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RE 796.376 - incidência do ITBI sobre o valor do imóvel incorporado que exceder o limite do capital social

RE 796.376 - incidência do ITBI sobre o valor do imóvel incorporado que exceder o limite do capital social

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Versa-se sobre o alcance da imunidade prevista no artigo 156, § 2º, inciso II da CF/88, no tocante ao valor integralizado.

1 INTRODUÇÃO

Qual o sentido e o alcance de uma imunidade? Essa resposta não é simples, depende de um estudo aprofundado do texto constitucional e já foi objeto de várias discussões nos tribunais pátrios.

O RE 796.376 que está atualmente em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) e no qual foi declarada a repercussão geral da matéria, gira justamente em torno dessa pergunta: afinal, a imunidade prevista no artigo 156, § 2º, inciso II da CF/88, e que exclui a transferência de imóveis para fins de integralização no capital social está adstrita ao valor declarado no contrato social como subscrito?

Até o surgimento desse debate, a questão sobre essa imunidade girava quase exclusivamente em torno do ramo de atividade da pessoa jurídica adquirente, já que estão ao desabrigo da norma constitucional quem tem como atividade preponderante a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

Entretanto uma decisão unânime do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) fez surgir uma nova questão. O que se discute agora é o alcance da norma quando houver discrepância entre o valor declarado no contrato social e aquele de mercado do bem, base de cálculo do Imposto sobre a Transmissão Onerosa de Bens Imóveis – ITBI[1].

Por um lado as partes têm liberdade de contratar, e por extensão, podem livremente acordar o valor pelo qual o bem ou bens imóveis será subscrito e integralizado. Além disso, a imunidade alcançaria o fato gerador, ou seja a transmissão do bem imóvel, sendo portanto indiferente qual o valor de mercado desse bem no momento da transmissão.

Entretanto, não é tão simples quanto parece. Primeiro, porque é flagrante a prática das sociedades empresárias de declarar o valor dos bens por um valor muito inferior ao de mercado – como aliás foi feito pela contribuinte do caso concreto.

E segundo, porque o que está sob análise aqui é a expressão “em realização de capital” prevista no texto constitucional. O que leva ao questionamento central desse artigo e do Recurso Especial: afinal o que está imune, a operação ou o valor declarado no contrato social?

Caso se decida pela limitação do alcance da regra constitucional surgem dois questionamentos: a que título essa diferença é transferida dos sócios para a sociedade? Essa transferência é passível de tributação pelo ITBI?


2 A ORIGEM DA CONTROVÉRSIA – RESUMO DO CASO

Os autos do Recurso Especial 796.376 que atualmente estão sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello versam sobre o alcance da imunidade do ITBI nas transmissões de bens imóveis para realização de capital social.

A lide surgiu quando o município de São João Batista/SC, alegando que o valor de mercado dos bens excedia em muito o valor a ser integralizado, limitou o reconhecimento da imunidade ao valor declarado como integralizado, fazendo incidir o imposto sobre a diferença.

Note-se que a posição do município não foi tomada com base em legislação municipal, e sim na interpretação da regra constitucional, confrontada com o caso concreto.

E nesse caso, o valor subscrito à título de capital social foi de R$ 24.000,00 (Vinte e quatro mil reais), enquanto que o valor de mercado dos bens alcançou à época o valor de R$ 802.724,00 (Oitocentos e dois mil, setecentos e vinte e quatro reais), o que significa uma diferença de R$ 778.724,00 (Setecentos e setenta e oito mil, setecentos e vinte e quatro reais), em valores de 2010.

Após uma decisão favorável à contribuinte em primeira instância – que opinou pela impossibilidade de limitação do alcance da norma constitucional imunizante –, os autos foram então em sede de apelação cível em mandado de segurança para apreciação do TJSC.

Com a relatoria do Desembargador Jaime Ramos, e em decisão unânime, a Quarta Câmara de Direito Público assim decidiu:

TRIBUTÁRIO - ITBI - INCORPORAÇÃO DE IMÓVEIS PARA INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL DE PESSOA JURÍDICA - IMUNIDADE TRIBUTÁRIA (ART. 156, § 2º, INCISO II, DA CF/1988) - VALOR DOS IMÓVEIS SUPERIOR AO DO CAPITAL SOCIAL INTEGRALIZADO E DAS COTAS DOS SÓCIOS RESPECTIVOS - IMUNIDADE QUE ALCANÇA APENAS O LIMITE DO CAPITAL E DAS COTAS INTEGRALIZADAS COM IMÓVEIS - EXCEDENTE SUJEITO À TRIBUTAÇÃO - SENTENÇA REFORMADA.   A imunidade tributária prevista na primeira parte do inciso II do § 2º do art. 156, da Constituição Federal de 1988 impede a incidência do imposto de transmissão de bens imóveis "inter vivos" somente sobre o valor do imóvel necessário à integralização da cota do capital social. Vale dizer, sobre o valor do imóvel incorporado que excede o limite do capital social a ser integralizado ou da própria cota do sócio respectivo, haverá incidência do tributo. (TJSC, Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2011.073712-5, de São João Batista, rel. Des. Jaime Ramos, j. 17-05-2012). (grifos em negrito não presentes no original)

Assim, o acórdão restringiu a regra que imuniza a integralização de bens imóveis ao valor subscrito no contrato social, ficando a eventual diferença entre este e o valor de mercado sujeito a tributação.

Inconformado com a decisão, a contribuinte ingressou com embargos de declaração e ainda, com um recurso especial impetrado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), ambos indeferidos. Finalmente, por se tratar de matéria constitucional, o processo chegou ao STF, que em março de 2015 reconheceu a repercussão geral da matéria em exame.


3 A REGRA IMUNIZANTE E A REGULAMENTAÇÃO DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

O ITBI está inicialmente previsto no artigo 156, inciso II e § 2.º do texto constitucional:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: [...]

II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; [...]

§ 2º O imposto previsto no inciso II: [...]

I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;

II - compete ao Município da situação do bem. [...] (grifos em negrito não presentes no original).

O legislador constituinte previu a criação de um imposto cujo fato gerador é a transferência onerosa, a qualquer título, de bens imóveis e de direitos reais, exceto os direitos reais de garantia, desde que a operação seja realizada entre vivos.

Dentre esses fatos geradores, esse mesmo legislador elegeu como imunes à incidência do imposto aqueles relacionados à transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, seja na integralização de capital social, seja nas operações de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.

No mesmo dispositivo legal também foi prevista uma exceção relacionada à atividade da pessoa jurídica. Essa regra determina que, caso a atividade preponderante seja a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil, fica afastada a imunidade, devendo incidir o imposto.

O principal motivador dessa exclusão do campo de incidência tributária é assegurar àqueles que desejem investir em atividades produtivas, os meios para fazê-lo sem ter de arcar com o ônus tributário, privilegiando assim o Princípio da Livre Iniciativa, expresso no art. 170 do texto constitucional:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...]

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. (grifos em negrito não presentes no original).

Esse Princípio privilegia a economia de mercado e o livre exercício de atividades econômicas e de trabalho. Seu objetivo é reafirmar a importância para o desenvolvimento do País da livre iniciativa e daqueles que se aventuram no mundo empresarial, ao mesmo tempo em que restringe a ação do Estado como ator do mercado, restando-lhe o papel de regulamentador das relações mercadológicas.

De acordo com Coelho (2007, p. 26-27):

A Constituição Federal, ao dispor sobre a exploração de atividades econômicas, vale dizer, sobre a produção dos bens e serviços necessários à vida das pessoas em sociedade, atribuiu à iniciativa privada, aos particulares, o papel primordial, reservando ao Estado apenas uma função supletiva (art. 170). A exploração direta de atividade econômica pelo Estado só é possível em hipóteses excepcionais, quando, por exemplo, for necessária à segurança nacional ou se presente um relevante interesse coletivo (art. 173).

Estes são os pressupostos constitucionais do regime jurídico-comercial.

Ao atribuir à iniciativa privada papel de tal monta, a Constituição torna possível, sob o ponto de vista jurídico, a previsão de um regime específico pertinente às obrigações do empreendedor privado. Não poderia, em outros termos, a ordem jurídica conferir uma obrigação a alguém sem, concomitantemente, prover os meios necessários para integral e satisfatório cumprimento dessa obrigação. Se, ao capitalista, a ordem reserva a primazia na produção, deve cuidar par que ele possa desincumbir-se, plenamente, dessa tarefa. Caso contrário, ou se, se não houvesse um regime jurídico específico para a exploração econômica, a iniciativa privada permaneceria inerte e toda a sociedade sofreria com a estagnação da produção de bens e serviços indispensáveis à satisfação de suas necessidades. [...]

Portanto, a imunidade que resguarda da incidência do ITBI a transmissão de imóvel e direito real incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital é o desdobramento, no campo tributário, do Princípio da Livre Iniciativa.

Seu objetivo declarado é desonerar aqueles que pretendem investir em atividades produtivas, e desta maneira, incentivar a livre iniciativa no País.

O Código Tributário Nacional disciplina essa imunidade no artigo 36, inciso I in verbis:

Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:

I - quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito; [...](grifos em negrito não presentes no original).

Tem-se então delimitada a restrição constitucional à incidência do ITBI: somente os imóveis e direitos reais integralizados para realização do capital social, ou nas palavras do CTN, para pagamento do capital social subscrito é que pode ser alcançado pela imunidade.


3 A FORMAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL DE UMA PESSOA JURÍDICA E SEUS REFLEXOS TRIBUTÁRIOS

O nascimento de uma pessoa jurídica[2] obrigatoriamente pressupõe que seja amealhado um valor inicial, para que ela possa iniciar suas atividades. Esse montante é chamado de capital social, e é responsabilidade dos sócios[3] no caso de sociedade empresária, devendo ser suficiente para dar início aos trabalhos.

Ensina Diniz (2009, p. 205):

O capital social é a parte da contribuição em dinheiro, bens corpóreos, incorpóreos (marca patente), móveis ou imóveis ou créditos, desde que suscetíveis de avaliação monetária (Lei n. 6.404, art. 7.º), com a qual os acionistas (subscritores), ao integralizá-lo, formam o fundo necessário para o início da atividade da sociedade.

Para a consecução dos objetivos a que se propõe a pessoa jurídica, os sócios podem destinar qualquer bem que possa ter seu valor expresso em moeda corrente. Essa disponibilização se divide em dois momentos.

No momento inicial, quando o contrato social é redigido, os sócios fazem a subscrição das cotas sociais (no caso de uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada) ou das ações (no caso das sociedades anônimas).

Essa subscrição é justamente a declaração de quanto cada sócio está disposto a investir na sociedade, a fim de atingir seus objetivos sociais.

Posteriormente, cabe aos sócios fazer a integralização desse capital, seja na forma de dinheiro, seja na forma de outros bens, móveis e imóveis. Para que a sociedade possa fazer frente aos seus custos iniciais, é primordial que o valor subscrito seja efetivamente integralizado.

No caso do valor dos bens imóveis, a Lei das S/A (Lei 6.404/76) prevê as seguintes regras, conforme disposto no art. 8º:

 Art. 8º A avaliação dos bens será feita por 3 (três) peritos ou por empresa especializada, nomeados em assembleia geral dos subscritores, convocada pela imprensa e presidida por um dos fundadores, instalando-se em primeira convocação com a presença de subscritores que representem metade, pelo menos, do capital social, e em segunda convocação com qualquer número.

§ 1º Os peritos ou a empresa avaliadora deverão apresentar laudo fundamentado, com a indicação dos critérios de avaliação e dos elementos de comparação adotados e instruído com os documentos relativos aos bens avaliados, e estarão presentes à assembléia que conhecer do laudo, a fim de prestarem as informações que lhes forem solicitadas.

§ 2º Se o subscritor aceitar o valor aprovado pela assembléia, os bens incorporar-se-ão ao patrimônio da companhia, competindo aos primeiros diretores cumprir as formalidades necessárias à respectiva transmissão.

§ 3º Se a assembléia não aprovar a avaliação, ou o subscritor não aceitar a avaliação aprovada, ficará sem efeito o projeto de constituição da companhia.

§ 4º Os bens não poderão ser incorporados ao patrimônio da companhia por valor acima do que lhes tiver dado o subscritor.

§ 5º Aplica-se à assembléia referida neste artigo o disposto nos §§ 1º e 2º do artigo 115.

§ 6º Os avaliadores e o subscritor responderão perante a companhia, os acionistas e terceiros, pelos danos que lhes causarem por culpa ou dolo na avaliação dos bens, sem prejuízo da responsabilidade penal em que tenham incorrido; no caso de bens em condomínio, a responsabilidade dos subscritores é solidária.

Destaca-se aqui duas regras importantes:

  • Os imóveis devem ser avaliados por peritos independentes, que devem fundamentar suas avaliações em laudos que contenham a indicação dos critérios de avaliação e dos elementos de comparação adotados e instruído com os documentos relativos aos bens avaliados.
  • Somente os bens com os valores aprovados pela Assembleia poderão ser integralizados ao capital social.
  • Por outro lado, tanto os avaliadores quanto o subscritor que entregou o bem ou bens podem ser pessoalmente responsabilizados, civil e penalmente, por danos que causarem à companhia ou a terceiros em função das avaliações.

Já para a sociedade por cotas de responsabilidade limitada (Ltda.), a regra prevê apenas que todos os sócios são solidariamente responsáveis pelo valor declarado no contrato social, conforme o § 1º do art. 1.055: “§ 1º Pela exata estimação de bens conferidos ao capital social respondem solidariamente todos os sócios, até o prazo de cinco anos da data do registro da sociedade”.

Portanto a legislação civil não dispõe expressamente sobre o valor integralizado, exceto que ele deve refletir o valor correto dos bens integralizados.

Na lição de Gusmão (2007, p. 203):

[...] Contrariando o desejável, a lei não estipula um valor mínimo para a formação do capital social para a constituição de sociedade. Não há mecanismo seguro e efetivo para o controle da realidade do capital social, e essa omissão legislativa pode gerar fraude e abuso na sua formação porque os sócios podem alterar, artificialmente, os valores relativos ao capital social, criando capitais inexistentes, irreais ou ilusórios, e esvaziando a garantia dos credores. Sempre sustentamos a responsabilidade pessoal dos sócios quando declararem capital aparente e nitidamente insuficiente para a garantia dos credores da sociedade. [...]

À parte os reflexos societários e civis da subcapitalização, isto é, da declaração de valor inferior ao efetivamente transferido, e que não são objeto deste trabalho, interessa verificar qual o reflexo tributário desta situação.

Principalmente dois são os impostos afetados pela integralização de bens imóveis no capital social de sociedades empresárias: além do ITBI, há ainda reflexos no Imposto de Renda (IR), tanto das pessoas físicas que integralizam os bens, quanto para as pessoas jurídicas que os recebem.

A lei 9.249/1995 que prevê as normas aplicáveis ao IR regulamenta assim a transferência de bens e direitos de pessoas físicas para pessoas jurídicas:

Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.

§ 1º Se a entrega for feita pelo valor constante da declaração de bens, as pessoas físicas deverão lançar nesta declaração as ações ou quotas subscritas pelo mesmo valor dos bens ou direitos transferidos, não se aplicando o disposto no art. 60 do Decreto-Lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, no art. 20, II, do Decreto-Lei nº 2.065 de 26 de outubro de 1983.

§ 2º Se a transferência não se fizer pelo valor constante da declaração de bens, a diferença a maior será tributável como ganho de capital. (grifos não presentes no original).

Por outro lado, o mesmo diploma legal determina em seu artigo 17, inciso II que os bens adquiridos após 31 de dezembro de 1995 não poderão sofrer correção monetária. Ou seja, toda e qualquer atualização dos bens e valores declarados pelos contribuintes do IR são considerados ganho de capital, e consequentemente sofrem tributação.

Esta regra literalmente obriga as pessoas físicas a manter os bens declarados pelos valores históricos, e por consequência subvalorizados. E esse comportamento tem reflexo direto na formação do capital social das sociedades empresárias, e por extensão, na tributação do ITBI.


4 DIFERENÇA ENTRE O VALOR DECLARADO NO CAPITAL SOCIAL E O VALOR DE MERCADO E O ALCANCE DA REGRA IMUNIZANTE

A imunidade ora em debate é concedida sob condição resolutória, uma vez que pode ser revogada a partir do momento em que se constatar que a sociedade empresária tem como atividade preponderante as atividades mencionadas como impeditivas: compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

Para que se proceda essa verificação, o CTN estipula que a pessoa jurídica beneficiada seja monitorada, conforme disposto no art. 37:

Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subseqüentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.

§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.

§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data.

§ 4º O disposto neste artigo não se aplica à transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante.

Ao final do período de apuração (02 anos para as empresas em atividade e 03 anos para as empresas em início de atividade), caso se constate que a contribuinte não tem direito à imunidade, o Fisco deve lançar o imposto devido.

Mas, para que isso seja possível, é necessária a apuração do valor de mercado do bem integralizado, a fim de que seja possível esse lançamento ulterior, que deve ser feito com base no momento da ocorrência do fato gerador, conforme expressamente previsto no § 3.º do artigo 37 acima, bem como no art. 144 do CTN[4].

Como a base de cálculo do ITBI é o valor de mercado do bem, e como este valor é altamente suscetível a fatores diversos, é fundamental que a Fazenda apure o valor na época em que a operação de integralização é apresentada, para preservar um dos elementos fundamentais para a caracterização do fato gerador do imposto.

É nesse momento que se constata se há e qual é a diferença eventual entre o valor declarado no contrato social e aquele que o mercado aponta como correto para o bem avaliado.

Tradicionalmente, as Fazendas municipais têm aplicado a regra imunizante apesar de constatar essa diferença, muitas vezes gigantesca, a exemplo da contribuinte que figura no RE 796.376. Entretanto, a partir da decisão sob exame cabe uma reflexão mais detida a respeito do seu conteúdo.

A expressão chave para entender o alcance dessa imunidade é aquela prevista no texto constitucional: “incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”. Ora, tudo o que for incorporado na forma de capital social é imune, caso contrário sofrerá incidência tributária.

Desse ponto de vista, é pertinente o questionamento levantado a respeito do alcance da norma constitucional, por se tratar de uma restrição ao poder de tributar, e que portanto, deve ser interpretada não com liberalidade, mas sim de forma a buscar os exatos reflexos pretendidos pelo texto constitucional, nem mais, nem menos.

Para colaborar com o debate, interessante a transcrição de um trecho do voto do Desembargador Jaime Ramos:

Todavia, a imunidade tributária não é ampla e irrestrita, mas apenas em relação ao valor do imóvel suficiente à integralização do capital social, vale dizer, se o capital social a ser integralizado é de R$ 10.000,00, por exemplo, e o valor do imóvel incorporado ao patrimônio da pessoa jurídica para a realização desse capital é de R$ 30.000,00, o imposto sobre a transmissão de bens (ITBI) não incidirá tão somente sobre a importância de R$ 10.000,00.

Isso porque a intenção do legislador constituinte, ao estabelecer a imunidade do ITBI sobre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, destinados à integralização do capital social, foi a de facilitar a instituição/criação de novas sociedades e a movimentação de bens que representassem o capital exigido para tal finalidade, e não a de criar mecanismos a fim de que os sócios transferissem para o patrimônio da pessoa jurídica imóveis de valor superior àquele necessário à integralização do capital social, e assim ficar totalmente imunes à tributação.

Aliás, o Código Tributário Nacional determina que, “ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobrea transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior: I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito (art. 36 – grifo aposto).

Logo, não é razoável que se aplique a imunidade tributária sobre o valor total do imóvel incorporado ao patrimônio da pessoa jurídica, quando apenas parte dele foi suficiente para a integralização do capital social, ou seja, sobre o valor do imóvel que excede o capital social integralizado haverá a incidência do imposto (ITBI).

Ainda que as partes tenham liberdade para contratar o valor do capital social a ser subscrito e integralizado, essa liberdade não pode ser oposta ao fato de que, ao declarar o valor de bens imóveis por valores dissociados daqueles praticados no mercado, os sócios estão desrespeitando o princípio da realidade do capital social. Na lição de Gusmão (2007, p. 204): “Pelo princípio da realidade do capital social este não pode ser fictício ou irreal. Deve corresponder ao valor real declarado no contrato”.

Portanto, não se trata de restringir a aplicação da imunidade, mas sim calibrar seus efeitos dentro dos limites impostos pela Constituição, e assim impedir um verdadeiro enriquecimento ilícito por parte dos sócios que integralizam imóveis por valores inferiores ao real.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se o imóvel é integralmente transferido ao patrimônio da pessoa jurídica, mas somente uma parcela dele é suficiente para integralizar o capital social, é forçoso admitir que essa entrada tenha outra justificativa, que pode ser encontrada na investigação da natureza econômica da operação.

A transferência de um bem imóvel pode ser feita, quanto à natureza econômica da operação, a título gratuito ou oneroso. Caso seja uma transferência gratuita, ficará no campo de incidência do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD); se onerosa, pertencerá ao campo de incidência do ITBI.

No caso em estudo, há que se desconsiderar uma transação gratuita, uma vez que a transferência está sendo feita por pessoas diretamente interessadas no resultado final obtido pela sociedade com aquele imóvel, e que inclusive está sendo transferido a guisa de ser usado em uma atividade produtiva.

Ademais, a doação pura e simples pressupõe uma redução patrimonial daquele que doou para o beneficiário, sem contrapartida para o doador. Ora, se considerar toda a transferência desse excedente uma doação, então a integralização do capital social também deveria ser encarada assim, o que não é o caso.

Estando o imóvel integralmente à disposição da sociedade, e revertendo seus frutos na forma de dividendos para os detentores das cotas sociais, deve-se admitir a onerosidade dessa transferência.

Assim assiste razão à decisão recorrida, e que entendeu não ser possível estender a imunidade à totalidade do imóvel integralizado, por se tratar de operação tributável pelo ITBI sob a forma de cessão onerosa do imóvel, com a finalidade de exploração na atividade produtiva da sociedade, com contrapartida nos eventuais lucros a serem obtidos dessa exploração.

Por fim, resta ainda uma questão importante.

Ainda que seja possível a aplicação da regra constitucional tal como proposta a partir da interpretação dos dispositivos estudados, ressalta-se que, em nome do princípio da reserva legal, é importante que o município preveja em sua legislação tributária uma norma disciplinadora dessa forma de interpretação, a fim de afastar eventuais acusações de ilegalidade.


REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei 6.404 de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404consol.htm. Acesso em 02. jul 2015.

BRASIL. Lei 9.249 de 26 de dezembro de 1995. Altera a legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas, bem como da contribuição social sobre o lucro líquido, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L9249.htm. Acesso em 02. jul 2015.

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COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Civil. Direito das Coisas. Direito Autoral. 2a ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

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GUSMÃO, Mônica. Curso de Direito Empresarial. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

MACEDO, José Alberto Oliveira. ITBI Aspectos Constitucionais e Infraconstitucionais. São Paulo: Quartier Latin, 2010.


Notas

[1] Imposto sobre a transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição.

[2] Neste artigo serão considerados somente os dois tipos societários mais comumente encontrados nas sociedades empresárias nacionais: as sociedades anônimas (S/A) e a sociedade por cotas de responsabilidade limitada (Ltda.), já que os demais tipos societários previstos na lei civil caíram em desuso, sendo raramente encontrados.

[3] E da pessoa natural no caso da EIRELI (Empresa Individual de Responsabilidade Tributária), prevista no art. 980-A do Código Civil: “A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País”. (grifos não presentes no original). Aplica-se subsidiariamente à EIRELI o regramento da Ltda., a teor do disposto no art. 980-A, § 6º

[4] Art. 144 do CTN: “O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada”.


Autor

  • Claudia Roveri

    Auditora Fiscal Tributária do Município de Blumenau desde 1998, ex-professora de Direito Tributário e Direito Empresarial. Atualmente dá treinamentos para diversas entidades nas areas do ireito Tributário e Direito Empresarial.

    Textos publicados pela autora


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROVERI, Claudia. RE 796.376 - incidência do ITBI sobre o valor do imóvel incorporado que exceder o limite do capital social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5627, 27 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68810. Acesso em: 3 maio 2024.