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Direito e democracia participativa

Direito e democracia participativa

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"A pior democracia é preferível à melhor das Ditaduras"

Rui Barbosa (1849-1923) em Cartas de Inglaterra


Resumo

O propósito central deste artigo é o de apresentar os aspectos epistemológicos do termo "democracia" que darão sustentação à análise jus-sociológica desse termo. O artigo, para isso, descreve como o conceito de democracia nasceu e como as suas características principais se perpetuaram até á contemporaneidade. Além disso, demosntrar-se-á que o conceito de democracia participativa será o mais adequado para ser implementado em uma sociedade que preze pela justiça, pelo Estado de direito (État de droit) e pela liberdade. Na conclusão, atentar-se-á para o fato de que urge que se desenvolva o espírito democrático.

Palavras-chave: sociologia do direito, teoria do direito, democracia participativa, elitismo democrático, democracia brasileira


Abstract

The principal aim of this article is to present the epistemological aspects of the term "democracy", which will support the analysis of this term from the perspective of the sociology of law. In order to do this, the article describes how the concept of democracy was born and how its main characteristics have perpetuated until now. Moreover, it demonstrates that the concept of participative democracy will be the most appropriated to be implemented in a society in which concepts such as justice, State of right (État de droit), and liberty are desirable values. In conclusion, it focus attention on the fact that the democratic spirit has to be encouraged in contemporary world.

Key words: sociology of law, theory of law, participative democracy, democratic elitism, Brazilian democracy


I — Introdução

A análise de questões como a sobre a qual este artigo se debruça pode ser feita de um sem-número de formas. Tudo dependerá do enfoque que se adota: histórico, filosófico, jurídico, psicológico, sociológico, etimológico, etc. Ademais, nota-se que esse quase sem-número de possibilidades de focalização torna-se gradativamente mais complexo quando se sabe que tais perspectivas não configuram compartimentos estanques, mas, muito ao contrário, comunicam-se entre si com considerável veemência. Eis porque se faz mister que se esclareça desde logo como se manejará a questão central a ser abordada aqui, que é a da democracia participativa. Sendo assim, saiba-se que a análise será primeiramente filosófica — mais precisamente epistemológica — e, depois, jus-sociológica. Procurar-se-á, na verdade, estabelecer os fundamentos epistemológicos que darão sustentação à análise jus-sociológica, de forma que não há de se olvidar que imperativo será, sempre na medida da necessidade, usar-se também de recursos relativos a outras formas de entendimento, como, principalmente, a histórica e, em menor grau, as demais supramencionadas.

Diz-se, assim, que é exatamente por ser verdade que a análise predominantemente jus-sociológica é a mais adequada para o objeto em questão, qual seja — repete-se —, o da democracia participativa, que o propósito deste artigo é o de estabelecer os alicerces epistemológicos sobre os quais se possa construir os argumentos jus-sociológicos. O argumento central deste artigo é, assim, o desenvolvimento de uma epistemologia de um tema da jus-sociologia.

Resta saber, então, se o desenvolvimento de uma epistemologia não terá o condão de tentar melhorar a sociedade em termos práticos. Ora, deve-se notar que aqui não se pretende apenas efetuar uma abordagem do tipo que nasça no ambiente teórico e que lá mesmo pereça. Pelo contrário, tentar-se-á demonstrar que é, a despeito do feitio eminentemente teórico do artigo, essencial que se apliquem na prática os conceitos a serem defendidos de democracia participativa, mesmo que se saiba que tal aplicação deverá ser regida, sobremaneira, pelos argumentos sociológicos e jurídicos, mas não epistemológicos.

Resume-se, assim, o que se disse da seguinte forma: embora o fito central deste artigo seja o de analisar os termos epistemológicos concernentes à democracia participativa, o artigo tem forte tendência jus-sociológica, pois não é senão a jus-sociologia que por, meio da análise epistemológica, possibilitará o discorrimento sobre a democracia participativa. Além disso, é importante dizer que a roupagem do que aqui se argumentará é, antes mesmo de unicamente jurídica, também sociológica, no sentido de que apresenta caráter transformador e, por conseqüência, melhorador das relações sociais.

Dada as diretrizes principais de como se deve colocar o argumento a ser aqui desenvolvido na malha teórico-prática que o conhecimento humano cria, vê-se que este artigo se divide em seis seções. A seção I é esta introdução. A seção II trata da análise do termo "democracia" e se subdivide em duas subseções. A subseção II.1 analisa o referido termo por meio do argumento predominantemente histórico, enquanto a subseção II.2, por intermédio do predominantemente filosófico. A seção III se triparte nas subseções que tratam das democracias direta e indireta e, posteriormente, já na subseção III.3, do problema da representatividade. A seção IV discorrerá mais especificamente sobre a democracia participativa no Brasil. A seção V, a conclusão, de forma bastante breve e sucinta, tratará do argumento principal deste artigo. A seção VI é a bibliografia, que de nenhuma forma tem o condão de ser exaustiva ou mesmo representativa do vasto e — registre-se — competente acervo que há sobre a questão da democracia no Brasil.


II — Do termo "democracia"

Oferecer, com propriedade, uma definição categórica e concludente ao termo "democracia" nunca constituiu tarefa de estreita envergadura, pois, como se sabe, muitos significados têm sido oferecidos a tal termo no transcorrer da história do pensamento humano (Hook, 1987, p.63).

De uma perspectiva jurídica, não podemos deixar de considerar que a democracia é termo constituinte da própria República, tal como reza a Constituição vigente, segundo a qual, "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)" (CF, art. 1°). De um ponto de vista predominantemente político, embora, é claro, também constitucional, pode-se afirmar que um conceito adequado de democracia é o que diz que ela "é aquela forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões do governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto, a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo de todo poder legítimo" (Bonavides, 1996, p. 17). É, em outras palavras, a vontade do Estado, segundo a qual "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (...)" (CF, art. 1º, parágrafo único). Verifica-se nas supracitadas definições, assim, um ponto nevrálgico ao debate, que é o de dividir o modo de efetivação do poder popular nas formas direta e indireta.

A pergunta que imediatamente se faz é concernente ao que seria democracia direta e indireta e como tais modalidades se efetivam na sociedade, se é que se efetivam realmente. Para que se possa chegar com o embasamento teórico adequado à análise das formas de democracia direta e indireta, contudo, deve-se atentar para a maneira pela qual o próprio termo "democracia" nasce na história do pensamento humano e para a forma pela qual as características desse termo são mantidas desde a Antigüidade até os dias atuais.

Sendo assim, saiba-se que, na sua origem, o conceito de democracia encontra definição razoavelmente pacífica na especificação do regime do demos, "[n]ome pelo qual eram designadas as divisões territoriais administrativas na Grécia antiga" (Azevedo, 1999, p.146), de forma que, "[p]or extensão, tal palavra, originada de demokratia, [ou, no grego, δημοχρατία,] passou a significar poder popular, governo do povo" (Azevedo, 1999, p. 145). Como a tal conclusão facilmente se chega, nota-se que os conceitos de "poder popular" e de "governo do povo" não eram exatamente os que se fazem presentes na contemporaneidade, de forma que se diz que não é senão pela dificuldade de se conceituar o que seria poder popular e, por conseqüência, de se delimitar o governo do povo, que o conceito de democracia tem sofrido os mais diversos significados durante a história.

Há, contudo, uma linha condutora que une através da dimensão temporal o os vários conceitos de democracia, de sorte que, como em favor de que se advogará, o entendimento dessa linha favorecerá sobremaneira a defesa de uma forma particular de democracia no exercício governamental presente na hodierna realidade brasileira. Tal defesa, reitera-se, embora já se tenha deixado claro, tem fins não apenas teóricos, mas também práticos, ou seja, tem fins concernentes à tentativa de melhoramento da sociedade — intuito esse que deve ser o fim maior do direito —, de aprimoramento das relações de poder entre os cidadãos. É, portanto, uma análise que tange a prática e o exercício pleno democrático no mundo real, factual, ou seja, que diz respeito à experiência simples e cotidiana de cada um dos cidadãos.

Vale aqui, portanto, repisar o que se disse e livrar de quaisquer obscuridades a idéia de que a motivação que abarca o projeto de elaborar uma democracia mais condizente com o que se argumentará consiste no intuito de fortalecer a cidadania e a justiça entre os espécimes humanos, indistintamente. Ora, não se pode esquecer o que significou para o Brasil e para o mundo ocidental os momentos de exceção em que não se vislumbrava um só quê democrático, pois,

[s]em democracia, todas as formas de status quo que alojam, conservam e perpetuam situações de privilégio, desigualdade e discriminação tendem à imutabilidade, eternizando as mais graves injustiças sociais ou fazendo do homem, para sempre, um ente rebaixado à ignomínia da menoridade política, da ausência e do silêncio, sem voz para o protesto e sem arma para o combate; objeto e não sujeito da vontade que governa; súdito e não cidadão" (Bonavides, 1996, p. 19-20).

Sabe-se, assim, que a ausência de democracia é detestável para os que almejam a justiça, mesmo para os que a almejam em suas formas mais rudimentares. Diante disso, contudo, impõe-se que se discorra cada vez mais pormenorizadamente sobre o que seria em si a democracia que se deseja. O rigor teórico é essencial para que não se caia no que, para alguns, é o sempre confortável posicionamento de se defender interesses unicamente privados e dizer que tais são manifestações democráticas.

Deve-se, isso sim, discorrer a respeito dos alicerces sobre os quais se defenderá uma forma de democracia que seja mais justa e humanitária, pois, "antes de qualquer exame da presente crise brasileira, faz-se mister [...] fixar o quadro teórico onde se insere o conceito de democracia e onde se possa, aliás, colher os elementos elucidativos de sua índole, essência e valor, sem o conhecimento dos quais não é possível fundamentar a legitimidade mesma do poder democrático" (Bonavides, 1996, p. 18).

Com o propósito, portanto, de erigir um ambiente teórico onde se possa desenvolver os termos que sustentarão a idéia de democracia — que, como se disse, deve ter conseqüências também práticas —, diz-se que um método razoavelmente eficaz para que se estabeleçam os critérios a partir dos quais se possa conceituar o termo "democracia" na contemporaneidade é o de se remontar às primeiras abordagens que se fizeram de tal termo na história do pensamento humano e, depois, tentar-se vislumbrar a forma em que tais abordagens desembocaram na atualidade.

II.1 — Da origem histórica da democracia

Entre as visões que na Antigüidade se tiveram da democracia, sobressaem-se as que fazem parte, primeiramente, da idéia de formas de governo elaborada por Heródoto de Halicarnasso (480-425 a.C., aproximadamente) no Livro III de sua História ou Investigações — em grego, ‘Ιστοριωυ λόγοι — e posteriormente sistematizada no Séc. IV a.C. por Platão (428-347 a.C., aproximadamente), em sua obra O Político — em grego, Πολιτικός —; por Aristóteles (384-322 a.C., aproximadamente), principalmente nos Livros III e IV de sua obra A Política — em grego, Πολιτικά —; e por Políbio (viveu no Séc. II a.C.) no Livro VI de sua História (ver Bobbio, 2001).

Dado que o exame pormenorizado das obras dos supramencionados antigos não faz parte do escopo deste artigo, deve-se logo agora dar a cada um deles o devido crédito e, posteriormente, atentar para o fato de que o que vale aqui dizer é que a divisão que se efetuou triparte o conceito de forma de governo nos conceitos de governo de um só, de poucos e de todos (ver Bobbio, 2001). Logo depois, aparecem os termos "monarquia", "aristocracia" e "democracia" que se relacionam a cada tipo de forma de governo, respectivamente.

O interessante a notar é que essa tripartição se duplica, tornando-se, assim, uma divisão sêxtupla das formas de governo. Para que se obtenha as seis formas, basta que a cada uma das três formas clássicas, quais sejam, monarquia, aristocracia e democracia, acrescentem-se os juízos de valor "boa" e "má". Assim, têm-se as formas monarquia boa, monarquia má, aristocracia boa, aristocracia má, democracia boa e democracia má. O aparecimento do juízo de valor para reproduzir a mesma forma de governo em sua contraparte negativa desemboca, depois, em outras denominações. Dessa forma, a monarquia má passa a ser entendida como tirania; a aristocracia má, como oligarquia; e, por fim, a democracia má, como oclocracia.

A divisão sêxtupla, feita dos três pares de opostos qualitativos — uma boa, outra má —, enseja uma análise fundamental para o que este artigo pretende abordar. Já se viu que a primeira pergunta a ser feita é a de quem governa. Caso o governo seja de um só, será monárquico ou tirânico; caso seja de poucos, será aristocrático ou oligárquico; caso seja de todos, será democrático ou oclocrático. Como este último vocábulo, introduzido por Políbio, não desfruta da familiaridade dos demais termos, deve-se, em breve palavras, esclarecer que oclocracia, "de oclos, [...] significa multidão, massa, plebe, e corresponde bem ao nosso ‘governo de massa’ ou ‘das massas’, quando o termo ‘massa’ (que é bivalente) é empregado [com o] significado pejorativo que lhe é dado pelos escritores reacionários (em expressões como ‘a rebelião das massas’, sociedade de massa’, etc.)" (Bobbio, 2001, p. 67).

Dessa forma, recapitulando o que foi dito, mas agora em compêndio, tem-se que os antigos elaboraram uma divisão sêxtupla das formas de governo. Dessa divisão, a partir de agora, subtrair-se-ão as de caráter não democrático, pois além de não representarem análise concernente ao escopo deste artigo, não são contempladas pela ordem político-jurídica vigente no Brasil, já que, de uma perspectiva formal, sabe-se que se tem o governo de todos, pois é do povo que todo o poder emana (CF, art. 1º, parágrafo único), como anteriormente já se expôs.

Resta saber, contudo, quando é que uma democracia poderia, nos dias atuais, ser considerada boa ou má, ou seja, usando-se da denominação empregada por Políbio, resta saber quando a forma de governo atual pode ser considerada realmente democrática ou apenas oclocrática. Para que se elaborem os critérios a partir dos quais se julgarão as formas democráticas de governo, todavia, faz-se mister que se teçam algumas considerações sobre a idéia de se uma determinada forma de governo pode ser considerada boa ou má. Na análise das referidas considerações, encontrar-se-ão parte dos aspectos epistemológicos de que se falou anteriormente neste artigo.

II.2 — Da possibilidade de ser "boa" ou de ser "má"

Da perspectiva jus-sociológica, não faz muito sentido analisar a possibilidade, diga-se, ontológica, de um termo poder sofrer a atribuição de um adjetivo qualquer. Mas, como se sabe, a abordagem ontológica é anterior à jus-sociológica, de sorte que primeiramente se tem de saber se é possível, independentemente da análise político-econômica de valor, uma determinada forma de governo ser considerada boa ou má.

O fato é que bem se poderia, neste ponto, simplesmente aceitar que é universalmente consensual a idéia de que é possível se atribuírem os juízos de valor "boa" ou "má" à forma de governo exercida, mas, ao contrário, diz-se que se deve pelo menos alertar para o fato de que há outros fatores envolvidos no ato de julgar uma forma de governo, pois, como se pode notar, o próprio julgador é não apenas parte da causa, mas também — e muito principalmente — efeito do que está julgando.

Em outras palavras, a aceitação da própria possibilidade de atribuição de valores a uma determinada forma de governo já pressupõe comprometimentos filosóficos que devem ser pormenorizados. O que se diz é que, apenas em função da idéia de que determinadas formas de governo podem ser boas ou más, como em favor de que Aristóteles se posiciona na Política, é que se pode atribuir valor a tais formas de governo — o critério aristotélico para atribuir o conceito "boa" ou "má" à forma de governo é baseado na oposição entre os interesses público e privado —; de outra maneira, as formas de governo serão todas ou aprioristicamente boas ou aprioristicamente más, de sorte que não faria sentido uma análise valorativa das mesmas.

À parte o posicionamento segundo o qual se diz que formas de governo podem ser boas ou más, dependendo da contingência, há, repete-se, as posições de que ou elas são necessariamente boas ou são necessariamente más. A primeira postura "implica uma filosofia relativista e historicista segundo a qual todas as formas de governo são apropriadas à situação histórica concreta que as produziram [sic] (e não poderiam produzir uma outra, diferente)" (Bobbio, 2001, p. 34), de forma que não poderiam jamais ser consideradas más. A segunda postura, por seu turno, é compatível com o posicionamento de Platão e implica a idéia de que elas são todas más porque "representam uma corrupção da única forma boa, que é ideal" (Bobbio, 2001, p. 35).

II.2.1 — Do relativismo ou do historicismo

Embora o ato de render-se às garras da filosofia relativista, pelo conforto que a mesma oferece, sempre seja uma opção por demasiado convidativa, deve-se fugir de tal postura com todas as forças, pois o relativismo filosófico, em todos os seus âmbitos de atuação, toma corpo em argumentos contra os quais, não por força do conteúdo, mas da lógica, não se pode posicionar.

A impossibilidade de posicionamento contra os argumentos relativistas está presente na idéia de que quaisquer tentativas de mudanças da forma de governo de uma determinada sociedade, por mais radical e revolucionária que essa mudança pareça ser, não passa de uma nova adaptação à situação histórica que se apresenta. Dessa maneira, não há quaisquer mudanças que possam quebrar o estigma da adaptabilidade à nova situação histórica. Ora, forma de governo e situação histórica são atores que se modificam a si mesmos, de maneira que definir um a partir do outro é oferecer um argumento tautológico, que nada informa, pois — repete-se —, sempre que uma determinada forma de governo mudar, poder-se-á dizer que a situação histórica daquele momento é a adequada à nova forma de governo e vice-versa.

Desta feita, pensa-se ser prudente rejeitar-se o posicionamento relativista ou historicista, pois se considera que tal posicionamento elabora um argumento que apenas é capaz de descrever qualquer forma de governo como função de um momento histórico, independentemente de quais sejam a forma de governo e o momento histórico. Assim sendo, considera-se o posicionamento relativista desinformativo exatamente por elaborar necessariamente uma informação invariavelmente verdadeira, ou seja, que por necessidade conceitual — lingüística — nunca poderia ser falsa. Note-se que mesmo uma revolução em que se mude drasticamente a forma de governo pode ser justificada pela mudança do momento histórico que ela ocasionou, de forma que nunca haverá a possibilidade de se ter uma forma de governo que não seja em grande justificável pelo momento histórico em que está instaurada.

II.2.2 — Do platonismo

No que concerne ao ponto de vista platônico, qual seja, o de dizer que todas as formas de governo são necessariamente más, pois nada mais são senão representações imperfeitas da forma ideal — que é a única boa —, deve-se dizer que tal posicionamento advoga uma postura de forte base metafísica. Claramente, assim como ocorre com o relativismo filosófico, embora por razões diferentes, a crítica a postura platônica se torna demasiadamente inexeqüível.

Com efeito, pode-se argumentar que o fato de existirem vários sistemas metafísicos, que não apenas são divergentes, mas muitas vezes inconciliáveis, prova que eles todos, ao mesmo tempo, não podem ser verdadeiros, mesmo que possam, concomitantemente, ser falsos. Dessa maneira, como todos alegam ser o único verdadeiro, conclui-se, pela razão, que não se pode escolher entre um ou outro, a não ser por um comprometimento não racional. Comprometimentos dessa sorte não são interessantes no que dizem respeito ao estudo em questão, de maneira que se decide pela opção aristotélica — a mais simples e crível —, que é a de que formas de governo podem ser boas ou más, dependendo de vários fatores.

Desimportante é dizer, crê-se, que a opção pela postura aristotélica não é extensível à maneira pela qual Aristóteles consideraria uma forma boa ou má, mas apenas se resume no comprometimento com a idéia de que formas de governo podem, por contingência, sofrer juízo de valor. Saber os critério subjacentes a tal juízo de valor é tarefa eminentemente sociológica e, no caso da democracia participativa, já razoavelmente desenvolvida no Brasil (ver Lyra, 2000a; Lyra, 2000b).


III — Das democracias direta e indireta

Resta então saber como uma forma de governo democrática boa ou má — ou, no caso da má, oclocrática, na terminologia de Políbio — pode ser melhorada a ponto de ser considerada invariavelmente boa. A solução para tal problema será concernente à elaboração de respostas às duas perguntas centrais apresentadas neste artigo: "quem governa?" e "como governa?". Neste ponto, note-se que a tese que se pretende apresentar aqui é a de que a última das perguntas é a mais importante e, para que se torne mais palpável, advoga-se que a mesma pode ser rescrita na seguinte forma: "para quem governa?".

Nesses termos, vê-se que dois são os quesitos principais a serem analisados: "quem governa?" e "para quem governa?", de sorte que, em primeira análise, diz-se que, para que se tenha um governo democrático, à primeira pergunta, deve-se responder que todos governam e à segunda, que é para todos que se governa. Há de se ver agora como os conceitos ditos clássicos, embora, com pequenas modificações, tenham-se mantidos operantes na contemporaneidade, podem servir para análise da democracia na atualidade. Assim senso, veja-se que o que se quis aqui dizer foi que, na atualidade, o conceito de democracia modifica-se na proporção em que se diz que se deve responder da maneira que se mostrou às perguntas "quem governa?" e "para quem governa?".

Há, de um lado, os que defendem a idéia de que não se obteve um regime adequadamente democrático ainda porque não se efetivou de forma satisfatória o povo como titular do governo, ou seja, não se respondeu à pergunta "quem governa?" com a resposta "todos governam". Os que defendem tal postura ainda dizem que ao se favorecer a idéia de que todos devem governar, ter-se-á por conseqüência natural uma resposta positiva à segunda pergunta, qual seja, "para quem governa?".

Ora, como argumentam, caso seja efetivado uma forma de governo em que haja uma participação crescente e ampla de todos, esses, mesmo que queira imbuir as suas decisões de caracteres egoístas, terão em tais decisões uma conseqüência favorável à sociedade, pois se todos governam, mesmo que governem para si, governarão para todos. Obviamente, não se quer dizer que a questão é de tal simplicidade, mas, com efeito, afirma-se que muito da dificuldade em um sistema de governo amplo, direto, dirá respeito aos mecanismos por meio dos quais se evitará que a vontade de todos seja, de uma forma ou de outra, considerada nas decisões governamentais. O problema nevrálgico em tal posicionamento, como se pode notar, é metodológico, ou seja, é o de se elaborar, repete-se, um método de efetivação do que o sistema de democracia direta apregoa.

Do outro lado, há os que defendem a idéia de que não é necessário se dar maior atenção à pergunta "quem governa?" para que se tenha um governo democrático, mas sim, deve-se valorizar a pergunta "para quem governa?" como meio identificador de uma forma de governo condizente com a democracia. Neste último caso, é fato, defende-se o que na Antigüidade, em sentido estrito, não seria entendido como democracia, mas sim como uma versão aristocrata dessa. Seria, portanto, um governo para todos, mas de poucos, em que esses poucos seriam eleitos e representariam, assim, todos.

Note-se que é essencial, nesta corrente, que os poucos que governem representem todos, pois em caso contrário não haverá o próprio aspecto democrático, mas sim o oligárquico ou, na melhor das hipóteses, uma versão do aristocrático. Em outras palavras, diz-se que um dos maiores obstáculos com que se deparam os que defendem formas indiretas de democracia concerne à manutenção do argumento de que uma forma indireta de representação é representativa de um sistema democrático. Para que se possa lidar melhor com tal quesito, mister se faz que se analisem mais detalhadamente alguns fundamentos da democracia indireta ou mesmo, como chamariam alguns, do elitismo democrático.

III.1 — A democracia indireta

Com o intuito de se defender a democracia indireta, deve-se antes de mais nada argumentar que o conceito de governo democrático seria razoavelmente satisfeito se esse fosse um governo de cujas ações se diria que eram para o povo e não para a minoria dos governantes. É fato que a democracia indireta não advoga a idéia de uma estrutura governamental não representativa de todos, ou seja, uma estrutura nomeada independentemente de consulta popular.

À primeira vista, a despeito desse caráter representativo, pode-se acusar os defensores da democracia indireta de compactuarem com as assunções básicas do elitismo democrático, que são todas, em resumo, oriundas da idéia de que o povo — ou seja, na nomenclatura um tanto conservadora, as massas — é inerentemente incompetente e desprovido da capacidade de autogestão direta (Bachrach, 1967, p.2). Por outro lado, há os que em defesa da democracia indireta dizem que o caráter representativo nada tem a ver com a assunção da impotência popular, mas é apenas conseqüência da idéia de que a democracia direta, mais legítima, é inexeqüível em termos práticos.

Neste ponto, há duas alternativas. De um lado, encontram-se os defensores da democracia indireta que advogam a incompetência popular para a autogestão e estes apresentam posturas definitivamente inconciliáveis com as da democracia direta. Do outro, há os defensores da democracia indireta que apenas defendem tal posição por desacreditarem na efetivação em termos práticos da democracia direta, embora com ela tenham afinidades ideológicas, ou, como chamariam, utópicas.

Dos da segunda estirpe, ou seja, dos que compactuam com as idéias materiais da democracia direta, embora não acreditem em sua formulação prática, não há do que se falar mais, pois a própria defesa de um sistema de democracia direta de razoabilidade prática indiscutível os trará de forma necessária ao conjunto dos que defendem a democracia direta, inclusive em termos práticos, dado que serão convencidos.

Dos outros, contudo, urge tecer algumas considerações, pois na há com abarcá-los na discussão que se travará posteriormente sobre democracia direta, pois eles têm como pressuposto, com já se disse algumas vezes, a idéia de que o povo não pode se gerir o seu próprio futuro. Sendo assim, importante se faz que se trate desses, que serão denominados sob a escola do elitismo democrático.

III.1.1 — O elitismo democrático

Não se pretende aqui, como se poderia pensar, criticar de maneira desarrazoada os defensores do elitismo democrático. Pelo contrário, acredita-se que são pessoas que têm argumentos em certa medida defensáveis e que, por isso, merecem ser tais argumentos apreciados. Um primeiro ponto a se analisar é a identificação de como um sistema de elitismo democrático se diferenciaria, de um lado, da democracia indireta e, do outro, de um regime puramente elitista, aristocrata.

A resposta à primeira inquirição já foi dada anteriormente: o elitismo democrático difere da democracia indireta na medida que esta não advoga a incompetência das massas, enquanto aquele assim o faz. No que diz respeito à segunda inquirição, diz-se que o elitismo democrático diferencia-se de um regime puramente elitista na medida em que o primeiro pressupõe a possibilidade de ascensão ao governo de qualquer cidadão, dada a satisfação de pré-requisitos qualitativos específicos, como formação, aptidão intelectual, entre outros, enquanto o segundo delimita a linha de ascensão ao poder governamental por mecanismos que não compreendem a totalidade da população, como, por exemplo, o da linhagem hereditária, que até há relativamente pouco tempo, registre-se, era usado para escolher membros da Casa dos Lordes, câmara mais alta do parlamento inglês.

Voltando-se ao elitismo democrático, diz-se que a sua definição, de fato, não resolve a crítica de que tal forma de governo não poderia ser considerada democrática. Ora, mesmo que os poucos que governassem não fossem representativos da população, mas para ela voltasse todos os seus atos, ainda haveria os que diriam que não existe democracia em sistemas de tal estirpe. Dada a inexistência da representatividade, a qual resolve o caráter democrático da democracia indireta, o elitismo democrático encontra-se em dificuldades veementes de atrelar os conceitos "governo de poucos" e "governo para todos".

Nesses termos, afirma-se que a dificuldade de se definir a idéia de democracia do elitismo democrático reside no argumento de que não se consegue atrelar necessariamente a definição "governo para o povo" à de "governo do povo", fazendo com que ambas, em certa medida, equivalham-se e, conseqüentemente, possa-se satisfatoriamente dar ao conceito de elitismo democrático, pelo viés do conceito "governo para o povo", a definição original de governo do povo.

Deve-se entender aqui que, de uma perspectiva mais crítica, a suposta distinção entre um governo para o povo e um governo de poucos, que em primeira e superficial análise representariam, respectivamente, os conceitos de democracia e elitismo, não esgota o que seria, de um lado, algo democrático e, do outro, antidemocrático. Note-se que muitas são as características ditas essencialmente democráticas, quais sejam, as que concernem ao exercício governamental para o povo, que se fazem presentes em teorias elitistas — tidas, por muitos, como antidemocráticas —, pois,

em uma perspectiva teórica, democracia e elitismo não podem ser distinguíveis pela caracterização da primeira como "governo para o povo" e do segundo como "regra em favor dos interesses egoístas dos governantes". Os guardiões de Platão, os tecnocratas de Veblen e os intelectuais de Mannheim — para citar poucos modelos elitistas — foram todos tidos como possuidores da habilidade de transcender o interesse próprio no ato de governar em prol do bem-estar da comunidade (Bachrach, 1967, p. 2, T. do A.).

Em função da apresentação desses contra-exemplos, conclui-se que há situações em que o governo é ao mesmo tempo de poucos e para o povo, o que inviabiliza a idéia de associar necessariamente os conceitos "governo do povo" e "governo para o povo", embora ambos, por contingência, possam vir associados em alguns governos.

Tem-se aqui, portanto, a idéia de que é possível um governo para o povo que não seja um governo do povo. O problema, contudo, consiste em se garantir que um governo de poucos seja um governo para o povo. Essa garantia é em grande medida solucionada pela democracia participativa, em que se desenvolvem mecanismos de associar o povo à fiscalização do governo, quando não à possibilidade de oferecer sugestões quanto às próprias diretrizes do referido governo. É o caso, repete-se, da democracia participativa, que é espécie da direta.

III.2 — A democracia direta

Deve-se notar que os que acreditam que o melhoramento da democracia reside no aprimoramento da resposta à pergunta "quem governa?" são defensores da democracia direta, enquanto os que advogam em defesa da democracia indireta são os que acreditam que se deve aprimorar a resposta à pergunta "para quem governa?" como forma de melhorar a democracia. Aqui, compete registrar que "a democracia direta e a democracia indireta [...] [são] perfeitamente distinguíveis, tanto do ponto de vista instrumental quanto axiológico" (Bonavides, 1996, 17). Ao se diferenciarem as duas formas referidas de democracia, cabe, primeiramente, indicar qual das duas é a melhor e, depois, tratar das subdivisões que tal tipo de democracia pode comportar.

Dessa maneira, embora logo depois se apresentem motivos para a assertiva que aqui se fará, diz-se que se defenderá a democracia direta, pois a ela, entende-se, compete a maior possibilidade de abarcar os tão almejados princípios da justiça e da liberdade. A razão para tal diz respeito ao fato de que a democracia indireta "é menos legítima, mais sujeita a vicissitudes distorcivas, menos refratária aos meios e vícios de ludíbrios do que a democracia direta" (Bonavides, 1996, 17).

Genro (2002) ainda identifica que, a despeito do aumento numérico dos sistemas democráticos de base representativa, os problemas sociais mais veementes não parecem ter regredido, pois "[p]obreza e liberdades políticas podem ser compatibilizadas pelo controle social fundada em aceitações culturais e na manipulação de informações. Ou mesmo no recurso à força legalmente exercida em momentos especiais de instabilidade" (Genro, 2002, p. 14). Resta saber, portanto, se é possível construir um sistema de democracia direta que possa solucionar as questões com as quais se diz que a democracia indireta é impotente para lidar. Para que se possa oferecer um enfoque a um sistema de democracia direta, eleger-se-á a democracia participativa como um possível canal de realização da justiça social.

Com efeito, entre as subdivisões do termo "democracia" que pretendem estabelecer relações firmes entre os conceitos "democracia" e "governo de todos", destaca-se a que se apresenta sob a denominação de democracia participativa. No entanto, mesmo concernindo apenas à democracia participativa, pode-se dizer que "[r]aramente, em Ciência Política, um conceito terá assumido tanta elasticidade e multiplicidade de sentidos" (Lyra, 2000b, p. 17), pois, apesar do esforço empreendido em impor limites ao conceito subjacente ao termo "democracia participativa", os teóricos experimentam dificuldades em apresentar argumentos claros e objetivos de como pretendem operacionalizar tal locução vocabular no mundo prático, isto é, na realidade factual, que é simultaneamente política, psicológica, social, jurídica, etc. Tais dificuldades, em outras e mais superficiais palavras, e, grande medida tomam forma na questão da representatividade.

III.3 — A questão da representatividade

A questão da representatividade, apesar de sua simplicidade, parece ser devastadora: pode-se dizer que qualquer governo, por questões práticas, tem imensurável dificuldade em compreender em si todo o povo, mas apenas uns poucos que representem a totalidade. De um lado, como o faz o conceito de democracia participativa, pode-se dizer que a representatividade é um problema inerente ao "governo de todos" e, conseqüentemente, à democracia, de sorte que a questão da representatividade deve ser investigada até o esgotamento e, portanto, deve-se encontrar meios de execução de políticas de implementação de maior representatividade popular no seu governo. Pode-se dizer que muitas saídas têm sido encontradas pela democracia participativa para a dificuldade imposta pela representatividade: criação de conselhos estaduais e municipais, de ouvidorias, do chamado orçamento participativo, etc.

De outro lado, pode-se dizer que a discussão sobre qual seria o melhor caminho de se obter representatividade representa uma abordagem inócua no que diz respeito à contribuição à teoria da democracia, pois, por mais que se elabore um sistema de representação popular, ele, na melhor das hipóteses, sempre será representativo da maioria e nunca da totalidade. A única maneira de se obter uma representatividade direta seria através do uso constante de plebiscito ou do referendum — este, pelo fato de abarcar ato governamental anterior à consulta popular, com algumas ressalvas —, mas tais mecanismos, como a tal conclusão se pode facilmente chegar, são inexeqüíveis no encaminhamento da administração pública, pois demandam muito tempo e dinheiro para suas realizações, entre outros motivos. Dada, portanto, a impossibilidade de se obter uma representatividade satisfatória à versão democrática da pergunta "quem governa?", há os que defendem que resta à democracia se deter no quesito "para quem governa?" como forma de legitimação do regime democrático.

Em outras palavras, vê-se que há duas saídas ao impasse gerado para a democracia pela questão da representatividade: ou, de um lado, leva-se ao esgotamento a questão da democracia para a análise de como se poderia na prática efetivar um governo de todos e, conseqüentemente, um governo supostamente democrático, ou, de outro, muda-se radicalmente o foco e investiga-se se o conceito de democracia, já que não pode ser diretamente abordado através da idéia de governo de todos, poderia sê-lo na idéia de governo para todos. Em outras palavras, investiga-se se o conceito "governo para todos" representaria o conceito "governo de todos" e, por conseqüência, legitimaria a democracia. É o que se verá no estudo sobre a democracia participativa.


IV — Da democracia participativa

Uma análise competente da origem, método e dificuldades da democracia participativa é, com grande propriedade, elaborada por Lyra (2000a). Resta aqui, portanto, o discorrimento, em resumo, sobre o que referido autor expõe no que concerne à origem da experiência e do exercício da democracia participativa brasileira. Elaborar-se-á, assim, o que Lyra (2000a, p. 27) chama de fontes geradoras da democracia participativa no Brasil.

IV.1 — Da experiência brasileira

A democracia participativa no Brasil tem tomado gradativamente mais espaço nos processos de decisão nas instituições públicas, pois, em tais, cada vez mais se pode observar a importância da opinião das bases no direcionamento das políticas gerais de um determinado município, universidade ou empresa pública. Lyra (2000a) dispôs argumentos suficientemente apropriados para tratar da análise dos aspectos sociológicos condizentes ao tipo de democracia ora abordado, de forma que se deve aqui localizar na história brasileira o nascimento da democracia participativa. Tal tarefa, como se sabe, não é sinônima de curto fôlego, pois difícil é saber quando um determinado conceito adentra a estrutura ideológica de um país, inda mais quando esse é estruturado, socialmente falando, de forma tão rica e complexa quanto o é o Brasil.

Pode-se, entretanto, apresentar algumas possibilidades de saídas. Primeiramente, diz-se que, como a carta magna vigente, assim como alguns dos diplomas infraconstitucionais, apresentam dispositivos concernentes — direta ou indiretamente — à democracia participativa, imperioso é afirmar que o conceito deve ter surgido no Brasil nos movimentos que deram força à formulação dessa nova constituição, cujo maior caráter, como se diz muita vez, é o da expressão democrática. Ora, sendo assim, resta analisar quais foram os movimentos em prol da redemocratização do Brasil que tiveram, em suas organizações, maior semelhança com as diretrizes da democracia participativa e que tiveram abrangência territorial suficiente para poder reivindicar para si o ônus de ter sido a certidão de nascimento da democracia participativa no Brasil. Lyra, debruçando-se sobre o tema, identifica a semelhança entre os moldes organizacionais da democracia participativa e dos movimentos operários dos anos setenta. Na palavras do referido autor, a democratização participativa no Brasil nasce pelo contágio com as "categorias mais politizadas de trabalhadores, na esfera pública e privada" (Lyra, 2000a, p. 27) do tipo de organização dos operários do ABC, que poderia ser descrita pela "participação direta das bases no processo decisório" (Lyra, 2000a, p. 27) nas greves realizadas no período de ditadura.

Resta saber, desta feita, se tais movimentos teriam o condão de serem representativos de uma tendência que passa gradativamente a ser de todo o Brasil. Em resposta a isso, diz-se que a

extensão das greves de 1979 mostrou que a afirmativa dos setores conservadores de que São Bernardo constituía um mundo à parte em grande medida não era verdadeira. O que se passava em São Bernardo tinha repercussão no resto do país. Não há dúvidas porém de que o sindicalismo do ABC nasceu e cresceu com marcas próprias. As mais importantes são a maior independência com relação ao Estado, o elevado índice de organização [...] e a afirmação de seus líderes fora da influência da esquerda tradicional, ou seja, o PCB (Fausto, 2001, p. 500).

Desta feita, conclui-se que, na pior das hipóteses, em que caso se considere que o tipo de organização participativa dos sindicatos não teve o condão de priorizar no Brasil a democracia nos termos da que se entende por participativa, mister, pelo menos, é admitir que tal tipo de organização sindical teve importância essencial e nevrálgica na propagação desse tipo de organização democrática no seio da política brasileira.


V — Conclusão

No que concerne a esta compendiosa conclusão, diz-se que o artigo demonstrou que, da perspectiva epistemológica, é possível se atribuir juízo de valor às formas de governo, mas que os critérios subjacentes à referida atribuição devem ser discutidos pela abordagem sociológica do tema. Além disso, viu-se que das formas democráticas, a única que parece responder mais satisfatoriamente às demandas históricas e sociais do clamor por democracia é a modalidade da democracia participativa, de sorte que, apenas por meio do melhoramento dessa forma de governar é que se poderá gradativamente se garantirem justiça e liberdade para um determinado povo, sob o mando de seu Estado.

Eis por que, do ponto de vista estritamente sociológico, deve-se deixar claro que a democracia participativa deve ser entendida como um caminho de efetivação plena do próprio ideal democrático. Não é, pois, um meio de implementação de um sistema anticapitalista, pró-socialista ou algo que os valha. Isso é, simplesmente, dizer que a "participação é uma prática de aprofundamento da democracia e como tal poderá ou não concorrer para abalar o capitalismo. Dependendo da correlação de forças existentes, a luta pela democracia participativa aprimorará um regime de capitalismo democrático, ou favorecerá a sua superação" (Lyra, 2000b, p. 24).

Nesses termos, diz-se que mister é a implementação das ferramentas fortalecedoras da democracia participativa por dois motivos principais: primeiro, porque tais ferramentas são meios e não fins, ou seja, são mecanismos em favor da efetivação da vontade popular, independentemente de qual seja esta vontade; segundo, porque apenas através da implementação da democracia participativa é que se obterá a maneira de efetuar na prática uma necessidade teórica decorrente da elaboração das melhores respostas às perguntas que se fazem ao se analisar a melhor forma de governo a ser adotada no Brasil. As perguntas, que podem ser sintetizadas nas subseqüentes "quem governa?" e "para quem governa?" pedem, em outras palavras, respostas cuja efetivação somente se efetua na prática democrática participativa. Saber como melhor efetuar essa prática urge diante das vicissitudes do presente e é, assim, assunto imperioso nas abordagens sociológicas da realidade brasileira, que deve somar para que a realidade mundial se torne também mais democrática.

Ora, deve-se notar que o desenvolvimento de um sistema democrático no Brasil tem influência em todo o planeta. O ideal de democracia sociologicamente mais semelhante com o que se tem hoje apareceu, na história da humanidade, apenas no Séc. XIX, como conseqüência das revoluções americana e francesa do século anterior a esse. O séc. XX trouxe, com o fim da I Guerra Mundial, a falsa idéia da consolidação da democracia, pois "a tinta do documento de paz de Versalhes mal havia secado quando, na Itália, o governo fascista chegou ao poder e, na Alemanha, o partido nacional-socialista dava início a sua vitoriosa ofensiva" (Kelsen, 2000, p. 139).

Após a II Guerra Mundial, a vitória da diplomacia no período da Guerra Fria nunca apresentou uma sensação de respeito às vontades gerais, pressuposto da democracia. Com a queda do Comunismo, pensou-se que a supremacia consciente de um país diante do mundo traria a disseminação de um ideal que tanto os EUA pregavam, o da liberdade democrática. Os conflitos mais recentes, notadamente o da II Guerra do Golfo e, principalmente, a ascensão do terrorismo como meio plausível de utilização política por grupos radicais — iniciando-se com e a derrubada do World Trade Center em 11 de setembro de 2001 —, mostram que o mundo entra em uma nova era e que a recente guerra contra o Iraque e nada mais foi senão o primeiro momento de uma nova história, a qual, como se tem demonstrado, é recheada de limitações das liberdades individuais e, por conseqüência, de limitações à efetivação da democracia.

A constituição da República, das mais democráticas do mundo, expõe no campo teórico a possibilidade de efetivação por vários meios do ideal democrático e da participação efetiva da população nas tomadas de decisão da sociedade. Cabe ao Brasil e aos brasileiros, portanto, ratificarem a tradição pacífica e, efetivando os ditames constitucionais, implementarem neste país o regime da democracia progressivamente participativa, antes que o indivíduo singular não possa novamente expor as suas opiniões e dirigir o seu próprio destino.


VI — Referências e Bibliografia

AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. (1999). Dicionário de Nomes, Termos e Conceitos Históricos. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

BACHRACH, Peter. (1967). The Theory of Democratic Elitism: A Critique. Boston: Little, Brown and Company.

BOBBIO, Norberto. (2001). A Teoria das Formas de Governo. Trad. por Sérgio Bath. Brasília: Universidade de Brasília.

BONAVIDES, Paulo.(1996). "A Democracia Direta, a Democracia do Terceiro Milênio". In: ______. A Constituição Aberta. 2 ed. São Paulo: Malheiros, p. 17-32.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado. [Referenciado no texto por CF].

FAUSTO, Boris. (2001). História do Brasil. 9 ed. São Paulo: Edusp.

GENRO, Tarso. (2002). Crise da Democracia. Petrópolis: Vozes.

HOOK, Sidney. (1987). Paradoxes of Freedom. New York: Prometheus Books.

KELSEN, Hans. (2000). A Democracia. 2 ed. Trad. por I. C. Benedetti, J. L. Camargo, M. B. Cipolla e V. Barkow. São Paulo: Martins Fontes.

LYRA, Rubens Pinto. (2000a). "As Vicissitudes da Democracia Participativa no Brasil". In: ______. (org.). A Ouvidoria na Esfera Pública Brasileira. João Pessoa: UFPB, p. 27-48, 315 p.

______. (2000b). "Teorias ‘Clássicas’ sobre a Democracia Direta e a Experiência Brasileira". In: ______. (org.). A Ouvidoria na Esfera Pública Brasileira. João Pessoa: UFPB, p. 17-26, 315 p.

______. (2002). "Abordagens Históricas e Atuais da Relação entre Democracia Política, Direitos Sociais e Socialismo". In: ______. (org.). Direitos Humanos: Os Desafios do Século XXI. Brasília: Brasília Jurídica, p. 135-148, 256 p.


Autor

  • Tassos Lycurgo

    Tassos Lycurgo

    advogado em Natal (RN), professor adjunto da UFRN, pós-doutor pela UFPB, doutor pela UFRN, mestre em Filosofia Analítica pela Sussex University, bacharel em Direito pela URCA e em Filosofia pela UFRN, professor de Sistema Constitucional Brasileiro, Direito Autoral e Estética Filosófica da UFRN

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LYCURGO, Tassos. Direito e democracia participativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1027, 24 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8266. Acesso em: 5 maio 2024.