Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/72202
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Direito médico e game studies

a gameterapia como obrigação das operadoras de planos de saúde

Direito médico e game studies: a gameterapia como obrigação das operadoras de planos de saúde

Publicado em . Elaborado em .

É obrigação da operadora de plano de saúde prestar os serviços de gameterapia, já que a fisioterapia integra o rol da ANS?

RESUMO: A gameterapia é um tema de Direito do Consumidor que repercute no Direito Médico. O diálogo entre o Direito e os Game Studies possibilita ao profissional jurídico a compreensão global da materialidade e repercussão social dos jogos eletrônicos. A recusa da operadora de plano de saúde em fornecer o serviço implica aplicação do Código de Defesa do Consumidor quanto à teoria da qualidade e quanto às cláusulas e práticas abusivas. A operadora de plano de saúde deverá prestar os serviços que constem expressamente do rol da Agência Nacional de Saúde (Resolução 428/2017), estando a fisioterapia inserida nesse rol. E a gameterapia é uma modalidade de fisioterapia. Conforme Acórdão nº 38/2015 do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, fica reconhecida a gameterapia como prática terapêutica. É do médico a competência para definir os mecanismos de cura do paciente, restando mencionar, ainda, que tratamentos não previstos expressamente da Resolução 428/2017 não podem ser denegados se necessários ao tratamento da doença coberta no contrato. Haverá situações em que, não recaindo os encargos totalmente sobre o fornecedor, deverá ser definido um regime de coparticipação. Isso ocorre quando a quantidade de sessões de fisioterapia necessária ao tratamento for maior que aquela prevista no rol da ANS. O Superior Tribunal de Justiça segue uma orientação que preza pelo equilíbrio contratual.

Palavras-chave: gameterapia; plano de saúde; game studies; direito do consumidor; direito médico.


1 INTRODUÇÃO

Primeiramente, advirta-se que o presente texto tem por finalidade fazer uma associação entre Direito e Game Studies. Para tal escopo, busca-se grande inspiração nas ideias de Lenio Streck, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Maria Celina Bodin de Moraes, Miguel Reale e também nos princípios de educação de Edgar Morin. Essa associação entre áreas do conhecimento, para o foco do presente estudo, tem um propósito: assegurar direitos de pacientes que necessitam do tratamento de gameterapia. Bobbio (2004) afirma que muito mais importante do que proclamar os direitos, é efetivamente tutelá-los.

No que diz respeito à prestação de serviços que envolvem os jogos eletrônicos, um belo exemplo de decisão judicial concessiva do direito às sessões de gameterapia por parte do Estado – condenação no plano do direito administrativo – seria aquela proferida na apelação cível nº 2015.077378-3 do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Mencionem-se, ainda, as mais diversas decisões de 1ª instância, impondo aos fornecedores o pagamento de indenizações em sede de Juizados Especiais das Relações de Consumo em função dos vícios não sanados do produto.

Recentemente, uma questão que tem sido problematizada seria o bloqueio de contas online dos usuários, a exemplo da Playstation Network ou mesmo as contas de jogadores de games como League of Legends. Porém, para que o jogador possa pleitear alguma indenização, precisará demonstrar um dano material ou a violação a algum direito da personalidade (art. 20, II do Código de Defesa do Consumidor c/c art. 389 do Código Civil). O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no ano de 2018, já negou o dano moral a consumidor por não ter havido a devida demonstração da ocorrência de tal lesão quando do bloqueio da conta Playstation – apelação cível 71007685795.

Pois bem. Quanto à proposta inicial, assecuratória de direitos e promotora de um diálogo entre áreas do conhecimento, invoca-se o pensamento de Morin (2003), o qual menciona que, ao mesmo tempo em que existe uma inadequação na maneira fragmentada ou isolada de se desenvolverem os saberes – questão metodológica –, existiria também o incremento dos problemas que demandam soluções globais, multidimensionais ou multidisciplinares – questão fática.

Pare-se para pensar a seguinte situação, a título de exemplo: de imediato, um magistrado ou um promotor de justiça ao tomarem contato com uma situação concreta de publicidade infantil veiculada em advergame, saberá ao menos o que este termo significa? Ou ao menos terá alguma noção sobre marketing, publicidade e propaganda? O membro da magistratura ou do Ministério Público terá a noção de que foi desenvolvido um conhecimento científico sobre os jogos eletrônicos, sendo que a esse ramo do saber se deu o nome, internacionalmente, de Game Studies?

A resposta é, muitas vezes, negativa. Não se está a exigir aqui que os membros das instituições do sistema de justiça sejam verdadeiras enciclopédias, dotados de conhecimento prévio acerca de tudo. Porém, há de se reconhecer: o direito é um saber demasiadamente técnico, e não haveria como ser diferente, pois suas bases e fundamentos encontram-se prioritariamente em textos legislativos e em jurisprudência de linguagem rebuscada. Veja-se, porém, que o leitor pode chegar a se perguntar: uma interação entre Direito e Game Studies seria possível? Não se trataria de mero devaneio, sem amparo na técnica legislativa ou jurisprudencial?

Apenas para citar um exemplo de iniciativa do Poder Legislativo no que diz respeito aos jogos eletrônicos, mencione-se a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) nº 51/2017, que foi iniciada no Senado Federal e que se encontra em tramitação. A PEC visa a acrescentar a alínea “f” ao inciso VI do art. 150 da Constituição Federal, instituindo imunidade tributária sobre os consoles e jogos de videogames produzidos no Brasil.

O presente artigo não tem o objetivo de inventar uma “moda” ou “tendência” no plano da ciência jurídica, convertendo-se em estudo inútil e “implodindo-se” em sua finalidade. Assim, para provar a cientificidade e relevância da presente pesquisa, afirme-se que ela parte da existência de problemas fáticos – é uma pesquisa baseada em evidências, pois tem como premissas a revisão bibliográfica e jurisprudencial existentes sobre as questões sociais que envolvem os jogos eletrônicos.

São as operadoras de planos de saúde que incorrem em práticas abusivas ao negarem os tratamentos de gameterapia solicitado pelos pacientes contratantes, ainda que tal tratamento não esteja previsto no rol da ANS. Em havendo prescrição do tratamento pelo médico e estando a doença coberta pelo contrato, não cabe à operadora tabelar o que seria melhor à saúde do cidadão. O Estado também não pode se escusar de prestar o serviço público de saúde referente à gameterapia, pois estaria incorrendo em omissão injustificada e intolerável pelo ordenamento.

O direito fundamental à saúde do paciente não pode ficar à mercê de opções de políticos ou das operadoras de planos de saúde. É um direito que se fundamenta na ideia de urgência e superior importância, ainda mais em casos relacionados a doenças que possam levar a quadro de agravamento de uma deficiência física, que são aquelas que precisam do tratamento fisioterápico.

Assim, veja-se que o Direito Médico e da Saúde é uma sistematização de conhecimentos que abrange o Direito Administrativo (responsabilidade civil do Estado e processo administrativo perante os Conselhos profissionais); o Direito Civil e o Direito do Consumidor (responsabilidade pessoal do médico e das instituições hospitalares e de operadoras de planos de saúde); e o Direito Criminal (responsabilidade penal por erro médico). Abrange temas como a fertilização in vitro por casais homossexuais ou heterossexuais; estratégias e prevenção da AIDS/HIV; diretivas antecipadas de vontade (testamento vital); ética em pesquisa com seres humanos; clonagem; eutanásia, ortonásia e suicídio assistido; dentre outros temas relacionados aos avanços da biotecnologia.

O direito processual civil servirá para a resolução de conflitos envolvendo as demandas entre os particulares ou entre o Estado e o cidadão, evidenciando-se assim, as dimensões das eficácias horizontal e vertical dos direitos fundamentais em juízo. Para que alguém alegue que seu direito se encontra sob ameaça, precisará demonstrar o fumus boni iuris e o periculum in mora para o juiz; o magistrado, para compelir uma das partes do processo a uma obrigação de fazer, poderá impor multas denominadas astreintes; o autor de uma ação judicial poderá solicitar o sequestro de verbas do Estado para que seja prestado o serviço público de gameterapia. Esses são apenas alguns exemplos de medidas a serem adotadas para que o processo atenda sua finalidade: a realização do direito pleiteado.

Diante dessas considerações e uma vez já evidenciada a repercussão prática do tema abordado perante os tribunais, veja-se que, neste artigo, foi necessário traçar um plano de trabalho ou recorte: primeiramente, observar o que seria a realidade da cultura eletrônica do consumo e da comunicação como sendo um contexto mais abrangente ou galáxia dentro da qual se encontram as problemáticas a seguir: o mundo da gamificação (gamification); do consumo dos eventos de e-sports, ou seja, as partidas de jogos online patrocinadas e desenvolvidas enquanto esportes (ROCHA; RODRIGUEZ; VITÓRIA, 2016); dos tratamentos fisioterápicos na forma de gameterapia devidamente reconhecida pelo Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (ROCHA, 2017); do cyberbullying, que precisa ser combatido no ambiente virtual, até mesmo por meio de princípios como os da prevenção e precaução (PRUX, 2016); da publicidade veiculada por meio de advergames (ROCHA, 2018a); do jornalismo que chega na forma de newsgames (BARBOZA; SILVA, 2014); além de algumas realidades que dizem respeito à identificação de gêneros nos ambientes virtuais – identidade queerness e heteronormatividade (KROBOVÁ; MORAVEC; ŠVELCH, 2015).

Uma vez identificadas essas realidades dentro da galáxia do consumo, o texto, para seguir um rumo de Direito Médico, fará um novo recorte: de todos os temas mencionados, selecionará aquele diretamente à saúde do consumidor de jogos eletrônicos: a obrigação das operadoras de planos de saúde em fornecer o serviço de gameterapia. Invoca-se, então, a já mencionada lição de Edgar Morin para a seara do Direito. Quebrem-se as amarras do hermetismo. Essa é uma postura que deve ser adotada desde a entrada na universidade pelo estudante da ciência jurídica e, posteriormente, pelo profissional.

Morin (2003) entende que o progresso de uma ciência muitas vezes se dá não em função da sofisticação e da tecnologia, mas simplesmente pela capacidade do estudioso de contextualizar o conhecimento. O autor aduz, ainda, que a proliferação de estudos ad hoc gera a própria regressão e enfraquecimento da democracia. Os doutores compartimentalizam suas análises, fecham o saber. Ao mesmo tempo, o cidadão comum fica alijado do avanço e das benesses que essa sabedoria poderia trazer à própria humanidade.

No Brasil, já se verificam interessantes iniciativas metodológicas em algumas faculdades de Direito, as quais priorizam a instrução interdisciplinar e reflexiva. Assim é que o profissional do direito, num caso concreto envolvendo jogos eletrônicos, poderá fazer a imersão na seara dos Game Studies e perceber que existe uma cientificidade a partir do tema “Jogos Eletrônicos e Cultura”. Isso, porque, tendo uma formação crítica e capaz de proporcionar o conhecimento interdisciplinar, aliará esse conhecimento aos valores “fraternidade” e justiça”, e o próprio direito privado ganhará uma nova dimensão humanista, centrada na pessoa. Na doutrina brasileira, tal configuração ganhou a denominação de despatrimonialização ou repersonificação do direito privado.


2 DIREITO DO ENTRETENIMENTO OU DIREITO DO CONSUMIDOR?

Viu-se que o tema da gameterapia repercute no Direito Médico. Mas, dentro das várias temáticas que se fazem presentes nesse campo de estudo, seria o Direito do Consumidor a abordagem prioritária?

No ano de 2018 a Constituição da República Federativa Brasileira completou 30 anos de existência, fato que significa, não só para a população em geral, mas também para o ordenamento jurídico, consolidação de instituições, avanço da democracia e colocação em evidência da série de desafios a serem enfrentados no século XXI, que é a era dos novos sujeitos e direitos. É o tempo de modernos arranjos consumeristas, inéditas configurações da mídia e é chegado o momento em que a fraternidade se transforma em norma jurídica. De acordo com as palavras de Mônica Nichnick:

Conclui-se, pois, que na pós-modernidade a fraternidade ressurge, ainda que timidamente no direito, mas já é uma evolução frente à incompreensão da abrangência que a liberdade e a igualdade possuem, quando aliadas àquela, como consolidadoras do Estado Democrático de Direito.

Contudo, como a política oficial dos Estados distorce os significados da vida, dos seres humanos e dos relacionamentos, reforçada pelo discurso neoliberal, os novos direitos surgem e buscam mudanças com caráter qualitativo na produção e aplicação da justiça (NICHNICK, 2013, p. 61).

Seguindo, então, essa linha de pensamento – de novas configurações consumeristas e inéditas realidades da mídia –, os estudos jurídicos têm se atualizado para fins de adentrar no ambiente da publicidade, do entretenimento, dos eventos de show business e fashion trends, de maneira que, cada vez mais, a galáxia online demonstra um tempo de interconexão de mídias que demanda regulação no plano do contrato e no plano, obviamente, da própria lei.

Desenvolveu-se o denominado “Direito do Entretenimento”, uma metodologia de trabalho mais desenvolvida em cidades como Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo, localidades onde a economia criativa ganha uma maior atenção dos legisladores e dos administradores. As pautas de estudos passam a ser a propriedade intelectual do audiovisual; o direito autoral; a liberdade de expressão; financiamento, fomento e registro; o direito ao esquecimento no ambiente online; licenciamento de marcas; videogames; teatro; cinema; as questões tributárias dos setores envolvidos; etc.

Considerando a galáxia de instrumentos eletrônicos, audiovisuais e conectados à internet, é possível afirmar que as abordagens do direito eletrônico, bem como os estudos de direito consumerista que digam respeito ao comércio online fazem parte desse núcleo difusor de problemas e benefícios. O Decreto Federal nº 7962/2013, por exemplo, dispõe a respeito da contratação no comércio eletrônico. Marcelo Lima faz a seguinte observação a respeito deste texto normativo:

[...] O Decreto nº 7962/2013 veio regulamentar o próprio Código de Defesa do Consumidor, na medida em que o codex – elaborado no final da década de 80 – não contemplava nenhuma regra específica para a contratação eletrônica. Com a eventual aprovação do Projeto de Lei 281/2012 do Senado Federal, o Decreto tende a ser revogado, uma vez que o Projeto incorporará ao Código de Defesa do Consumidor capítulo específico relacionado com o comércio eletrônico.

Enquanto isso não acontece, o Decreto é a principal fonte de regulamentação e proteção dos contratantes no comércio eletrônico, uma vez que trata diretamente do tema. Foi criado e publicado na época do estouro dos sites de compras coletivas, principalmente para regular a forma do anúncio, visando trazer mais informação e proteção aos consumidores. A preocupação do Decreto se dá em 3 (três) frentes, (a) informações claras a respeito do produto, serviço e do fornecedor; (b) atendimento facilitado ao consumidor e (c) respeito ao direito de arrependimento. A bem da verdade, o PL 281/2012 reproduz in totum vários dispositivos atualmente vigentes por meio do Decreto, como se verificará abaixo (LIMA, 2017, p. 75-76).

Os marketplaces bem retratam a realidade do e-commerce, sendo ambientes virtuais onde são adquiridos os mais diversos tipos de produtos e serviços, incluindo os jogos eletrônicos, tanto em mídia física como em mídia digital. Não se pode olvidar o fato de que o consumo possibilita ao indivíduo o exercício da própria cidadania. Os games, enquanto produtos de uma indústria criativa, devem promover a inclusão social e digital. 

Rocha (2018b) associa a educação para o consumo à própria cidadania:

A educação para o consumo é um outro conceito associado à cidadania e que deve ser trabalhado desde a infância do cidadão, no sentido de lhe dar educação financeira e capacidade de escolhas ao atuar no mercado de consumo, exercendo a sua liberdade de forma consciente e conseguindo avaliar aquilo que lhe é útil.

Educação para o consumo é também preparar o indivíduo para o exercício de direitos, pois cidadania não se resume ao sufrágio. Ela pode ser definida como o conjunto de direitos e deveres de um indivíduo que se encontra em um determinado Estado Democrático de Direito, como o Brasil. O sujeito participativo, assim, exerce seu poder de transformação e intervenção nesse Estado de diversas formas.

Educação para o consumo na perspectiva da cidadania é dar consciência acerca da existência dos órgãos que realizam a defesa do consumidor, como o Procon e o Ministério Público, e tornar claro que o acesso a esses órgãos é papel do cidadão para o bem individual e para o bem comum, a fim de evitar a repetição de abusos por parte dos fornecedores.

O alijamento do sistema provoca uma série de prejuízos para a própria cadeia econômica: o consumidor (gamer) que não tem condições de comprar os jogos aos preços ofertados muitas vezes recorrerá aos produtos pirateados, fenômeno que representa situação de risco aos dados pessoais fornecidos online, comprometendo direitos constitucionalmente previstos, como a privacidade e a dignidade humana, além de não haver a proteção da garantia legal pelo Código de Defesa do Consumidor que é conferida ao produto original.

Em 2018, entrou em vigor a Lei nº 13.709, que versa sobre a proteção dos dados pessoais e altera a Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet). É importante ter em mente que a disciplina e a proteção dos dados do consumidor de jogos eletrônicos no ambiente virtual tem como premissas (art. 2º da Lei 13.709/18): o respeito à privacidade; a autodeterminação informativa; a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

Essas questões fazem o jurista remeter seu estudo à teoria da qualidade do Direito Consumerista brasileiro. Para melhor entender como essa teoria se aplica aos jogos eletrônicos, tais softwares precisam ser entendidos enquanto mídia. E o que seria, afinal, uma “mídia”? Esse termo designa a qualquer instrumento capaz de veicular uma mensagem. O mundo pós-moderno vivencia o surgimento de novas mídias e métodos de comunicação como os aplicativos de smatphones; as tecnologias de streaming; as redes sociais; além, obviamente, dos computadores, tablets e smartvs. O consumidor, muitas vezes, utiliza, por meio desses aparelhos, uma gama de serviços mediante remuneração direta ou indireta. Os jogos online, ainda que sejam freemium games – jogos supostamente gratuitos –, veiculam publicidade, meio através do qual se dá a remuneração indireta.

A teoria da qualidade, surgida, nas relações de consumo, para assegurar a proteção das incolumidades psicofísica e econômica daquele que é presumidamente vulnerável na lei, terá importante papel no que diz respeito à garantia não só de qualidade-adequação, mas também da qualidade-segurança de produtos e serviços no mercado de consumo de massa.

No Brasil, conforme já mencionado, vieram a se desenvolver os centros de formação e atuação em Direito do Entretenimento, que estariam localizados, geralmente, nas cidades da região Sul e Sudeste, onde a produção cultural traduzida em indústria criativa floresce com mais vigor. Porém, não há de esquecer que o Norte e o Nordeste vêm desempenhando importante papel na área da economia da cultura, o que demanda profissionais atuantes no setor. Os cursos de graduação em game design, por exemplo, já se fazem presentes em estados como Ceará e Pernambuco, em universidades particulares, sendo que a tecnologia EaD possibilita a formação de tecnólogos em jogos digitais em todo o Brasil

Diante desse contexto, o Direito do Entretenimento não chega a ser um ramo autônomo da ciência jurídica: é mais um foco de estudo. A obrigação das operadoras de planos de saúde em prestar o serviço de gameterapia é, sem dúvida, tema de direito do consumidor, mais precisamente, inserto na seara das cláusulas e práticas abusivas .

Nesses termos, não há de ser considerado um assunto de Direito do Entretenimento, em função de a prestação de serviço de gameterapia não estar relacionada à economia criativa. Compreende muito mais o universo do direito constitucional à saúde e o fato ou vício do serviço. Enquanto o Direito do Entretenimento ocupa-se da cultura como objeto da economia e de desenvolvimento, o Direito do Consumidor vai se ocupar das questões atinentes às incolumidades econômica e psicofísica do consumidor, em atendimento às suas legítimas expectativas, assim como o equilíbrio das relações de consumo.

A gameterapia, dentro do contexto da cultura eletrônica, por exemplo, é um tipo de atividade fisioterápica, possibilitado por meio de um instrumento eletrônico, um aparelho de videogame, que torna possível ao paciente a melhora de sua saúde, e daí em diante, o exercício de suas faculdades existenciais em plenitude.


3 A GAMETERAPIA COMO OBRIGAÇÃO DAS OPERADORAS DE PLANOS DE SAÚDE: UM DIÁLOGO ENTRE DIREITO E GAME STUDIES

Ioanna Vouvou, ao se referir à obra do famoso autor Henry Jenkins – Cultura da Convergência –, menciona que a convergência de mídias não é explorada apenas sob o aspecto tecnológico, mas sobretudo cultural, social e politicamente, de maneira que as diversas mídias passam a ter as mais variadas formas de utilização:

Dans l’ouvrage, Henry Jenkins s’applique à expliquer avec des analyses de cas abondantes la façon dont la communication à l’ère de la convergence des médias est un axe central qui co-détermine le mouvement de la société. Au moment où diverses cultures médiatiques s’insèrent dans les représentations que les individus acceptent comme véritables pour le monde qui les entoure, cet ouvrage met l’accent sur la nécessité de faire évoluer nos instruments de recherche et d’étude. La convergence des médias, ici conceptualisée dans ses paramètres non seulement technologiques mais surtout culturels, sociaux et, aussi, politiques, est considérée comme un changement de paradigme pour comprendre l’évolution médiatique et ses usages divers. Un paradigme qui va à l’encontre du concept de « révolution numérique », dominant durant les années 90 et qui se résume grosso modo à l’idée de succession médiatique, rendant obsolètes les « anciens » médias (voir Nicholas Negroponte, Being digital, New York, A. A. Knopf, 1995). Inversement, l’idée développée dans l’ouvrage d’Henry Jenkins part de l’hypothèse d’interaction complexe entre anciens et nouveaux médias, produisant des entrelacs culturels et sociaux différents de ceux auxquels le public était habitué (VOUVOU, 2015).

Veja-se que a autora se refere a uma aplicação interativa e cultural das mídias que pode ter as mais diversas extensões. Desde a utilização das comunidades online para formação de grupos de engajamento e promoção de movimentos sociais, até a utilização prática de aparelhos eletrônicos interativos no sentido de trazer benefícios à saúde de pacientes.

Assim é que Sousa (2011, p. 156) explica que os jogos de videogame que possibilitam ao usuário alguma forma de exercício físico são denominados “exergames”. Enquanto os games mais clássicos seriam verdadeiros reforços ao sedentarismo, aqueles que incorporam as mais novas tecnologias tornam possível ao usuário inovadoras formas de interação, a exemplo do console Wii, muito famoso no auge dos anos 2000. Poder-se-ia dizer que o atual Switch, que lidera as vendas da gigante japonesa Nintendo, também teria potencialidade de trabalhar com jogos que possibilitam o exercício físico.

É justamente por meio desses aparelhos – e cite-se também a plataforma Kinect da Microsoft, lançada para Xbox – que o profissional da fisioterapia ou terapia ocupacional exercerá a atividade denominada gameterapia, contribuindo para a reabilitação do paciente e possibilitando a ele uma verdadeira reintegração plena ao convívio social, de modo a exercer plenamente as suas faculdades existenciais.

Veja-se que uma das preocupações dos Game Studies seria justamente a noção de “materialidade”, conforme evidenciam Thomas Apperley e Darshana Jayemane:

A noção de materialidade é usada amplamente aqui, indicando uma certa “teimosia” da realidade material que introduz um elemento aleatório ou contingente no que normalmente poderia ser pensado como estruturas formalizadas e calcificadas (acadêmicas ou não) – os corpos como locais de resistência e alteridade. Sustentamos que o trabalho atento à materialidade tornou-se um tópico chave nos estudos de jogo e também uma ponte para outras disciplinas. Tal trabalho evidencia uma crescente preocupação com os contextos, usos e qualidades das tecnologias de jogos, por um lado, e a atenção à análise situada do jogo e dos jogadores, por outro. Nosso exame desta mudança material será viabilizado através de três grandes tendências metodológicas: etnografia, platform studies e trabalho digital (APPERLEY; JAYEMANE, 2017, p. 3).

Assim é que, nos termos do Acórdão nº 38 do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, publicado no Diário Oficial da União nº 126 de 6 de julho de 2015, a prestação de serviço de gameterapia foi oficialmente reconhecida, juntamente com a realidade virtual e outras formas terapêuticas:

ACÓRDÃO Nº 38, DE 26 DE JUNHO DE 2015.

A atuação do fisioterapeuta vem ampliando, a cada dia, novos cenários para o mundo do trabalho. As especialidades, diante de inovadoras pesquisas científicas, têm apresentado crescente evolução no manejo dos pacientes, apresentando para a sociedade propostas terapêuticas de alta resolutividade.

Diante deste cenário, ACORDAM os Conselheiros Federais desta Autarquia, reunidos na 258ª Reunião Plenária Ordinária, que a modalidade terapêutica conhecida comercialmente como Pediasuit, Therasuit, Theratogs, entre outros, traz à luz da sociedade profissional um avanço técnico para a melhora da funcionalidade dos pacientes, sendo utilizada, para tal fim, intervenção com cinesioterapia, visando restaurar e recuperar a capacidade para a realização das tarefas. Capacidade, segundo a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da Organização Mundial da Saúde, é a habilidade do indivíduo de executar uma tarefa ou ação e indica o provável nível máximo de funcionalidade que uma pessoa pode atingir. Funcionalidade é um termo genérico para as funções do corpo, estruturas do corpo, atividades e participação, que indica os aspectos positivos da interação ente um indivíduo (com uma condição de saúde) e seus fatores contextuais (fatores ambientais e pessoais).

O fisioterapeuta tem como objeto de atuação o movimento humano em todas as suas formas de expressão e potencialidades, quer nas alterações patológicas, fisíco-funcionais, quer nas suas repercussões psíquicas e orgânicas, objetivando a preservar, desenvolver, restaurar a integridade de órgãos, sistemas e funções desde a elaboração do diagnóstico físico e funcional, eleição e execução dos procedimentos fisioterapêuticos pertinentes a cada situação. Neste sentido o presente acórdão consolida as diretrizes de conduta do fisioterapeuta para uso da Cinesioterapia em padrões de treinamento terapêutico intensivo, com uso de recursos, técnicas e métodos que permitam o treinamento funcional, no âmbito do exercício da Fisioterapia, para as atividades da vida real, buscando a aquisição do controle e aprendizado motor. Para tanto, reconhecemos, além das demais previstas em outros regulamentos, como atividade própria do fisioterapeuta a utilização de recursos, métodos e técnicas cinesioterapêuticos intensivos com vistas a restaurar a capacidade para a realização de tarefas por meio do treinamento funcional, conforme abaixo:

a) Vestes Terapêuticas Associadas a Tensores;

b) Realidade Virtual e Gameterapia;

c) Estimulação Elétrica Funcional;

d) Dispositivos Robóticos;

e) Terapia de Contensão Induzida (TCI);

f) Treinamento de Marcha em Esteira com Suporte Parcial de Peso.

§ 1º Entende-se por veste terapêutica associada a tensores a indumentária própria que possui bandas tracionadoras e faixas elásticas, fixadas a superfícies estáveis através de cordas elásticas com o objetivo de estabilização, facilitação ou resistência ao movimento funcional, para aplicação de protocolo de treinamento sensório-motor intensivo.

§ 2º Entende-se por realidade virtual a experiência imersiva e interativa, baseada em imagens gráficas geradas em tempo real por computador, utilizado como meio para facilitação da cinesioterapia, favorecendo acesso a um ambiente multidimensional e multissensorial. A gameterapia simula atividades reais em ambiente virtual interativo por meio de jogos de videogames com ou sem uso de acessórios.

§ 3º Entende-se por estimulação elétrica funcional o uso da corrente elétrica de baixa frequência para provocar contração muscular com o objetivo de produzir movimentos.

§ 4º Entende-se por dispositivo robótico o aparato eletromecânico ou biomecânico capaz de realizar tarefas de maneira autônoma, pré-programada ou por meio do controle humano.

§ 5º Entende-se por Terapia de Contensão Induzida (TCI) a contenção mecânica do segmento corporal sadio, acompanhada de treinamento intensivo e movimentos funcionais com o segmento corporal afetado.

§ 6º Entende-se por treinamento de marcha em esteira com suporte parcial de peso a utilização de dispositivo, elástico, para a suspensão parcial do peso corporal durante o treino de marcha em esteira.

Compete ao fisioterapeuta a decisão de escolher a melhor abordagem cinesiomecanoterapêutica, seja esta aplicada de forma intensiva, ou ainda, em circuito ou não, combinada ou não com as abordagens acima descritas, baseadas no diagnóstico cinesiológico funcional, alinhadas aos conceitos da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde e com os recursos disponíveis. Quórum:DR. ROBERTO MATTAR CEPEDA – Presidente; DRA. LUZIANA CARVALHO DE A. MARANHÃO – Vice-Presidente; DR. CÁSSIO FERNANDO O. DA SILVA – Diretor-Secretário; DR. WILEN HEIL E SILVA – Diretor-Tesoureiro; DRA. ELINETH DA CONCEIÇÃO DA S. BRAGA – Conselheira Efetiva; DR. LEONARDO JOSÉ COSTA DE LIMA – Conselheiro Efetivo; DR. MARCELO RENATO MASSAHUD JUNIOR – Conselheiro Efetivo; e DRA. PATRÍCIA LUCIANE SANTOS DE LIMA – Conselheira Efetiva.

Brasília-DF, 26 de junho de 2015.

Dr. Cássio Fernando O. da Silva

Diretor-Secretário

É sabido que o rol de terapias e procedimentos que devem ser custeadas pelos planos de saúde é definido pela Agência Nacional de Saúde. Ora, se a fisioterapia é incluída nesse rol (Resolução 428/2017 ANS) e a gameterapia, é uma prática terapêutica reconhecida como uso de videogame em sessões fisioterápicas, não haveria razão para limitação ou recusa da operadora em fornecer tal atendimento, configurando a vedação verdadeira prática abusiva. O mesmo se diga com relação ao Pediasuit, o Therasuit, dentre outros tratamentos mencionados no acórdão.

Veja-se que, quanto à responsabilidade objetiva do Estado (art. 37, §6º da Constituição), já houve condenação da Fazenda Pública pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina a fornecer a paciente o serviço público fisioterápico na modalidade de gameterapia. Tal ficou consubstanciado em decisão do ano de 2015, proferida no recurso de apelação cível nº 2015.077378-3.

Tudo isso evidencia que é possível até mesmo fazer uma ponte entre o direito do consumidor e o princípio da fraternidade. Sob a liderança das professoras Josiane Rose Petry Veronese e Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira, desenvolveu-se na Universidade Federal de Santa Catarina o Programa de Pós-graduação “Direito e Fraternidade”. Dos estudos desse núcleo de estudos, é possível perceber: tal princípio ressurgiu, e potencializado diante dos desafios de tutela dos novos direitos dos novos sujeitos.

Assim é que Nicknich (2013, p. 45) menciona uma verdadeira “ressignificação do princípio da dignidade da pessoa humana” através do resgate da fraternidade, de forma a possibilitar a consolidação da democracia e a criação de oportunidades de qualidade de vida. Isso se dá tanto no direito público como no âmbito privado. A autora menciona que foi Norberto Bobbio quem criou a ideia de novos direitos em sua A era dos direitos – afinal, novos bens jurídicos passaram a ser considerados; outros sujeitos de direitos surgiram que não o homem; o homem passa a ser considerado na sua realidade concreta de velhice, infância, doença, etc.

Pires (2016) afirma que, na contemporaneidade pós-moderna, o resgate da fraternidade implica na constante busca de uma nova dimensão sobre este mesmo conceito, tendo sido Chiara Lubich a responsável por sua difusão a partir de 1996. Na verdade, a fraternidade é um princípio que teve raízes no cristianismo e que, posteriormente, surgiu como uma categoria política no contexto francês do século XVIII. Importante é reafirmar a fraternidade, hoje, como um valor orientador dos novos direitos na pós-modernidade e como categoria jurídica. 

Poderão ser consideradas abusivas as condutas da operadora de plano de saúde que configurem recusa de atendimento das variações terapêuticas a serem realizadas pelo profissional da fisioterapia, sem que haja ao menos a aferição do laudo médico indicativo do tratamento ou mesmo a verificação da real condição do paciente. Inclusive, existe a súmula 601 do STJ, aprovada em 2018, no sentido de que o “Ministério Público tem legitimidade ativa para atuar na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos”, implicando a possibilidade do órgão realizar um controle prévio e abstrato das cláusulas contratuais reputadas abusivas. Tal pode ocorrer por meio da ação civil pública ou por meio do termo de ajustamento de conduta.

Veja-se acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, do ano de 2018, versando sobre a obrigação da operadora de plano de saúde de prestar o serviço fisioterápico na modalidade Pediasuit, que é previsto no referido Acórdão nº 38 do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional – situação análoga:

Ementa: Cerceamento de defesa. Inocorrência. Pleito de expedição de ofícios ao Núcleo de Apoio Técnico e de Mediação (NAT) e ao Comitê Científico da Associação Brasileira de Fisioterapia Neurofuncional (ABRAFIN) e realização de prova testemunhal. Dilação probatória despicienda. Conjunto probatório sólido. Princípio do livre convencimento motivado. Pretendida nulidade do julgado que requer a identificação em concretude de prejuízo processual. Aplicação do adágio pas de nullité sans grief. Prejuízo não demonstrado. Prova, ademais, que poderia ter sido encartada com a contestação. Preliminar rejeitada. Plano de saúde. Contrato de assistência médica e/ou hospitalar. Aplicabilidade do CDC (Súmula 469 do C. STJ). Possibilidade de revisão de cláusulas contratuais que decorre do próprio sistema jurídico (arts. 478 e 480 do CC e art. 6º, V, do CDC). Relativização da 'pacta sunt servanda'. Obrigação de fazer. Criança (04 anos de idade) com diagnóstico de Mielomeningocele, apresentando hipotonia muscular de tronco e membros inferiores. Prescrição médica positiva à 'Fisioterapia intensiva com método Pediasuit e Equoterapia'. Negativa de cobertura fundada em cláusula contratual restritiva. Irrelevância de o tratamento não corresponder às diretrizes de utilização estabelecidas no rol da ANS e de haver exclusão contratual. Recusa da operadora de saúde que se afigura abusiva. Conduta que implica na concreta inutilidade do negócio protetivo. Desequilíbrio contratual no exercício abusivo do direito que se evidencia na desigualdade material de poder. Prestadora que confunde boa-fé com interesse próprio. Menoscabo com o consumidor. Lesão à dignidade humana. Interpretação que fere a boa-fé objetiva e contrapõe-se à função social do contrato (arts. 421 e 422 do Cód. Civil). Conduta que a doutrina moderna caracteriza como ilícito lucrativo. Incidência dos arts. 4º, "caput", 7º, 46, 47 e 51, IV, do CDC. Cobertura devida. Precedentes. Sentença mantida. Recurso desprovido (ApCiv 0005484-05.2014.8.26.0584, Rel. Desembargador(a) RÔMOLO RUSSO, SÉTIMA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO, julgado em 17/04/2018 , DJe 17/04/2018).

Mencione-se julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, também do ano de 2018, versando sobre situação análoga:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CONSUMERISTA. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COM PEDIDO LIMINAR. NEGATIVA DE AUTORIZAÇÃO DE EXAMES E DE SESSÃO DE FISIOTERAPIA.RELAÇÃO DE CONSUMO - INCIDÊNCIA. VIOLAÇÃO A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, BOA FÉ E FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. DANOS MORAIS - CONFIGURADOS.MANUTENÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. APELO IMPROVIDO. I - Os Tribunais possuem jurisprudência assentada no sentido de que basta que se trate de atividade fornecida mediante remuneração no mercado de consumo, que será considerada "serviço" para fins de proteção consumerista. No caso dos planos de saúde denominados de "autogestão", ainda que se possa falar num mercado de consumo mais limitado, continua a ser um serviço prestado mediante remuneração, o que não afasta a característica do instituto. II – O apelante fundamentou a negativa da realização de procedimentos, sob tese de que não havia previsão de cobertura dos procedimentos, no tocante ao exame (procalcitonina) e sessões de fisioterapias, de que não estavam cobertos pelo plano contratado, solicitado pelo médico que acompanhava o tratamento do paciente, desconsiderando, entretanto, que se tratava de atendimento emergencial que colocava em risco a vida da consumidora apelada. III – Ao contrário do alegado, a cláusula 1ª do contrato entabulado entre as partes (fl. 36) prevê a cobertura de custos das despesas médicas, hospitalares referentes a procedimentos cirúrgicos e de forma expressa, serviços auxiliares de diagnose para tratamentos especializados. IV - O apelante sequer acostou documentos aptos a comprovar a tese da legalidade da negativa dos procedimentos, com o que inobservou a norma do art. 330, II do CPC/73, pois a cabe ao réu a prova de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito autoral, o que não ocorreu no presente feito. IV - Inegável que o constrangimento infligido a ofendida, é suficiente para demonstrar que os transtornos e os aborrecimentos sofridos, transcendem a esfera do mero aborrecimento, de forma indubitável, caracterizam o abalo extrapatrimonial, vez que a conduta do apelante trouxe novas preocupações a consumidora apelada, vez que esta foi compelida a arcar com os custos do procedimento de emergência (fls. 09, 51), além de recorrer à Justiça para conseguir a manutenção dos seus serviços de saúde, o que evidencia que os transtornos excedem o mero dissabor contratual e se constituem dano moral in re ipsa, no qual os prejuízos suportados pelo ofendido são presumidos. V - Deve ser mantida a condenação de R$ 10.000,00 (dez mil reais), pois, para a fixação do quantum indenizatório, deve o magistrado tomar todas as cautelas para que a indenização não seja fonte de enriquecimento sem causa, ao mesmo tempo em que não seja meramente simbólica, sempre levando em consideração os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Apelo improvido. (ApCiv 0567842017, Rel. Desembargador(a) JOSÉ DE RIBAMAR CASTRO, QUINTA CÂMARA CÍVEL, julgado em 09/04/2018 , DJe 12/04/2018).

Pode-se falar, então, em vício do serviço, nos exatos termos da teoria da qualidade do Código de Defesa do Consumidor? Pode ser que sim. Há direito à indenização em havendo recusa por parte da operadora de plano de saúde na prestação dos serviços? O consumidor, para tal, deverá fazer prova do dano e do nexo causal entre a recusa e o prejuízo sofrido. Pode ocorrer, por exemplo, o agravamento do estado físico do paciente, ocasionando sérias consequências a seus direitos da personalidade.

A disciplina das cláusulas e das práticas abusivas é que deve ser aplicada em benefício do consumidor, que não pode ter o seu direito estiolado. Sendo detentor de laudo médico que prescreve o tratamento da gameterapia, a operadora não poderá “tabelar” sua saúde, encaixando seu tratamento dentro de modalidades previstas no rol da ANS de forma exemplificativa.

Frise-se, derradeiramente, a questão da necessidade de haver hipóteses em que será definido um regime de coparticipação entre consumidor e fornecedor no custeio do serviço. Isso em prol do equilíbrio contratual. O tema foi analisado pelo STJ no REsp nº 1.642.255/MS, no ano de 2017:

RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR E SAÚDE SUPLEMENTAR. PLANO PRIVADO DE SAÚDE. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL. MENOR IMPÚBERE PORTADOR DE PATOLOGIA NEUROLÓGICA CRÔNICA. LIMITAÇÃO DE 12 SESSÕES DE TERAPIA OCUPACIONAL POR ANO DE CONTRATO. DESVANTAGEM EXAGERADA. CONFIGURADA. ROL DE PROCEDIMENTOS DA ANS. EXIGÊNCIA MÍNIMA DE CONSULTAS. EQUILÍBRIO CONTRATUAL. COPARTICIPAÇÃO. NECESSIDADE. JURISPRUDÊNCIA ESTÁVEL, ÍNTEGRA E COERENTE. OBSERVÂNCIA NECESSÁRIA. 1. Ação ajuizada em 24/08/12. Recurso especial interposto em 23/05/16 e concluso ao gabinete em 18/10/16. Julgamento: CPC/15. 2. Causa de pedir da ação declaratória de nulidade de cláusula contratual fundada na negativa de cobertura de terapia ocupacional eletiva como tratamento de paralisia cerebral com epilepsia, baseado em prescrição médica. 2. O propósito recursal consiste em definir se é abusiva cláusula de contrato de plano de saúde que estabelece limite anual para cobertura de sessões de terapia ocupacional. 3. A Lei 9.656/98 dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde e estabelece as exigências mínimas de oferta aos consumidores (art. 12), as exceções (art. 10) e as hipóteses obrigatórias de cobertura do atendimento (art. 35-C), tudo com a expressa participação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) na regulação da saúde suplementar brasileira (art. 10, §4º). 4. Há abusividade na cláusula contratual ou em ato da operadora de plano de saúde que importe em interrupção de tratamento de terapia por esgotamento do número de sessões anuais asseguradas no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, visto que se revela incompatível com a equidade e a boa-fé, colocando o usuário (consumidor) em situação de desvantagem exagerada (art. 51, IV, da Lei 8.078/1990). Precedente. 5. Utilização da coparticipação para as consultas excedentes, como forma de evitar o desequilíbrio financeiro, entre prestações e contraprestações. Valoriza-se, a um só tempo, a continuidade do saudável e consciente tratamento do paciente enfermo sem impor à operadora o ônus irrestrito de seu financiamento, utilizando-se a prudência como fator moderador de utilização dos serviços privados de atenção à saúde. 6. Recurso especial conhecido e parcialmente provido (REsp nº 1.642.255/MS).

O STJ, portanto, segue uma orientação que preza pela ideia de obrigação como processo, não recaindo os encargos totalmente sobre o fornecedor nas hipóteses descritas acima. Aquilo que exceder à quantidade de sessões prevista no rol da ANS deverá ser custeado em regime de coparticipação, se houver desequilíbrio contratual.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, demonstra-se que a gameterapia é um tema de Direito do Consumidor que repercute no Direito Médico. A recusa da operadora de plano de saúde em fornecer o serviço vai ser questão a ser inserida tanto na teoria da qualidade como no Capítulo das cláusulas e práticas abusivas no CDC, sendo essa prática terapêutica uma modalidade de serviço a ser prestada pelo profissional que tenha habilitação perante o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional.

A operadora de plano de saúde deverá prestar os serviços que constem expressamente do rol da ANS (Resolução 428/2017), estando a fisioterapia inserida nesse rol. Conforme Acórdão nº 38/2015 do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, fica reconhecida a gameterapia como prática terapêutica. 

Ainda que a gameterapia não se constituísse em modalidade de fisioterapia, as operadoras de planos de saúde não poderiam tabelar os tratamentos dos seus clientes, pois é do médico a competência para definir os mecanismos de cura do paciente, restando mencionar, ainda, que o rol da ANS é meramente exemplificativo.

Termos em que é obrigação da operadora de plano de saúde prestar os serviços de gameterapia, atendendo às legítimas expectativas do consumidor. 

Haverá situações em que, não recaindo os encargos totalmente sobre o fornecedor, deverá ser definido um regime de coparticipação. Isso ocorre quando a quantidade de sessões de fisioterapia necessária ao tratamento for maior que aquela prevista no rol da ANS. O STJ segue uma orientação que preza pelo equilíbrio contratual.


REFERÊNCIAS

APPERLEY, Thomas H.; JAYEMANE, Darshana. A virada material dos game studies. Revista Lumina – Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFJF, nº 1, v. 11, 2017. p. 1-24.

BARBOZA, Eduardo Fernando Uliana; SILVA, Ana Carolina de Araújo. A evolução tecnológica dos jogos eletrônicos: do videogame para o newsgame. 5º Simpósio Internacional de Ciberjornalismo. Tema: Big Data, interfaces e sociedade digital. Campo Grande: UFMS, 2014. p. 1-16.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. São Paulo: Campus Elsevier, 2004.

KROBOVÁ, T.; MORAVEC, O.; ŠVELCH, J. Dressing Commander Shepard in pink: Queer playing in a heteronormative game culture. Cyberpsychology: Journal of Psychosocial Research on Cyberspace, 9(3), article 3, 2015.

LIMA, Marcelo Chiavassa de Mello Paula. Análise do PL 281/2012 Senado – regulamentação do comércio eletrônico. In: ALVIM, Angélica Arruda; ALVIM, Eduardo Arruda; LIMA, Marcelo Chiavassa de Mello Paula. 25 anos do código de defesa do consumidor: panorama atual e perspectivas futuras. Rio de Janeiro: GZ, 2017. p. 75-94.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 

NICKNICH, Mônica. Fraternidade como valor orientativo dos novos direitos na pós-modernidade. In: OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de; VERONESE, Josiane Rose Petry (org). Direito e Fraternidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 37-67.

PIRES, Nara Suzana Stainr. A fraternidade como categoria jurídica no sistema normativo brasileiro contemporâneo. In: MOTA, Sergio Ricardo Ferreira; OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de; VERONESE, Josiane Rose Petry (org). O direito revestido de fraternidade. Florianópolis: Insular, 2016. p. 95-114.

PRUX, Oscar Ivan. Os 25 anos do código de proteção e defesa do consumidor, sua história e as novas perspectivas para o século XXI. In: MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno; OLIVEIRA, Amanda Flávio de. 25 anos do código de defesa do consumidor: trajetória e perspectivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 33-79.

ROCHA, Mateus; RODRIGUEZ, Vanessa Brasil; VITÓRIA, Fabrício Flávio Terso. Impacto do patrocínio de e-sport na decisão de compra dos jogadores de League of Legends da Bahia. XV SEPA – Seminário Estudantil de Produção Acadêmica, UNIFACS, 2016. p. 189-209.

ROCHA, Thiago dos Santos. Advergames e publicidade infantil no contexto da economia criativa brasileira: questões éticas e jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 55575, 06 out. 2018a. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/68047>.

__________. Dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto e serviço no CDC. Uma análise dos artigos 1º ao 3º do microssistema consumerista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5550, 11 set. 2018. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/67844>. Acesso em: 26 dez. 2018b.

__________. Jogos eletrônicos, direito do consumidor e princípio da fraternidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5111, 29 jun. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/58704>.

VOUVOU, Ioanna. “Henry Jenkins, La Culture da la convergence. Des médias au transmédia”. Revista Questions de communications [En Ligne], n. 28, 2015. Disponível em: <https://journals.openedition.org/questionsdecommunication/10262>. Acesso em: 04 nov. 2018.


Autor

  • Thiago dos Santos Rocha

    Thiago dos Santos Rocha é um advogado e autor de livros e artigos jurídicos, graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. É especialista em Direito do Consumidor, em Direito Constitucional Aplicado e em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. Em seus textos acadêmicos, promoveu o diálogo entre Direito e Game Studies, abordando temas como: videogames e epilepsia; advergames e publicidade infantil; gameterapia e planos de saúde; videogames e política nacional de educação ambiental; etc. Também publicou obras na área de Direito Médico, tendo escrito os livros "A violação do direito à saúde sob a perspectiva do erro médico: um diálogo constitucional-administrativo na seara do SUS" (Editora CRV) e "A aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação médico-paciente de cirurgia plástica: visão tridimensional e em diálogo de fontes do Schuld e Haftung" (Editora Lumen Juris).

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Thiago dos Santos. Direito médico e game studies: a gameterapia como obrigação das operadoras de planos de saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5718, 26 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72202. Acesso em: 1 maio 2024.