e outros previstos em lei" (artigo 52, caput).

Mas em caso de descumprimento dos deveres acima referidos, há previsão de dois procedimentos para apuração das irregularidades, sendo um de cunho administrativo e outro de natureza judicial.

A estes procedimentos, aplicam-se subsidiariamente as Leis nº 6.437/77 (que trata das infrações à legislação sanitária federal) e 9.784/99 (que regula o processo administrativo no âmbito federal) além do CPC.

Não há especificação casuística de legitimados, podendo qualquer interessado e o Ministério Público darem início ao processo. Por aplicação subsidiária do CPC, é de se entender que a exordial deve se conformar ao figurino do artigo 282 do Estatuto de Ritos Civil.

Há previsão da possibilidade de afastamento liminar do dirigente da entidade (artigo 66) em caso de fatos graves, sempre ouvido previamente o Ministério Público, se ele próprio não for o requerente, por óbvio.

O prazo de defesa previsto é de dez dias e após haverá instrução ou julgamento da causa no Estado em que se encontra, após apresentação de alegações finais, cujo prazo é de 05 dias, o mesmo de que dispõe o magistrado para decidir.

A ação civil pública para proteção dos direitos do idoso está prevista no artigo 74, inc. I, da Lei nº 10.741/03, tendo por escopo "proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do idoso".

A menção específica ao direito individual indisponível como objeto de ação civil pública pode afastar o reconhecimento de ilegitimidade ad causam do Ministério Público, o que vem sendo apontado por julgados esparsos (5).

Uma vez que pode dispor da ação civil pública para fazer valer a observância dos direitos previstos na lei, também poderá, como, aliás, expressamente dispõe o diploma, utilizar-se do inquérito civil.

Gera-se uma dualidade de instrumentos no que se refere à proteção dos direitos individuais indisponíveis e individuais homogêneos, pois tanto poderá órgão ministerial atuar como autor (em ação civil pública) como ajuizar demanda ordinária na condição de substituto processual. Atualmente, com a introdução da antecipação de tutela e com a previsão da tutela específica nas obrigações de fazer (artigo 83 da Lei nº 10.741) (6), uma ação ordinária dispõe de instrumentos processuais tão eficazes quanto a ação civil pública. Mas é de se apontar que a ação civil pública apresenta restrições quando às obrigações de dar coisa certa ou incerta, pois o artigo 3º da Lei nº 7.347/85 fala em obrigação de pagamento de dinheiro ou de fazer ou não fazer. Esta limitação não existe em relação às ações ordinárias.

Para as ações civis públicas estão legitimados: I - o Ministério Público; II - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; III - a Ordem dos Advogados do Brasil; IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos 1 (um) ano e que incluam entre os fins institucionais a defesa dos interesses e direitos da pessoa idosa, dispensada a autorização da assembléia, se houver prévia autorização estatutária.

Em caso de ações propostas por associações, a eventual desistência, da mesma forma que ocorre com as ações previstas no CDC, não implica, ipso facto, extinção do feito, podendo o Ministério Público assumir a demanda.

Verdadeira superfetação existe no artigo 82, parágrafo único, que prevê que "contra atos ilegais ou abusivos de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições de Poder Público, que lesem direito líquido e certo previsto nesta Lei, caberá ação mandamental, que se regerá pelas normas da lei do mandado de segurança". Ora, as espécies referidas no preceptivo correspondem exatamente aquelas legitimadoras do mandado de segurança, ou seja, o caso é precisamente de ajuizamento de mandado de segurança.

Igualmente confusa a redação do artigo 83, parágrafo primeiro, da Lei 10.741/03. Ali se diz que "sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, na forma do art. 273 do Código de Processo Civil".

Se entendemos que a referência a "na forma do artigo 273 do CPC" significa que este artigo será aplicado integralmente, inclusive no que se refere aos pressupostos, então a menção a fundamento relevante e receio de ineficácia do provimento final são absolutamente inócuas, devendo considerar-se a necessidade de prova inequívoca e verossimilhança lá previstas.

Por outro lado, se considerarmos que "na forma" significa trâmite processual, ou seja, necessidade de pedido, possibilidade de fungibilidade e conseqüências práticas, então os pressupostos referidos como fundamento relevante e possibilidade de ineficácia, em verdade restringem a antecipação de tutela específica da lei em relação àquela genérica do CPC.

Dessarte, não refere a legislação especial à possibilidade de abuso do direito de defesa, que é objeto do inciso II, do artigo 273 do CPC, reduzindo o espectro de abrangência das possibilidades de concessão da antecipação de tutela.

A menção a um fundamento relevante igualmente é problemática, visto que completamente subjetiva. O que se há de considerar "fundamento relevante"?

Assim sendo, a melhor exegese do dispositivo é aquela segundo a qual o objetivo da nova lei foi ampliar e não reduzir a possibilidade de antecipação de tutela, porquanto se fosse para manter o mesmo regime já existente, bastaria utilizar o artigo 273 do CPC.

E se o legislador entendeu por bem em produzir diploma específico para o idoso, isto significa que sua proteção sob o prisma processual é especial, vale dizer, vai além daquela prevista na legislação codificada.

Logo, devemos entender que nos caos de direitos previstos no Estatuto do Idoso, será aplicável a antecipação de tutela do CPC, mas que poderá ser invocado igualmente o pressuposto da relevância de fundamento, que poderá derrogar a necessidade de prova inequívoca prevista no artigo 273 do CPC, bastando ao magistrado concluir, em manifestação devidamente fundamentada, que os fatos narrados e as provas apresentadas, que não precisarão ser inequívocas (caso contrário não haveria necessidade de menção de outro fundamento), constituem substrato para concluir tratar-se de um fundamento relevante.

O parágrafo terceiro do mesmo artigo 83 estabelece a possibilidade de utilização das astreintes como mecanismo de coerção. O emprego das astreintes, há algum tempo admitidas expressamente em nosso direito positivo (7), significa um grande avanço na execução da obrigação de fazer e de não fazer, por implicar uma forma de contornar o dogma da incoercibilidade pessoal, de origem arraigada no liberalismo-iluminista e no positivismo jurídico do século XIX.

Mas seu emprego em vista do Estado demanda preocupação. Em outra oportunidade (8), já teci uma análise acerca da questão, ocasião em que conclui que a multa diária contra a Fazenda não é o melhor meio de coerção. Não é o caso aqui de reproduzir os argumentos lá expendidos em sua totalidade, mas se pode afirmar que em alguns casos, revertendo a multa diária a benefício da parte, poderá ocorrer que seja mais vantajoso para esta a inadimplência duradoura do que o imediato cumprimento da obrigação.

O não cumprimento imediato da obrigação de fornecimento de um medicamento de algumas dezenas de reais, estabelecido em decisão liminar, por exemplo, poderá ensejar para a parte um benefício de algumas centenas ou milhares de reais.

Ora, é inadmissível que ocorra uma tal subversão no sistema, onde a parte ingressa em juízo postulando o cumprimento de uma obrigação e, no entanto, tem uma resposta melhor às suas necessidade exatamente no atraso, na mora no cumprimento desta mesma obrigação.

A eventual canalização dos recursos provenientes de multas para fundos, como o previsto no artigo 84, caput, da Lei nº 10.741/03 na prática teria por conseqüência a ocorrência de uma das situações que é comumente invocada como fundamento para se denegar o bloqueio de valores como meio de execução de obrigações de fazer contra a Fazenda Pública, qual seja a transferência orçamentária sem previsão legal, ou a destinação específica de valores para caso individualizado, com violação do mérito administrativo e ingerência entre poderes, em afronta ao artigo 2º da CF/88.

Deve o magistrado, em vista destas ponderações, atentar para a melhor forma de coerção, sendo de lembrar que no caso acima referido, relativo a medicamentos, o bloqueio de valores teria o mérito de limitar-se ao exato valor da medicação, ao passo que a multa diária poderia ter, ao fim, valor elevado e ainda ter por corolário uma demora ainda maior na satisfação da obrigação.

Estabelece o artigo 86 que nas ações relativas ao capítulo (capítulo III), não haverá adiantamento de custas e o Ministério Público está isento de sucumbência.

Há julgados que preconizam a possibilidade de fixação de honorários em vista da sucumbência do órgão ministerial em ação civil pública, em especial se houvesse má-fé, arcando com a verba o Estado (9).

Esta distinção, no entanto, não é feita na nova lei, ao contrário do que ocorre com o artigo 18 da Lei nº 7.437/85. Daí se inferir que a impossibilidade de condenação em honorários é absoluta para o Ministério Público.

Ainda no campo processual, foi prevista a priorização do trâmite dos feitos (artigo 71) e a necessária intervenção ministerial nos feitos relativos a direitos previsto no estatuto (artigo 75).

Esta última hipótese de intervenção carece de interpretação restritiva.


6- Aspectos Penais

O título VI é destinado aos crimes. O artigo 93 inicia por afirmar aplicáveis subsidiariamente as disposições da Lei nº 7.437/85, o que parece pouco provável na seara penal, visto que a lei em pauta trata da ação civil pública.

O artigo 94 determina que são aplicáveis as disposições da Lei nº 9.099/95 aos crimes previstos na nova lei e que tenham pena máxima cominada inferior a 04 anos. Significa dizer que a transação penal e a suspensão condicional do processo poderão ser aplicadas a estes delitos.

Esta ampliação poderá conduzir a interpretações analógicas que venham a estender a quaisquer outros crimes esta possibilidade, tal como ocorreu com a Lei dos Juizados Especiais Federais.

Não me parece que uma tal interpretação seja legítima, porquanto o artigo em testilha a limita aos "crimes previstos nesta lei".

Ademais, são notórios os benefícios auferidos com os JEC, porém daí não se pode inferir que as medidas de descarcerização previstas em seu rito possam servir de apanágio para o "desafogamento" dos presídios às custas da eficácia da repressão penal.

O equilíbrio parece ser a solução, e a extensão dos benefícios a delitos com penas de até quatro anos não se me antolha uma boa solução na medida que se abarca uma série de infrações com relativa gravidade.

Diante dos claros termos do dispositivo, "legem habemus", e nos crimes previstos na Lei nº 10.741/03, não há dúvidas da aplicação do rito previsto na Lei nº 9.099/95. O malefício será se esta disposição for estendida a qualquer crime.

A ação penal é sempre pública incondicionada (artigo 95), não sendo aplicáveis os artigos 181 e 182 do CP, relativos aos crimes contra o patrimônio. O primeiro refere-se às "escusas absolutórias" (10), e o segundo reporta-se à necessidade de representação quando o delito é cometido contra certas pessoas (11).

No que se refere aos tipos, a nova lei criou novas figuras e substituiu outras já previstas, como é o caso do abandono material (artigo 98), da exposição à perigo(fl 97 e 99), da desobediência (artigo 100, inc. IV), de apropriação indébita (artigo 103), e exercício arbitrário das próprias razões (artigo 104).

Recomenda-se, assim, que todas as vezes em que a vítima for idoso se faça uma prévia consulta a lei específica para proceder-se ao enquadramento legal da conduta eventualmente apurada.

A nova lei operou mudança na alínea "h" do artigo 61, inc. II, do CP, estabelecendo a incidência da agravante desde que a vítima tenha mais de 60 anos de idade, critério que antes estava a cargo da construção pretoriana e da doutrina.

Foi alterada a redação do parágrafo 4º, do artigo 121 do Código Penal, que passa a vigorar com a seguinte redação:

"§ 4º-No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos".

Ao artigo 133 do CP (relativo ao abandono de incapaz), parágrafo 3º, foi acrescido um inciso III, com a seguinte redação: "se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos."

Foi alterada a redação do § 3º do artigo 140 do CP, havendo menção à utilização da idade como elemento para a injúria, que figura, inclusive, como causa de aumento de pana (artigo 141, inc. IV).

A idade superior a 60 anos também é causa de qualificação do delito de cárcere privado e seqüestro.


7- Conlusões

Após quinze anos de vigência da Constituição e Federal, foi colmatada a lacuna legislativa existente em relação ao idoso.

A nova lei apresenta, sem dúvida, equívocos, mas todos os diplomas legais os apresentam. Cumpre ao intérprete suprir estes equívocos através da inteligente interpretação da lei.

E o grande problema do Estatuto do Idoso é o mesmo de todo e qualquer diploma que cria obrigações positivas para o Estado. É que a materialização dos direitos contemplados nesta espécie de diploma acaba invariavelmente criando obrigações positivas que apresentam titulares individuais especificáveis. A violação destes direitos gera pretensões cujo exercício na prática implicam atividade estatal voltada a um indivíduo ou grupo, interferindo o Judiciário nesta determinação. Haveria neste caso invasão de competências? Há malferimento ao princípio da separação de poderes?

A rigor, o julgador efetivamente se interpõe entre o administrado e o Estado. Ocorre que a função primária do Poder Judiciário é exatamente restabelecer a legalidade, e sem dúvida que a violação de um direito contemplado em lei representa uma ilegalidade.

A questão é difícil e demanda cuidado, sob pena de indevida ingerência do Poder Judiciário em matéria de alçada administrativa, qual seja, a destinação de recursos públicos.

Neste caso, a questão traduz-se na postura que temos diante da própria Constituição, e é cediço que a hermenêutica clássica é incapaz de fornecer mecanismos aptos à resolução dos problemas da exegese constitucional.A respeito, é pertinente a lição de Gilmar Ferreira Mendes, verbis:

"Parece hoje superada a idéia que recomendava a adoção do chamado método hermenêutico clássico no plano da interpretação constitucional. Como se sabe, esse modelo assenta-se em duas premissas básicas: (a) a Constituição, enquanto lei há de ser interpretada da mesma forma que se interpreta qualquer lei; (b) a interpretação da lei está vinculada às regras da hermenêutica jurídica clássica" (12).

A solução dos conflitos de princípios e normas constitucionais, que apresentam sob o ponto de vista formal a mesma hierarquia em vista do princípio da unidade constitucional, faz-se com o descortinar de uma dimensão que transcende à mera legalidade formal, observando as grandes diretrizes históricas, políticas e sociais.

É por isso que diante da relevância dos direitos em pauta, não resta outra alternativa viável que não seja considerar possível a intervenção do Poder Judiciário.

Como bem asseverou o Desembargador Wellington Pacheco Barros no julgamento da apelação cível nº 70008257388, do TJRS, acerca de ação que condenou Município do Rio Grande do Sul a construir abrigo para idosos:

"Com efeito, a extrema relevância do caso em questão e a omissão, para não dizer descaso, do requerido, surge para o Poder Judiciário, como manda seu ofício, determinar o cumprimento da Lei.

É obrigação do Município assegurar aos idosos carentes, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, consoante o disposto no artigo 3º, da Lei 8.842/1994, e também no artigo 230, da Constituição Federal".

Não há, na hipótese, indevida ingerência de competências, mas sim reposição da legalidade, pois como lembra o Ministro Celso de Mello:

"As situações configuradoras de omissão inconstitucional- ainda que se cuide de omissão parcial, derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva, fundada na Carta Política, de que é destinatário- refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário" (13)

Em outra oportunidade, ressaltou que:

"A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos" (14).

Se temos uma Constituição Cidadã, que prestigia uma visão solidarista do Direito, e que deve ser aplicada dentro de uma perspectiva vinculativa e dirigente, então há que se privilegiar uma exegese que conduza à efetiva materialização destes direitos.

Ao não admitirmos a intervenção do Poder Judiciário, estamos conduzindo a realização do direito subjetivo concretamente a um impasse.

Se alguém deixa de ter assegurado o exercício de um direito, então há uma violação à lei, devendo haver pronta intervenção do Poder Judiciário.

Dir-se-á que o exercício dos direito passará a ser uma questão de quem ingressa em juízo. A assertiva não deixa de ser correta. Todavia, uma vez que há ampla legitimidade ao Ministério Público, associações e OAB, dentre outros órgãos e entidades, fica afastada a possibilidade de que o poder econômico ou a instrução de cada indivíduo venham a se tornar os fatores decisivos de diferenciação entre aqueles para os quais a lei realmente representa uma realidade e aqueles que ficam a sua margem.

A lei não é o Direito em sua completude. É apenas o ponto de partida e um mecanismo que fornece a direção inicial. Agora dispomos de mais um mecanismo, cujo emprego mais eficaz somente será construído através da tentativa e da discussão, que apenas se inicia.


NOTAS

  1. A respeito: "DIREITO CONSTITUCIONAL. É solidária a obrigação da União, Estado e Municípios, na defesa da saúde e da vida do cidadão, aí incluído o fornecimento de remédios ao cidadão carente (inciso II, artigo 23, da CF). DIREITO PROCESSUAL CIVIL. A ilegitimidade só estará no plano da ação, quando ela for manifesta (inciso II do artigo 295 do CPC). Se a ilegitimidade não for manifesta, a questão do ter ou não a obrigação desloca-se para o mérito. Sendo a solidariedade a nível constitucional, nenhum ato infraconstitucional poderá afastá-la. Recurso conhecido, mas improvido, confirmando-se a sentença." (Apelação Cível nº 2002.001.24075, 11ª Câmara Cível do TJRJ, Rel. Des. Maurílio Passos Braga. j. 19.03.2003).
  2. Ver ad exemplum: "ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. CONCURSO PÚBLICO. BRIGADA MILITAR. LIMITE DE IDADE. LEGALIDADE DA ESTATUIÇÃO DE LIMITE MÁXIMO DE IDADE PARA ACESSO A DETERMINADOS CARGOS PÚBLICOS. Atendimento dos princípios norteadores do direito administrativo, como da legalidade, e razoabilidade. Constitucionalidade do limite de idade estabelecido para o ingresso na Brigada Militar pelo Decreto Estadual nº 37.536/97, que regulamentou os requisitos para acesso a carreira militar, conforme autorizado pela Lei Complementar Estadual nº 10.990/97 (art. 10, par. único). Mandamus improcedente. Recurso provido. Reexame necessário prejudicado. "(Apelação e Reexame Necessário nº 70004962015, 3ª Câmara Cível do TJRS, Rel. Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino. j. 21.11.2002).
  3. O decreto foi alterado pelo Decreto nº 5.155/04 em vários dispositivos.
  4. Como cediço, substituto processual é aquele que litiga em nome próprio em vista de direito alheio. Aquele que litiga em nome de outrem representa
  5. Ad xemplum: "AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. Não há legitimidade para o Ministério Público propor ação civil pública, quando postula direitos individuais conduz a ilegitimidade a propositura. Possível a propositura só na defesa de interesse difusos ou coletivos. Condenação na sucumbência só na hipótese de má-fé. Precedentes jurisprudenciais. Exegese do art. 18 da Lei nº 7347/85. Provimento parcial". (Apelação Cível nº 1999.001.10092, 9ª Câmara Cível do TJRJ, Rel. Des. Reinaldo P. Alberto Filho. j. 23.11.2000).
  6. Dispositivos semelhantes existem no CPC (artigo 461), ECA (artigo 213) e CDC (artigo 84).
  7. No CPC de 1939, havia a ação cominatória. O artigo 287 do CPC também prevê a possibilidade de cominação de multa diária.
  8. Vide o meu "Execução das Obrigações de Fazer contra a Fazenda Pública e seus meios de coerção" (http:www.ufsm.br/direito/ artigos)
  9. O Ministério Público não está sujeito, na via eleita, ao pagamento de honorários advocatícios, salvo no caso de comprovada má-fé, quando os ônus da sucumbência deverão ser carreados à Fazenda Pública (Agravo de Instrumento nº 1995.01.26895-0/GO (00105217), 3ª Turma do TRF da 1ª Região, Rel. Juiz Eustáquio Silveira. j. 14.09.2000, Publ. DJ 07.12.2000 p. 109).
  10. "Art. 181- É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo: I - do cônjuge, na constância da sociedade de conjugal; II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural." As escusas absolutórias são causas de isenção de pena, e portanto, atuam na culpabilidade do ato.
  11. "Art. 182- Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo: I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado; II - de irmão, legítimo ou ilegítimo; III - de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita".
  12. Gilmar Ferreira Mendes. Jurisdição Constitucional. O controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, Saraiva, 3ª edição, 1999. p. 338.
  13. ADIN 1.458/DF.
  14. ADIN 1484/DF.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Apontamentos iniciais sobre o Estatuto do Idoso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 572, 30 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6233. Acesso em: 28 mar. 2024.