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Estatuto do Desarmamento

irracionalidade, ilegitimidade e inconstitucionalidade

Estatuto do Desarmamento: irracionalidade, ilegitimidade e inconstitucionalidade

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SUMÁRIO: 1. Irracionalidade – 2. Ilegitimidade – 3. Inconstitucionalidade: 3.1 Da liberdade provisória; 3.2 Das normas penais incriminadoras – 4. Considerações finais – 5. Bibliografia


Resumo: O Estatuto do Desarmamento, lei n. 10.826 de 22 de dezembro de 2003, para além de suas características de duvidosa juridicidade, representa epítome de um processo de produção legislativa desmesurada na seara penal, tida por remédio para uma sensação de insegurança que assola as sociedades brasileiras. No presente trabalho, visa-se à mostra de que este tipo de diploma legal só traz enfraquecimento da democracia, falta de legitimidade da ordem jurídica, de par com inconstitucionalidades de todo gênero.

PALAVRAS-CHAVE: direito penal; estatuto do desarmamento; medo; democracia; direito de liberdade; princípio da legalidade; inconstitucionalidade


1. Irracionalidade

            Já se apercebeu boa doutrina do que se espraia nefastamente nas sociedades brasileiras, especialmente grandes metrópoles, trazendo um terror cotidiano, inafastável. Trata-se da cultura do medo. (1) Com efeito, sob essa clâmide de fobias, de paranóias, de neuroses de superdimensionamento do fato social (2) crime, criam-se legislações de atropelo, autênticas carreiras a pisotear o já malversado sistema punitivo brasileiro. Sintetiza Nilo Batista, com precisão, a inflação legislativa causada por diplomas aprovados populística e apressadamente:

            "[...] criminalistas podem perceber com antecipação tempos sombrios, porque dispomos de uma antena muito sensível: a demanda de repressão penal. O emprego inflacionário do sistema penal é o sinal que nos adverte para uma intranqüilidade, um medo social [...] (3)

            A demanda de punição, de que fala o autor, tem o condão de destruir qualquer resquício de racionalidade na condução da polis. Aliás, já previu no século XVII o filósofo Espinosa a qualidade triste que ao sentimento medo se poderia atribuir. Influenciado por esta triste paixão, desenvolveria o indivíduo uma falsa compreensão da realidade, guiar-se-ia por idéias imaginativas, inadequadas, teria tolhida sua capacidade de razão. Obstado desta compreensão do mundo por suas verdadeiras relações, perderia o homem, em última análise, sua capacidade de ser livre. Tornar-se-ia servo. (4)

            Pesa reconhecer que exatamente a melancólica figura vislumbrada pelo filósofo holandês encontrou, e encontra, no Brasil – ao lado de boa parte do mundo ocidental – vergonhoso habitat. Inúmeros os episódios em que a razão política da sociedade, modus faciendi et operandi de sua democracia, rendeu-se ante a força da demagogia. A década de 1990 foi nisso fecundo e Débora Pastana elenca alguns exemplos.

            Em 1999, infeliz projeto de emenda constitucional foi apresentado por um grupo de seis parlamentares, liderados pelo ex-governador de São Paulo Luiz Antônio Fleury Filho. Queriam que se pudesse condenar os sujeitos ativos de crime hediondo a prisão perpétua e trabalhos forçados. Contaram com o apoio do então Ministro da Justiça, Renan Calheiros. (5)

            A própria Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072 de 25.07.1990), autêntica contra-reforma legislativa aos princípios liberais que impregnaram a Reforma da Parte Geral do Código Penal pela Lei n. 7.029 de 10.7.1984 (6), recebeu abomináveis – como já não fora abominável a própria lei – achegas repressivas ao tempero das modas midiáticas relacionadas aos tipos penais supostamente mais praticados em determinado momento histórico. Assim em 1994, quando foi alterada a primeira pela Lei n. 8.930, de iniciativa do gabinete do então Presidente da República Itamar Franco, com o fito de incluir em sua enumeração o crime de homicídio qualificado. Dita alteração teve inspiração em campanha organizada pela escritora de novelas Glória Perez, cuja filha, anos antes, fora vítima dessa espécie de crime, em rumoroso evento. (7)

            Já no final daquela década, com base em "escândalo nacional" de venda de pílulas anticoncepcionais feitas somente de farinha, incluiu-se, mediante a Lei n. 9.695/98, o inciso VII-B no sobrecitado corpo normativo, aderindo o crime de falsificação de "produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais" ao seu afrontoso elenco de restrições a direitos de liberdade (8).

            Por fim, registre-se que somente após episódio na Favela Naval de Diadema, quando policiais protagonizaram embaraçosas arbitrariedades, foi dada à luz Lei integradora do mandamento constitucional de aplicabilidade imediata e eficácia limitada que fazia alusão ao crime de tortura, até a então não tipificado em nosso sistema penal. Fala-se da Lei n. 9.455 de 07.04.1997. (9)

            Estes exemplos são a mostra cabal de que o sentimento triste de que nos enche o medo exerce decisiva influência nos rumos político-criminais dados ao país, principalmente após a redemocratização na década de 1980. (10) A propósito, faz Vera Malaguti Batista a seguinte advertência:

            "[...] a análise da transição da ditadura para a democracia (1978-1988) levou à percepção do deslocamento do inimigo interno para o criminoso comum que permitiu que se mantivesse intacta a estrutura de controle social e mais investimentos na ‘luta contra o crime’. As campanhas maciças de pânico social produziram um avanço sem precedentes na internacionalização do autoritarismo." (11)

            Mais crédito deve ser dado a Espinosa se se contrastarem dados mais recentes sobre criminalidade, brasileiros e alienígenas, com o incremento desmesurado que para com o temor da violência criminal se tem visto nos mesmos períodos.

            Barry Glassner, sociólogo americano que de há muito pesquisa o medo social, apresenta estatísticas e cruzamentos de dados por demais elucidativos, dentre os quais se destaca este: um estudo da Universidade de Emory, nos Estados Unidos, mostra que a maior causa de mortes dentre os homens (doenças cardíacas) não foi tão coberta pela mídia quanto a 11ª (homicídios); e que de 1990 a 1998, o número de assassinatos naquele país decresceu 20%, enquanto o número de reportagens sobre tais crimes ascendeu 600%. (12)

            Ainda nos Estados Unidos, a taxa geral de crimes per capita em 2002 é a menor desde 1973. A taxa de crimes violentos declinou 21% no período de 2001-2002, em relação aos dois anos precedentes. Mais respeitante ao assunto deste artigo, 66% dos crimes violentos em terras norte-americanas não envolveram armas em 2001. A utilização de armas de fogo em tais tipos de crime mostrou-se, neste período, menor do que no de 1993 a 1996 (13). Por fim, de 1993 a 2001, ao passo que o número de homicídios caiu 36%, a mesma estatística correlata a homicídios praticados com armas de fogo apresentou queda de 41%. A taxa geral de crimes violentos acompanhados de porte de arma de fogo apresentou declínio de 63% (14).

            No Brasil, estatística do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que o número absoluto de homicídios por mês no Estado do Rio de Janeiro diminuiu de aproximadamente 650 em julho de 1991 para menos de 600 em janeiro de 2003, posto que houvesse no longo interregno grandes oscilações. (15)

            Vale ressaltar que as estatísticas oficiais à disposição de pesquisadores e, de quando em vez, ventiladas pela imprensa sedenta de notícias de impacto ou por políticos em busca de aceitação da população às custas da exploração de seus medos, são precárias e eivadas pelo fenômeno das cifras negras da criminalidade (16). Não oferecem, pois, grandes subsídios para a compreensão do fato social criminoso neste país, senão quando visam a reproduzir a simbologia do medo (17). Salvam-se raras, em geral organizadas pelas próprias pesquisas de campo de organizações universitárias e não-governamentais.

            É, dessarte, de convir em que a simbologia operada pela difusão da paixão triste que é o medo só causa o prosperar da falta de liberdade. Os cidadãos se escondem, prendem-se, afastam-se. Nada é suficiente para lhes saciar a busca por uma segurança que nunca virá, pois combate um inimigo mais simbólico, psicossocial, do que concreto. Correção há atribuir a Jean Claude Chesnais, quando diz:

            "Não se pode levar em conta a insegurança que sentimos para orientar uma política penal. Seria a mesma coisa que levarmos em conta nossa percepção da inflação para orientar uma política econômica." (18)


2. Ilegitimidade

            Em verdade, a situação de medo acima descrita ataca o próprio princípio democrático. Já se disse que a liberdade de quem tem medo, e por ele se deixa dominar, sofre censura de uma compreensão inadequada da realidade. Perde-se, pois. Não se cuida apenas da liberdade pessoal, que encontrou em José Afonso da Silva feliz conceituação: "liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal" (19). Cuida-se, mais abrangentemente, da liberdade de participar na geração de direito legítimo, por isso mesmo que justo. Cuida-se da liberdade de influir conscenciosamente nos processos de produção e aplicação da lei. Cuida-se da liberdade comunicativa (20).

            O processo de lento definhar das relações sociais contínuas, cuja interrupção deriva deste mesmo medo, enfraquece os espaços públicos (21), a interação cidadã. Sem a efetiva atividade da comunidade de participantes no processo social, queda-se inefetiva a garantia democrática. As normas produzidas passam a sê-lo emanadas do arbítrio de alguns: os que têm o controle do poder demagógico da atemorização.

            Tamanho o poder da propaganda anitlibertária que inclusive autoproclamados defensores dos direitos humanos e da racionalização da repressão penal tombam diante da ingência do apelo "contra a violência urbana". Só assim se explicam, por exemplo, textos como o do advogado e professor Leonardo Isaac Yarochewsky (22). Após admitir, como linha de argumentação moral a priori, as máximas de direito penal mínimo, a objurgatória ao movimento da lei e da ordem, etc.; tergiversa o professor a tudo isso, nos seguintes termos:

            "Sendo assim, a princípio, qualquer lei criminalizadora que visa o aumento de crimes e o endurecimento de penas deve ser rechaçado. Contudo, no que diz respeito ao tipo penal que prevê para o uso e o porte de arma de fogo sem a devida autorização penas que podem chegar até quatro anos de reclusão, urge outro enfoque." (23)

            Também nesta esteira, o prof. Adelido Nunes, que brinda freqüentemente os leitores do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais com suas serenas e ponderadas ponderações acerca dos mais candentes temas da ciência penal, aparenta ter capitulado perante o falacioso argumento do estímulo à repressão penal como panacéia ao "crescente índice de cometimento de delitos e atos de violência". No artigo que referimos, urde o professor inúmeros argumentos que justifiquem o exacerbado status conferido à compra e ao uso de armas de fogo na qualidade de causas primeiras de quase todos os crimes violentos dados à realidade nesta terra. Dentre todas as furiosas passagens, destaca-se esta, exaltando o potencial de incentivar tais crimes que teria a liberdade provisória com arbitramento de fiança – direito constitucional reconhecido no art. 5º, LXVI, diga-se de passagem:

            "Tão logo publicada [a lei n. 9.437/97, antecessora da 10.826/2003 e por ela revogada], houve a certeza de que em qualquer caso a ação delituosa [...] era absolutamente afiançável. Naquela oportunidade já se sabia que quem fosse pego irregularmente usando qualquer tipo de arma de fogo, quando muito perderia o instrumento, mas jamais haveria privação de sua liberdade [...]. Até hoje é essa a realidade nacional: uma lei branda e estimuladora da comercialização e porte indevido do fatal e crucial instrumento do crime comum e organizado." (24)

            Impende apor, em censura ao considerado pelo autor, que mesmo em crimes de dano (delitos de lésion, como gostam os espanhóis) cujo objeto jurídico é a vida, tirante o caso do homicídio qualificado, incluído por vias sinuosas no rol dos hediondos, garante-se, ope constitutionis, a liberdade provisória. Não se ouve, nada obstante, tanto contra a lassidão na repressão destes crimes quanto na do porte ilegal de arma de fogo.

            De qualquer sorte, não ficaram sós os dois últimos e doutos professores citados. O deputado Luiz Eduardo Greenhalg, defensor dos direitos humanos e relator do projeto – em verdade, Substitutivo ao Projeto de Lei do Senado n. 292/1999 – que, na Comissão Mista criada pelo Ato Conjunto n. 1 de 2003, deu origem ao que viria a ser a Lei n. 10.826 de 22.12.2003, também caiu na esparrela. Instado por secretários de segurança dos estados federados a deixar de lado a absurda inafiançabilidade que se queria dar – ao arrepio da constituição, como veremos – a um crime de perigo abstrato, assim respondeu, infelizmente, Sua Excelência:

            "Tornar o crime afiançável é deixar a situação como está hoje, ou seja: a pessoa é presa com uma arma ilegal, é levada à delegacia; o delegado apreende a arma e fixa uma modesta fiança; meia hora depois, o portador da arma ilegal está na rua. Temos que terminar com essa farra." (25)

            Valha embora aqui ressalva igual à feita acerca da opinião do prof. Adelido Nunes, importa perceber em todas elas o abandono de argumentos morais de há muito esposados por eles próprios, em prol de uma adequação pseudopragmática à "realidade". Com efeito, se antes podiam acordar, na posição de participantes de discursos racionais de formação de normas e na posição de potencialmente afetados por estas normas (26), em que se devem proteger os direitos fundamentais da pessoa humana, mormente o de liberdade, em face do arbítrio e do excesso de poder de que o "EstadoGuarda-Noturno" (27) se arrogue por intermédio de discursos demagógicos; defenestraram este princípio moral para privilegiar um outro pragmático, que "resguardasse" a sociedade da "escalada da violência urbana". Valeram as armas de fogo por desculpa. Tudo isto posto que à custa da exprobação de direitos fundamentais conseguidos com muita luta depois de séculos de prevalência do autoritarismo. Aliás, no Brasil, padeceu-se de décadas de regimento militar ilegítimo, consubstanciado, justamente, para manter a "ordem da nação", supostamente sob a álea de uma "baderna generalizada".

            Os direitos fundamentais, de fato, especialmente em um país como o Brasil, cuja tradição democrática mal se desmamou (28), são o que de mais precioso nos legou o constitucionalismo democrático. Sem eles, fenece a própria idéia de Estado Democrático de Direito. Os cidadãos jamais terão aquelas liberdades necessárias para legitimar a formação racional de vontade legiferante, a todos atribuída, nem tampouco gozarão dos direitos políticos e econômicos, sociais e culturais que daquele esperam, justificadamente, receber (29).

            Manifesta-se, destarte, o sistema de direitos fundamentais não só como um complexo de limitações ao poder do Estado (30) – embora em muitos casos ainda persista este o seu objeto principal –, mas como um momento inicial de possibilidade democrática. Através da concepção, interpretação e proteção de seu sistema de direitos fundamentais, uma aglomeração política pode fundir os momentos de autonomia privada e autodeterminação pública, para garantir, a um só tempo, o nascedouro de Direito legítimo e sua legitima aplicação (31).

            José Afonso da Silva, em sentença lapidar, da qual tomamos ensinamento, asseverou, definitivamente, sobre tal classe de direitos: "No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive[...]." (32)

            Não foi neste quadro de respeito e resguardo de direitos, entretanto, que se logrou aprovar a Lei n. 10.826 de 22.12.2003. Realmente. A característica populista que sempre impregnou a atividade legiferante no Brasil concebeu, neste particular, mais um rebento defeituoso. Por muito ainda se vai ter de passar até espontar a República Democrática, pretensamente reintroduzida nestas terras desde 1988, das manchas multíplices que desembocam em diplomas tais como o sobredito.

            Tão evidente a inoperância. Tão patente a solução que nasce dissociada de qualquer efeito prático. Tão límpidos os fins simbólicos a serem implantados pelo advento de um conjunto de normas que vão de encontro a qualquer fundamento lógico, característico daquelas resoluções que tencionam solucionar o problema. O Estatuto do Desarmamento, um rebelde sem causa; um condenado ao imediato malogro. E o pior: seu destino iniludivelmente traçado em direção ao fiasco procederá não sem conspurcar todo tipo de direitos individuais fundamentais, todo tipo de garantias internacionais liberais às quais se uniu este país com significativa delonga.

            Dúvidas não deixa o atual estágio da perspectiva penológica quanto ao descabimento do mero incremento da cominação de penas com vistas à diminuição da incidência social de determinado comportamento tipicamente descrito em norma penal incriminadora. Vale dizer: A autonomia intimidatória da lei penal, notadamente em sociedades políticas como a nossa, encontra embotamentos consideráveis. Vê-se sensivelmente reduzida.

            As teorias utilitaristas da pena, que a advogam como um elemento de auxílio jurídico à redução do cometimento futuro de delitos, desde logo, obtemperaram em que muito pouco pode o direito penal nessa área. Intervenção primária, secundária e terciária, conceitos da criminologia e da sociologia criminal dispõem de potencial para muito melhores resultados.

            A proteção de bens jurídicos essenciais mediados pelos interesses públicos primários, de dignidade constitucional (33), contra condutas que os profligam, gerando dano social, é a solitária incumbência ainda afeta ao Direito Penal (34). Ditos bens jurídicos, broquelados por um conteúdo normativo, cuja expressão imediata é o tipo penal, recebem incremento em sua autoridade por intermédio, precisamente, de sua inserção no ordenamento jurídico-penal. Revestem-se da posição de bens jurídico-penais (35).

            Ora, esta proteção que pode o ordenamento penalístico fornecer perde muito de sua magnitude em face do vagar da prestação jurisdicional, que afasta o cometimento do fato da aplicação da correlata sanção; da escassa e seletiva publicidade aos julgamentos de crimes, salvante os que envolvam situações ou pessoas famosas; do não-alcance penal de alguns tipos de delitos, tipicamente conduzidos à socapa por pessoas que não figurariam entre os tradicionais clientes da justiça punitiva; do desconhecimento de grande parte da lei repressiva pela maioria da população. (36).

            À teoria da prevenção geral negativa (37), portanto, como único móbil de prudência a orientar a produção legislativa (38), comete-se inegável fracasso. Nada obstante, precisamente esta a mentalidade norteadora de conjuntos legais tais qual o Estatuto do Desarmamento. Sob influxo do incrível – no sentido etimológico da palavra – sofisma de que quanto maior for a pena jungida a determinada conduta criminosa, menor será sua perpetração, edita-se este esquizofrênico cadinho de punições desproporcionais, de violações dos direitos fundamentais mais diversos, de agressão à boa técnica jurídica.

            Ao lume das considerações já tecidas, ressalta a obviedade de que as penas altas, a vedação à liberdade provisória com fiança e à sem fiança, nada disso necessariamente ilide a motivação criminosa do agente. Até porque, se se busca desbaratar organizações, quadrilhas criminosas, pense-se em que, à evidência, jamais dispuseram elas de armamento legal. Nem quando a ilegalidade consubstanciava mera contravenção, tampouco a partir da edição da Lei n. 9.437 de 20.02.1997, agora tida por ab-rogada pela lei n. 10.826 de 22.12.2003. Tendo em vista que não se podem ver ao jugo da autoridade administrativa, ou sob sua fiscalização, suposto que o próprio Estado-Administração leva a cabo a persecutio criminis, os criminosos profissionais, habituais, sempre se valeram de armas ilegais, muitas delas de uso exclusivo do exército.

            O simples editar de novas sanções penais, sejam mais rigorosas ou mais flébeis, traz antes insegurança jurídica;quase nunca, segurança pública. É que, especialmente no caso de armas ilegais, muito mais importante do que a dureza da resposta penal, sempre post facto, afigura-se a fiscalização que proíba a entrada de armas contrabandeadas no país e sua venda, assim como a das de alienação e fabrico permitido no Brasil a quem não as pode adquirir, já porque não as quer registrar, já porque busca aquelas de uso não-permitido exceto para as Forças Armadas.

            Abancada a deslegitimidade e irracionalidade do Estatuto do Desarmamento, em sua parte penal, resta, agora, analisar em que arrosta ele, diretamente, a deontologia constitucionalmente posta.


3. Inconstitucionalidade

            3.1 Da liberdade provisória

            A parte penal da lei de que se cuida aqui veio afivelada a um objetivo de banir o uso de armas de fogo do seio da sociedade brasileira. Comprova-o seu art. 35, que proíbe, sob condição suspensiva da realização de referendo em 2005 (§ 1º do mesmo artigo), a "comercialização de armas de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei (39)".

            Sob esta égide e iludido pelo suposto potencial intimidativo das altas penas criminais e do rigor no processamento de seus crimes (40), optou o legislador, desavisadamente, por fazer das normas penais ali inscritas um feixe de arbitrariedades, desproporcionalidades e inconstitucionalidades.

            A primeira, mais afrontosa e clara como o sol do meio dia, é vedação da liberdade provisória com arbitramento de fiança, em alguns tipos, e a total insuscetibilidade de liberdade provisória, com ou sem fiança, em outros. Por proêmio, há argumentar a consolidação cabal da distinção, que em doutrina e jurisprudência já se fazia entre um e outro instituto. (41)

            Com efeito. Se no art. 14, parágrafo único e 15, parágrafo único disse a lei que os crimes das respectivas cabeças são inafiançáveis, ao passo que no art. 21, estipulou que "os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória"; se os primeiros têm penas cominadas menores que os últimos e, finalmente, se a boa hermenêutica ordena não considerar inúteis nenhumas expressões da lei, daí há mister de extrair que nos crimes dos arts. 14 e 15, ambos nos seus capites, é defesa, tão-só, a concessão de liberdade provisória via arbitramento de fiança, ou seja, as hipóteses do art. 322, e 322, parágrafo único c/c 323, e 324 do CPP, estes interpretados pelo avesso. Nada se diga disso quanto ao caso do art. 321 e do art. 310 e seu parágrafo único, também do estatuto penal adjetivo.

            Demais disso, ler na palavra "afiançável" o grupo de palavras "liberdade provisória com ou sem arbitramento de fiança" seria trair a literalidade para fazer interpretação extensiva in malam partem. Em que pese ao ponderado entendimento de boa doutrina no sentido de que se não pode banir tal modalidade interpretativa do elenco do aplicador da lei penal (42), certo é que mesmo quanto a isto há de haver enorme mesura. Mais ainda: toda interpretação legal parte da Constituição, que consagra princípios e direitos fundamentais aptos a salvaguardar a normatividade da lei em seu caminho na senda que lhe quis dar o poder constituinte. Estes préstimos jamais serão negligenciados pelo intérprete. Aqui, posto que fosse admitida a interpretação extensiva, teria esta de sucumbir ante a proteção constitucional que se outorgou à liberdade, à dignidade da pessoa humana, à legalidade, à confiança ético-moral apriorística no indivíduo. Como de sabença, tudo o que restringir tais grupos essenciais da Carta Magna e do sistema de direitos nela inscrito, está destinado à restritividade.

            Todo o precedente, contudo, faz-se por amor à argumentação, sem embargo da aplicação do mesmo raciocínio aos crimes hediondos ou assemelhados, por exemplo. É que qualquer das vedações citadas – à liberdade provisória com arbitramento de fiança ou à liberdade provisória tout court – traz a nódoa de flagrante inconstitucionalidade. Se não vejamos.

            A normalidade constitucional induz a liberdade. A liberdade é a regra (43), a praxe. Se nada há que modifique a situação jurídica do cidadão, sua liberdade deve ser preservada e tem o estado o dever de assegurá-la, direito fundamental que é.

            Em verdade, o princípio da presunção de inocência (44), "nada mais representa que o coroamento do due process of law. É um ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda sociedade livre." (45) Ao par da previsão constitucional expressa, na qual se vê um autêntico direito público subjetivo e fundamental à não-culpabilidade prévia à sentença condenatória passada em julgado (art. 5º, LVII da CF/88), tem escudo um tal direito em copiosos textos normativos internacionais (46), de que é exemplo mais próximo o: art. 8, alínea 2 da Convenção Americana sobre Direito Humanos ("Pacto de San José de Costa Rica") de 1969. Por estas precisas razões, bate-se a doutrina unissonamente, a revezes em vão, pela leitura restritivíssima a ser dada às medidas intraprocessuais que importem em constrição ao status libertatis do réu ou indiciado.

            Qualquer prisão provisória, quer em flagrante, quer preventiva, quer decorrente da decisão de pronúncia, quer decorrente de sentença condenatória recorrível, quer temporária, deve revestir-se dos requisitados de cautelaridade. São, realmente, dentre as medidas cautelares, as mais gravosas. Ferreteiam a garantia maior do indivíduo. Não têm, pois, condição de aplicação, senão quando o caso concreto, com as provas parciais que oferece ao julgador, autoriza-as, sob o pálio seguro do art. 312 do CPP. Nesta esteira, bem sintetizou Breno Melaragno Costa: "Qualquer medida de caracter preventivo em face da presunção de inocência tornou-se exceção na ordem jurídica." (47)

            Ora, se é o direito à não-culpabilidade prévia à condenação definitiva – ou direito à presunção de inocência – a normalidade que quis a constituição fazer irmanar-se ao direito de liberdade; se a própria Lei Maior agiganta seu acervo de proteção a este último direito por meio de uma série de garantias, tais como a do habeas-corpus (art. 5º, LVIII), a do relaxamento de flagrante (art. 5º, LXV), e a da liberdade provisória (art. 5º, LXVI); se se coaduna esta garantia com o direito à aplicação personalíssima das penas e das medidas de constrição em análise profunda e particularista de cada situação pessoal posta ao jugo da Justiça Criminal; se, por derradeiro, a própria Constituição Federal estipulou peremptoriamente em quais tipos de delitos se não poderia conceder liberdade provisória com arbitramento de fiança, os chamados crimes "inafiançáveis" – a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo, os definidos como hediondos, a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, e a prática do racismo –, previstos no art. 5º, XLII, XLIII e XLIV; se tudo isso for, como de fato é, verdade, ganhará o reino dos céus – como diria, em gracejo, Tourinho Filho – quem explicar de onde o legislador ordinário achou que teria poderes para vedar a liberdade provisória, ao alvedrio seu, para crimes cujas penas máximas não transcendem, em sua maioria, os seis anos.

            Nem se venha levantar, ingenuamente, que o art. 5º, LXVI consagra a expressão "quando a lei admitir". Ora, está claro que a lei referida é a que regula os requisitos genéricos da aplicação do instituto. Trata-se do Código de Processo Penal, em seus arts. 310; 310, parágrafo único, e 321, et. seq. Seria estólido, certamente, tentar enxergar aí uma norma constitucional de aplicabilidade imediata e eficácia contida (48) no sentido de que pode o legislador ordinário, a qualquer momento, singelamente, apagar um direito constitucional derivado de cláusula tão cara quanto a de proteção a liberdade; máxime em um Estado Democrático de Direito.

            Caso assim não se entendesse, para que os incisos XVLII, XLIII, XLIV do art. 5º? Transparente que se trata de limitação expressa ao direito de liberdade e seus consectários. Só quem deu pode tirar. Reconheceu a Constituição ao homem a liberdade como um seu direito inerente à sua condição, por isso mesmo que fundamental, junto dos direitos formais e garantias que o façam efetivo (49). Só a Constituição pode retirar uma destas e somente em casos particulares. Se não, a dessubstância recairia sobre o instituto mesmo, que de limitado passaria a inócuo.

            Diga-se mais: em nenhum momento citou a Carta Magna "insuscetível de liberdade provisória", consoante se lê no art. 21 da Lei n. 10.826 de 22.12.2003. Ainda por cima, inovou o legislador infraconstitucional. Criou uma forma de limitação à liberdade provisória que a maior das leis do país não havia cometido sequer aos crimes hediondos e assemelhados...

            Ainda neste tópico, atenha-se à seguinte circunstância: a maior das penas cominadas aos preceitos típicos da citada lei não ultrapassa os oito anos de reclusão. A menor das penas dos crimes com restrição à liberdade provisória é dois anos. Ora, em muitos – dir-se-ia na maior parte – dos casos de aplicação do malsinado diploma, haverá a substituição da pena privativa de liberdade por outra, dita alternativa – restritiva de liberdade, pecuniária ou restritiva de direitos (50). Os crimes são de perigo abstrato, de mera conduta. Não há cogitar grave ameaça ou violência que elida a aplicação dos substitutivos penais. Assim, lançado o disparate de forçar alguém a aguardar uma instrução penal inteiramente encarcerado, para, posto que condenado, cumprir pena não-privativa de liberdade, especialmente no caso dos tipos do arts. 14 e 15, que são "só" inafiançáveis e cuja pena máxima, como dito, é quatro anos de reclusão. Mais grave a medida cautelar do que a imposta como sanção principal. Sobeja isto as raias da insanidade, o por que não encontra brechas em sua inconstitucionalidade. O acessório nunca pode ser mais gravoso do que o principal. Melhor deixar, portanto, conforme preconiza o art. 798 do CPC, o poder geral de cautela nas mãos do magistrado competente, que dele não irá, decerto, abusar, porquanto tolhido pelos corretíssimos requisitos do art. 312 do CPP.

            Concessa maxima venia, em conseqüência das considerações ora erguidas, não existe fundamento possível para tal sorte de excrescências. As vedações à liberdade provisória decorrentes do Estatuto do Desarmamento, já aquela dos arts. 14, parágrafo único e 15, parágrafo único, já aquela do art. 21, perfazem a quintessência da absurdidade. São, ao lado disso, rigorosa e totalmente inconstitucionais; e cada vez que algo assim toma assento no Direito deste sofrido país, pensa-se que correto se mostrava o mestre Tourinho Filho:

            "[...] uma vez que o princípio da inocência jamais foi obedecido e acatado, chega-se à inarredável conclusão de que a adesão do nosso Representante junto à ONU, àquela Declaração [Universal dos Direitos do Homem], foi tão-somente poética, lírica, com respeitável dose de demagogia diplomática... E estávamos em pleno regime democrático." (51)

            3.2 Das normas penais incriminadoras

            Não foi só na liberdade provisória a carga lançada pela Lei 10.826 de 22.12.2003 à menoscabada Constituição da República Federativa do Brasil. Agrupa, de modo absolutamente arbitrário, uma coleção de tipos penais azambrados, mal redigidos, um verdadeiro alienígena no sistema penal brasileiro, que já não goza da unidade desejável. Tem como seu grande inimigo, essa lei, o princípio da legalidade constitucional em matéria penal, o qual princípio assume dramaticidade ímpar, por conta da limitação primária que impõe à fúria punitiva do Estado (52).

            Realmente. Constuma-se em doutrina predicar ao mesmo princípio quatro subprincípios que dele se dessumem para perfazer seu anelo, segundo o que se disse, supra. Assim, o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, na dicção que a ele impôs o alemão Feuerbach no século XIX e que hoje perdura em nossa Constituição Federal (art. 5º, XXXIX: "Não crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal") e em nosso Código Penal (art. 1º, com a mesma formulação), desdobra-se em nullum crimen, nulla poena sine lege praevia; nullum crimen nulla poena sine lege scripta; nullum crimen, nulla poena sine lege stricta; nullum crimen sine lege certa (53). A estes subprincípios (54) correspondem, respectivamente, a proibição de retroatividade in malam partem da lei penal, a inaceitabilidade do costume como fonte incriminadora, a vedação à analogia em prol da punição, e o banimento de tipos penais abertos e de redação fluida. De acordo com Assis Toledo:

            "Com a aplicação concomitante desses quatro princípios, contidos por implicitude no princípio geral antes referido, constrói-se a denominada função de garantia da lei penal, que pode também ser entendida como autêntica ‘função de garantia individual das cominações penais.’" (55)

            A advertência atualíssima do douto professor veio em eco de doutrina iluminista e liberal do direito penal, fornecida antanho pela Escola Clássica. Encontrava-se, ainda embrionária na obra máxima do Marquês de Beccaria. Dizia ele: "só as leis podem fixar as penas de cada delito e [...] o direito de fazer as leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social." (56)

            Eram, todavia, modestos os iluministas. Enfrentavam problemas que há muito se expurgaram de nossa mentalidade jurídica. Arrostavam as punições inquisitoriais, os suplícios, a punição ao bel prazer do rei soberano, que tudo podia em seus infindáveis caprichos abonados pelo direito divino. Necessitavam apenas de uma limitação formal. Tão-só a limitação da punição à existência de lei concebida em um parlamento que representasse o povo unido em contrato social já se mostrava grandessíssimo avanço.

            Hoje, após séculos de predomínio mundial, ao menos no plano teórico, da república e da democracia, pode juntar-se à visão formal da legalidade penal uma outra, material, que reclama não por mera feitura de lei, mas que indaga qual será a lei, que perscruta seu conteúdo. Os quatro subprincípios extraídos da legalidade e retro-apontados carreiam para ela facetas materiais. Engrandecem-na, libertam-na de sua formalidade originária e aparente. Fazem-na, como acima se assinalou, garantia político-jurídica da pessoa humana, cuja dignidade impende sempre resguardar, por fundamental ao Estado Democrático de Direito (art. 1º, III da CF/88).

            Calcado nestas razões, pensamos que mais do que desdobramentos do princípio da legalidade, os subprincípios que alargam seu conteúdo estão, em verdade, contidos na expressão lei do brocardo "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". Com efeito, não se trata de uma lei qualquer. É do Estado de Direito, de sua evolução, de sua concepção histórica, de sua consolidação, manter e proteger a liberdade do homem e resguardar sua esfera de escolhas próprias, de livre ir e vir, de acesso à informação, etc. (57) Pontes de Miranda dizia eram os direitos de liberdade autênticos direitos supralegais, representavam o espírito dos direitos fundamentais (the man versus the State), retiravam origem e espeque do direito das gentes. (58)

            Ora, se assim é, a lei que gera, em respeito ao princípio de que se cuida, preceitos incriminadores tem de reunir os requisitos anteriormente descritos: tem de ser prévia à conduta que incrimina; tem de ser lei em sentido formal, como ato complexo desigual (59) emanado primacialmente do parlamento eleito pelo povo; tem de ser lei estrita, na medida em que se não admite integração jurídica pro societate; tem de ser certa, pois que só se legitima o tipo predominantemente descritivo e denotativo, que não causa estranheza ou incerteza no aplicador e no sujeito a quem se lho imputa. Porém, mais do que isso, a lei, prévia, escrita, estrita e certa, que quer criar crimes e cominar penas tem de ser coerente com todo o ordenamento jurídico penal, tem de ser coerente como o sistema incriminador como um todo, pois ao legislador não é dado criar graves distorções entre preceitos e sanções penais.

            É preciso, realmente imperioso, proscrever esta insustentável e demagógica prática, da parte de quem deveria conduzir o povo à sua liberdade, de criar tipos que antecipam mais e mais a punição – daqui a pouco teremos crime de perigo ficto – com penas cada vez maiores, criando distorções evidentes e horrendas. Os crimes de dano ou de lesão, que eram regra em 1941, foram paulatinamente sendo substituídos, no zênite da sociedade de risco por tipos de perigo abstrato, que tencionam evitar a conduta e não a puni-la. O manejo destes crimes, deve-se dá-lo com cautela e sempre em vista do homem, assim o que se pune como o que se protege, sob pena de um Estado que, ao revés de resguardar bens jurídicos – e respectivos interesses jurídicos – cujo dano afronta o próprio convívio social, cria-se em torno do medo. Medo dos cidadãos, uns em relação aos outros dos outros, e de todos em relação ao Estado. Vem de Maquiavel a censura a tal tipo de comportamento:

            "Não deve ser [...] crédulo o príncipe, nem precipitado, e não deve amedrontar-se a si próprio e proceder equilibradamente, com prudência e humanidade, de modo que a tolerância demasiada não o torne incauto e a desconfiança excessiva não o faça intolerável." (60)

            A coerência que se busca não transfere ao mero arbítrio do aplicador da lei a sua validade material. Sem poder afastar todo e qualquer subjetivismo de tal atividade, o que nem mesmo desejável seria, afere-se ela por critérios tão objetivos quanto necessários para legitimá-la como interpretação e não como criação legislativa. O cotejo dá-se entre diversos tipos penais parelhos, especiais e gerais, subsidiários e primários, ou crimes-meio e crimes-fim. Em se utilizando dos critérios do conflito aparente de normas penais, pode o aplicador entrever, pelos absurdos eventualmente produzidos, a incoerências das normas impugnandas. Nullum crimen, nulla poena sine lege cohaerente.

            No caso das condutas tipificadas no Estatuto do Desarmamento, a profusão de incongruências, mormente nos preceitos secundários dos seus artigos, chega a causar espécie pelos exemplos engraçados que geraria. Em seminário, realizado no hotel Glória, no Rio de Janeiro, no início de 2004, o professor Luiz Flávio Gomes fez uma piada que confirma o que se disse. Em tom jocoso, asseverava que se estivesse na rua portando arma ilegal e visse a polícia caminhando em sua direção, apontaria ato contínuo a arma para o primeiro transeunte com que se deparasse, bradando em anúncio ao roubo, o qual, mesmo circunstanciado pelo emprego de arma de fogo, tentado, daria pena mínima menor do que o mero porte de arma, conquanto o do art. 14 daquela lei.

            Teve em linha de conta o preclaro doutrinador o princípio da consunção. O porte ilegal de arma, por servir de meio a crime mais grave, que atinge diretamente a incolumidade física e o patrimônio do lesado, o roubo tentado, torna-se, na progressão criminosa, antefato impunível por este absorvido. (61) Ora, como pode o crime-fim, de lesão, nomeadamente mais grave, ao menos em tese, definhar em reprimenda ante o crime-meio, de perigo abstrato?

            Outros exemplos, múltiplos, por sinal, poderiam ser levantados. É o caso da lesão corporal de natureza grave, cuja pena mínima se mostra menor do que a dos crimes dos arts. 14, 15, 16, 16, parágrafo único, 17 e 18. A de natureza gravíssima, tem pena mínima menor do que a dos arts. 16, 16, parágrafo único, 17 e 18, e igual à dos arts. 14 e 15. Mais vantagem há em usar arma de fogo ilegal para ameaçar alguém – pena de três meses a um ano de detenção, aplicadas em dobro: art. 146, § 1º – do que meramente portá-la – pena de dois a quatro anos de reclusão: art. 14 da Lei n. 10.826 de 22.12.2003. Se se estiver a portar arma de fogo de uso restrito ou proibido, com sinal de identificação adulterado de qualquer maneira, então, é melhor matar alguém; naquele caso, o concurso material do crime do art. 16, cabeça, com um dos do parágrafo único do mesmo artigo, ambos da Lei 10.826/2006, garante pena mínima de seis anos, rigorosamente igual à do homicídio simples, para o qual ainda há, ao oposto, causa de diminuição de pena... (62)

            Resulta dessas considerações: melhor lesionar grave ou gravissimamente (levemente, então, nem se mencione...), constranger ou matar do que somente ter, portar arma de fogo. Melhor levar o resultado a efeito do que apresentar, pela arma, perigo de fazê-lo. Cumpre, pois, indagar: há coerência, há legitimidade, há legalidade, há constitucionalidade nestes tipos penais?

            O que se quer fazer não é nada senão espalhar sobre o princípio da legalidade os efeitos do direito à individualização da pena (art. 5º, XLVI). Circunscreve-se-lhe, normalmente, apenas o momento da sua aplicação e execução, deixando no oblívio o da sua cominação. A lei que refere a Carta Maior não poder ser interpretada restritivamente, para abarcar somente a da execução penal. Também a incriminadora deve individualizar a pena. Deve ser coerente com o sistema. Deve dar margem suficiente, entre o máximo e o mínimo de pena para que o aplicador possa melhor adequá-la segundo o injusto e a culpabilidade do agente. Deve prever qualificadoras, circunstâncias agravantes e atenuantes de tal modo que tenha instrumentos o magistrado para, no fixar da reprimenda, aproximar-se ao máximo da unidade, da particularidade de casa caso concreto.

            Por com nada disso se preocupar, vergasta a Lei n. 10.826 de 22.12.2003, em toda a sua parte penal, o direito público subjetivo à legalidade coerente, à individualização da pena por parte também do legislador. Menospreza, ainda, o princípio da culpabilidade, que traz a conduta típica e antijurídica para a consideração do homem que a perpetrou, o qual não pode ser irracionalmente punido com o escopo de, servindo de instrumento e não de fim, dar resposta populista a um agastamento medroso de uma sociedade confusa. Não pode o Estado, em última análise, usar pessoas humanas, criminosos que sejam, como bodes expiatórios, fazendo a catarse de equívocos próprios com a liberdade alheia.


4. Considerações Finais

            Passa a humanidade por uma crise de humanismo. A descrença no homem traz a fragilidade da democracia e o desprezo pelos seus direitos fundamentais dele. Cada vez mais Hobbes parece tardiamente triunfar. "A história dos direitos humanos e de suas garantias retrata uma luta incessante contra todas as formas de opressão[...]" aduzia em meados do século passado o senador Josaphat Marinho (63). Quase 40 anos após, referendou tal opinião o Professor Stefano Rodotà:

            "Na reflexão jurídica torna-se portanto essencial e inevitável o tema dos direitos fundamentais, a cuja definição e alcance está em boa parte entregue o destino do direito no mundo global. [...] Direitos fundamentais [...] se apresentam não somente como elementos constitutivos da cidadania global, mas como instrumentos necessários para uma forte emersão das razões do direito num momento em que parecem prevalecer outras lógicas, expressão da potência militar e econômica." (64)

            Fato é o de que ainda mourejamos para tornar efetiva a plêiade de direitos a que, desde 1988, conferimos o mais alto grau de cogência jurídica, insculpindo-os na pedra constitucional. Para que de nossa aspiração verta realidade, não podemos jamais olvidar lição de Lachaud, grande advogado francês revivido por Rui Barbosa:

            "A lei é calma, meus senhores: não tem jamais nem sequer os arrebatamentos da generosidade. Assentou ela que a verdade não será possível de achar, senão quando buscada juntamente pela acusação e pela defesa. Compreendeu que nem tudo está nas vítimas, e que também é mister deixar cair um olhar sobre o acusado[...]." (65)


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Notas

            1 Cf. PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo. São Paulo: IBCCRIM, 2003.157 p.; também cuida do assunto de modo crítico, embora não adotando dita nomenclatura expressamente, BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do rio de janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 270 p.

            2 Cf. DURKHEIM, Émile. Prefácio da segunda edição. In: ____________. As regras do método sociológico.14ª ed. Trad. Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo, 1990. p. XX-XXIX: "Os fatos sociais devem ser tratados como coisas.[...] Tratar fatos como coisas [...] é observar, com relação a eles, certa atitude mental. [...] Para nós, consistem eles [fatos sociais] em maneiras de fazer ou de pensar, reconhecíveis pela particularidade de serem suscetíveis de exercer influência coercitiva sobre as consciências particulares."; Cf., também, para maior análise do pensamento deste positivista francês, ARON, Raymond. Les étapes de la pensée sociologique. Paris: Gallimard, 2003. p. 362-366.

            3 BATISTA, Nilo. Um oportuno estudo para tempos sombrios. In: Discursos sediciosos – crime, direito e sociedade, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1996. p. 302. apud BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do rio de janeiro. cit. p. 22

            4 Cf. CHAUÍ, Marilena. Espinosa: Uma filosofia de liberdade. São Paulo, Moderna, 1995. p. 61-63 e 67-68

            5 PASTANA, Débora Regina. op. cit., p. 113

            6 A expressão é de Pastana. Cf. PASTANA, D. R. op. cit., p. 122

            7 Cf. PASTANA, D. R. op. cit., p. 124

            8 Idem

            9 Cf. PASTANA, D. R. op. cit., p. 124-125

            10 Cf. PASTANA, op. cit., p. 45

            11 Cf. BATISTA, Vera Malaguti. op. cit., p. 35

            12 GLASSNER, Barry. The culture of fear: why americans are afraid of the wrong things. New York: Basic Books, 1999 apud PASTANA, D. R. op. cit., p. 77

            13 Cf. CRIMINAL VICTIMIZATION 2001: Changes 2000-01 with trends 1993-2001. Washington: Bureau of Justice Statistics, sept. 2002, p. 1

            14 Cf. WEAPON USE AND VIOLENT CRIME. Washington: Bureau of Justice Statistics, sept. 2003, p. 1

            15 Disponível em . Acesso em 11 abr 2004

            16 Cf. CABETE, Eduardo Luiz Santos. As estatísticas criminais sob um enfoque criminológico crítico. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 11, n. 124, p. 6-7, mar. 2003

            17 Cf. PASTANA, D. R. op. cit., p. 48-63

            18 CHESNAIS, Jean-Calude. Histoire de la violence en occident de 1800 à nos jours. Paris: R. Lafont, 1981 Apud PASTANA, D. R. op. cit., p. 125

            19 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 236

            20 Cf. HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms: Contributions to a discourse theory of law and democracy. Translated by William Rehg. 4th printing. Cambridge: MIT, 2001. p. 176, 178-180. "A soberania comunicativamente fluida dos cidadãos concretiza-se no poder de discursos públicos, que derivam de esferas públicas autônomas[...]" (p. 186). Releva a idéia de autonomia que não se compraz com a ilusão pelo medo e com o arbítrio dela decorrente.

            21 Cf. PASTANA, D. R. op. cit., p. 131-132; Para uma análise de esfera pública, poder comunicativo e soberania popular deles derivada, ver HABERMAS, Jürgen. Popular sovereignty as a procedure. In: _________. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Translated by William Rehg. 4th printing. Cambridge: MIT, 2001. p. 484-486: "A esfera pública funciona como um conceito normativo. Associações voluntárias representam o busílis em uma rede comunicativa, que emerge da interconexão de esferas públicas autônomas( p. 485)".

            É claro que o autor, aí, ao fazer apologia ao associacionismo tal qual Tocqueville estudando a democracia norte-americana, não pensava em reuniões de cidadãos obnubilados por sentimentos que prejudicassem sua capacidade de discussão voltada ao entendimento. Débora Regina Pastana, em sua fantástica e multicitada obra, traz interessante anexo contendo cópia de um abaixo-assinado da lavra do Comitê Nacional das Vítimas da Violência. Exorta-se aos que adiram a esta peça rara pugnarem pela redução da menoridade penal, mediante redução da idade mínima do imputável, de 18 para 16 anos. Encerra-se o manifesto com os seguintes dizeres: "O Brasil quer PAZ, SEGURANÇA E JUSTIÇA. Seja você também um parceiro da PAZ" (PASTANA. op. cit., p. 133). Ante a evidente contradição entre o rogo pela paz e a busca por recrudescimento da repressão corporal pena, a esta associação não se lhe deve conferir alto grau de racionalidade crítica.

            22 YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Armas: pura ilusão. Disponível em: Acesso em: 08 set. 2003

            23 Idem. Engana-se, todavia, douto autor quando limita as penas a quatro anos. Prevê a malfadada – esperamos – Lei n. 10.826/2003 escarmentos que atingem oito anos.

            24 Cf. NUNES, Adelido. Arma de fogo: a inimiga da vida. Disponível em Acesso em: 22 jul. 2003

            25 RELATOR rechaça sugestões a estatuto do desarmamento. Agência Câmara. Brasília, 12 ago. 2003. Disponivel em: . Acesso em: 14 ago. 2003.

            26 Tais requisitos perfazem o princípio do discurso (D), através do qual as máximas e os princípios morais são reconhecidos corretos e, portanto, universalistas, consoante teoria habermasiana. Cf. HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Transl William Rehg. 4th printing. Cambridge: MIT, 2001. p. 107-111.

            27 A expressão é de Vinício Martinez. Cf. MARTINEZ, Vinício C. As primeiras letras do biopoder: a literatura que denuncia as sombras do não-direito. Disponível em: . Acesso em 02 dez. 2003.

            28 É conhecida a contundente afirmação de Sérgio Buarque de Holanda: "A democracia no Brasil sempre foi um grande mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas." Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do brasil.26ª ed. 17ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 160.

            29 Cf. HABERMAS, Jürgen. op. cit., p. 121-123.

            30 Consoante os conceituava Pontes de Miranda. Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à consituição de 1946. Rio de Janeiro: Henrique Cahen, [194?]. p. 148.

            31 Cf. HABERMAS, Jürgen. op. cit., p. 127-131.

            32 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 182.

            33 Figueiredo Dias, acedendo a esta idéia, formula o conceito de "carência de pena" ou "carência punitiva". Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: RT, 1999. p. 250-252.

            34 De ver, sobre o tema do bem jurídico-penal, sua proteção e as diretrizes políticas da atividade do poder de penar do Estado, SMANIO, Gianpaolo Poggio. Tutela penal constitucional. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Rio de Janeiro, ano 10, n. 39, p. 125-147, jul. – set. 2002, e DIAS, J.F., ob. cit., p. 51-87.

            35 Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Parte geral. 4ª ed. São Paulo: RT, 2002. p. 455-456

            36 Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 127-128.

            37 Para minudências sobre as origens, defensores e argumentos desta teoria, cf., por todos, BITENCOURT, C. op. cit., p. 121-128 e QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 35-40.

            38 Registre-se que a crítica vai exatamente sobre a adoção de somente a teoria da prevenção geral quando da concepção de uma norma penal incriminadora. Por certo, um tal idéia desempenha papel importante dentre as missões do direito penal, em geral, e da pena, especificamente, desde que adida a outras teorias. Esta orientação a que acabamos, em linhas mestras, de nos irmanar recebe, na doutrina, o nome de teoria mista ou eclética (cf. QUEIROZ, P. S., op. cit., p. 65 et. seq.) ou teoria da prevenção geral positiva limitadora da pena (cf. BITENCOURT, C. R., op. cit., p. 150-152. Aliás, este autor outorga à teoria mista autonomia, como corrente distinta da da prevenção geral positiva limitadora, o em que diverge de Queiroz).

            39 Elenca o art. 6º as pessoas que podem portar armas e as entidades a que estão vinculadas. Entre outras, há o exército, agências de segurança pública, agentes e guardas prisionais, desportistas do tiro.

            40 Vide considerações sobre a teoria da prevenção geral da pena e nota 37 e 38, supra.

            41 Cf. BANDEIRA, Fernando Thompson. Atenção! Os tribunais estão admitindo um perigoso precedente para a mutilação dos direitos e garantias fundamentais do homem. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Rio de Janeiro, ano 11, n. 124, p. 5, mar. 2003, onde são ofertados apontamentos doutrinários e julgados de tribunais sobre o assunto.

            42 Cf. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5ª ed. 9ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 27-29. Em sentido francamente oposto, ao entender que não há diversidade ontológica entre a analogia e a interpretação analógica, ver SCHMIDT, Andrei Zenkner. Hermenêutica na execução penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 10, n. 38, p. 103-104. abr. – jun. 2002: "[...] ao mesmo tempo em que a exigência de lei estrita determina ao juiz que interprete restritivamente toda norma penal incriminadora, temos tribunais brasileiros aplicando verdadeira analogia in malam partem, disfarçada sob as vestes de uma interpretação analógica que sequer tem fundamento plausível perante a moderna hermenêutica." (p. 88, grifos do autor).

            43 Sempre foi, por isso, objeto de nossa defesa a inadequação mesma da nomenclatura "liberdade provisória". Ora, provisória, em regra, é a prisão. Apostou a constituição em que se não pode presumir que um preso em flagrante tenha necessariamente sido culpado pelo injusto que se lhe irroga. Talvez melhor seria chamar ao instituto "liberação da prisão em flagrante", desde que, atualmente só atua, com efeito, em hipóteses de prisão em flagrante. Para os outros tipos de prisão provisória, há a revogação (art. 316 do CPP), ou o habeas-corpus. O nome que se quer abjurar remonta a épocas de ditadura, quando da elaboração do Decreto-Lei n. 3.689 de 03.10.1941, até hoje o Código de Processo Penal que aí está (vide item VIII da Exposição de Motivos do CPP).

            44 Reforça o que se diz acima o fato de que, na constituição de 1988, na realidade, não existe um princípio da presunção de inocência, senão de não-culpabilidade prévia. O texto foi formulado negativamente, da mesma maneira que na constituição italiana (art. 27). Deu-se, naquele país, intensa campanha doutrinária em carreira contra tal princípio liberal, capitaneada pela Escola Positivista de Ferri e Garofalo, com adjutório de nomes como Manzini e Betiol. Estes últimos chegaram a tachar de ficção a presunção de inocência, considerando que, estatisticamente, eram mais numerosas as condenações em relação às absolvições. Entusiasmados com o chorrilho de argumentos favoráveis, ombrearam-se a esta corrente os teóricos da Escola Técnico-Jurídica, de ideais fascistas de defesa social, com os quais se via incompatível o liberalismo humanista a dimanar do princípio sobredito. Cf. MELARAGNO COSTA, Breno. Princípio constitucional da presunção de inocência. In: PEIXINHO, M. M.; GUERRA, Isabela Franco e NASCIMENTO FILHO, F. Os princípios da constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 348-350.

            45 Cf. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1, p.61.

            46 Os quais textos, não custa lembrar, imiscuem-se em nosso ordenamento jurídico com a pungência de norma constitucional, uma vez que protejam os direitos humanos fundamentais. Esta, a orientação de boa doutrina. Cf. PIOVESAN, Flávia. A constituição brasileira de 1988 e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu e ARAÚJO, Nádia. Os direitos humanos e o direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 115-138; AZEVEDO, Bernardo Montalvão Varjão de. Uma reflexão acerca dos pactos e convenções internacionais e sua aplicação no ordenamento jurídico pátrio. Revista Brasileira de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, ano 11, n. 43, p. 31-48, abr. – jun. 2003.

            47 Cf. MELARAGNO COSTA, Breno. op. cit., p. 356.

            48 Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 82-86.

            49 À conjugação dos direitos e garantias judiciais, formais, com um conjunto de princípios jurídico-políticos que situem a liberdade como bem essencial da pessoa humana chamou Amaral, com felicidade, aparato garantidor. Seria o habeas-corpus sua expressão máxima. Cf. AMARAL, Thiago Bottino do. Considerações sobre a origem e evolução da ação de habeas-corpus. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, ano 9, n. 35, p. 101-131, jul. – set. 2001.

            50 Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit., p. 294-295.

            51 Cf. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. op. cit., p. 67.

            52 Cf. TOLEDO, Francisco de Assis. op. cit., p. 21-22; e AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios penais: da legalidade à culpabilidade. São Paulo: IBCCRIM, 2003. p. 85.

            53 Classicamente, na doutrina brasileira, coliga-se tal quadripartição a Francisco de Assis Toledo que se abeberou de Maurach. Cf. TOLEDO, F. A. op.cit., p. 22-29. Mais modernamente, desde um ponto de vista iluminado pelo garantismo penal e pela teoria da prevenção geral positiva limitadora (cf. nota 38, acima), tem-se apendiculado às quatro facetas implicitamente apontadas no referido princípio uma que diz com o princípio da intervenção mínima ou com o da ofensividade: a da necessidade. Então, violaria o princípio da legalidade uma criminalização que não fosse necessária à proteção do bem jurídico tutelado. O direito penal seria subsidiário e fragmentário, de intervenção mínima. Nullum crimen, nulla poena sine lege necessaria (Cf. SCHMIDT, A. Z. op.cit., p. 89-90).

            A nós, rogata venia, nunca nos pareceu correto o entendimento. Se bem que seja de valia indiscutível o critério da intervenção mínima ou ofensividade para o nortear da atividade legislativa e judiciária com o viso de incriminar, consubstanciam tais idéias muito mais o a que chamou Dworkin diretrizes políticas do que princípios propriamente ditos. Estes tem um claro conteúdo moral, que orienta, no geral a normatividade jurídica, a fim de dar-lhe maior justiça. São critérios materiais deônticos, autênticas normas. As diretrizes políticas, noutra borda, lançam bases sobre a atividade de concepção da lei, regra ou princípio. Devem, claro, ser retomadas em sua aplicação, mas não dominam, por sua excessiva fugacidade e indeterminação atroz os requisitos dos princípios. Aceite-se o contrário e o maior dos critérios de justiça, o de igual respeito e consideração para todos, pedra de toque de toda a moralidade inserta no fenômeno jurídico, será duramente verrumado. Haverá a possibilidade de ver solapada a constitucionalidade de um diploma incriminador com base no critério de necessidade de alguns julgadores, às vezes de um só, baseados em suas visões particulares de bem. Não aporta segurança jurídica ou real justiça tal sorte de arbítrio do aplicador da lei, que, a pretexto de justificá-la, acessa os argumentos exclusivos de seu fazimento e age como legislador, por mais que negativo, revogando, ao seu alvedrio, o que fizeram promulgar os representantes do povo, proprietário do poder, por isso, democrático. Cf. MAIA, Antônio Cavalcanti e SOUSA NETO, Cláudio Pereira de Souza. Os princípios de direito e as perspectivas de Perelman, Dworkin e Alexy. In: PEIXINHO, M. M.; GUERRA, Isabella Franco e NASCIMENTO FILHO, F. op. cit., p. 73, e HABERMAS, Jürgen. op. cit., 207-209.

            54 Parte da doutrina, possivelmente no afã de tornar mais imponentes os prolongamentos da legalidade, consagra-os como autênticos princípios, os quais princípios, de então autônomos, recebem, respectivamente as seguintes nomenclaturas: irretroatividade da lei penal, reserva legal absoluta (fazendo neste inserir a proibição da analogia in malam partem), e taxatividade do tipo penal. Cf. PRADO, C. A. op. cit. p. 134.

            55 Cf. TOLEDO, F. A., op. cit., p. 22-23.

            56 BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. 13ª ed. Trad. Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. p. 27.

            57 Cf. BÖCKENFORDE, Ernst Wolfgang. Origen cambio del concepto de estado de derecho. In. _________. Esudios sobre el estado de derecho y la democracia. Trad. Rafael Agapito Serrano. Madrid: Trota, 1999. p. 17-47, especialmente 21-23.

            58 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., v. 3, p. 149

            59 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 222-224.

            60 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Lívio Xavier. In: Os pensadores. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 70-71.

            61 Cf. TOLEDO, F. A. op. cit., p. 54. Mesma idéia, posto que em outros termos, em NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 1, p. 279

            62 Não assoma, data venia, infirmar o que aqui se afirma a concepção de Andrei Zenkner Schmidt, que condiciona a ocorrência da absorção total no princípio da consunção à menor gravidade do delito absorvido – sem expliciar segundo que critério, o que nos faz concluir ser o da cominação penal – bem como à unidade de bens jurídicos afetados. Daí por que afasta de referido princípio, por exemplo, a consunção estabelecida no verbete n.º 17 da Súmula do STJ.

            A nós, nos parece que, para além de esvaziar inteiramente o potencial político-criminal de tal princípio, dita concepção tresmalha a maior parte das hipóteses de sua aplicação, construídas durante anos de meditada aplicação do Direito Penal, aqui e alhures. Poucas delas subsistiriam, como a da absorção do dano que destrói a res furtiva pelo delito de furto anteriromente praticado.

            A penetração de critérios político-criminais no Direito Penal de nossos dias, malversado no eficientismo irracional a que constatnemente aludimos neste trabalho, não se mostra somente uma extravagância: é imperiosa. De resto, o princípio da consunção, como muito bem localizou o próprio autor, habita a progressão criminosa; torna impuníveis atos anteriores e posteriores que não tragam maior colorido no injusto central que se pratica, senão para torná-lo, quanto à aplicação da pena, mais ou menos grave. Com isso, ademais, afasta-se o risco do bis in idem, proscrito de nossa ordem constitucional. Não faz sentido, para retornar a nossos exemplos, seja alguém duplamente punido porque praticou uma tentativa de homicídio com uma arma de fogo, instrumento natural para a dita ação delituosa. Diga-se o mesmo quanto à tentativa de roubo, para a qual, há, inclusive, expresso aumento de pena em razão do instrumento utilizado.

            Finalmente, a absorção do crime-meio pelo crime-fim obedece, ainda, a postulados da lógica do razoável. Aceite-se o contrário e se dirá ao pretenso criminoso: "Pode lesionar gravemente com um machado, mas não o faça com uma arma de fogo!" Um crime de dano, em termos materiais, e não numerários, será sempre mais grave do que um de perigo; máxime se de perigo abstrato. No crime de resultado, o que era temor transmudou-se em realidade. Se o legislador, desatento para tal evidente circunstância, torna o crime de perigo mais pesadamente apenado do que o de dano correlato numa ocasional conduta concreta, resolve-se o imbróglio pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do crime de perigo, por vioaldor do princípio da legalidade penal e da coerência normativa que exige; não pelo afastamento do princípio da consunção. (Cf. SCHMIDT, Andrei Zenkner. Concurso aparente de normas penais. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, ano 9, n.º 33, p. 68-100, jan.-mar. 2001).

            63 Cf. MARINHO, Josaphat. Dos direitos humanos e suas garantias. In: BONAVIDES, Paulo et alli. As tendências atuais do direito público. Estudos em homenagem ao Professor Afonso Arinos de Mello Franco. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 169

            64 RODOTÀ, Stefano. Palestra proferida na Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro em 11 de março de 2003. Disponível em . Acesso em 06 abr. 2004.

            65 Cf. BARBOSA, Rui. O dever do advogado. 3º ed. rev. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2002. p. 44.


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PÁDUA, João Pedro Chaves Valladares. Estatuto do Desarmamento: irracionalidade, ilegitimidade e inconstitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 677, 13 maio 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6724. Acesso em: 28 mar. 2024.