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A Lei Complementar nº 118 e o prazo para a repetição de indébito

A Lei Complementar nº 118 e o prazo para a repetição de indébito

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1.INTRODUÇÃO

            Nos dizeres de Misabel Derzi, "certeza (ou segurança), economicidade e capacidade contributiva" seriam os principais alicerces do sistema constitucional tributário brasileiro, posto que "mesclam não só padrões mínimos de ética e de justiça, como de técnica e razoabilidade". Disto se depreende, sem medo de errar, que os princípios constitucionais limitam a atuação do legislador infraconstitucional, seja complementar, seja ordinário, contrabalançando o poder de tributar e tornando equivalente, pois, Estado de Direito e legalidade na tributação.

            O Art. 150 da Constituição Federal arrola uma série de limitações ao poder de tributar, tais como, dentre os mais importantes, o princípio da legalidade, da anterioridade e da irretroatividade das leis. Em última análise, todos esses princípios têm por escopo garantir ao contribuinte o mínimo de tranqüilidade, de confiança e de certeza quanto à política a ser adotada pelo Governo, fazendo cessar, pois, a improvisação e o imediatismo.

            Sacha Calmon Navarro Coelho e Valter Lobato, citando lição de Torstein Stein, reafirmam que:

            "O conceito de segurança jurídica é considerado conquista especial do Estado de Direito. Sua função é a de proteger o indivíduo de atos arbitrários do poder estatal, já que as intervenções do Estado nos direitos dos cidadãos podem ser muito pesadas e, às vezes, injustas. No entanto, se tais intervenções têm base em lei e visam o bem-estar público, será preciso decidir-se pela avaliação conjunta do interesse coletivo e do interesse do particular afetado para se aferir a juridicidade (conformação do direito) da medida estatal. Esse princípio é frequentemente denominado ‘princípio da proporcionalidade" (1)

            A Lei Complementar n. 118, de 9 de fevereiro de 2.005, dispôs, em seu art. 3º, que, para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 do Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito à lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o ̕§1º do art. 150 do referido Diploma legal.

            Conforme será exposto a seguir, esta nova disposição, sob o pretexto de esclarecer o verdadeiro sentido da regra exposta no art. 168 do CTN, fixou novo entendimento acerca da contagem do prazo prescricional para o exercício do direito do contribuinte à repetição do indébito, ao arrepio de entendimento já consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, prevendo-se, ademais, a aplicação imediata de tal disposição, haja vista o que dispõe o art. 4º da acima referida Lei Complementar.


2. APRESENTAÇÃO DO TEMA.

            Nos termos já citados, a Lei Complementar n. 118, de 2005, por meio de seu art. 3º, dispôs que, para efeito de interpretação do art. 168, I, do CTN, a extinção do crédito nos casos de tributos sujeitos à lançamento por homologação dá-se quando do pagamento antecipado de que trata o art. 150, §1º do mesmo Código.

            Em um primeiro momento, há que se ter em vista o que dispõe o art. 165 do Código Tributário Nacional:

            "165. O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos: (I) - cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido; (II) - erro na edificação do sujeito passivo, na determinação da alíquota aplicável, no cálculo do montante do débito ou na elaboração ou conferência de qualquer documento relativo ao pagamento; (III) - reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória.".

            Este dispositivo tem supedâneo no princípio que veda o enriquecimento sem causa, sendo certo, no entanto, que as ações que tem por escopo reaver aquilo que se desembolsou além do devido, as quais recebem o nome genérico de ações de in rem verso, devem ser ajuizadas dentre de um determinado lapso de tempo, qual seja o lapso prescricional. No caso de tributo pago a maior, o art. 168 do CTN prevê, por sua vez:

            "Art. 168. O direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados: (I) - Na hipótese dos incisos I e II do artigo 165, da data da extinção do crédito tributário; (II) - Na hipótese do inciso III do artigo 165, da data em que se tornar definitiva a decisão administrativa ou passar em julgado a decisão judicial que tenha reformado, anulado, revogado ou rescindido a decisão condenatória".

            Assim, o termo inicial para o exercício do direito de pleitear a restituição, para as hipóteses dos incisos I e II do art. 165 do CTN, é a data da extinção do crédito tributário, a qual, nos casos dos tributos sujeitos a lançamento por homologação, dá-se, ex vi do inciso VII do art, 156 do CTN e do entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, com o pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos do disposto no artigo 150 e seus §§1º e 4º. Em tempo, segue o que dispõe os §§1º e 4º do art. 150:

            "Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.

            §1º O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação ao lançamento.

            (...)

            §4º Se a lei não fixar prazo à homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.’

            Como na prática a Fazenda Pública nunca homologa expressamente, considera-se extinto o crédito tributário cinco anos depois de ocorrido o seu fato gerador (homologação tácita). Assim sendo, o prazo de cinco anos para exercer o direito de pedir a restituição tem como termo inicial justamente o termo final da Fazenda Pública para homologar expressamente o crédito restituendo.

            Segue uma das várias decisões proferidas pelo STJ a respeito do assunto:

            "TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. COMPENSAÇÃO. PIS. PRESCRIÇÃO / DECADÊNCIA. INÍCIO DO PRAZO. PRECEDENTES.

            1. Está uniforme na 1ª Seção do STJ que, no caso de lançamento tributário por homologação e havendo silêncio do Fisco, o prazo decadencial só se inicia após decorridos 5 (cinco) anos da ocorrência do fato gerador, acrescidos de mais um qüinqüênio, a partir da homologação tácita do lançamento. Estando o tributo em tela sujeito a lançamento por homologação, aplicam-se a decadência e a prescrição nos moldes acima delineados.

            2. Não há que se falar em prazo prescricional a contar da declaração de inconstitucionalidade pelo STF ou da Resolução do Senado. A pretensão foi formulada no prazo concebido pela jurisprudência desta Casa Julgadora como admissível, visto que a ação não está alcançada pela prescrição, nem o direito pela decadência. Aplica-se, assim, o prazo prescricional nos moldes em que pacificado pelo STJ, id est, a corrente dos cinco mais cinco.

            3. A ação foi ajuizada em 28/02/2002. Valores recolhidos, a título de PIS, no período de 01/89 a 01/95. Não transcorreu, entre o prazo do recolhimento (contado a partir de 02/1992) e o do ingresso da ação em juízo, o prazo de 10 (dez) anos. Inexiste prescrição sem que tenha havido homologação expressa da Fazenda, atinente ao prazo de 10 (dez) anos (5 + 5), a partir de cada fato gerador da exação tributária, contados para trás, a partir do ajuizamento da ação." (2)

            4. Precedentes desta Corte Superior.

            5. Embargos de divergência parcialmente acolhidos para, com base na jurisprudência predominante da Corte, declarar a prescrição, apenas, das parcelas anteriores a 02/1992, concedendo as demais, nos termos do voto."

            A Doutrina, no que pertine aos tributos sujeitos ao chamado lançamento por homologação, também deixou registrado que a extinção do crédito se dá, nestes casos, com a ulterior homologação, expressa ou tácita, por parte do fisco. Pontifica o Prof. Paulo de Barros Carvalho:

            "Quero limitar-me, por agora, a consignar dois tópicos sobre o pagamento antecipado e a homologação do lançamento.

            De primeiro, que o pagamento antecipado é uma forma de pagamento, cumprindo o sujeito passivo a conduta que dele se esperava e provocando, com isso, o desaparecimento do direito subjetivo de que esteve investido o credor. Desfaz-se o crédito e, correlativamente, o débito, extinguindo-se a obrigação. Mas, precisamente aqui, ingressa um dado que é peculiar ao instituto, tal qual o prescreve o direito tributário brasileiro: ainda que o factum do pagamento tenha efeitos extintivos, requer a legislação aplicável que ele se conjugue ao ato homologatório a ser realizado (comissiva ou omissivamente) pela Administração Pública. Só assim dar-se-á por dissolvido o vínculo, diferentemente do que sucede nos casos de pagamento de dívida tributária apurada por lançamento, em que a conduta prestacional do devedor tem o condão de pôr fim, desde logo, à obrigação tributária." (3)

            Não obstante a sedimentação deste entendimento, o legislador complementar, certamente cedendo à intensa pressão exercida pelos entes tributantes, editou, 39 anos após a promulgação do Código Tributário Nacional, a Lei Complementar de n. 118, através da qual alterou o entendimento jurisprudencial consolidado, interpretando o art. 168, inc. I do CTN de forma a reduzir o prazo prescricional da ação de repetição de indébito, considerando, para tal fim, como data da extinção do crédito nos tributos sujeitos a lançamento por homologação, a data do pagamento antecipado, independentemente da homologação, expressa ou tácita, da Fazenda competente.

            Como se não bastasse, partindo do que dispõe o art. 106 do CTN, determinou que tal disposição teria aplicação retroativa, entendendo-se, daí, o caráter meramente interpretativo da disposição in comentum.


3.DAS LEIS INTERPRETATIVAS

            Conforme já exposto, o art. 150, inciso III, da Constituição Federal, determina que é vedado aos entes tributantes cobrar tributos "em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado". Tem-se aí o princípio da irretroatividade das leis tributárias, o qual, como visto, tem por escopo a segurança jurídica dos contribuintes, impedindo-se, pois, sejam os mesmos surpreendidos pela mudança na política tributária dos governos.

            Como exceção a esta regra, o Código Tributário Nacional, em seu art. 106, inciso I, dispõe que a lei se aplica a caso pretérito "quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados". Trata-se, no caso, da chamada interpretação autêntica, qual seja aquela promovida pela mesma fonte que criou o dispositivo interpretado.

            Como se sabe, as leis interpretativas surgiram quando o poder centralizava-se nas mãos do legislador, ou à época, do imperador, ou do ditador. Com o fim do absolutismo, passou-se a admitir novas fontes de direito, sedimentando-se, assim, a interpretação exercida pelos magistrados e pelos doutrinadores. Desta feita, o monopólio da hermenêutica foi desfeito, reconhecendo-se, assim, a existência de outras fontes de interpretação.

            A despeito da existência de balizados entendimentos doutrinários, que defendem a inexistência de leis interpretativas, tal qual ensina Roque Antônio Carrazza (4), o Supremo Tribunal Federal reconhece a função das leis interpretativas, tendo encerrado, pois, qualquer dúvida que pudesse pairar sobre a pertinência das mesmas em nosso ordenamento. Em tempo:

            "Ação direta de inconstitucionalidade - Medida provisória de caráter interpretativo - Leis interpretativas - A questão da interpretação de leis de conversão por medida provisória - Princípio da irretroatividade - Caráter relativo - Leis interpretativas e aplicação retroativa - Reiteração de medida provisória sobre matéria apreciada e rejeitada pelo congresso nacional - Plausibilidade jurídica - Ausência do "periculum in mora" - Indeferimento da cautelar. - É plausível, em face do ordenamento constitucional brasileiro, o reconhecimento da admissibilidade das leis interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autentica. - as leis interpretativas - Desde que reconhecida a sua existência em nosso sistema de direito positivo - Não traduzem usurpação das atribuições institucionais do judiciário e, em conseqüência, não ofendem o postulado fundamental da divisão funcional do poder. - Mesmo as leis interpretativas expoem-se ao exame e a interpretação dos juizes e tribunais. Não se revelam, assim, espécies normativas imunes ao controle jurisdicional. - A questão da interpretação de leis de conversão por medida provisória editada pelo Presidente da República. - O princípio da irretroatividade "somente" condiciona a atividade jurídica do Estado nas hipóteses expressamente previstas pela Constituição, em ordem a inibir a ação do poder público eventualmente configuradora de restrição gravosa (a) ao "status libertatis" da pessoa (CF, art. 5. XL), (b) ao "status subjectionais" do contribuinte em matéria tributaria (CF, art. 150, III, "a") e (c) a "segurança" jurídica no domínio das relações sociais (CF, art. 5., XXXVI). - na medida em que a retroprojeção normativa da lei "não" gere e "nem" produza os gravames referidos, nada impede que o estado edite e prescreva atos normativos com efeito retroativo. - As leis, em face do caráter prospectivo de que se revestem, devem, "ordinariamente", dispor para o futuro. O sistema jurídico - constitucional brasileiro, contudo, "não" assentou, como postulado absoluto, incondicional e inderrogável, o princípio da irretroatividade. - a questão da retroatividade das leis interpretativas".

            Há quem afirme ainda que a lei interpretativa não retroage, mas apenas clareia o sentido do dispositivo legal interpretado. Trata, assim, de garantir a plena eficácia da lei anterior, que, se corretamente interpretada, não teria sofrido certas limitações. Assim, não obstante hoje paire certo consenso acerca da existência das leis interpretativas, o certo é que as mesmas não introduzem nenhum elemento novo no ordenamento, cingindo-se apenas a explicar o sentido do texto interpretado. Tanto assim o é que tais leis não estão imunes ao controle jurisdicional, sujeitas, pois, ao crivo do Judiciário.

            Cabe-nos proceder, ainda assim, a uma breve crítica da função interpretativa reservada ao legislador. A interpretação autêntica, como se diz, ao lado de implicar assunção de equívoco cometido anteriormente, haja vista a má redação do dispositivo legal pretérito, é de utilidade questionável. Isto porque, se inovar, não poderá retroagir, e, se não inovar, limitar-se-á a repetir a redação do texto interpretado. No entendimento de Luciano Amaro:

            "Ocorre que, de um lado, o legislador, nas matérias que se contêm no campo da irretroatividade, só legisla para o futuro. De outro lado, dar ao legislador funções interpretativas, vinculantes para o Judiciário na apreciação de fatos concretos anteriormente ocorridos, implicaria conceder àquele a atribuição de dizer o direito aplicável aos casos concretos, tarefa precipuamente conferida pela Constituição ao Poder Judiciário. Mais uma vez, não se escapa ao dilema: ou a lei nova dá ao preceito interpretado o mesmo sentido que o juiz infere desse preceito, ou não; no primeiro caso, a lei é inócua; no segundo, é inoperante, por retroativa (ou porque usurpa função jurisdicional)." (5)

            De fato, há que se ressaltar que o art. 106, I, do CTN, dispõe que a lei interpretativa retroagirá, excluída a aplicação de penalidade pela eventual infração aos dispositivos interpretados. Ocorre que a lei interpretativa, salvo se se limitar a repetir o dispositivo passado, pelo quê inútil, sempre vai inovar. No caso presente, a Lei Complementar n. 118, ao arrepio do entendimento majoritário da jurisprudência, reduziu o prazo prescricional da ação de repetição de indébito, asseverando que, por estar interpretando o art. 168 do CTN, aplica-se retroativamente aos casos pretéritos, haja vista o que dispõe o já citado art. 106. Ocorre que, para ser útil, a lei interpretativa sempre implicará em aplicação de penalidade ao contribuinte, ainda que indireta. Isto porque a se fazer retroagir a novel legislação, o contribuinte será privado de prazo que anteriormente lhe era garantido pelo Poder Judiciário, penalizado, pois, pela nova interpretação.

            Ademais, a lei interpretativa gera a insegurança dos cidadãos, posto que a qualquer momento o legislador pode alterar o sentido das regras legais vigentes. Ainda que o STF defenda o controle judicial exercido sobre tais leis, o fato é que a se garantir sua existência, está-se a reconhecer que o legislador tem o poder de alterar o sentido consolidado da norma, dando-lhe, a seu único e exclusivo critério, e a qualquer tempo, o entendimento que mais lhe convier. Além disso, as leis interpretativas terminam por minar a função hermenêutica exercida pelos doutrinadores e pelos magistrados. Se essa função também lhes compete, descabe falar em interpretação autêntica, posto que não poderá o legislador ter a última palavra, sob pena de se retornar a era do absolutismo.

            Veja-se, por todos, a clássica lição de CARLOS MAXIMILIANO:

            "O ideal do Direito, como de toda ciência, é a certeza, embora relativa; pois bem, a forma autêntica de exegese oferece um grave inconveniente – a sua constitucionalidade posta em dúvida por escritores de grande prestígio. Ela positivamente arranha o princípio de Montesquieu; ao Congresso incumbe fazer as leis; ao aplicador (Executivo e Judiciário) – interpretá-las. A exegese autêntica transforma o legislador em juiz; aquele toma conhecimento de casos concretos e procura resolvê-los por meio de uma interpretação geral.

            Amplifica-se, deste modo, a autoridade da legislatura, num regime de freios e contrapesos; revela-se desamor pelo dogma da divisão dos poderes, pedra angular das instituições vigentes.

            Em resumo: se a lei tem defeitos de forma, é obscura, imprecisa, faça-se outra com o caráter franco de disposição nova. Evite-se o expediente perigoso e retrógrado, a exegese por via de autoridade, irretorquível, obrigatória para os próprios juízes; não tem mais razão de ser; coube-lhe um papel preponderante outrora, evanescente hoje." (6)


4.DO ENFRENTAMENTO DO TEMA

            A partir do raciocínio supra, seja aquele que defende a plena existência e validade das leis interpretativas, seja aquele que defende sua inocuidade, é fato inconteste que o art. 3º da Lei Complementar n. 118/2005 não pode ter eficácia retroativa, posto restringir direito antes assegurado ao contribuinte pelo Superior Tribunal de Justiça.

            Ainda que não se possa falar em direito adquirido ao prazo decenal, é certo que lei nova não pode retroagir para afetar legítima expectativa do contribuinte. É a lição de GILMAR FERREIRA MENDES:

            "É bem verdade que, em face da insuficiência do princípio do direito adquirido para proteger tais situações, a própria ordem constitucional tem-se valido de uma idéia menos precisa e, por isso mesmo mais abrangente, que é o princípio da segurança jurídica enquanto postulado do Estado de Direito. A idéia de segurança jurídica tornaria imperativa a adoção de cláusulas de transição nos casos de mudança radical de uma dado instituto ou estatuto jurídico". (7)

            Assim, resta claro que o art. 3º da novel legislação não é norma de caráter interpretativo, uma vez que modificou substancialmente o dispositivo que pretendia interpretar (no caso, o inc. I do art. 168, do CTN).

            Nos termos do entendimento fixado pelo Superior Tribunal de Justiça, o §1º, do art. 150 do Código Tributário Nacional estabelece uma condição para a extinção do crédito tributário, qual seja a ulterior homologação do pagamento antecipado por parte do fisco. Daí que enquanto pendente tal condição resolutiva, definitivo não é o pagamento e, portanto, inviável a repetição. Já a norma do inc. I, do art. 168, é clara no sentido de que a extinção do crédito tributário é o ato que possibilita a ação de repetição do indébito, pelo quê se a norma pretensamente interpretativa acaba por "revogar" parte do § 1º, do art. 150, tem-se certo que de norma interpretativa não se trata. O art. 156, VII do mesmo Diploma Legal vem colocar uma pá de cal no assunto, ao dispor que extingue o crédito tributário o pagamento antecipado e a homologação do lançamento, nos termos do disposto no artigo 150 e seus §§1º e 4º.

            O Código Tributário Nacional, nos dispositivos acima citados, deixou claro que a extinção do crédito, nos tributos sujeitos a lançamento por homologação, depende, mormente para que se legitime a repetição eventualmente devida, da ulterior chancela da Fazenda Pública, seja expressa, seja tácita. Afirmar o contrário seria prestigiar o entendimento de que a lei contém palavras inúteis, qual seja, no caso, o conjuntivo "e" presente no art. 156 do CTN. E, como se sabe, nos termos do cânone latino do "verba cum effectu, sunt accipienda", não se pode presumir que na lei constem vocábulos inúteis e/ou ineficazes. Aliás, essa é a lição que Carlos Maximiliano nos deixou com letras indeléveis, a de que "as expressões do Direito interpretam-se de modo que não resultem frases sem significação real, vocábulos supérfluos, ociosos, inúteis." (8)

            Desta feita, tem-se como intolerável que se possa querer atribuir à pseudo-interpretação que revogou o regime jurídico anterior eficácia retroativa, pois que atenta aos mais elementares princípios constitucionais.

            A chamada ‘tese dos cinco anos mais cinco’, na realidade, resulta nada mais nada menos de simples interpretação conjugada dos arts. 165, I, 168, I, 150, §4 e 156, VII do CTN, e da inércia permanente do fisco em sua função de fiscalizar, preferindo a automática constituição do crédito tributário, por omissão, ao cabo de cinco anos, mediante a chamada homologação tácita do pagamento antecipado.

            Disto decorre que o legislador, por meio da interpretação dita autêntica, não tem, nunca teve e jamais terá o poder de modificar a interpretação dada pelo Poder Judiciário, detentor único da prerrogativa de aplicar a lei em última análise, bem como ressai inviável uma interpretação que não se coadune com o espírito evidente da lei interpretada, sendo certo que nosso ordenamento não admite exegese que implique em conclusões completamente desvinculadas do lógico. No caso, repita-se, o Judiciário limitou-se a aplicar os dispositivos legais claros, incontroversos e de facilíssima compreensão, afastando qualquer interpretação ilógica dada pelo fisco.

            Quanto à constitucionalidade da aplicação futura do art. 3º da Lei Complementar n. 118, não há como se lhe negar. A novel legislação veio revogar dispositivo do CTN, que, recepcionado pela Constituição Federal como lei de status complementar, só poderia ser revogado por outra lei complementar, tal qual a lei objeto deste estudo. Ademais, detém o legislador complementar federal competência para dispor acerca de normas gerais em direito tributário, e, o dispositivo in comentum veicula, por certo, norma de caráter genérico e inespecífico. Ainda que se possa defender que o legislador andou mal em modificar o termo inicial do prazo prescricional para a ação de repetição de indébito, não há que se falar em inconstitucionalidade de qualquer espécie.

            Andou mal o legislador, posto que descabe falar em extinção de algo que não existe. Isto porque quando do pagamento antecipado, ainda não existe crédito constituído, posto que ausente a figura do lançamento. Para que o crédito tributário exista como tal é preciso que seja ele previamente constituído pelo lançamento, que é privativo da autoridade administrativa tributária, nos precisos termos do art. 142 do CTN.

            Em tese, é possível ao legislador modificar o entendimento sedimentado pela jurisprudência. No entanto, tal deve ser feito com parcimônia e apenas para o futuro, sob pena de se instaurar o caos e a insegurança jurídica.

            O Superior Tribunal de Justiça, apreciando a constitucionalidade do dispositivo legal in comentum, decidiu, em maio próximo passado, pela irretroatividade do novo entendimento. Em tempo:

            "Tributário. Repetição de indébito. Verbas indenizatórias. Adesão ao PDV. Férias não gozadas. Imposto de renda. Tributo sujeito a lançamento por homologação. Prescrição. Orientação firmada pela 1ª Seção do STJ, na apreciação do ERESP 435.835/SC. LC 118/2005: natureza modificativa (e não simplesmente interpretativa) do seu artigo 3º. Inconstitucionalidade do seu art. 4º, na parte que determina a aplicação retroativa. Entendimento consignado no voto do ERESP 327.043/DF.

            1. A 1ª Seção do STJ, no julgamento do ERESP 435.835/SC, Rel. p/ o acórdão Min. José Delgado, sessão de 24.03.2004, consagrou o entendimento segundo o qual o prazo prescricional para pleitear a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação é de cinco anos, contados da data da homologação do lançamento, que, se for tácita, ocorre após cinco anos da realização do fato gerador — sendo irrelevante, para fins de cômputo do prazo prescricional, a causa do indébito. Adota-se o entendimento firmado pela Seção, com ressalva do ponto de vista pessoal, no sentido da subordinação do termo a quo do prazo ao universal princípio da actio nata (voto-vista proferido nos autos do ERESP 423.994/SC, 1ª Seção, Min. Peçanha Martins, sessão de 08.10.2003).

            2. O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar os arts. 150, §1º, 168, I, do CTN, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a "interpretação" dada, não há como negar que a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Portanto, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência.

            3. O artigo 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). Ressalva, no particular, do ponto de vista pessoal do relator, no sentido de que cumpre ao órgão fracionário do STJ suscitar o incidente de inconstitucionalidade perante a Corte Especial, nos termos do art. 97 da CF.

            4. Recurso especial a que se nega provimento." (9)

            Rematando, impende notar que a Lei Complementar nº 118, de 9 de fevereiro de 2005, foi concebida para adequar o CTN aos novos ditames normativos inaugurados pela nova Lei de Falências, porém, sorrateiramente, cuidou também de alterar o cômputo do prazo para o pleno exercício do direito de pedir a restituição de tributos pagos a maior ou que foram julgados indevidos pela Justiça, truque legislativo que, em razão da benevolência do Congresso e da volúpia arrecadatória do Executivo para sustentar superávits primários, vem sendo levianamente utilizado pelos burocratas do Planalto, tanto para criar novos impostos e aumentar alíquotas existentes, quanto para reduzir o prazo para recuperar tributos, a teor do disposto no art. 3º da Lei em referência, cuja aplicação retroativa, aliás, ex vi da segunda parte do art. 4º do mesmo diploma, além de contrariar princípios constitucionais notórios, ainda revela, diante de todo esse surrealismo tributário que ora vivenciamos, que o interesse da Fazenda não consiste apenas em arrecadar, mas também não devolver aquilo que recebeu indevidamente.


Referências Bibliográficas:

            AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Ed. Saraiva. 9ª ed., 2003. São Paulo.

            CARNEIRO, Daniel Zanetti Marques. A Lei Complementar nº 118 e a prescrição da pretensão de restituição do indébito tributário. Revista Dialética de Direito Tributário. Junho/05. São Paulo, pág. 21.

            CARRAZZA, ROQUE ANTÔNIO. Curso de Direito Constitucional Tributário, 19ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004.

            CARVALHO, Paulo de Barros. In Direito Tributário – Fundamentos Jurídicos da Incidência, Editora Saraiva, 2ª edição, 1999.

            COELHO, Sacha Calmon Navarro e LOBATO, Valter. Reflexões sobre o art. 3º da Lei Complementar 118. Segurança jurídica e a boa-fé como valores constitucionais. As leis interpretativas no Direito Tributário brasileiro. Revista Dialética de Direito Tributário. Junho/05. São Paulo, pág. 108.

            MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 18ª ed., Malheiros Editores – 2000.

            MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 13. ed., Forense, 1993..

            MELO, Omar Augusto Leite. LC 118/05 e a contagem inicial do prazo para pleitear a restituição e compensação de indébito tributário. Revista Dialética de Direito Tributário. Junho/05. São Paulo, pág. 80

            MENDES, Gilmar Ferreira. Princípio do direito adquirido. In: ARRUDA ALVIM et al. (coord.). Aspectos controvertidos do novo Código Civil: escritos em homenagem ao Ministro Moreira Alves. RT, 2003, p. 241.


NOTAS

            1 Stein, Torstein. "A Segurança Jurídica na Ordem Legal da República Federal da Alemanha". Cadernos Adenauer n. 3, 2000, acesso à Justiça e Cidadania. Fundação Adenauer Stifung. In Coelho, Sacha Calmon Navarro e Lobato, Valter. "Reflexões sobre o art. 2º da Lei Complementar 118. Segurança Jurídica e a Boa-Fé como Valores Constitucionais. As Lês Interpretativas no Direito Tributário Brasileiro."Revista Dialética de Direito Tributário. Vol. 117. Junho de 2005. Pág. 110.

            2 Superior Tribunal de Justiça. ERESP 607383 / SC, Embargos de Divergência no Recurso Especial 2004/0113252-5, Relator Ministro José Delgado, Primeira Seção, Data da Publicação: DJ 10/11/2004, pág. 209.

            3 Carvalho, Paulo de Barros. In Direito Tributário – Fundamentos Jurídicos da Incidência, Editora Saraiva, 2ª edição, 1999, p. 210.

            4 Carrazza, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 19ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 320.

            5 Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Ed. Saraiva. 9ª ed., 2003. São Paulo, pág. 107.

            6. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed., Forense, 2000, § 98, pp. 93/94.

            7 MENDES, Gilmar Ferreira. Princípio do direito adquirido. In: ARRUDA ALVIM et al. (coord.). Aspectos controvertidos do novo Código Civil: escritos em homenagem ao Ministro Moreira Alves. RT, 2003, p. 241.

            8 Maximiliano, Carlos. Op. Cit. P. 250.

            9 Superior Tribunal de Justiça. RESP 742362/MG, Min. Teori Albino Zavascki. Primeira Turma. Data do Julgamento 17/05/2005. Data da Publicação/Fonte DJ 30.05.2005 p. 263.


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PELLEGRINO, Maria Beatriz Conde; LEÔNCIO, Alisson Thomaz Bretas. A Lei Complementar nº 118 e o prazo para a repetição de indébito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 718, 23 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6925. Acesso em: 17 maio 2024.