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A teoria dos precedentes judiciais à luz dos princípios da segurança jurídica e da igualdade

A teoria dos precedentes judiciais à luz dos princípios da segurança jurídica e da igualdade

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A teoria dos precedentes judiciais é uma necessidade para qualquer sistema jurídico que se preocupe com a igualdade das decisões judiciais e a segurança jurídica dos jurisdicionados.

INTRODUÇÃO

A teoria dos precedentes judiciais é tema de grande relevância no Direito Processual contemporâneo. A tradicional visão acerca dos efeitos de uma decisão judicial se limitar às partes do processo encontra-se superada, haja vista uma nova realidade de conflitos existentes no meio social.

Sabe-se que o processo sempre foi visto como instrumento para resolver conflitos entre duas pessoas. Assim, o demandante exercia sua pretensão resistida contra alguém, pedindo ao juiz o reconhecimento do seu direito. A decisão judicial, que colocava fim ao conflito, produzia efeitos somente para as partes, já que a lide, neste contexto, não detinha de eficácia social, ou seja, terceiros não recebiam os reflexos de uma decisão judicial.

Todavia, houve uma mutação da realidade social. A evolução econômica do país trouxe como reflexo maior poder aquisitivo das classes tradicionalmente desafortunadas. Se há inclusão de um maior número de pessoas nas relações de consumo, via de consequência os conflitos tendem a aumentar. A massificação das relações sociais aumentou vertiginosamente os conflitos, situação em que o acesso à justiça não se limitava mais aos poucos indivíduos que faziam parte da sociedade de consumo.

O Direito processual, destarte, se viu deparado desta nova realidade. A procura ao judiciário passou a ser uma realidade concreta para toda a sociedade, razão pela qual, os conflitos passaram a se repetir, ser semelhantes. O processualista moderno teve que revisitar tradicionais institutos do direito processual, como, por exemplo, a decisão judicial. Esta, que é produto de uma atividade racional do magistrado, não se resume a conceder a prestação jurisdicional às partes sem se preocupar com seus efeitos perante terceiros. A decisão judicial, em que pese ainda ter como fulcro a resolução do conflito das partes posta em juízo, passa também a ser como um paradigma decisório para outras situações semelhantes. Eis aí o precedente judicial.

O precedente é a decisão judicial que é tomada a luz do caso concreto, cujas razões de decidir podem servir como modelo de julgamento para posteriores julgamentos para casos análogos. Sendo assim, questiona-se, como se compatibiliza o conteúdo da norma jurídica do livre convencimento motivado do magistrado diante da necessidade de dar segurança jurídica aos jurisdicionados? Além do que, é crível que dois casos semelhantes obterem prestações jurisdicionais contrárias?

É sabida a existência do princípio do livre convencimento motivado. Esta norma tem como conteúdo conceder liberdade ao juiz na produção da decisão judicial, encontrando limites, apenas, na necessária fundamentação da mesma, como requisito legitimador de sua produção. Esta é a visão tradicional da temática.

A teoria dos precedentes judiciais, já em grande evolução no sistema jurídico brasileiro, tem como uma das finalidades a busca da igualdade das decisões judiciais. Veja: casos análogos que recebem tratamento jurisdicional diverso, em que pesem possam estar de acordo com o princípio do livre convencimento do magistrado, é situação fática que traz repercussão social negativa, pois fere a igualdade e a segurança jurídica.

A confecção de uma teoria que respeite os precedentes judiciais tem uma relação intrínseca com os princípios da igualdade e da segurança jurídica, pois estas normas legitimam e, ao mesmo tempo, é a própria finalidade da teoria dos precedentes.

É este o objetivo principal deste labor científico, qual seja, demonstrar ao leitor que toda decisão judicial, malgrado a existência da liberdade de interpretação do direito pelo juiz, deve respeitar a igualdade e à segurança jurídica dos jurisdicionados. E este objetivo é alcançado por um sistema que valorize e respeite os precedentes judiciais.

Ab initio, será demonstrado como os sistemas do Civil Law e do Common Law se convergem na atual realidade jurídica, mostrando, destarte, a importância do respeito aos precedentes também no sistema romano-germânico.

O presente trabalho pretende explicar a estrutura e conteúdo dos precedentes judiciais: como é criado, como é distinguido e como é superado. Compreender estes detalhes facilita o entendimento das suas finalidades.

A presente empreitada também abordará a necessária reflexão de um tratamento igualitário dos jurisdicionados, em ambos os aspectos: substancial e formal.

Por fim e não menos importante, pretende-se trabalhar a relação existente entre uma decisão judicial e à segurança jurídica, no que pertine à legitima expectativa gerada nos jurisdicionados acerca da interpretação do direito elaborada pelo Poder Judiciário.


COMMON LAW E CIVIL LAW. UMA ANÁLISE COMPARATIVA

A percepção do respeito a casos semelhantes para a confecção de uma decisão judicial ocorreu, tradicionalmente, no sistema do common Law. Este, considerado por alguns autores como um “oráculo vivo”, é a fonte do direito neste sistema, de onde os juízes extraem - ou constituem – o direito para a resolução dos conflitos que foram levados para a sua esfera de atuação.

O Direito inglês, considerado como a principal experiência do uso do Common Law, tem nos costumes gerais observados pelos Englishmen o núcleo central de todo o ordenamento jurídico. Diferentemente da ideia tradicional do sistema do Civil Law, a função judiciária no Common Law tem participação mais intensa e “criativa” na constituição (ou declaração) do direito no caso concreto, pois, aqui, não há uma pré-codificação inserida nos costumes do povo inglês, razão pela qual sempre se esperou do juiz do common law uma atuação que tornasse concreto e efetivo o direito costumeiro, trazendo estabilidade nas relações sociais.

Se é dos juízes o mister de declarar ou constituir o direito advindo do Common Law, é um truísmo afirmar que a certeza do direito e a sua coerência deve advir do mesmo. É justamente aqui que residi o respeito ao precedente judicial, visto como a técnica que impede que casos análogos tenham decisões judiciais dispares, esta vista como grave ofensa ao princípio jurídico e filosófico da igualdade.

Havia, e de certa forma ainda há, uma divergência doutrinária acerca da natureza da decisão judicial no sistema do Common Law. Havia quem dissesse que a decisão judicial somente declara o direito inserido no “oráculo vivo”; ao revés, afirmava-se que a atividade jurisdicional era criativa do direito. De fato, as teorias acerca da jurisdição no direito costumeiro perpassava por estas duas teorias, todavia, adotando uma ou outra tese, o que realmente importa para distinguir com clareza o sistema do Common Law do Civil Law é a maior ou menor liberdade que se deu à função jurisdicional ao julgar o caso concreto. E, sem dúvida, o Common Law ao permitir maior liberdade de julgamento para os juízes, percebeu a importância de respeito aos precedentes.

...tanto a teoria declaratória quanto a teoria constitutiva adaptaram-se a um sistema de respeito obrigatório aos precedentes (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 31, ed.3).

Explico-me.

A revolução francesa foi o contexto histórico que traçou a ideologia que marcaria o sistema do civil law ao longo do século XIX. Neste diapasão, imperou-se a teoria da separação dos poderes elaborada por Montesquieu, que, segundo o qual, para que os ideais revolucionários fossem efetivados, e o regime absolutista fosse superado, era necessário conceder um poder absoluto ao parlamento, pois aos juízes da época lhe faltava um pressuposto processual de validade, mas precisamente o da imparcialidade, já que mantinham laços espúrios com os soberanos.

Na Inglaterra, o juiz esteve ao lado do parlamento na luta contra o arbítrio do monarca, reivindicando a tutela dos direitos e das liberdades do cidadão. Por isso mesmo, ao contrário do que ocorreu na revolução francesa, não houve clima pra desconfiar do judiciário ou para supor que os juízes se posicionariam em favor do rei ou do absolutismo (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 34, ed.3).

Concedido o poder absoluto ao parlamento na criação do direito, aos juízes só lhe restavam uma atividade puramente mecânica, qual seja, a mera declaração do Direito. A separação “rigorosa” dos poderes do Estado impôs que aos juízes somente declarassem a vontade concreta da lei – teoria da jurisdição elaborada por Chiovenda -, não havendo qualquer atividade interpretativa em sua atuação. A título de ilustração, na França, foi criada a Corte de Cassação, que possuía uma nomenclatura impropriada, já que era uma Corte que fazia parte do Poder Legislativo, e tinha por escopo cassar a interpretação errada da lei.

Nesse sentido, o poder dos juízes ficaria limitado a afirmar o que já havia sido dito pelo legislativo, devendo o julgamento ser apenas “um texto exato da lei” (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 52, ed.3).

Pois bem, as legislações dos países que adoram o sistema do Civil Law foram sendo confeccionadas com base nessa ideologia. A Codificação da época tinha a pretensão de completude, concretude e coerência, mediante o uso da técnica legislativa dos textos casuístico, não se admitindo falhas e lacunas. A Codificação tomava para si a legitimidade exclusiva para dar certeza ao Direito quanto aos jurisdicionados. Ao se admitir a premissa como verdadeira, não há como admitir outra conclusão acerca da natureza da atividade jurisdicional, senão a de que jurisdição tem como único espoco declarar a vontade do legislador. Não foi outra coisa que ocorreu nessa época, momento em que surgiram as clássicas teorias da jurisdição: aplicação da vontade concreta da lei – tese de Chiovenda -; e criação da norma jurídica individual, com fundamento da norma geral (lei) – teoria confeccionada por Carnelutti.

A experiência da atividade jurisdicional do Civil Law estava marcada pelo insucesso. É visível que uma atividade de aplicação de um texto legal no caso concreto exige muito mais do que a simples declaração dos contornos legais. A atividade interpretativa é um meio necessário para conferir concretude a um texto legal, visto que é uma ingenuidade não concluir pelo alto grau de complexidade da intersubjetividade das relações, e, por consequência, da aplicação do texto ao caso sob julgamento. As propostas ideológicas do Civil Law foram se mostrando inefetivas, haja vista que as Codificações se mostravam com inúmeras falhas de regulação e de completude.

...a concepção dogmática de que o Direito se restringe ao produto do legislativo, ancorada na ideologia da Revolução Francesa e no dogma da estrita separação dos poderes, não sobreviveu aos fatos históricos, à conformação diversificada dos sistemas jurídicos dos vários países do Civil Law e, sobretudo, ao advento do constitucionalismo (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 40, ed.3).

O que realmente varia do civil law para o common law é o significado que se atribui aos Códigos e a função que o juiz exerce ao considera-los. No common law, os Códigos não tem a pretensão de fechar os espaços para o juiz pensar; portanto, não se preocupam em ter todas as regras capazes de solucionar os casos conflituosos (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 54, ed.3).

O último golpe sofrido pelo sistema do Civil Law foi o surgimento do Neoconstitucionalismo. A supremacia da lei deu lugar à supremacia da Constituição; os juízes passaram a controlar a constitucionalidade das leis no caso concreto; a codificação feita sob a técnica dos textos casuísticos deu lugar a técnica legislativa das cláusulas gerais. Em suma: o Neoconstitucionalismo alterou a própria Teoria do Direito.

Pois bem, a jurisdição já não mais poderia se subordinar a dar concretude a vontade concreta da lei. A aplicabilidade direta da Constitucional, notadamente a aplicação direita dos direitos fundamentais, exige do juiz uma atividade de conformação da lei aos ditames do Constituinte originário. Se o legislador produziu direito legislado em confrontação ao conteúdo constitucional, ou se se omitiu em flagrante inconstitucionalidade por omissão, o juiz deve conformar este comportamento, comissivo ou omissivo, produzindo uma nova norma jurídica para regular o caso concreto. Veja que esta norma jurídica não é a que simplesmente torna concreta a vontade do parlamento, mas sim é aquela que foi extraída após uma filtragem constitucional e, a posteriori, utilizada como regramento do caso sob julgamento. Por fim, o próprio parlamento visualizou a inevitável atuação “criativa” do Poder Judiciário, já que, no uso do poder-dever constitucional de legislar, passou a produzir direito legislador mediante o manejo das cláusulas gerais, técnica que tem como características a incompletude do seu texto, conferindo nortes interpretativos ao juiz na aplicação/criação do direito ao caso concreto.

Após essa analise comparativa entre os dois sistemas, é infalível a afirmativa que os mesmos não mais de divergem; ao revés, se convergem. A atuação do juiz do Common sempre lhe foi dada maior liberdade de aplicação do direito ao caso concreto, já que o Direito inserido nos costumes não dá a ideia de completude e concretude aos jurisdicionados. O juiz do Civil Law, que originariamente estava subordinado à supremacia da lei, hodiernamente exerce atividade jurisdicional ativista, criativa, pois deve, a priori, conformar a lei aos ditames da Constituição e dos direitos fundamentais, criando a norma jurídica do caso, para, a posteriori, aplicá-la ao caso sob julgamento.

A evolução do Civil Law, particularmente em virtude do impacto do constitucionalismo, deu aos seus juízes um poder similar àquele do juiz inglês submetido ao Common Law e, bem mais claramente, ao poder do juiz americano, dotado do poder de controlar a lei a partir da Constituição (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 38, ed.3).

Destarte, inevitável também é a pergunta. Por que somente o Common Law deu importância jurídica aos precedentes judiciais? Como já foi dito, o Common Law, que é o direito dos costumes, precisa ser concretizado para aplicação nos casos sob julgamento, e esse mister sempre foi delegado aos juízes, verdadeiros colaboradores para a certeza e coerência do Direito costumeiro.

Nos países que não precisaram se iludir com o absurdo de que o juiz não poderia interpretar a lei, naturalmente aceitou-se que a segurança e a previsibilidade teriam de ser buscadas em outro lugar. E que lugar seria esse? Ora, exatamente nos precedentes, ou, mais precisamente, no stare decisis (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 61, ed.3).

Ao revés, o Civil Law, sob a influência dos ideais libertários da Revolução Francesa, teve a pretensão de conferir ao parlamento o mister de dar concretude e coerência ao Direito, tirando do juiz qualquer poder interpretativo sobre a lei, situação em que os precedentes judiciais não foram percebidos como importantes instrumentos de certeza e coerência do Direito. Todavia, a história mostrou que a ideologia do Civil Law foi infrutífera, pois a Jurisdição, sofrendo forte influencia do Neoconstitucionalismo, tem um papel mais criativo na aplicação do direito. Diante desta premissa, os objetivos de coerência e concretude do Direito não mais podem ser buscados na lei, mas sim na atividade jurisdicional. A jurisdição, ao conformar a lei com o conteúdo constitucional, é o responsável por trazer expectativa de direito aos jurisdicionados.

Enfim, a teoria dos precedentes judiciais, diante desta nova abordagem metodológica também deve ser o instrumento condutor de segurança jurídica no sistema do Civil Law.


JURISDIÇÃO. A CLÁSSICA DISTINÇÃO ENTRE DECLARAR A LEI E CONSTRUÇÃO DA NORMA NO CASO CONCRETO.

A ideologia do positivismo jurídico foi a causa das teorias acerca da natureza do ato jurisdicional. Giuseppe Chiovenda afirmou que Jurisdição é a atividade voltada à vontade concreta da lei. O mesmo autor chegou a afirmar que a jurisdição consiste na substituição definitiva e obrigatória da atividade intelectual das partes pela atividade intelectual do juiz, ao afirmar existente ou não a vontade concreta da lei para quem alega o direito.

Carnelutti afirma que a jurisdição tem por escopo a justa composição da lide, esta compreendida como o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Para o autor, a sentença produzia o que ele denominava de norma jurídica individual, esta entendida como aquela que é confeccionada com base na norma geral criada pelo legislador.

Observe que as tradicionais teorias da jurisdição entendiam a atividade jurisdicional como ato subordinado ao direito legislado pelo parlamento. Tanto a atuação da vontade concreta da lei, quanto a criação da norma individual com escopo na norma geral limitam a atividade jurisdicional a mera atividade mecânica de aplicação da lei suprema.

É evidente que um sistema de respeito aos precedentes obrigatórios não se coadunavam com uma atividade jurisdicional meramente declaratória e subordinativa. Se a lei é o Direito supremo, o sistema não deve se preocupar com a decisão judicial, pois não é neste “locus” que se pretende gerar coerência e certeza do Direito. Ao contrário, a lei era o instrumento que detinha a legitimidade de regular as relações sociais com perfeição. A utopia da completude da lei tornava cega a doutrina ao ponto de não enxergar a clarividência da importância da decisão judicial no objetivo de buscar expectativa do Direito.

Não obstante tais argumentos, no meu ver mais do que convincentes para uma mudança de paradigma, a aplicabilidade direta da Constituição, notadamente a aplicação direta dos direitos fundamentais, retirou a lei do trono do absolutismo. A jurisdição, que antes tinha como moldura de aplicação somente a lei, passou a ter uma moldura mais extensa e mais complexa. A Constituição alterou a legitimidade para produzir a certeza do Direito, elegendo a atividade jurisdicional a função de conformar a lei aos ditames constitucionais e aos direitos fundamentais. Declarar a lei não mais seria suficiente para conferir efetividade às exigências da Carta Magna, havendo necessidade de ir além e produzir uma norma jurídica mediante a análise da Constituição, lei e do caso concreto. É o que a doutrina moderna denomina de norma jurídica do caso concreto.

Levada essa nova realidade como premissa verdadeira, a decisão judicial passou a ser vista com olhar mais cuidadoso. Decidir é construir algo que ainda está inacabado. Explico-me. A moldura para a aplicação do Direito passou a ser a Constituição, e, como cediço, a Carta Magna não tem pretensão de completude como tinham as Codificações de priscas eras. Uma Constituição, além de prescrever a organização do Estado e dos Poderes, tem por pretensão ditar os valores aceitos pela determinada comunidade, listando, mesmo que de forma exemplificativa, os direitos mais importantes, sem o qual a convivência social não seria possível. São estes os direitos fundamentais.

Direitos fundamentais, com escopo no jurista alemão Robert Alexy, tem como fundamento a teoria dos princípios. Este, como sabemos, é espécie normativa que se caracteriza pela sua textura aberta, cumprindo inúmeras funções, como por exemplo, a função normogenética na criação de uma regra jurídica.

O juiz, ao conformar a lei com os direitos fundamentais, pode se ver diante de uma colisão de direitos fundamentais. Esta colisão, explica com louvor Alexy, deve ser resolvida mediante a técnica da ponderação, não havendo falar em invalidade de um princípio em detrimento do outro no caso concreto, já que esta espécie de norma jurídica se qualifica como mandado de otimização, ou seja, será aplicado na medida possível das possibilidades fáticas e jurídicas.

Se direitos fundamentais tem natureza de princípio, e estes, em caso de colisão, se resolvem pela técnica da ponderação conforme as possibilidades fáticas e jurídicas, é uma obviedade a afirmação de que a jurisdição cria uma nova norma jurídica, tendo o juiz como instrumento de trabalho a Constituição, a lei e o caso concreto, pois, como dito supra, o Direito criado pela lei e pela Carta Magna ainda está inacabado.

Alguns poderiam afirmar que a jurisdição ainda declara o direito, todavia esta atividade seria a declaração não mais da lei, e sim da Constituição. Em que pese não concorde com essa afirmativa, o que importa é que se o Direito precisa ser confeccionado pelo magistrado no caso concreto, já que ainda está inacabada, a decisão judicial passa a ser o “locus” onde se procura dar coerência e certeza ao Direito. Em sendo assim, respeito ao precedente judicial é uma exigência constitucional, com escopo de respeitar o conteúdo igualitário das decisões judiciais para casos análogos.


O PRECEDENTE E SUA ESTRUTURA

O estudo do conceito e a estrutura do precedente é assaz importante para o entendimento de que o mesmo não tem a pretensão de eternidade no ordenamento jurídico, tornando-se imprescindível compreender os conceitos de distinguish, overruling, ratio decidendi e obter dictum.

Ab initio, precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos. Observe que o precedente pode ser entendido como a decisão judicial ou como a porção da decisão judicial que pode ser utilizado para o julgamento de casos análogos.

Contudo, precedente não é a mesma coisa que jurisprudência. Com esteio no professor Luiz Henrique Volpi Camargo:

Assim, a distinção básica entre precedente e jurisprudência reside na circunstancia de que enquanto um precedente é substantivo singular, a jurisprudência é substantivo coletivo, e, para ser corretamente denominada como tal, deve se constituir de decisões ou acórdãos uniformes, que reflitam o pensamento dominante de um determinado Tribunal ou, se possível, do Poder Judiciário por inteiro (LUIZ HENRIQUE VOLPI CAMARGO, A força dos precedentes no moderno Processo Civil brasileiro, p. 05).

A decisão judicial é composta por relatório, fundamentação e dispositivo, elementos estes que prescindem de maiores aprofundamentos. No que concerne ao dispositivo, é neste “locus” da decisão que se insere a norma jurídica do caso concreto ou a norma jurídica individual, como queria Carnelutti. Esta norma jurídica é aquela norma que é produzida em conformação com lei, a Constituição e o caso concreto, cuja principal característica é regular o caso sob julgamento e sofrer a incidência da imutabilidade da coisa julgada.

... ao decidir uma demanda judicial, o magistrado cria, necessariamente, duas normas jurídicas. A primeira, de caráter geral, é fruto da sua interpretação/compreensão dos fatos envolvidos na causa e da sua conformação ao Direito positivo: Constituição, leis etc. A segunda, de caráter individual, constitui a sua decisão para aquela situação específica que se lhe põe para a análise (FREDIE DIDIER JUNIOR, Curso de Direito Processual Civil, p. 382, ed. 9).

Ocorre que o núcleo central de uma decisão judicial não é a norma jurídica individualizada. A fundamentação é um elemento da decisão onde o juiz deve expor as suas razões de decidir e demais argumentos laterais. O precedente judicial está inserido na fundamentação e consiste na parte desta que determina qual o sentido da norma jurídica individualizada, ou seja, precedente é o fundamento determinante para que o dispositivo da decisão fosse confeccionado em determinado sentido. É o que se denomina de “ratio decidendi”.

A ratio decidendi – ou, para os norte-americanos, a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi (FREDIE DIDIER JUNIOR, Curso de Direito Processual Civil, p. 381, ed. 9).

A “ratio decidendi”, ou razão de decidir, é que servirá como modelo de julgamento para os casos análogos. Se é assim, “ratio decidendi” é mais uma norma jurídica que o juiz confecciona ao proferir uma decisão. Todavia, tal norma se difere da norma jurídica individualiza, pois aquela tem pretensão de generalidade, ou seja, é uma norma jurídica geral que será utilizada como paradigma para a atividade jurisdicional para os casos semelhantes o caso originariamente julgado. Só se pode considerar como “ratio decidendi” a opção hermenêutica que, a despeito de ser feita para um caso concreto, tenha aptidão para ser universalizada. Assim, o precedente é a norma jurídica geral, construída a partir de um caso concreto, e que serve de modelo para casos futuros.

A identificação do que é “ratio decidendi” é deveras importante, pois numa fundamentação encontra-se, além das razões de decidir, argumentos de relevância secundária, que, caso não inseridos na fundamentação, o conteúdo da norma jurídica individualiza permanece o mesmo. Estes argumentos laterais são denominados pela doutrina de “obter dictum”, ou melhor, argumentos ditos de passagem. Observe que o que configura norma jurídica geral é a razão de decidir, portanto, argumentos ditos de passagem não podem ser tidos como paradigma de julgamento para casos análogos.

O obter dictum, ou simplesmente dictum, consiste nos argumentos jurídicos que são expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos normativos acessórios, provisórios, secundários... (FREDIE DIDIER JUNIOR, Curso de Direito Processual Civil, p. 383, ed. 9).

Embora o “obter dictum” não seja o precedente, aquele ainda pode se mostrar de vasta utilidade, pois pode indicar um novo posicionamento do Tribunal. Veja: o precedente judicial pode ser revogado. Este é o instituto do overruling. O overruling é a possibilidade, mediante uma fundamentação robusta, de revogação de um precedente. A causa geradora para a superação do precedente não pode ser simplesmente um novo entendimento jurídico da questão pelo Tribunal, e sim, por exemplo, uma mudança social, científica ou, até mesmo, de alteração da legislação. Este rigor na superação do precedente se justifica pela própria finalidade do instituto, que é permitir a certeza do direito e estabilização das relações jurídicas. Se há necessidade de superação do entendimento, que a razão para isso seja convincente.

Um dos argumentos contrários à utilização dos precedentes judiciais é a possibilidade de obstáculo ao desenvolvimento do Direito. Com a vênia devida aos que pensam nesta linha, o precedente judicial não gera esta estabilização. Se é certo que os casos análogos ao caso em que o precedente se formou merecem o mesmo tratamento jurisdicional, os casos diferentes merecem tratamento diverso. É a simples aplicação da igualdade material. Quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à “ratio decidendi” constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente, o precedente não deve ser aplicado ao caso sub judice. Todo sistema jurídico que trabalha com o precedente judicial deve conceder ao jurisdicionado o direito de distinção, ou melhor, o direito ao “distinguishing”.


O PRECEDENTE À LUZ DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA IGUALDADE

No sistema do Civil Law, a decisão judicial sempre foi vista como um ato de individualidade do juiz. Acreditava-se que o juiz, inspirado no princípio do livre convencimento motivado, teria autorização legal e constitucional para proferir decisão com o conteúdo que lhe aprouver, mesmo que haja violação a igualdade no tratamento dos jurisdicionados.

A justificativa para mostrar o erro crasso deste raciocínio é relativamente simples. Veja: o princípio da igualdade sempre foi visto como conteúdo do devido processo legal. A igualdade está presente no respeito ao contraditório; a igualdade se faz incisiva na confecção de procedimentos especiais em busca de uma tutela jurisdicional diferenciada para o direito material; o princípio da igualdade é a base que fundamenta a existência de tutelas provisórias baseadas em cognição sumária, já que há situações de urgência (ou de evidência) que merecem um tratamento desigual diante de sua peculiaridade; a igualdade sempre esteve presente na concessão de privilégios processuais a determinadas pessoas, como é o caso da Fazenda Pública em juízo ou o incapaz.

Não obstante a relevância do princípio da igualdade em todos os pormenores do devido processo legal, nunca se imaginou a incidência do principio da igualdade como norteador do conteúdo das decisões judiciais. Já está mais do que na hora de perceber a violência que é permitir que um órgão jurisdicional produza decisões judiciais díspares para casos semelhantes. O juiz do Civil Law, que é individualista por excelência, produz decisão judicial como representante de todo o sistema judiciário. A decisão judicial deve ser vista como um produto do sistema, e como tal não pode admitir decisões contrárias para casos iguais. A igualdade perante a lei inserida na Carta Magna, por razões clarividentes, deve ser interpretada como igualdade perante o Direito, caso em que se insere a decisão judicial, pois é instrumento que produz norma jurídica.

Decerto que o princípio constitucional da igualdade obrigado tanto os particulares quanto o Poder Público e, nesta seara, há de ser observado não apenas quando da edição das leis (em sentido amplo) ou da atuação da administração pública, mas também quando da concretização da função jurisdicional (FREDIE DIDIER JUNIOR, Curso de Direito Processual Civil, p. 399, ed. 9).

A segurança jurídica vista como estabilidade e continuidade da ordem jurídica e previsibilidade das consequências jurídicas de determinada conduta, também é um princípio indispensável para um Estado de Direito.

Neste sentido, interessante são as lições do professor Fredie Didier Júnior.

O indivíduo, muita vez, termina por pautar a sua conduta presente com base num comportamento adotado por outro indivíduo ou, o que mais nos interessa aqui, pelo Estado. Dentro dessa dimensão pública, é natural que as soluções dadas pelo Poder Judiciário às situações que lhe são postas para análise sejam levadas em consideração pelo indivíduo para moldar a sua conduta presente (FREDIE DIDIER JUNIOR, Curso de Direito Processual Civil, p. 400, ed. 9).

Para que haja previsibilidade no Direito, é necessário que o jurisdicionado tenha certeza do que o Poder judiciário entende por Direito. A previsibilidade só estará assegurada se a decisão judicial que produz a norma jurídica respeite a norma jurídica geral que foi produzida na atividade jurisdicional diante dos casos análogos. Como já foi pormenorizada, a decisão judicial é o “locus” de onde se obtém a certeza do Direito, pois a lei e a Constituição produzem Direito que ainda está inacabado, razão pela qual a confecção da norma jurídica geral é o regramento que os jurisdicionados irão se pautar. Este mister da atividade jurisdicional tem como exigência constitucional gerar previsibilidade do Direito para os jurisdicionados.

Se a segurança jurídica exige que a decisão judicial produza previsibilidade do Direito para os jurisdicionados, esta não basta. O precedente que foi produzido também deve ter continuidade na ordem jurídica. De nada adiantaria se fosse possível ao órgão jurisdicional que produziu o precedente obrigatório alterar o seu conteúdo de forma imotivada, pois haveria frustração da expectativa gerada nos jurisdicionados acerca do determinado sentido que existia no precedente formado. Lembre-se que, a revogação de um precedente deve se colmatar em mudanças sociais, econômicas ou em mudança de legislação, para, só assim, a segurança jurídica dos jurisdicionados não reste prejudicada.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma teoria dos precedentes judiciais é uma necessidade para qualquer sistema jurídico que se preocupe com a igualdade das decisões judiciais e a segurança jurídica dos jurisdicionados. A dicotomia tradicionalmente existente entre os sistemas do Civil Law e do Common Law, hodiernamente não se mostram divergentes. A evolução do sistema jurídico romano-germânico alterou as suas premissas ideológicas, notadamente acerca do papel do juiz no exercício da jurisdição.

Se esta é a realidade atual, não há mais espaço para aceitarmos o mito do livre convencimento motivado em detrimento da igualdade das decisões judiciais para casos análogos. A igualdade das decisões judiciais insere-se, também, no conteúdo da decisão judicial, impondo, destarte, que os ordenamentos jurídicos passem a adotar o sistema de precedentes como um instrumento que torne mais eficaz a atividade jurisdicional.


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Autor

  • Renato Nascimento Lessa

    Advogado OAB BA n° 40.539.

    Área de atuação: Cível e Consumidor.

    Graduado pela Universidade Católica do Salvador. Pós- graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera/LFG, coordenação do professor Fredie Didier.

    Aprovado e empossado nas funções de conciliador e juiz leigo, tendo exercido tais atividades entre 2015 e 2017.

    Telefone: (71) 992838762 (wapp)

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LESSA, Renato Nascimento. A teoria dos precedentes judiciais à luz dos princípios da segurança jurídica e da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5869, 27 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69694. Acesso em: 4 maio 2024.