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As marcas jurídicas nos textos das tragédias helênicas.

Um exame histórico-conceitual

As marcas jurídicas nos textos das tragédias helênicas. Um exame histórico-conceitual

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Estudo de temas e conceitos jurídicos nas obras dos trágicos da Grécia Clássica, por meio de um levantamento histórico-conceitual das marcas do discurso jurídico nos textos da tragédia ática.

Resumo: O presente trabalho é um exame histórico-conceitual das marcas do discurso jurídico nos textos da tragédia ática. A abordagem do problema é feita por duas vias: primeiro, uma descrição do papel das contendas jurídicas na vida ateniense da época. Depois, parte-se dos próprios textos dos tragediógrafos, relacionando-o com contexto social e psicológico que permitiu que trechos dessas obras fossem vazados numa linguagem jurídica. Para tanto, são focalizados trechos das obras Édipo Rei, de Sófocles, e As Troianas de Eurípedes no qual se demonstra como a linguagem dos tribunais atenienses fossem apropriados pelos escritores trágicos.

Palavras-chave: Tragédia grega. Direito. Édipo Rei. As Troianas.


1 Introdução

O trabalho aqui apresentado focaliza a presença de temas e conceitos oriundos do campo jurídico nas obras dos trágicos da Grécia Clássica. É, antes de mais nada, um levantamento histórico-conceitual das marcas do discurso jurídico nos textos da tragédia ática. O artigo foi articulado nas seguintes partes: uma apresentação geral sobre o fenômeno das tragédias na Atenas do século V a.C. seguido de uma discussão sobre as relações entre os textos trágicos e o discurso jurídico presente nos tribunais gregos da época. Logo após, o último capítulo focaliza trechos das tragédias no qual fiquem patentes as ligações entre os campos jurídico e trágico. Faz-se um percurso hermenêutico que parta dos próprios textos dos tragediógrafos e vá ao encontro do contexto social e psicológico que permitiu que trechos dessas obras fossem vazados numa linguagem jurídica.


2 Sobre o Trágico e a Tragédia na Hélade clássica

Hans-George Gadamer, ao defender a distinção entre os métodos e objetos das Ciências da Natureza (Naturwissenschaft) e os das Ciências do Espírito (Geistwissenschaft), trata do problema de como se encarar o conceito de clássico para além da tensão entre conservadorismo e historicismo. Para ele, o clássico seria algo diverso de uma época ou conceito histórico, mas, sim

[...] um modo característico do próprio ser histórico, a realização histórica da conservação que, numa conservação constantemente renovada, torna possível a existência de algo verdadeiro [...] é clássico o que se mantém em face da crítica histórica, porque seu domínio histórico, o poder vinculante de sua validez, a qual se transmite e se conserva, já está antes de toda reflexão e em meio a esta se mantém (GADAMER, 2002, p. 431).

O clássico seria um a priori hermenêutico em nossa consciência histórica, um significado perene e independente de contingências temporais, um presente simultâneo a todos os presentes históricos possíveis. A tragédia helênica, por mais arraigada em sua época e sociedade, é um exemplo perfeito de clássico nos termos estabelecidos por Gadamer.

Essa consideração inicial pode ser o guia para se responder a seguinte questão: quais motivos podem levar o homem contemporâneo a entrar em contato direto com as tragédias da Atenas clássica? A estranheza no primeiro contato é patente; decorrente de uma miríade de valores e ações presentes nas tragédias que não correspondem nem à nossa bagagem cultural de matriz cristã-judaica e nem mesmo a nossos padrões racionalistas advindos da modernidade. Ademais, nossa tendência em fragmentar e compartimentar aspectos de nossas vidas em campos isolados, também uma herança da modernidade, não consegue deslindar por completo um evento que é, simultaneamente, político, religioso, social e estético. Logo, a tragédia seria objeto de estudo para especialistas da antiguidade helênica, ou seja, é algo inacessível para o leigo sem um treinamento específico em filologia e história clássicas.

Mas como explicar, então, a profusão de traduções e de encenações dessas peças, mesmo no século XXI? Como ignorar que a partir da do nascimento da exegese da psique humana elaborada por Freud em inícios do século XX, Édipo deixou de ser apenas um mito e começou a habitar em nossas almas, como um dado em nossa constituição psíquica[1]? Assim como a esfinge de assolava Tebas, a tragédia continua a nos mirar com um olhar interrogativo e distante – e não temos a esperança de conseguirmos a resposta diante dos questionamentos por ela colocada. Segundo Francisco Marshall (2000, p.11 e 12):

Mercê um continuado esforço interpretativo realizado por várias áreas das ciências humanas, a tragédia grega é lida como um objeto de interesse por quase todos os campos da reflexão humanística, da antropologia à crítica literária, da filosofia à história, da lingüística à psicologia, não prosperando, sob intensa interdisciplinaridade, visões unilaterias ou circunscrições disciplinares que pretendam restringir o campo de análise deste intricado fenômeno.

Destaque-se nesta polifonia de temas e áreas do saber que convergem para os textos trágicos que nos chegaram à presença indelével do discurso jurídico ático. Não sendo o Direito uma abordagem interpretativa da Tragédia e sim, como ver-se-á, parte constituinte desta.


3 A Tragédia e o discurso jurídico

Ao iniciar seu ensaio Façons tragiques de tuer une femme, Nicole Loraux assim caracteriza o espetáculo trágico apresentado ao público ateniense no Século de Péricles:

“Mortes representadas em cena, grandes dores, ferimentos”: acontecimentos da tragédia, espetáculos para os olhos. Considerando os exemplos dados por Aristóteles para ilustrar sua definição do pathos trágico como “ação causadora de destruição ou dor” (Poética, 1452 b 11-13) quem poderia duvidar um instante sequer de que, no teatro ateniense, a morte não tenha sido realmente exposta à visão do espectador? Thanatói en tói phanerói: agonias em público, assassínios diante dos olhos de todos... (LORAUX,1985, p.1).

Tal perspectiva deixa evidente como crimes, e como veremos, crimes de sangue, são elementos constantes nos enredos elaborados por Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. O enredo da trilogia Orestéia de Ésquilo ilustra perfeitamente o caráter violento e brutal dos textos trágicos: em meio a expedição marítima em direção à Tróia, a deusa Ártemis condiciona a continuação do percurso ao sacrifício de Ifigênia, filha do líder da armada aqueia, Agamémnon. Consumada a imolação, os barcos gregos voltam a seu destino e depois de dez anos de conflito, e com a destruição dos troianos, o rei tantálida retorna ao lar, em Argos. Vingando-se do crime de sangue perpetrado contra sua filha pelo próprio pai, a rainha Clitemnestra – juntamente com seu amante Egisto – assassinam o rei átrida. Electra e Orestes, também filhos do casal real, dão continuidade a auto-destruição da casa dos átridas, ao vingarem a morte do pai assassinando a própria mãe.

Esse relato superficial da trilogia esquiliana já serve como exemplo corroborador da tese de Nicole Loraux sobre o espetáculo sangrento que era encenado nas dionisíacas urbanas. E dá sentido ao uso do discurso jurídico na performance verbal dos personagens trágicos.

Além do enredo das peças, outros fatores contribuíram para esse encontro do Direito com a Tragédia. O espírito do ágon – a competição agressiva – presente na mentalidade helênica gerou não apenas o gosto pelos jogos e atividades esportivas[2]. A sanha ateniense em se recorrer aos tribunais e a massa considerável de processos públicos e privados daí originados são também decorrentes dessa marca da civilização grega. Mesmo os contemporâneos tinham ciência do fato de que “as pessoas recorriam a justiça com deplorável facilidade, que as prestações de contas e as leitourgía[3]i eram formigueiros de processo, que a falta de um ministério público multiplicava a praga dos sicofantas” (GLOTZ, 1980, p.205). A cidade tornou-se motivo de ironias mesmo dentre seus e habitantes. O comediógrafo Aristófanes dedicou toda uma peça, As vespas, a satirizar o sistema jurídico ateniense e o modo como ele propiciava o principal meio de subsistência a um grande número de cidadãos. Em outra peça, As nuvens, um de seus personagens, Estrepsíades, ao ser apresentado a um mapa de Atenas diz espantado “que diz? Não acredito, pois não estou vejo os juízes sentados no tribunal...” (Nub. vv. 205 - 210). Mesmo Tucídides, com um estilo austero e grave – e distante das ironias aristofânicas – assumia que os atenienses têm “a fama de gostar de disputas judiciais” (TUCÍDIDES, I,77). Bernard Knox sintetiza a situação do seguinte modo

Para o estrangeiro, Atenas era uma cidade de tribunais; para o cidadão ateniense, o processo legal fazia parte de sua vida diária, numa medida difícil de imaginar. Os grandes júris e as longas sessões, a freqüência e a multiplicidade de ações legais, públicas e particulares, em toda esfera imaginável e, acima de tudo, a ausência de uma classe profissional, os advogados, e a conseqüente obrigação de fazer pessoalmente a própria defesa, tudo isso fez com que os cidadãos atenienses se familiarizassem com o procedimento legal como parte corriqueira de sua existência como cidadãos. Tecnicalidades legais eram tão corriqueiras em sua boca quanto palavras de uso doméstico (KNOX, 1998, p. 68).

As tragédias também eram marcadas pelo espírito agônico da disputa. Os tragediógrafos competiam anualmente entre si nos festivais das dionisíacas urbanas por um prêmio. Contudo, a relação entre o Direito helênico e as tragédias não se limita ao fato de partilharem o mesmo espírito competitivo. Uma das características mais recorrentes na linguagem trágica é a utilização de termos jurídicos e mesmo de técnicas argumentativas originárias dos debates judiciais da Atenas democrática. Ou seja, o uso de termos técnicos, que segundo Knox, fazia parte do vocabulário cotidiano do ateniense, havia se imiscuído também no discurso trágico. Para o helenista francês Jean-Pierre Vernant (2005, p.3)

A presença de um vocabulário técnico de direito na obra dos trágicos sublinha as afinidades entre os temas prediletos da tragédia e certos casos sujeitos à competência dos tribunais [...] Os poetas trágicos utilizam esse vocabulário do direito jogando deliberadamente com suas incertezas, com suas flutuações, com sua falta de acabamento: imprecisão de termos, mudanças de sentido, incoerências e oposições que revelam discordâncias no seio do próprio pensamento jurídico, traduzem igualmente seus conflitos com uma tradição religiosa, com uma reflexão que o direito já se distinguira, mas cujo domínios não estão claramente delimitados em relação ao dele..

O direito, no contexto helênico, não existe como um discurso autônomo e coerente, mas sim como uma série de procedimentos oscilando entre dois (ou mais) planos fundamentais: o do humano, marcado pela autoridade e força; e o divino, o sagrado – a justiça de Zeus. A tragédia surge como o campo discursivo no qual se mostra “uma diké[4] em luta contra uma outra diké, um direito que não está fixado, que se desloca e se transforma em seu contrário” (VERNANT, 2005, p.03). Tal tensão é nítida, segundo a maioria dos intérpretes, na Antígona de Sófocles, como Hegel,  no conflito entre a protagonista e Creonte, mas antes de abordarmos detidamente esse caso, devemos compreender outros aspectos da concepção jurídica dos antigos helenos.

Mesmo em conceitos fundamentais para a compreensão do que é o trágico concorrem termos oriundos do Direito. Segundo Rachel Gazolla (2001, p. 56):

O que normalmente se nomeia culpa trágica é hamartía que, no rigor do termo, significa doença do espírito, falta, erro, falha. É enviada pelos deuses e fixa-se como ponto engendrador do crime trágico. Na linguagem jurídica, hamartón e ádikon indicam um delito contra a justiça.

Existe uma diferença entre a concepção de delito entre o mundo contemporâneo e o Direito ático dos séculos VI a IV a.C.. A partir da Ilustração, nomeadamente de Kant, é que se fundamenta rigorosamente a oposição entre o cosmos; regido pela necessidade e o determinismo; e o âmbito do Sollen (dever-ser), terreno da Razão Prática, caracterizado pela finalidade definida pela vontade e autonomia humana. Para Kant (2002, p.55) “a autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres conformes a elas [...] portanto a lei moral não expressa senão a autonomia da razão prática pura, isto é, da liberdade [...] (grifo do autor)”. Por outro lado, no contexto grego, o cidadão não possuiria uma concepção autônoma de si mesmo – uma interioridade constitutiva do indivíduo[5]. O indivíduo é uma construção essencialmente social e não um “eu” fundamentado numa subjetividade cartesiana clara, evidente e absoluta. A conseqüência disso era que

Não há lei senão para o fato efetivo, exteriorizado como tal. Uma ação resulta em algo visível, e é esse resultado que se leva em conta. O ideário que permite pensar na intencionalidade não tem, ainda, fundamento nessa época, à falta da noção de individualidade (GAZOLLA, p. 58).

Tal cenário passava por uma ebulição no século V a.C. A filosofia socrática e sua busca por auto-conhecimento, a oposição entre physis e nômos na sofística[6] e um certo recuo na força tradicional da família e dos oráculos e adivinhos possibilitou aos indivíduos um maior protagonismo na vida pública. Um processo lento, é certo, talvez mesmo inacabado no contexto do mundo clássico, pois a individualidade por excelência seria uma criação cristã[7]. Mas, sem dúvida, o início da construção do elo entre subjetividade, ação e responsabilidade se iniciou na Atenas clássica – sendo os espetáculos trágicos um locus privilegiado na constituição desse fenômeno. Para Jean-Pierre Vernant (2002, p.365):

As transformações das estruturas sociais, da família, a própria fundação da cidade grega como unidade que supera os grupos familiares desembocam no fato de que é a cidade e o tribunal que passarão a regulamentar a vingança. Antes da fundação do tribunal, antes de Drácon, o que acontecia quando alguém era morto? Havia a obrigação da vingança para todos os membros da família contra aquele que havia cometido o assasinato. O sangue chamava o sangue. Com a cidade, isto acabou. Passou a existir o tribunal. Então, o acusado e o acusador estavam frente a frente. Expunham seus argumentos . pesavam-se os prós e contras. Tentava-se perceber a natureza da falta. Se o crime foi cometido de propósito ou se, simplesmente, durante uma rixa, posto que um atacou e o outro se defendeu.

A transição descrita no trecho acima deixou suas marcas na tragédia. Se os tribunais se questionavam acerca da relação entre ser humano e ação[8], os tragediógrafos também colocam esse problema. A seguir tentaremos demonstrar em duas outras tragédias, Édipo Rei e As Troianas, indícios e marcas da semântica jurídica/judiciárias em seus textos.


4 Édipo Rei, de Sófocles: investigação e culpa

A tragédia Édipo Rei (430 a.C.) é para muitos a obra paradigmática do que foi a Tragédia grega. Nela se encontra “aquele aspecto do trágico de Sófocles, em que o ser humano se vê entregue a forças irracionais, sendo por elas impelido à desgraça e ao horror” (LESKY, 1996, p. 180). Não surpreende então que boa parte da peça centre-se na busca do assassino de Laio encampada por Édipo que envolve “tanto a ação legal particular (pois segundo a lei ática era o indivíduo, e não o Estado, quem processava por assassinato) como uma ação político-legal pública (pois o homem assassinado era rei de Tebas)” (KNOX, 1998, p.68). O que faz de Édipo Rei também uma peça de investigação policial – mais de um autor considerou o texto de Sófocles como o texto fundador do gênero policial na literatura – e, portanto, não é de se estranhar o recurso a terminologia jurídica presente nos debates entre os personagens. Exemplo disso pode ser aferido no seguinte diálogo, presente em Édipo Rei (vv. 95-102), no qual Creon (Creonte) comunica a Édipo o parecer de Apolo acerca da praga que atingia Tebas:

CREON: Escutarás tal qual ouvi do deus [Apolo].

Sem circunlóquio, Foibos, pleniluz,

Mandou-nos expulsar o miasma. Aqui

Cresceu, e há de crescer, se não ceifado.

ÉDIPO: Como nos depuramos? Qual desgraça?

CREON: Caçar o réu, pagar com morte o morto:

que escarcéu faz na polis este sangue!

ÉDIPO: Quem teve o azar da sorte, o deus o indica?

“Indicar” ou “informar” – mênyei – é um termo técnico dos tribunais referente a “uma denúncia apresentada perante a assembléia ateniense no que dizia respeito a crimes passados que o informante considerava dignos de investigação, mas que não podia ele próprio levar a juízo, uma vez que não era um cidadão” (KNOX, 1998, p. 69). No caso, o não-cidadão era o deus Apolo[9], que via o Oráculo de Delfos, trazia uma informação vital para o caso do assassinato de Laio: a identidade do criminoso. Esse seria apenas um exemplo dentre outros das marcas da linguagem jurídica no texto do Édipo Rei: o estabelecimento de uma comissão de investigação, recompensa e imunidade relativa a um denunciante envolvido no crime, procedimentos processuais idênticos ao de um processo meramente legal (KNOX, 1998, p. 70-91).


5  As Troianas, Eurípedes: a retórica dos tribunais no palco

Em 415 a.C. estréia em Atenas As Troianas, de Eurípedes, quase imediatamente após a sangrenta conquista de Melos[10] pelas forças da Liga de Delos. Na peça, Eurípides apresenta a situação calamitosa das mulheres troianas após a conquista da cidade pelos exércitos aqueus. A interpretação generalizada é que a peça é a condenação da guerra pelo ponto de vista de suas vítimas. É neste cenário, na versão de Eurípides para o ciclo troiano, que Menelau e Helena se reencontram. O ímpeto do rei espartano, incentivado por dez anos de guerra e pelas palavras da rainha troiana Hécuba, é matar a fugitiva. Contudo, ela pede a oportunidade de se defender:

HELENA: Talvez a mim – se bem ou mal eu parecer falar –

Não retrucarás que me julgas inimiga.

Mas eu, àquilo do que tu, creio, discutindo,

Me acusarás, responderei pondo em face

às tuas, minhas – e tuas – acusações.

Primeiro, essa [Hécuba] gerou as origens dos males,

Paris tendo gerado: depois, o velho [Príamo]

destruiu Tróia e a mim, ao não matar o bebê,

acre imitação de um tição – Alexandre, então.

A partir daí, o restante escuta como é.

Aquele julgou um triplo jugo de três deusas:

Bem o dom de Palas para Alexandre era

despovoar a Hélade, comandando frígios;

Hera jurou que sobre a Ásia e os limites da Europa

Paris, se a escolhesse, teria a soberania;

Cípris, com minha aparência se estonteando,

prometeu dá-la, se ultrapassasse as deusas

em beleza. Observa minha fala seguinte:

Cípris vence as deusas, e minhas bodas nisso

serviram à Hélade: nem dominados por bárbaros,

nem pego em armas, nem sob tirania.

No que a Hélade foi afortunada, eu fui destruída,

Vendida pela formusura, reprochada

Por quem deveria coroar minha cabeça. [...]

Castiga a deusa e sê mais poderoso que Zeus,

o qual tem domínio sobre os outros numes,

mas daquela é escravo: assim compreende-me.

[...] se pretendes dominar

os deuses, aspirar a isso é estúpido de tua parte (vv. 914-937; 948-950; 964-965)

A obra de Eurípedes, pródiga em contradições e influências das mais diversas, já foi ajustada às mais variadas interpretações: racionalismo extremado, defensor da religiosidade tradicional, manipulador de efeitos cênicos patéticos. Quem mais, na literatura clássica, faria “Hécuba raciocinar em termos de natureza e de lei quando o terror e a piedade por seus grandes infortúnios começavam justamente a nos arrancar lágrimas” (CASSIN, 1990, p.38). Não nos cabe aqui entrar nessa querela secular, mas apenas mostrar que o mundo dos tribunais atenienses também forneceu técnicas e conceitos para os diálogos presentes nas peças de Eurípedes, como a defesa de Helena acima transcrita evidencia. Nela fica clara a utilização da retórica jurídica na linguagem poética da tragédia. Para Werner Jaeger (2001, p.402) “a disputa retórica tornava-se cada vez mais um dos principais atrativos do teatro”. As contendas entre a ama e Fedra no Hipólito e entre Penteu e Dioniso nas Bacantes, além do já citado debate entre Hécuba e Helena nas Troianas, seriam exemplos de “artimanhas e sofismas desta sutileza retórica”, que fariam “um deliberado alarde de advocacia, e a sua verbosidade desperta nos contemporâneos ao mesmo tempo admiração e repugnância” (JAEGER, 2001, p. 402).

Helena, em sua autodefesa, tenta convencer a todos que a culpa, e a conseqüente responsabilidade pela Guerra de Tróia, não é sua e sim do poder de Cípris – a deusa Afrodite. Numa época em que surgiam os primeiros passos em direção a uma subjetividade que rompia com a tradição arcaica que ainda impregna as tragédias de Ésquilo e Sófocles, Helena tenta objetivar no poder de Cípris uma culpa que seus acusadores consideram subjetiva. Em outras palavras, o motor de suas ações não foi elaborada em sua consciência subjetiva, individual, e sim por um fator externo – a vontade não-humana de um nume. Por mais que em Sófocles a culpa de Édipo seja impulsionada por suas ações, o herói trágico ainda “é ‘culpado’ no sentido da maldição que pesa sobre eles, mas são ‘inocentes’ para nossa concepção subjetivista” (JAEGER, 2001, p. 403).  No lugar de personagens monolíticos do ponto de vista psicológico, com motivações claras, Eurípedes nos oferece indivíduos que padecem de uma psique dilacerada entre ditames racionais e emocionais: “Temos a noção e a percepção do que é honesto, mas não pomos em prática” (Hipólito, vv. 380-381) afirma Fedra, em consonância com Medeia que diz “Sim, percebo a perversidade que me atreverei a praticar, mas a paixão se sobrepõe às minhas decisões” (Medeia, vv. 214-216). O emergir dessa ligação necessária entre um eu responsável e minhas ações acabou por “esfumaçar as fronteiras entre culpabilidade e inocência” nos tribunais áticos segundo Jaeger (2001, p. 403).


6 A título de encerramento

Os dois exemplos acima citados servem como ilustração de como o discurso jurídico era utilizado no contexto trágico e cênico da tragédia grega. Tais exemplos não esgotam de modo algum tal fenômeno que não se limita ao que foi apresentado. O conflito entre Direito Natural e Direito Positivo na Antígona de Sófocles é um dentre outros exemplos que poderiam corroborar a tese aqui defendida. 

O pensamento e práticas jurídicas que surgem nas tragédias não são parâmetros estáticos e sim algo que, assim como a sociedade grega da século V a,C., estava problematizando uma série de valores tradicionais daquele contexto. Se a cidade pensa e reflete – e sente – a si mesma no espetáculo trágico, as dinâmicas e contradições inerentes a pólis são inerentes às tragédias. Em uma cidade no qual a vida nos tribunais faz parte do cotidiano, a intersecção entre o trágico e o jurídico mais que uma circunstância fortuita se mostra como inelutável.


7 Referências bibliográficas

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Notas

[1] SERRA, 2008, p. 13-66.

[2] Sobre a noção de ágon entre os gregos cf. Kieslowski, 2005.

[3] Uma leitourgía é o financiamento de algum serviço público (religioso e militar, dentre outros) que partia de algum dos cidadãos ricos de Atenas. Cf. GABRIELSEN, 2010.

[4] O campo semântico de DIKH compreende desde “costumes”, “uso”, até “lei” e “direito”, passando por “processo particular movido por um indivíduo contra outro”. Cf. LIDDEL; SCOTT, p. 202 e 203.

[5] Sobre o caráter social e exteriorizado da psicologia do grego no período arcaico, Dodds (2002, p. 41) afirma que “foi uma infelicidade para os gregos que a idéia de justiça cósmica – que representava um avanço com relação à noção anterior de poderes divinos puramente arbitrários,e que conferiu uma sanção para a nova moralidade cívica – acabasse sendo associada à concepção primitiva da família, pois isso implicou que o peso do sentimento religioso e da lei decorrente bloqueasse a emergência de uma verdadeira visão de indivíduo, concebido como uma pessoa com direitos e responsabilidades próprios”.

[6]

[7] Cf. o modelo acabado desse paradigma da subjetividade que é construído no livro II de O Livre-Arbítrio de Santo Agostinho (1995).

[8] O problema também é tratado pela filosofia, desde o intelectualismo ético socrático até o tratamento dado por Aristóteles ao fenômeno da akrasia no Livro VII da Ética à Nicômaco (1985).

[9] Esse curioso dado, Apolo – um deus – ser considerado um estrangeiro, algo de difícil entendimento para nossa mentalidade cristã e universalista, pode ser compreendido a partir de algumas observações de Marcel Detienne sobre a relação entre a vida das póleis e os deuses: “Os deuses não se prendem à esfera do acessório ou do supérfulo. Fazem parte do essencial ao cotidiano [...] não se deveria concluir, apressadamente, que em última instância a cidade grega se encontra de fato sob a dominação dos deuses. Ao contrário, a prática das assembléias [...] levaria a pensar que, de certa maneira, as potestades divinas estão sujeitas às decisões da comunidade dos homens” (DETIENNE; SISSA, 1990, p. 233).

[10] Melos foi invadida em 416 a.C. pela Liga de Delos liderada por Atenas como parte da guerra destes contra a Liga do Peloponeso, encabeçada por Esparta. 


Autor

  • Anderson Cleiton Fernandes Leite

    Anderson Cleiton Fernandes Leite

    Possui bacharelado e licenciatura em História pela Universidade de Brasília (2003) e mestrado stricto senso em Filosofia pela mesma instituição (2007). Concluiu, em 2010, curso de especialização lato sensu em Docência Superior: Metodologia e Práticas Aplicadas ao Ensino Superior (Centro Universitário Euro-Americano. Atualmente é professor do curso de Direito do Centro Universitário Unieuro.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Anderson Cleiton Fernandes. As marcas jurídicas nos textos das tragédias helênicas. Um exame histórico-conceitual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5302, 6 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63184. Acesso em: 6 maio 2024.