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Análise do caso do fotógrafo Sérgio Andrade da Silva sob a égide da responsabilidade extracontratual do Estado por atos praticados por seus agentes

Análise do caso do fotógrafo Sérgio Andrade da Silva sob a égide da responsabilidade extracontratual do Estado por atos praticados por seus agentes

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Sérgio Andrade da Silva, no exercício da profissão, foi atingido por bala de borracha disparada por policial, em meio à contenção de uma manifestação. Casos como este nos levam à reflexão: até onde deve ir a responsabilidade estatal pelos atos provocados por seus agentes?

1. INTRODUÇÃO

A todo instante são transmitidos nos noticiários casos em que a atuação do Poder Público, para garantir a segurança da população, acaba ultrapassando os limites adequados e necessários para tal. São inúmeros os relatos de bala de borracha, spray de pimenta, gás lacrimogêneo, e muitas outras formas de abuso de poder.

Importa destacar que não se procura discutir a legitimidade do Poder de Polícia atribuído ao Estado, pois concordamos com a existência e a necessidade de se ter presente as forças policiais para que seja assegurado o exercício das garantias e dos direitos dos cidadãos. O que se busca debater é o uso abusivo e exagerado desse instituto - que muitas vezes vai além dos limites permitidos por lei - e a responsabilidade estatal diante destes casos.

Com esse direcionamento, reserva-se uma parte do estudo para tratar especialmente da responsabilidade extracontratual do Estado, outra para discutir o poder de polícia e suas limitações, bem como o uso da bala de borracha.

Ademais, realiza-se uma análise fática a respeito do tema, restringindo-se ao caso do fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, atingido por uma bala de borracha no olho durante as manifestações ocorridas em São Paulo no ano de 2013.


2. RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO

Antes de abordarmos, detalhadamente, o tema em questão, faz-se necessário apresentar uma visão geral do que é responsabilidade extracontratual do estado, destacando, brevemente, seu contexto histórico, teorias e conceitos - ressaltando os mais utilizados pelos doutrinadores brasileiros.

Nesse diapasão, responsabilidade, segundo o dicionário HOUAISS (2009, p. 1653), é a “obrigação de responder pelas ações próprias ou dos outros” e trata-se de uma derivação do vocábulo latino respondere.

Esmiuçando esse termo, chegamos à responsabilidade estatal. Sobre esta, é importante destacar que se encontra intimamente relacionada aos três tipos de funções pela quais se divide o poder do Estado: a administrativa, legislativa e jurisdicional. Somente aquela é objeto de estudo do presente artigo, pois, no que tange ao legislativo e ao judiciário, a responsabilidade incide somente em situações excepcionais.

Ademais, por ser o Estado dotado de personalidade jurídica e, consequentemente, ser titular de obrigações e de deveres na esfera cível, deverá responder por quaisquer atos praticados por um dos seus três poderes. Destaca-se, por isso, que não é correto utilizar a expressão “responsabilidade da Administração Pública”, uma vez que esta não é pessoa jurídica.

Sobre isso, leciona Edmir Netto Araújo (2007, p.) que “a ação ou omissão humanas, contrariamente aos assim chamados ‘fatos de mundo’, estarão sujeitas a regimes de responsabilidade, caso venham a ser causadoras de prejuízos ou lesões a pessoas, bens ou direitos, na forma disciplinada pela coletividade, através das normais legais editadas por seus representantes”. Cabe a ressalva de que, no âmbito administrativo, há a responsabilização tanto pela prática de atos ilícitos quanto de atos lícitos, desde que causem ao indivíduo um ônus maior do que o suportado pelos demais.

Restringindo, por sua vez, a responsabilidade do Estado, chegamos à subespécie da extracontratualidade que “corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos” (ZANELLA, 2016, p. 790). Sendo assim, é notável que, por mais que o Poder Público goze de prerrogativas, se mantendo em patamar superior aos particulares, sua supremacia não é absoluta, sendo impostos limites a sua atuação.

Tal restrição decorre da aplicação do princípio da isonomia, pois, quando o Estado gera algum dano ao indivíduo ou à coletividade, nada mais coerente que ele os indenize, objetivando reverter e reparar a desigualdade causada pela sua atuação. Dessa forma, nos moldes do art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 88 [1], caberá responsabilização aos sujeitos prejudicados, independentemente de vínculo ou relação destes com o Poder Público.

Consistem em pressupostos inafastáveis da responsabilidade o fato e a imputabilidade a alguém. Como bem descreve Carvalho Filho (2015, p. 569), “a ocorrência do fato é indispensável, seja ele de caráter comissivo ou omissivo, por ser ele o verdadeiro gerador dessa situação jurídica. Não pode haver responsabilidade sem que haja um elemento impulsionador prévio”. Acrescenta que se faz imprescindível o sujeito, a quem se imputa a responsabilidade, ser apto juridicamente a responder pela ocorrência do dano. No que diz respeito ao fato gerador da responsabilidade, como já dito anteriormente, não está ligado ao aspecto da licitude ou ilicitude. “Como regra, é verdade, o fato ilícito é que acarreta a responsabilidade, mas, em ocasiões especiais, o ordenamento jurídico faz nascer a responsabilidade até mesmo de fatos lícitos. Nesse ponto, a caracterização do fato como gerador da responsabilidade obedece ao que a lei estabelecer a respeito” (FILHO, 2015, p. 569/570).

2.1. Breves considerações históricas

Antes de entrarmos na evolução histórica da responsabilidade, é importante deixar claro que há uma forte divergência doutrinária quanto às terminologias, por isso, optamos por utilizar predominantemente a posição da célebre doutrinadora Maria Sylvia Zanella de Pietro, mas nada nos impede de demonstrar a opinião dos demais.

No que tange a esse assunto, diversas teorias foram sendo construídas: “a regra adotada, durante muito tempo, foi a da irresponsabilidade; caminhou-se, depois, para a responsabilidade subjetiva, vinculada à culpa, ainda hoje aceita em várias hipóteses; evoluiu-se, posteriormente, para a teoria da responsabilidade objetiva (...)” (DI PIETRO, 2016, p. 790).

Nesse sentido, à época dos Estados Absolutistas, predominava a teoria da irresponsabilidade, que tinha como fundamento a soberania estatal. Por se tratar de uma autoridade suprema, não se podia atribuir qualquer responsabilidade ao rei, pois isso o colocava no mesmo patamar de seus súditos, sendo considerada uma afronta ao seu poder absoluto. Essa noção de ente todo-poderoso estava ligada à teoria da intangibilidade do soberano, que tinha como pressupostos “le roi ne peut ma faire [2]” e “quod principi placuit habet legis vigorem [3]”.

Entretanto, essa teoria não prevaleceu por muito tempo, devido a sua evidente incoerência e injustiça, sendo substituída pela civilista.

A teoria civilista recebeu esse nome por ser regida por princípios do Direito Civil. Num primeiro momento, tratou da teoria dos atos de impérios e de gestão; numa segunda fase, da teoria da culpa civil ou da responsabilidade subjetiva.

A respeito da primeira, é essencial fazer a distinção entre atos de impérios e atos de gestão. Estes são exercidos pela Administração enquanto se encontra em situação de igualdade com os particulares, objetivando a preservação do patrimônio público e a gestão de seus serviços; é aplicado a ambos o direito comum. Aqueles, por sua vez, tratam-na como poder supremo, dotada de todas as prerrogativas e privilégios sobre os particulares. Age coercitiva e unilateralmente sobre estes, independentemente de autorização judicial; é aplicado um direito especial àquela e um direito comum a estes.

Dessa maneira, “passou-se a admitir a responsabilidade civil quando decorrente de atos de gestão e afastá-la nos prejuízos resultantes de atos de império. Distinguia-se a pessoa do Rei (insuscetível de errar), que praticaria os atos de império, da pessoa do Estado, que praticaria atos de gestão, através de seus prepostos”. (DI PIETRO, 2016, p. 792).

Restou claro que essa teoria procurou atenuar a antiga- a da irresponsabilidade estatal- mas também não agradou a todos, pois era difícil distinguir, na prática, as duas espécies de atos.

Depois dessa fase, surgiram as teorias publicistas: teoria da culpa do serviço ou da culpa administrativa e teoria do risco, dividida, por alguns autores, em risco administrativo e risco integral.

A primeira delas, como o próprio nome já sugere, baseia-se na culpa do serviço, e não na do agente. Por isso, não há vínculo entre a responsabilidade do Poder Público e a ideia de culpa de seu funcionário.  Ela é aplicada geralmente em certas situações: quando o serviço público não funciona (omissão) e funciona mal ou de forma ineficiente. Assim, em qualquer uma delas, restará por aplicada a responsabilização estatal, independentemente da culpa de seu agente.

No que lhe concerne, a teoria do risco, que é fundamento para a responsabilidade objetiva da Administração, está assentada no princípio da igualdade de todos perante os encargos sociais, significando que, além dos benefícios, os prejuízos sofridos por um indivíduo devem ser repartidos por todos, pois, conforme Di Pietro (2016, p. 793), “quando uma pessoa sofre um ônus maior do que o suportado pelas demais, rompe-se o equilíbrio que necessariamente deve haver entre os encargos sociais; para restabelecer esse equilíbrio, o Estado deve indenizar o prejudicado, utilizando recursos do erário”.

É também conhecida como teoria da responsabilidade objetiva, uma vez que substitui a ideia de culpa, pressuposto subjetivo, pela de nexo de causalidade. Desse modo, para que seja aplicada, faz-se necessário a presença de três requisitos: dano específico, ato praticado por agente público e relação de causalidade entre esses dois.

Segundo Meirelles (23ª ed, p. 532/533), essa teoria se desdobra em teoria do risco administrativo e do risco integral. Esta é “a modalidade extremada da doutrina do risco administrativo, abandonada na prática, por conduzir ao abuso e à iniquidade social. Por essa fórmula radical, a Administração ficaria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima. Daí por que foi acoimada de "brutal", pelas graves consequências que haveria de produzir se aplicada na sua inteireza”. Assim sendo, o ente público é visto como garantidor universal, devendo responder por todos os danos que venham eventualmente ocorrer em seu território, não se aplicando qualquer exclusão a sua responsabilidade.

Como ficou claro, Meirelles não acredita que a teoria do risco integral tenha sido adotada no ordenamento jurídico brasileiro. Por outro lado, Zanella de Pietro acredita que não há distinção entre as teorias do risco, sendo, por isso, sinônimas.

Aquela, por sua vez, responsabiliza a Administração, objetivamente, por prejuízos que venham a ser causados por seus funcionários a um particular, admitindo, todavia, a exclusão de tal responsabilização, quando se tratar de certas situações.

2.2. Responsabilidade objetiva do Estado: requisitos e excludentes

A responsabilidade objetiva estatal passou a ser adotada no Brasil após ficar perceptível que o Estado figura num pólo superior ao particular, sendo detentor de diversas prerrogativas e garantias que não se estendem a este. Desse modo, por conta de todo o seu poder, caberia ao Pode Público, diante de prejuízos resultantes da atuação de seus agentes, arcar com o risco natural de suas atividades.  Surge, então, a teoria do risco administrativo, como fundamento daquela responsabilidade.

A respeito desta, tem-se que sua característica principal é o fato de o lesado não precisar provar o requisito subjetivo, qual seja, a existência de culpa ou dolo do agente ou do serviço público. Entretanto, faz-se necessário, para que seja configurada tal responsabilidade, a existência de três pressupostos básicos: conduta do agente público no exercício de sua função, dano ao particular e nexo de causalidade entre eles. Aquela é a prática de ato antijurídico- que abrange tanto ato ilícito quanto lícito, desde que gere um dano anormal e específico- por agente de pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviço público. Exige-se, além disso, que o funcionário, ao causá-lo, esteja no exercício de suas funções e a doutrina majoritária se posiciona no entendimento de que somente a conduta comissiva é que gera responsabilização objetiva; a omissiva, subjetiva. Carvalho Filho (2015, p. 582) destaca que “ainda que o agente estatal atue fora de suas funções, mas a pretexto de exercê-las, o fato é tido como administrativo, no mínimo pela má escolha do agente (culpa in eligendo) ou pela má fiscalização de sua conduta (culpa in vigilando)”.

O segundo requisito é o dano. A doutrina é pacífica no sentido de que somente haverá responsabilidade objetiva do Estado, quando o dano for jurídico, ou seja, quando ele atingir um bem tutelado pelo direito. Desse modo, o dano moral, que abrange os prejuízos na esfera íntima e particular do lesado, não enseja dano moral sujeito à indenização. Por outro lado, Carvalho Filho (2015, p. 582) defende que “não importa a natureza do dano: tanto é indenizável o dano patrimonial como o dano moral. Logicamente, se o dito lesado não prova que a conduta estatal lhe causou prejuízo, nenhuma reparação terá a postular”.

O terceiro pressuposto - nexo causal entre o fato administrativo e o dano - está intimamente relacionado à teoria da causalidade adequada, que responsabiliza o Poder Público somente quando a sua conduta tiver sido determinante para gerar o dano. Assim, fica excluída a sua responsabilidade todas as vezes que a conduta do agente for insuficiente para causar o prejuízo reivindicado. Essa é a razão pela qual não se pode cobrar do Estado indenização por todos os infortúnios sofridos pelos cidadãos. 

Fica claro, diante do exposto, que, presente todos os requisitos, há responsabilização da Administração. Por conseguinte, inexistindo a relação de causalidade, tem-se por excluída aquela. São três os casos que permitem tal exclusão: caso fortuito, força maior e culpa da vítima. Há também uma causa atenuante: culpa concorrente da vítima.

O Código Civil de 2002, em seu art. 393, parágrafo único, identifica quando irão ocorrer os dois primeiros casos:

“O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”

Cabe a ressalva de que, em se tratando de força maior, a responsabilidade estatal poderá estar presente se, aliada àquela, houver omissão do Poder Público. Nesse caso, segundo Zanella di Pietro, aplica-se a teoria da culpa do serviço público. O mesmo irá ocorrer quando se tratar de culpa por ato de terceiros.

A respeito da culpa da vítima, será preciso analisar se a culpa é exclusiva dela ou concorrente com a do Estado. Neste, tem-se atenuada a sua responsabilidade, que será repartida com a da vítima. Naquele, o Poder Público não tem o dever de indenizar. A culpa de terceiro também se apresenta como excludente.

2.3. Aplicação das teorias da Responsabilidade do Estado no Brasil

No que concerne à aplicação dessas teorias no Direito Brasileiro, cabe destacar que a da irresponsabilidade do Estado não prosperou e as Constituições de 1824 e 1891 não previam qualquer responsabilização do Estado, mas apenas do funcionário que provocou o caso no exercício de suas funções. Por outro lado, o Código Civil de 1916 inovou ao adotar a teoria civilista da responsabilidade subjetiva. Após isso, as Constituições de 1934 e 1937 recepcionaram o princípio da responsabilidade solidária entre o Estrado e o seu agente, que acabou sendo substituído pelo da responsabilidade objetiva, acolhido pela Constituição de 1946. Na de 1967, acrescentou-se a esta apenas a ideia de que seria cabível ação regressiva nos casos de dolo ou culpa. Outrossim, a Constituição de 1988 seguiu na mesma esteira da de 1946, prevendo, em seu texto, a teoria da responsabilidade objetiva.


3.  PODER DE POLÍCIA: DEVER DO ESTADO EM GARANTIR A SEGURANÇA PÚBLICA 

3.1. Conceito, finalidade e limites à atuação estatal

Sobre poder de polícia, DI PIETRO (2016, p. 155) afirma que é “a atividade jurisdicional do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”. Também, o Código Tributário Nacional, em seu art. 78 [4], traz a conceituação de tal instituto, definindo-o como uma função estatal capaz de limitar ou disciplinar direito, regulando a prática de atos em razão do interesse público.

Depreende-se, com isso, que a Administração Pública deve atuar sempre em conformidade com o Princípio da Supremacia do Interesse Público, impondo, quando necessário, limitações e restrições à liberdade dos particulares. Ademais, deve respeitar o Princípio da Eficiência, que, segundo Lopes (28ª ed, p. 94) , é o dever que se impõe ao agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional.

Assim, entendemos que, por mais que o Poder de Polícia tenha caráter discricionário, ele sofre limitações por parte do Princípio da Proporcionalidade dos Meios aos Fins, que determina sua atuação não deve ultrapassar o necessário para garantir a satisfação do interesse da coletividade.

Desse modo, o Estado, ao exercer o seu dever de garantir a segurança pública, conservando a ordem e a paz social, deve agir em consonância a três preceitos básicos: o da necessidade, o da proporcionalidade e o da eficácia, de tal forma que, unindo os três, ele conseguirá desempenhar suas funções de forma harmônica e equilibrada, resguardando, principalmente a incolumidade das pessoas, sem que, para isso, sejam eliminados os seus direitos individuais.

Tal é a previsão no art. 144 da Constituição Federal de 1988:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares. [...]

3.2. Bala de borracha: questão de necessidade ou mero abuso de poder?

Tendo como regime político a democracia, o Estado Brasileiro, em seu art. 5º, inc. XVI, preceitua que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

Destarte, entende-se que são legítimas e legais as reuniões que, basicamente, sejam realizadas de forma pacífica, em locais abertos ao público, sem o uso de armas e sem frustrar outras aglomerações, desde que a autoridade tenha sido previamente avisada.

Dessa maneira, o Poder de Polícia tem, ao mesmo tempo, o dever de garantir o exercício do direito à manifestação, bem como, o de impedir que haja violação a outros direitos inerentes à coletividade, atuando, assim, de maneira contida e equilibrada, sem fazer uso excessivo da força.

Todavia, infelizmente, não é isso o que vemos acontecer na prática: são comuns os casos em que policiais, para conter a multidão, atuam de maneira arbitrária e abusiva, perdendo, muitas vezes, o controle dos seus atos. Um exemplo clássico e comum a respeito disso é o uso das balas de borracha.

A munição de elastômero ou bala de borracha, como é mais conhecida, é um projétil de látex, composta por uma cápsula de pólvora. Ela é assim chamada por causa da sua ponta, que é revestida por borracha, e não por metal. Devido a isso, não é capaz de perfurar a pele, mas pode ser tão letal quanto às munições comuns. Recomenda-se que seja disparada a uma distância de pelo menos 20 metros e em direção às pernas, pois, caso isso não ocorra, há uma grande chance de causar ferimentos graves e, até mesmo, a morte. Por isso, para que seja manuseada, é importante que haja treinamento e instrução adequada.

Nesse sentido, percebe-se que, por mais que essas munições não sejam capazes de penetrar no corpo e de ficar alojadas nele, podem causar fraturas nos ossos menores e, em casos mais graves, gerar o rompimento de órgãos internos, como o duodeno. Além disso, por conta do sangramento e das feridas, há um risco enorme de infecção, o que pode ensejar complicações.

É importante destacar que não se quer discutir o uso dessas munições durante as atividades policiais. O que se coloca em questão é a maneira de como, onde e quando estão sendo utilizadas. Seria viável utilizá-las para dispersar manifestantes durante um movimento pacífico? E mais, seria prudente dispará-la em direção às pessoas?

Não é preciso refletir muito para chegar à conclusão de que se trata de um ato totalmente imprudente, abusivo e irresponsável. Como bem destacou o professor de Direito Constitucional da USP, Conrado Hübner Mendes, “o abuso do direito ao protesto não se responde com abuso policial, nem suspende os limites da polícia (...)". [5]

Em outubro deste ano, o juiz Valentino Aparecido de Andrade, da 10ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, proibiu o uso da bala de borracha contra manifestantes em protestos no estado, sob o argumento de que “a harmonização entre o direito de reunião e a garantia da ordem pública” poderia ser alcançada tomando-se tal decisão, de modo que “adotar essas medidas não fazem eliminar o poder preventivo da Polícia Militar em sua atuação na segurança pública. Essas medidas propiciam que existam e devam existir as condições em que o exercício da liberdade por aqueles que querem exercer o direito de reunião possam de fato exercê-los, sem o risco de serem agredidos pela Polícia Militar, apenas por estarem reunidos e a protestarem” [6]. Assim, a bala de borracha, bem como o gás lacrimogêneo, só poderia ser utilizada em condições excepcionais, como, por exemplo, quando o protesto deixasse de ser pacífico.

Porém, tal decisão acabou sendo suspensa pelo Desembargador Paulo Dimas Mascaretti, sob a alegação de que ela causava “grave lesão à ordem e segurança públicas, pois cria embaraços à regular atividade policial no desempenho de sua missão institucional."[7] Ademais, argumentou-se que “padronizar e burocratizar determinadas condutas, e de forma tão minuciosa, tolhendo a atuação da Polícia Militar e inclusive impedi-la de utilizar meios de defesa, como pretende a Defensoria Pública, coloca em risco a ordem e a segurança públicas e, mesmo, a vida e a segurança da população e dos próprios policiais militares”

Será mesmo que a proibição do uso de balas de borracha iria prejudicar a atuação da polícia? Como bem destacou Henrique Apolinario, advogado do programa de Justiça da organização não governamental Conectas, em declaração feita à Revista Isto É, “o controle que a Polícia Militar do Estado de São Paulo vem conseguindo alcançar dentro dos estádios de futebol, sem uso de armas de fogo e de munição de outra natureza, permite confirmar que é plenamente possível que a Polícia Militar possa garantir a ordem pública em protestos populares sem o uso de tais armas” [8].


4. CASO DO FOTÓGRAFO SÉRGIO ANDRADE DA SILVA

4.1. Relatos de 13 de Junho de 2013: o dia em que o fotógrafo perdeu o seu principal instrumento de trabalho.

Junho de 2013 ficou marcado por diversas manifestações ocorridas no território brasileiro. Em São Paulo, elas foram bastante intensas e tiveram como motivo primordial o aumento da passagem dos transportes. No decorrer desses movimentos, outras questões acabaram sendo abordadas: a má qualidade dos serviços públicos, os gastos públicos com grandes eventos esportivos, a corrupção política, dentre outros.

Entretanto, o que chamou mais atenção nesses atos fora a agressividade e o despreparo dos policiais diante de tal situação. Foram diversas as vítimas de balas de borracha, de gás lacrimogêneo, enfim, vítimas da ação abusiva dos agentes responsáveis pela nossa segurança. Uma delas foi o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, que se tornou um dos símbolos da violência policial durante os protestos daquele ano.

Conforme relato do repórter Thiago Herdy, no jornal O Globo, "o fotógrafo Sérgio Silva, de 31 anos, abaixou a câmera para conferir a imagem que acabara de fazer e ajustar o tempo de abertura do obturador. Antes do segundo disparo, sentiu o impacto no olho esquerdo e uma dor lancinante". Após ser atingido e sem contar com a ajuda de qualquer policial, ele deixou o local à procura de alguém que o pudesse socorrer ou de um lugar onde pudesse se proteger. Estava desorientado, sangrando bastante, com dor e principalmente com muito medo de ser atingido novamente. Surpreende-nos a força que teve pra, mesmo num estado tristemente deplorável, caminhar a procura de ajuda.

Ele a encontrou quando cruzou o caminho de Severino Honorato Silva, que também procurava se salvaguardar da ação violenta dos agentes policiais. Ele o tomou no braço e o carregou até o Hospital 9 de Julho, onde o fotógrafo foi internado e recebeu os primeiros cuidados. Depois, foi transferido para um hospital especializado, onde passou mais ou menos duas semanas. Ao receber alta, se deparou com uma conta de pouco mais de 3.000 reais.

4.2. Vida pós-perda: as dificuldades enfrentadas pelo fotógrafo.

Inicialmente, não se sabia ao acerto quais seriam as consequências para a visão de Sérgio: se haveria a perda ou a sua drástica redução. Mas a dúvida logo deu lugar à certeza: não foi possível salvar o seu globo ocular esquerdo, que foi substituído por uma prótese.

Depois disso, exercer sua profissão passou a ser um grande desafio: “Paralelamente, nunca é demais relembrar: Sérgio é fotógrafo. O olho e a câmera são seus instrumentos de trabalho. Ou eram. O autor perdeu a terceira dimensão. Frente às sequelas, não mais poderá tirar retratos, atividade que, de resto, é, ao lado de mulher e filha, motivo maior de sua paixão. Está inválido. Caolho. Seu mundo não é mais tridimensional. Perdeu a possibilidade de enxergar em profundidade. Atos rotineiros da vida lhe exigirão atenção maior, desde guiar um automóvel – que não tem – até pegar objetos. A insegurança irá rondá-lo a cada passo, não mais tendo a certeza se o andar o coloca em perigo, pois limitada a noção espacial pela inutilização de um globo ocular. Seu mundo não é mais tridimensional. Perdeu a possibilidade de enxergar em profundidade. Atos rotineiros da vida lhe exigirão atenção maior, desde guiar um automóvel – que não tem – até pegar objetos. A insegurança irá rondá-lo a cada passo, não mais tendo a certeza se o andar o coloca em perigo, pois limitada a noção espacial pela inutilização de um globo ocular”.[9]

É interessante destacar que, como uma forma de protesto pela violência que enfrentou, Sérgio criou um projeto intitulado “Piratas Urbanos”, que é uma exposição fotográfica contra a repressão e violência, e teve início sete meses após ter se tornado uma das vítimas da violência policial.


5. ANÁLISE DO CASO FRENTE À RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO EM ATOS PRATICADOS POR SEUS AGENTES5. ANÁLISE DO CASO FRENTE À RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO EM ATOS PRATICADOS POR SEUS AGENTES. 

Analisando os fatos retratados sob a égide do que fora apresentado a respeito da responsabilidade extracontratual do Estado, percebemos que essa é cabível no caso ora tratado, pois a este são aplicados todos os requisitos necessários para tal enquadramento:

  1. Conduta do agente público no exercício de sua função: disparo de bala de borracha por agente, exercendo o Poder de Polícia inerente ao Estado;
  2. Dano particular: perda do globo ocular esquerdo, o que acarretou outras consequencias: dificuldade para trabalhar, despesas hospitalares altíssimas, dentre outros.
  3. Nexo de causalidade: Sérgio estava cobrindo as manifestações para a agência Futura Press, quando foi atingido por uma bala de borracha disparada por um policial que tentava dispersar a multidão.

Ademais, “Sérgio Andrade da Silva foi atingido no olho esquerdo. Tem quase 1,80 de altura, o que conduz a inequívoca conclusão: o disparo foi realizado em uma trajetória ascendente ou em linha reta a partir da altura dos ombros. Há, ao menos, imprudência, pois não caberia atribuir imperícia a um agente estatal exaustivamente treinado. Poder-se-ia, até, entender ter agido o policial com dolo eventual. Sua intenção era dispersar a multidão. Nesse contexto, pouco importaria a lesão mais ou menos grave de um ou outro e, quiçá a morte. A ordem teria sido cumprida e a paz restabelecida. O ferimento de Sérgio, para o Comandante-Geral da Polícia Militar de São Paulo, Benedito Roberto Meira, seria incidental, decorrente dos “riscos da profissão” inerente à cobertura jornalística de manifestações e outros eventos envolvendo aglomeração de pessoas”.[10]

Desse modo, cria-se certa indagação sobre a decisão do juiz da 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, responsável pelo processo do fotógrafo, que se posicionou a favor do Estado, alegando que “mesmo que houvesse provas de que o ferimento experimentado pelo autor tenha sido provocado por bala de borracha disparada pela polícia, ainda assim, não haveria de se cogitar da pretendida indenização. [...] No caso, ao se colocar o autor entre os manifestantes e a polícia, permanecendo em linha de tiro, para fotografar, colocou-se em situação de risco, assumindo, com isso, as possíveis consequências do que pudesse acontecer, exsurgindo desse comportamento causa excludente de responsabilidade, onde, por culpa exclusiva do autor, ao se colocar na linha de confronto entre a polícia e os manifestantes, voluntária e conscientemente assumiu o risco de ser alvejado por alguns dos grupos em confronto (polícia e manifestantes)”. [11]

Questionamo-nos a respeito da justificativa do juiz, dado que é inerente à profissão de fotógrafo o perigo, a exposição às situações delicadas e de extrema insegurança. A vítima não estava nas manifestações ao seu bem querer, mas sim exercendo sua profissão. E mais, qualquer que fosse o motivo de estar participando dos protestos, este não seria suficiente para autorizar a atuação irresponsável e violenta dos agentes policiais.

É cabível fazer uma analogia com a profissão de bombeiro: ambos exercem atividade de risco e, muitas vezes, se encontram em situações de extrema vulnerabilidade. Por mais que saibam que há uma probabilidade de algo sério acontecer, não podem eles se eximir, a seu bel-prazer, de realizarem suas atividades. Eles arriscam suas vidas para proporcionarem o melhor à população: um é responsável por levar a notícia, por preservar momentos históricos e captar detalhes que são invisíveis, muitas vezes, à percepção humana; o outro, de garantir segurança e prestar ajuda quando necessário. 

O que seria da história do mundo se não fosse o trabalho de um fotógrafo? Uma foto, por si só, é capaz de contar em detalhes o que ocorreu em determinado momento da história do nosso planeta. Se não fosse por ele não teríamos noção do horror e das atrocidades ocorridas na época do Holocausto, por exemplo.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando-se em consideração os aspectos apresentados, entendemos que é cabível a responsabilização do Estado no caso do fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, visto que estão presentes todos os requisitos necessários (nexo de causalidade, atuação do agente público e dano) para tal caracterização.

Nesse sentido, concluímos que a decisão do juiz da 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo carece de certa coerência, pois o argumento utilizado por ele- aplicação da excludente “culpa exclusiva da vítima”- não é aplicável ao caso em estudo, como restou demonstrado.

Ademais, ficou claro que, embora seja um assunto bastante recorrente nos dias atuais, a responsabilidade extracontratual do Poder Público é desprovida de praticidade no que concerne a sua aplicação, pois às vezes é difícil saber se enseja tal incumbência ao Estado, necessitando, assim, ser estudada com um pouco mais de profundidade.

Por fim, mas não menos importante, percebemos que a responsabilidade do Estado é importante para frear a atuação abusiva dos agentes públicos, principalmente, daqueles que exercem o poder de polícia, impondo-os limite e assegurando aos cidadãos a proteção a sua integridade e liberdade.


Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. Cidade:. Saraiva, 5ª Ed. Ano

BEZERRA, Danilo Dorgison da Silva; DA SILVA, Dalton José Gonçalves; CARVALHO FILHO, João Firmino. A EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO E SUAS MODIFICAÇÕES. Curso de Administração CESMAC. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/518-1685-1-pb.pdf>. Acesso em: 01/11/2016

BRASIL, BBC. Disponível em: < http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37137600>. Acesso em: 30/09/2016

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.

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Notas

[1] Art. 37, § 6º, CF 88 As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

[2] Tradução: O rei não pode errar.

[3] Tradução: Aquilo que agrada ao príncipe tem força de lei.

[4] Art. 78, caput, CTN: Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interEsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

[5] Declaração do professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP, Conrado Hübner Mendes, durante entrevista realizada pela revista Brasileiros.

[6] Sentença proferida no Processo n. 2226136-60.2016.8.26.0000, disponibilizada no TJSP.

[7] Processo n. 2226136-60.2016.8.26.0000, disponibilizada no TJSP.

[8] Trecho retirado da reportagem “Nova decisão judicial proíbe uso de bala de borracha em protestos em São Paulo”, realizada pela EBC Agência Brasil.

[9] Trecho retirado do processo n. 1006058-86.2013.8.26.0053, localizado no TJSP, que trata do caso do fotógrafo Sérgio Andrade da Silva.

[10] Trecho retirado do processo n. 1006058-86.2013.8.26.0053, localizado no TJSP, que trata do caso do fotógrafo Sérgio Andrade da Silva.

[11]  Sentença proferida no processo n. 1006058-86.2013.8.26.0053, disponível no TJSP.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAMPAIO, Lara. Análise do caso do fotógrafo Sérgio Andrade da Silva sob a égide da responsabilidade extracontratual do Estado por atos praticados por seus agentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5581, 12 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68265. Acesso em: 2 maio 2024.