Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/8701
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Da uniformização de jurisprudência no direito brasileiro

Da uniformização de jurisprudência no direito brasileiro

Publicado em . Elaborado em .

1 INTRODUÇÃO.

O presente estudo refere-se, em linhas gerais, à importância, à função e aos mecanismos de uniformização de jurisprudência no ordenamento jurídico pátrio, com especial enfoque para a influência que o precedente jurisprudencial assume nos dias atuais.

Cumpre tecer, desde logo, um breve comentário acerca da importância da uniformização jurisprudencial. Via de regra, a jurisprudência padronizada resulta na confiança da sociedade quanto aos seus direitos, bem como no estrito conhecimento sobre a exegese das normas formais. Diminui, portanto, a provocação do Poder Judiciário, uma vez que já se conhece, em abstrato, a possibilidade de obtenção da tutela jurisdicional pretendida.

Considerando uma demanda já ajuizada, igualmente, a existência de pacífico entendimento jurisprudencial acerca da matéria litigiosa constitui um sólido embasamento à decisão do juiz monocrático. Usualmente, o precedente consolidado resulta de exauriente atividade jurisdicional, inclusive com a manifestação dos nossos Tribunais Superiores, servindo de referência segura, portanto, a todos os julgadores de casos análogos.

Dito isto, chega a ser assombrosa a constatação de que é a farta a dissidência jurisprudencial em todas os órgãos do Judiciário, inclusive nos próprios Tribunais Superiores, aos quais caberia, em última instância, a definição interpretativa da legislação pátria. Com isso, podemos afirmar que ocorre um verdadeiro abrandamento do Direito Positivo, enfraquecendo e tornando incerto o poder cogente das normas formais.

Ora, a parte que espera a apreciação de matéria em que haja divergência jurisprudencial não possui convicção de que sua pretensão será acolhida, mas simplesmente ingressa com a demanda esperando que a distribuição se dê perante juiz, câmara ou grupo de câmaras, que possua determinado entendimento favorável. É exatamente essa insegurança – que beira os limites da instabilidade na prestação jurisdicional – que se pretende coibir com a adoção de entendimentos uniformes pelo Poder Judiciário.

No extremo oposto, porém, pretendemos demonstrar as críticas ao chamado efeito vinculante, pelo qual determinados entendimentos jurisprudenciais passam a vigorar com força de lei aos futuros julgadores, discussão esta que resvala inclusive nos Princípios Constitucionais do Estado, posto que, sob a ótica extremista, tal poder normativo da jurisprudência extrapolaria a competência judiciária (exercendo atividade tipicamente legislativa), comprometendo a Separação dos Poderes.

Não se pode deixar de considerar, outrossim, que o esforço excessivo em se criar uma jurisprudência uniformizada poderia resultar na subversão da supremacia da lei que vigora no ordenamento jurídico brasileiro. A Garantia Constitucional de acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal), está intimamente atrelada à prerrogativa do magistrado de julgar o caso fático em tela, sendo que nada, exceto à lei, poderia vincular a sua decisão.

Assim, considerando esse cenário, decidimos nos debruçar não apenas sobre os mecanismos de uniformização de jurisprudência, mas igualmente sobre os seus fundamentos, esperando traçar uma delimitação razoável entre a necessária unificação de entendimento dos julgadores pátrios e o livre convencimento do magistrado, o qual efetivamente deverá decidir a melhor aplicação da lei ao caso sub judice.

Estas são, pois, as principais questões com as quais nos confrontamos, esperando apresentar subsídios para a melhor compreensão dos mecanismos de uniformização jurisprudencial. Com este escopo, atravessaremos o tema desde os primitivos sistemas consuetudinários até as recentes discussões reformistas do Poder Judiciário brasileiro, para que possamos avaliar, ao final, qual o papel do instituto em nosso ordenamento jurídico contemporâneo.


2 DOS SISTEMAS JURÍDICOS.

2.1 Common LAW.

O Common law é o sistema jurídico adotado por países americanos e de origem anglo-saxônica, no qual o costume prevalece sobre as normas escritas. Este sistema fundamenta-se mais nos usos e costumes do que na aplicação das leis.

Conforme a definição de Miguel Reale (1998, p. 142), no Common law "o direito é (...) coordenado e consolidado em precedentes judiciais, isto é, segundo uma série de decisões baseadas em usos e costumes prévios".

No Common law vigora a doutrina do stare decisis, forma abreviada da expressão latina stare decisis et non quieta movere (ficar como foi decidido e não mover o que está em repouso). Segundo Lima, a decisão judicial inserida nesse sistema "assume a função não só de dirimir uma controvérsia, mas também a de estabelecer um precedente, com força vinculante, de modo a assegurar que, no futuro, um caso análogo venha a ser decidido da mesma forma".

Reynolds (apud VIGLIAR, op. cit., p. 148) [01] define o stare decisis da seguinte forma:

Our system of case law embodies the doctrine of precedent. An ancient doctrine, with roots as far back as the Year Books, it tells us that cases should be decided today the same way they were decided in the past. Another name for this doctrine is stare decisis (from a longer maxim, stare decisis et non quieta movere.) As stare decisis is applied in American courts today, it is expected, in the event an apparently similar case is not followed, that the court explain why the precedent did not control (…). Finally, the court may overrule the precedent, but again it must justify that decision. Although our courts do not adhere to a rigid view of stare decisis, that doctrine exerts a very strong force. As might be expected of a doctrine of such distinguished lineage, stare decisis has many virtues. They can be broken down into three groups: efficiency, predictability, and uniformity or fairness. [02]

Historicamente, pode-se afirmar que o sistema da common law decorre da atividade prática dos tribunais de justiça na Inglaterra durante o século XIX, de modo que a experiência, consolidada nos reiterados julgamentos, é que se firmou como fonte elementar do Direito naquele país. Deste modo, por razões sociais e históricas, houve a formação de um sistema jurídico dinâmico, em que o ordenamento normativo decorre de uma imediata resposta dos julgadores à realidade social, deixando em segundo plano, portanto, o processo legislativo formal.

Interessante ressaltar o caráter intrinsecamente dinâmico deste método de desenvolvimento do direito: uma vez que não exista desde logo um repositório normativo pelo qual as questões devam ser apreciadas, o direito material define-se empiricamente, na medida em que as questões sejam levadas à apreciação dos julgadores. Por este motivo o brocardo jurídico inglês "onde não há ação, não há Direito" (where there is no remedy, there is no right) (STREK, 1998, p. 38).

Ainda segundo Streck (op. cit., p. 42), a lei no Direito Inglês é tradicionalmente utilizada para suprir lacunas, como medida excepcional e corretiva, muito embora seja cada vez mais evidente a proliferação de leis e regulamentos administrativos, ainda que sob o controle do Poder Judiciário (REALE, op. cit., p. 153).

Assim, nos países que adotam o sistema do Common law, em que pese a presença crescente de um sistema legislativo formal, ainda hoje vigora a primazia dos costumes como fonte do direito, com a aplicação do produto de séculos de exercício jurisdicional, formando complexas regras consuetudinárias.

2.2 CIVIL LAW.

Os costumes representaram a primeira fonte do direito, a qual se perpetuou unanimemente por um largo período histórico. Após séculos de acomodações de profundas mudanças sociais e históricas, o Direito Romano iniciou o processo de consolidação da Lei como fonte basilar do direito, como demonstraremos a seguir.

Conforme ensina Losano (1979 apud STRECK, ibid., 64), a história de Roma apresentou dois momentos chave para compreendermos os períodos que marcam a evolução do seu sistema jurídico.

O primeiro se dá por volta do século 200 a.C., em que meio século de guerra expansionista resulta na conquista romana dos territórios mais importantes do mundo antigo. Neste contexto, em razão da grandeza da nova sociedade formada, o Direito primitivo evolui para a jurisprudência clássica romana, que floresce dos séculos I ao III d.C., visando dirimir complexos conflitos sociais.

O segundo momento ocorre após a morte de Alexandre Severo (em 235 d.C.), quando sobrevém migrações bárbaras tão intensas que as leis romanas passam a ser fluentemente adaptadas pela influência de novos povos, cujas variadas tradições históricas em convívio acabam por resultar na criação um "Direito Universal".

É possível deduzir, a partir da breve exposição histórica do direito romano, o contexto no qual desenvolveu-se a criação de um sistema jurídico legislativo. Desde a formalização de uma linguagem capaz de criar normas nos territórios ocupados, as primeiras nações modernas seguiram a tradição de unificar em um mesmo ordenamento os costumes regionais vigentes, impondo aos Estados o seu estatuto de regras.

As primeiras experiências, tais como as "Ordenações" da Espanha, França e Portugal (os primeiros Estados Modernos da história), prepararam o terreno para os filósofos do século XIII, os quais perceberam a possibilidade de criação de uma ciência jurídica puramente racional, que antecederia o costume desconexo dos povos. Tal sistema, porém, foi sendo cunhado como uma idealização do Direito, um fruto intelectual essencialmente abstrato.

Reale (op. cit., p. 152) chama a atenção para o fato de que esta tendência geral é especialmente refletida na obra de Jean-Jacques Rosseau (1712-1778), "Do Contrato Social", na qual se sustenta que a lei ideal é aquela que efetivamente expressa a vontade coletiva. Nas palavras do doutrinador:

Para Rosseau, o Direito é a lei, porque a lei é a única expressão legítima da vontade geral. Nenhum costume pode prevalecer contra a lei ou a despeito dela, porque só ela encarna os imperativos da razão.

Nessa mesma época, ainda, surgem os primeiros códigos modernos, sendo que os mesmos já significam a aplicação da primazia legislativa em detrimento dos costumes e da jurisprudência. No ano de 1804, finalmente, surge o Código Civil francês de Napoleão, representando um grande marco no Direito moderno, por tratar-se de um congruente sistema de disposições legais.

Nos sistemas jurídicos de tradição romanística, tais como no Direito brasileiro, não mais prevalece a redução do Direito à lei, muito embora subsista a primazia desta sobre todas as outras fontes. Assim, mesmo em face do nosso sistema jurídico essencialmente legislativo, não se pode ignorar a dinâmica da sociedade moderna, que torna necessário ao aplicador das leis, freqüentemente, recorrer às demais fontes do direito.


3 DA LEGISLAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO.

Como anteriormente exposto, nos países filiados ao sistema de tradição romanística, vigora o chamado Direito Escrito, ou seja, a lei é considerada a fonte primordial do Direito. Assim, a função do Poder Judiciário passa a ser tão somente aplicar a lei, o que ocorre mediante sua interpretação.

No Brasil, portanto, a legislação é a mais importante das fontes formais, sendo que tal primazia encontra-se prevista no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, in verbis:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. (g.n.)

Como se depreende do artigo acima colacionado, que inaugura o Título II - "Dos Direitos e Garantias Fundamentais" da Constituição Federal brasileira, tem-se que a Lei é a única limitação que pode ser imposta à pessoa integrante do Estado Democrático de Direito. A mesma idéia encerra-se no brocardo jurídico poermittitur quod non prohibetur (tudo o que não é proibido presume-se permitido).

Pinto Ferreira (1999, pp.15-16), ensina que "a lei pode objetivar-se, na sua elaboração, de diversas maneiras, na pragmática da Constituição brasileira". Na Constituição brasileira de 05 de outubro de 1988, em seu artigo 59, constam as espécies de normas jurídicas inserida no processo legislativo (além da própria Lei Constitucional, produto do processo constituinte originário). São elas: I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; e VII - resoluções.

Tem-se, portanto, brevemente demonstrada a constitucionalidade da tradição legalista no Direito brasileiro. Entretanto, a despeito da literalidade constitucional, cumpre citar a contumaz advertência de Streck (op. cit., p. 68), para quem "a soberania absoluta da lei não passa de uma ficção". Ou seja, muito embora a lei seja fonte quase exclusiva do Direito brasileiro, verificaremos na prática a incidência dos costumes, jurisprudência, doutrina e princípios gerais do direito, dentre as demais fontes admitidas.

O Direito consiste, portanto, não apenas no produto do processo legislativo, mas especialmente na efetiva aplicação deste pelos órgãos do poder Judiciário, em contínuo processo hermenêutico de interpretação das leis.


4 DA JURISPRUDÊNCIA NO DIREITO BRASILEIRO.

4.1 CONCEITO.

A palavra jurisprudência possui várias acepções na linguagem técnica jurídica. Streck (ibid., p. 83), propõe o seguinte rol de significados para o termo:

(i)"Ciência do Direito", também denominada "Ciência da Lei" ou "Dogmática Jurídica";

(ii)conjunto de sentenças dos tribunais, abrangendo jurisprudência uniforme e contraditória; e

(iii)(apud MONTORO, 1971, P. 90), conjunto de sentenças em um mesmo sentido.

Para Reale (op. cit., p. 167), a palavra jurisprudência significa, em sentido estrito, "a forma de revelação do direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de decisões dos tribunais".

Em consonância ao entendimento acima, trazemos a concisa definição de Cota e Aquaroli (p. 204), os quais definem jurisprudência como a "orientação uniforme dos tribunais na decisão de casos semelhantes".

Finalmente, trazemos à baila a definição de Diniz (1993, p. 290):

Jurisprudência é o conjunto de decisões uniformes e constantes dos tribunais, resultante da aplicação de normas a casos semelhantes, constituindo uma norma geral aplicável a todas as hipóteses similares e idênticas. É o conjunto de normas emanadas dos juízes em sua atividade jurisdicional.

Como se pode verificar, a definição mais utilizada pela doutrina é aquela compilada por André Franco Montoro, que interpreta a palavra "jurisprudência" em seu sentido mais restrito, não apenas pelo conjunto de julgados acerca de um tema, mas especialmente aqueles sejam "no mesmo sentido" ou, conforme Reale (op. cit., p. 167), "que guardem, entre si, uma linha essencial de continuidade e coerência".

4.2 BREVE HISTÓRICO.

A jurisprudência no Direito brasileiro remete, diretamente, ao Direito luso. Com efeito, desde as Ordenações Filipinas, constava a orientação de que na inexistência de leis, os juízes deveriam julgar os casos de acordo com os costumes.

Para ser mais preciso, naquele Ordenamento Jurídico o Poder Judiciário efetivamente se sobrepunha ao Legislativo. É o que podemos concluir da observação de Streck (op. cit., p. 79), que afirma que, embora o Livro III, título 75, 51, in fine, das Ordenações Filipinas, legitimasse o Rei a criar a lei, o poder legislativo passou a competir às Cortes.

Neste sentido, destacamos o seguinte trecho das Ordenações Filipinas, constante do Livro III, Título LXIX:

E assim será recebida a apelação da sentença interlocutória em todos os outros casos semelhantes, porque não podem todos ser declarados em esta Lei, mas procederão os Julgadores de semelhante em semelhante. (g.n.)

Verificamos, portanto, que a jurisprudência no Direito luso encontrou recepção em seu ordenamento jurídico desde cedo, antevendo o legislador que as normas não seria capazes de exaurir todas as necessidades sociais, reservando-se aos Julgadores, portanto, a tarefa de formarem precedentes que se prestassem a servir de referência aos julgamentos posteriores.

Ainda neste sentido a Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, que assim dispôs (Singui Filho, Lima e Lima):

Mando (...) que os assentos já estabelecidos, que tenho determinado que sejam publicados e os que se estabeleceram daqui em diante sobre as interpretações da Lei, constituam leis inalteráveis para sempre se observarem como tais, debaixo das penas estabelecidas.

No Brasil, durante o Império, enquanto fosse seguida a tendência do Direito luso, várias normas regularam o regime jurídico dos chamados "assentos", que eram não mais que um posicionamento jurisprudencial aos quais efetivamente se conferia poder normativo.

Dentre elas, Singui Filho, Lima e Lima destacam a Lei nº. 2.684, de 23 de outubro de 1875, que reconheceu a validade dos assentos da Casa de Suplicação de Lisboa, e o Decreto nº. 6.142, de 10 de março de 1876, que em seu artigo 3º determinou que os assentos não poderiam prejudicar casos já julgados. Greco Filho (1996, p. 370), por sua vez, recorda a existência da figura do "assento" subsistindo no Direito brasileiro no Código de Processo Estadual de São Paulo, de 1930, em seu artigo 1.126.

Em que pese a herança lusa, porém, na Constituição brasileira outorgada em 25 de março de 1824 por Dom Pedro I, já se seguia à risca a tendência dos países de tradição romanística de positivar a supremacia da lei sobre todas as demais fontes do Direito. É o que se depreende do seu artigo 72, in verbis:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte.

I. Nenhum Cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude da Lei. (g.n.)

O referido dispositivo, recepcionado na Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, em seu artigo 5º, inciso II, demonstra que, em princípio, pela aplicação literal do Direito brasileiro, não haveria qualquer espaço para a jurisprudência.

Ainda assim, para França (1974, p. 157), os julgados no Direito brasileiro ainda possuíam eficácia nos casos omissos da Lei ou como auxiliares à interpretação das mesmas, muito embora, oportuno ressaltar, não houvesse previsão legal da Carta Magna que outorgasse à jurisprudência essa função.

Streck (1998 apud COSTA, 1973), porém, ensina que a jurisprudência poderia ser considerada uma forma de expressão do Direito Positivo, desde que "preenchidos certos requisitos, entre eles o da constância, o da não-incongruência com as leis vigentes e o da conformidade com a razão (...)".

Para o presente estudo, importante observar que o fim dos chamados "assentos" não obstou o interesse do legislador em uniformizar a jurisprudência. Com efeito, muito embora não houvesse qualquer previsão legal acerca do poder normativos dos julgados, permaneceu a preocupação do legislador em evitar os dissídios jurisprudenciais, o que se verifica, e.g., já em 20 de dezembro de 1923, com o Decreto nº. 16.273, que instituiu os institutos da "revista" e "prejulgado".

4.3 COMO FONTE DE DIREITO [03].

Como já pudemos concluir ao abordar o sistema jurídico de tradição romanística e o papel da legislação no Direito brasileiro, a jurisprudência, via de regra, não deveria possuir competência normativa.

Greco Filho (op. cit., p. 369) discorre que é possível dividir em duas correntes doutrinárias a concepção acerca da jurisprudência enquanto fonte de direito, quais sejam (i) a que reconhece sua função criadora de normas, e (ii) a que entende que a jurisprudência se limita a reconhecer e declarar a vontade concreta da lei.

Citando Gustav Radbrush [04], para quem "os atos jurídicos e as sentenças realizam o direito, mas não influem em sua existência lógica, podendo influir em sua compreensão histórico-cultural", Greco Filho defende que a posição predominante é a segunda, não admitindo, portanto, sua força normativa.

No mesmo sentido, Dinamarco (op. cit., p. 102 e ss) defende enfaticamente que jurisprudência não é fonte de direito, chamando a atenção para o fato de que a essência da função jurisdicional é a solução dos conflitos concretos, de forma que inexistiria, portanto, a criação de normas gerais e abstratas. Admite, porém, que a jurisprudência exerce grau de influência sobre os futuros julgadores:

A repetição razoavelmente constante de julgados interpretando o direito positivo de determinado modo (jurisprudência) exerce algum grau de influência sobre os futuros julgadores, mas não expressa o exercício do poder, com os predicados de generalidade e abstração inerentes à lei.

Sabe-se, portanto, que a jurisprudência efetivamente atua como referência do Julgador em casos análogos, sobremaneira quando os tribunais superiores já se pronunciaram uniformemente acerca do tema, representando a jurisprudência, na prática, um poder de ditar a aplicação da lei.

Ora, não se pode negar o caráter normativo dessa atividade. Para Diniz (op. cit., p. 269), portanto, a jurisprudência é fonte do Direito porque (i) influencia na produção de normas individuais e (ii) participa da produção do fenômeno normativo, apesar da sua maleabilidade.

Montoro, que introduziu o conceito da subsidiariedade jurisprudencial, colocou a questão da seguinte forma (op. cit., p. 69).

De fato, eles [os julgados anteriores] atuam como norma aplicável aos demais casos, enquanto não houver nova lei ou modificação na jurisprudência. O modo de interpretar e aplicar a norma jurídica sempre lhe afeta a extensão e o alcance (...), de tal sorte que, embora subsidiariamente, a jurisprudência não deixa de participar no fenômeno de produção do Direito normativo. (g.n.)

Por sua vez, Reale reage ao chamado papel secundário da jurisprudência como fonte do Direito. Citando livremente Tullio Ascarelli (op. cit., p. 169), Reale defende que, ainda que nos países de tradição romanística não se possa atribuir à jurisprudência a importância que possui nos países que adotam o Common law, "nem por isso é secundária a sua importância".

Reale conduz ainda um elucidativo raciocínio (ibid., p. 169), demonstrando que a efetividade da norma, com a aplicação que é dada pelos órgãos judiciários, é que se lhe atribui poder. Segundo ele, "se uma regra é, no fundo, a sua interpretação, isto é, aquilo que se diz ser o seu significado, não há como negar à Jurisprudência a categoria de fonte do Direito". Assim, na medida em que determinada norma recebe uma ou outra aplicação, perde ou adquire força cogente, verificando-se o que Reale chama de "alteração substancial na dimensão típica do preceito".

A jurisprudência atua, portanto, paralelamente à lei, legitimada já que próprio ordenamento normativo delegue ao Judiciário a sua aplicação. Concluímos, assim, visando definir os limites da atuação jurisprudencial enquanto fonte de direito, que esta jamais poderá originar um direito em contrariedade a um expresso significado da lei. Poderá, entretanto, atuar nos limites do próprio exercício jurisdicional, que consiste em efetivar a norma valendo-se das regras da hermenêutica jurídica.

Nas palavras de Maximiliano (apud VIGLIAR, op. cit., p. 69) [05]:

[A jurisprudência] preenche as lacunas, com o auxílio da analogia e dos princípios gerais. É um verdadeiro suplemento de legislação, enquanto serve para a integrar nos limites estabelecidos; instrumento importantíssimo e autorizado da Hermenêutica, traduz o modo de entender e de aplicar os textos em determinada época e lugar; constitui assim uma espécie de uso legislativo, base de Direito Consuetudinário, portanto. O sistema jurídico desenvolve-se externamente por meio da lei, e internamente pela secreção de novas regras, produto da exegese judicial das disposições em vigor.

Seguindo tal raciocínio, se tomarmos como ponto de partida a literalidade das leis existentes e seus significados expressos, à jurisprudência resta atuar tão somente no que vamos chamar de margem interpretativa. Assim, excluindo-se todos os dispositivos legais que não admitem, em tese, interpretação, a jurisprudência poderá atuar tão somente na matéria residual de todo o sistema normativo, suprindo a lei sempre que se verifique omissão ou possibilidade abstrata de entendimentos divergentes.


5 DAS SÚMULAS NO DIREITO BRASILEIRO.

5.1 BREVE HISTÓRICO.

A palavra "súmula" é originária de summula, do latim, que significa "sumário" ou "resumo". Juridicamente, as súmulas podem referir-se (i) ao teor abreviado de determinado julgamento, ou (ii) ao enunciado jurisprudencial que reflete entendimento pacificado de determinado tribunal.

A primeira acepção é utilizada pelo Código de Processo Civil em seu artigo 506, in litteris:

Art.506. O prazo para a interposição do recurso, aplicável em todos os casos o disposto no art. 184 e seus parágrafos, contar-se-á da data:

(...)

III-da publicação da súmula do acórdão no órgão oficial. (g.n.)

Para o presente estudo, importa mais a segunda acepção, que Costa e Aquaroli (p. 269) assim definem: "[súmula:] Na jurisprudência, indica a condensação de série de acórdãos do mesmo tribunal, revelando sua orientação para casos análogos".

De acordo com Almeida, a expressão "súmula" foi cunhada pelo Ministro Victor Nunes Leal, no ano de 1963, "para definir em pequenos enunciados o que o Supremo Tribunal Federal vinha decidindo de modo reiterado acerca de temas que se repetiam nos julgamentos".

Com efeito, Streck (op. cit., p. 109) recorda que a Comissão de Jurisprudência do Superior Tribunal Federal, em janeiro de 1964, publicou pela primeira vez as chamadas "súmulas", cujos verbetes haviam sido aprovados na sessão plenária de 13 de dezembro do ano anterior.

Naquela ocasião, o E. Tribunal assim declarou:

O STF tem por predominante e firme a jurisprudência aqui resumida, embora nem sempre tenha sido unânime a decisão nos precedentes relacionados na Súmula. Não está, porém, excluída a possibilidade de alteração do entendimento da maioria, nem pretenderia o tribunal, com a reforma do Regimento, abdicar da prerrogativa de modificar sua própria jurisprudência.

Como se vê, a preocupação do Poder Judiciário em se criar mecanismos que formalizassem sua construção jurisprudencial é bastante remota, tendo constado inclusive do Projeto de Constituição apresentado pelo "Instituto dos Advogados Brasileiros", no ano de 1946 (STRECK, op. cit., p. 110, apud HAROLDO VALADÃO). Naquele texto já constava, a propósito do Recurso Extraordinário:

Quando ocorrer diversidade de interpretação definitiva de lei federal entre dois tribunais, ou entre um deles e o STF, neste caso o recurso poderá também ser interposto pelo Ministério Público e, uma vez fixada pelo STF a interpretação da lei, pela forma e nos termos determinados no regimento interno, dele será tomado assento que os tribunais e juízes deverão observar.

Entretanto, a proposta não foi acolhida pela Constituição Federal de 1946. Ainda segundo Streck (ibid., p. 110), apenas quando da elaboração do Anteprojeto de Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas, de 1964, é que se dispôs acerca da uniformização jurisprudencial pelo STF, nos seguintes termos:

O STF, no exercício das atribuições que lhe confere o artigo 101, III, d, da Constituição Federal, uma vez fixada a interpretação da lei federal pelo Tribunal Pleno, em três acórdãos, por maioria absoluta, torna-la-á pública, na forma e nos termos determinados no Regimento, em resolução que os tribunais e os juízes deverão observar enquanto não modificada segundo o mesmo processo, ou por disposição constitucional ou legal superveniente.

Como se verifica, naquela oportunidade o Superior Tribunal Federal não atribuiu o que convencionamos chamar de "efeito vinculante" às suas súmulas, como pretendeu o "Instituto dos Advogados Brasileiros" já no ano de 1946. Sobre este tema teremos oportunidade de nos aprofundar a seguir.

Posteriormente, a Lei Federal de nº. 5.010, de 30 de maio de 1966 autorizou a criação de súmulas pelo então Tribunal Federal de Recursos (atual Superior Tribunal de Justiça), e o Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho, publicado em 18 de dezembro de 1979, instituiu as súmulas naquela Corte (STRECK, ibid., p. 111).

Finalmente, a redação do novo Código de Processo Civil, Lei de nº. 5.869, de 11 de janeiro de 1973, estendeu a possibilidade de editar súmulas a todos os tribunais da União e dos Estados, como conseqüência do processo de uniformização da jurisprudência. Por essa razão, atualmente, a súmula é a expressão máxima da jurisprudência dos tribunais pátrios.

5.2 DO FUDAMENTO E DA FUNÇÃO UNIFORMIZADORA.

No nosso ordenamento jurídico contemporâneo, as súmulas não são elaboradas mediante um processo autônomo, mas resultam de um procedimento singular de uniformização de jurisprudência. Vejamos o artigo 479 do Código de Processo Civil:

Art. 479. O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.

As súmulas, portanto, representam a formalização pelos tribunais de seus entendimentos jurisprudenciais; objetivamente, porém, as súmulas são revestidas de maior presunção de consonância do tribunal quanto à matéria tratada, haja vista a exigência de que a uniformização decorra do voto da maioria absoluta dos membros do colegiado em questão, conforme o artigo 479 do CPC.

Portanto, para utilizarmos a definição de Streck (ibid., p. 116), "súmulas são o resultado da jurisprudência predominante de um tribunal superior brasileiro, autorizado pelo Código de Processo Civil".

Cumpre destacar, porém, que o Superior Tribunal de Justiça também emite súmulas como resultado de decisões firmadas por unanimidade pela Corte Especial ou por uma Seção, em um caso, ou por maioria absoluta em pelo menos dois julgamentos concordantes, tendo em vista a sua função de unificação da interpretação do Direito federal, conforme determina o artigo 122, § 1º do seu Regimento Interno:

Art. 122. A jurisprudência firmada pelo Tribunal será compendiada na Súmula do Superior Tribunal de Justiça.

§ 1º. Será objeto da Súmula o julgamento tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram a Corte Especial ou cada uma das Seções, em incidente de uniformização de jurisprudência. Também poderão ser inscritos na Súmula os enunciados correspondentes às decisões firmadas por unanimidade dos membros componentes da Corte Especial ou da Seção, em um caso, ou por maioria absoluta em pelo menos dois julgamentos concordantes.

Ainda de acordo com Streck (ibid., p. 114), o objetivo do legislador para prever a emissão de súmulas, ainda que não lhes tenha atribuído efeito cogente, seria (i) proporcionar maior estabilidade à jurisprudência e (ii) simplificar o julgamento das questões mais freqüentes perante o Judiciário.

Entretanto, existem fortes críticas quanto à sedimentação da jurisprudência em súmula, na medida em que estas passem a limitar a atividade jurisdicional. Nesse sentido as palavras de Accioly Filho (PAULA apud STRECK, p 113) [06]:

As Súmulas não se compadecem com o nosso sistema escrito de Direito Positivo. (...) as leis escritas já carecem de flexibilidade bastante, de modo que procurar ainda mais endurecer a sua interpretação, mediante proposições que dificilmente poderiam ser afastadas, significa abrir mão do pouco que nos deixa o sistema para a modelação do Direito positivo às circunstâncias de cada caso concreto.

No mesmo sentido, a contumaz crítica de Carlos Maximiliano (apud STRECK, op. cit., prefácio da primeira edição):

Em virtude da lei do menor esforço e também para assegurar os advogados o êxito e os juízes inferiores a manutenção das suas sentenças, do que muitos se vangloriam, preferem, causídicos e magistrados, às exposições sistemáticas de doutrina jurídica os repositórios de jurisprudência.

À margem dessa polêmica, porém, podemos afirmar que as súmulas exercem uma forte influência sobre os operadores do Direito, quase como o próprio poder normativo; para descrever essa característica da atividade Jurisdicional, de indiretamente exercer ascendência aos futuros julgadores, Faria (1988 apud STRECK, ibid., p. 227) [07] cunha o termo "controlabilidade difusa".

5.3 DO EFEITO VINCULANTE.

Efeito vinculante é a obrigatoriedade conferida a determinado enunciado jurisprudencial. A súmula que possui efeito vinculante, portanto, afasta-se de mera orientação, passando a obrigar os órgãos do judiciário a adotarem o conteúdo deste pronunciamento.

Como anteriormente mencionado, o fundamento legal para emissão de súmulas no nosso ordenamento jurídico encontra-se no artigo 479 do Código de Processo Civil, do qual não se depreende a possibilidade de atribuição de efeito vinculante. O Anteprojeto do nosso Diploma Dispositivo, porém, assim dispunha:

Art. 518. A decisão, tomada pelo voto da maioria absoluta dos membros efetivos que integram o tribunal, será obrigatória, enquanto não modificada por outro acórdão proferido nos termos do artigo precedente.

Art. 519. O presidente do tribunal, em obediência ao que ficou decidido, baixará um assento. Quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicado, o assento terá força de lei em todo o território nacional.

Como se depreende da leitura dos artigos em tela, de autoria de Alfredo Buzaid, o Anteprojeto do Código de Processo Civil brasileiro previa a consagração dos "assentos" do Direito português, legitimando o efeito vinculante, da mesma forma que Haroldo Valadão havia sugerido durante o processo constituinte de 1946 (STRECK, op. cit., 112).

Ocorre, porém, que após ampla discussão, a corrente que entendia pela inconstitucionalidade das súmulas com caráter obrigatório foi vencedora. Assim, a Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, que instituiu nosso Código adjetivo sucumbiu, no primeiro momento, à supremacia absoluta da lei, já inserida no texto constitucional (art. 5º, II).

5.3.1 DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº. 45/04.

Com a Emenda Constitucional de nº. 45, de 30 de dezembro de 2004, que promoveu a chamada "Reforma do Judiciário", foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro a figura da súmula vinculante oriundas do Supremo Tribunal Federal, cuja interpretação passa a ser obrigatória aos órgãos do Poder Judiciário e da administração pública.

A Emenda em questão, dentre outras modificações na estrutura do Poder Judiciário, inseriu o artigo 103-A em nossa Carta Magna:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º. A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º. Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º. Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou se a aplicação da súmula, conforme o caso.

Com a Emenda, portanto, as súmulas passaram a ser classificadas em (i) vinculante e (ii) não vinculante. Gomes (2002), atribuiu à súmula vinculantes as características essenciais de imperatividade e coercibilidade. Para Dinamarco (op. cit., p.103-104), "o caráter vinculante de uma súmula (...) significará que o preceito nela contido impor-se-á a juízes de todos os níveis, que a observarão e farão observar, sob pena de reclamação ao Supremo Tribunal Federal".

Por oportuno, cumpre-nos destacar citação deste importante doutrinador, que alheio às fortes críticas que as súmulas vinculantes já receberam, teceu o seguinte comentário (ibid., p. 39):

Não vejo qualquer ameaça à liberdade dos cidadãos nem à independência dos juízes, porque o acatamento a elas [às súmulas vinculantes] será acatamento a preceitos normativos legitimamente postos na ordem jurídica nacional, tanto quanto as leis.

5.3.2 DA LEI Nº. 9.756/98.

A lei de nº. 9.756, de 17 de dezembro de 1998, alterou substancialmente o Código de Processo Civil, aumentando os poderes dos membros dos Tribunais Superiores em aplicar seus entendimentos jurisprudenciais. Nas palavras do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira (1998), a Lei resultou na "introdução de mecanismos do Common Law (injunction e contempt of Court), para tornar mais efetiva e eficaz a prestação jurisdicional".

Vejamos novos textos inseridos pela lei, a título exemplificativo:

Art. 120. (...)

Parágrafo único. Havendo jurisprudência dominante do tribunal sobre a questão suscitada, o relator poderá decidir de plano o conflito de competência, cabendo agravo, no prazo de cinco dias, contado da intimação da decisão às partes, para o órgão recursal competente. (g.n.)

Art. 544 (...)

§ 3º. Poderá o relator, se o acórdão recorrido estiver em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, conhecer do agravo para dar provimento ao próprio recurso especial; poderá ainda, se o instrumento contiver os elementos necessários ao julgamento do mérito, determinar sua conversão, observando-se, daí em diante, o procedimento relativo ao recurso especial. (g.n.)

Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior.

§ 1º-A. Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso. (g.n.)

Vejamos também a importante alteração na Consolidação das Leis do Trabalho:

Art. 896. (...)

§3º. Os Tribunais Regionais do Trabalho procederão, obrigatoriamente, à uniformização de sua jurisprudência, nos termos do Livro I, Título IX, Capítulo I do CPC, não servindo a súmula respectiva para ensejar a admissibilidade do Recurso de Revista quando contrariar Súmula da Jurisprudência Uniforme do Tribunal Superior do Trabalho.

Vigliar (2003, p. 207) ressalta que a nova tendência dos legisladores de valorizarem os precedentes jurisprudenciais, muito embora tenha sofrido críticas, reforça a necessidade de uniformizar a jurisprudência, proporcionando, como conseqüência, "a confiabilidade que se espera dos pronunciamentos dos tribunais acerca de teses jurídicas já agitadas anteriormente, em situações semelhantes".


6 DA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA NO DIREITO BRASILEIRO.

6.1 CONCEITO.

Não há dificuldade para conceituar o instituto de uniformização de jurisprudência. Na concepção doutrinária de Wambier, Almeida e Talamini (1999, p. 742), a uniformização de jurisprudência "é um expediente cujo objeto é evitar a desarmonia de interpretação de teses jurídicas, uniformizando, assim, a jurisprudência interna dos tribunais".

Para Marques (apud SINGUI FILHO, LIMA e LIMA) [08], o incidente "consiste em pronunciamento prévio sobre a interpretação do direito, por órgão de Tribunal de Segunda de Segunda Instância, quando se verificar que a seu respeito existem entendimentos antagônicos".

Câmara (ibid.) [09], por sua vez, apresenta a seguinte definição:

A uniformização de jurisprudência é um incidente processual, através do qual suspende-se um julgamento no Tribunal, a fim de que seja apreciado, em tese, o Direito aplicável à hipótese concreta, determinando-se a correta interpretação da norma jurídica que incide, ficando assim aquele julgado vinculado a esta determinação.

Nery Junior e Nery (2001, p. 476), finalmente, ensinam que o incidente de uniformização de jurisprudência "é destinado a fazer com que seja mantida a unidade da jurisprudência interna de determinado tribunal".

6.2 BREVE HISTÓRICO.

Segundo Greco Filho (op. cit., p. 370), é possível verificar a preocupação com a uniformização jurisprudencial já no Direito romano, nos institutos da appellatio e rescriptum. Citando Pellegrini [10], ensina que no primeiro, por meio do poder jurisdicional, o imperador exigia a exata aplicação da lei, enquanto no segundo resolvia pontos duvidosos com poder legislativo, ou seja, com força de interpretação autêntica.

O legislador português, como anteriormente mencionado, já inseria a uniformização de jurisprudência na figura dos "assentos", que consistia em um ato do Poder Judiciário que conferia à lei uma interpretação autêntica. Conforme Pontes de Miranda (apud SINGUI FILHO, LIMA e LIMA), pelo assento se decidia um pleito hic et nunc ("aqui e agora", ou "imediatamente"). Ou seja, não se julgava um caso concreto, mas determinava-se o "assento" quando eram constadas divergências nos julgados.

Segundo Greco Filho (op. cit., p. 370 e ss), com o advento do Código de Processo Civil de 1939, Decreto-Lei de 18 de setembro de 1939, a preocupação do legislador pela uniformização jurisprudencial manteve-se nos institutos do prejulgado, recurso de revista e recurso extraordinário.

Por fim, com o advento do novo Código de Processo Civil, Lei de nº. 5.869, de 11 de janeiro de 1973, houve a criação do incidente de uniformização de jurisprudência, regulamentado no Capítulo I, Título IX, Livro I, nos artigos 476 a 479 do Diploma legal. Nas palavras de Reale (op. cit., p. 173), in litteris:

A bem ver, o que fez [o legislador] foi a simplificação do procedimento, preferindo-se resolver desde logo as divergências de ordem hermenêutica, isto é, relativas à interpretação do Direito, para, depois, ser julgada a causa no seu mérito, ou seja, no que ela concretamente representa como pretensão ou razão de pedir em função da lei.

6.3 NATUREZA JURÍDICA.

É pacífico para a doutrina que o instituto de uniformização de jurisprudência possui natureza de incidente. Nas palavras de Greco Filho (op. cit., p. 372), "o entendimento dominante (...) é o de que a uniformização de jurisprudência é apenas um incidente no julgamento de recurso ou processo de competência originária dos tribunais".

Ainda nas palavras de Greco Filho (ibid., 372):

[O Instituto de uniformização de jurisprudência] é um incidente procedimental que, à semelhança da declaração de inconstitucionalidade, atribui ao tribunal pleno, a requerimento da parte ou de ofício pela Câmara, Grupo de Câmara ou Turma, competência funcional para fixação de tese jurídica, mantendo-se a competência da Câmara, Grupo de Câmara ou Turma para a aplicação da lei ao caso concreto.

Segundo Fadel (apud SINGUI, LIMA e LIMA) [11], a uniformização de jurisprudência não é recurso e sequer sucedâneo recursal, mas um meio disciplinador de um incidente cujo objetivo é extinguir uma divergência jurisprudencial.

Vigliar (op. cit., p. 177 e ss), por sua vez, apega-se à natureza incidental do instituto, adotando tratar-se de um incidente processual preventivo. Citando estudo de Wambier, Almeida e Talamini, destaca que a peculiaridade do incidente reside no seu caráter eminentemente preventivo, pelo qual se deseja predeterminar o resultado de uma decisão ainda não proferida.

Vigliar expõe ainda o entendimento abaixo transcrito, pelo qual, utilizando-se o método da exclusão, reforça-se a natureza incidental do instituto de uniformização de jurisprudência (ibid., p. 180):

O incidente de uniformização de jurisprudência não se classifica, portanto, nem como recurso, nem propriamente como ação incidental. A matéria versada no incidente não será propriamente devolvida à análise de um órgão jurisdicional de jurisdição inferior. Tampouco ampliará o objeto da demanda que fora agitada em primeiro grau. A índole recursal do incidente é afastada, ainda, (...) pela ausência de voluntariedade da instauração do incidente.

Na mesma linha de raciocínio, Nery Junior (2004, p.87), defende a natureza incidental do instituto destacando a ausência das características recursais, quais sejam, (i) voluntariedade, (ii) tipicidade, (iii) efeito devolutivo, e (iv) finalidade do recurso.

Cumpre citar, porém, em sentido contrário, o entendimento de Miranda (apud GRECO FILHO, op. cit., p. 372) [12], que considera a uniformização de jurisprudência como recurso, tendo em vista que em sede dos autos de uniformização será apreciada efetivamente a matéria recursal.

6.4 DIREITO COMPARADO.

6.4.1 DIREITO PORTUGUÊS.

O Direito lusitano, como anteriormente exposto, possuía a figura do "assento", o qual encontrava-se fundamentado nos seguintes dispositivos do Código de Processo Civil Português:

Art. 783, nº. 3.

Desde que haja conflito de jurisprudência, deve o Tribunal resolvê-lo e lavrar o assento, ainda que a resolução do conflito não tenha utilidade alguma para o caso concreto em litígio, por ter de subsistir a decisão do acórdão recorrido, qualquer que seja a doutrina do assento.

Art. 2º.

Nos casos declarados em lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força geral obrigatória.

Entretanto, consoante decisão proferida pelo Tribunal Constitucional, acórdão de nº. 810/93, os assentos foram considerados inconstitucionais, nos termos do sumário a seguir transcrito [13]:

I - O Acórdão nº 810/93 tirado em plenário nos termos do artigo 79º-A da Lei do Tribunal Constitucional, e anterior ao início de funções da ora relatora, estabeleceu doutrina orientadora para a jurisprudência do Tribunal, ainda que sem força obrigatória geral. II - No caso dos autos, a doutrina do Assento de 24 de Janeiro de 1990 foi aplicada pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça. Neste contexto, vale seguramente o juízo de inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil formulado no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 810/93, enquanto apoiado nos fundamentos que permitiram concluir que a norma atributiva de força obrigatória geral aos assentos conflitua com o princípio da tipicidade dos actos legislativos estabelecido no artigo 115º da Constituição.

Finalmente, com o Decreto-Lei nº. 329-A, de 12 de dezembro de 1995, foi finalmente suprimida a figura do assento no Direito lusitano, com a revogação dos artigos 763 a 770 do seu Código Processual.

6.4.2 DIREITO ITALIANO.

No Direito italiano, a uniformização da jurisprudência se dá através das máximas da Corte de Cassação, que são publicadas sempre que a referida Corte consta que determinado entendimento está pacificado, com sua reiterada utilização.

Streck (op. cit., p. 98), informa que as referidas decisões gozam de autoridade maior do que a de qualquer outro precedente no Direito italiano, considerando as reiteradas decisões no mesmo sentido que servem de base à sua publicação.

Segundo Buzad (apud Streck, ibid., p. 98) [14], as máximas não possuem eficácia vinculativa, mas as sentenças divergentes ficam propensas de reforma, haja vista a possibilidade de recurso para a Corte de Cassação. Ipsis litteris:

A defesa fundamental da máxima consolidada está em resolver uma quaestio iuris ["questão de direito"] relativa a interpretação de norma jurídica; para assim proceder, não necessita a Corte de apreciar os fatos do caso concreto, mas tão só dirimir divergência contemporânea acerca do entendimento da lei.

6.4.3 DIREITO FRANCÊS.

Segundo Streck (ibid., p. 98), não existe procedimento específico visando a uniformização jurisprudência no Direito francês. Ela ocorre, porém, através do recurso para a Corte de Cassação, cuja função é de julgar as decisões proferidas em últimas instâncias, mantendo a unidade da legislação e prevenindo divergência jurisprudencial.


7 DO INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.

7.1 DAS HIPÓTESES DE CABIMENTO.

Conforme o artigo 476 do Código de Processo Civil, o incidente de uniformização de jurisprudência pode ser instaurado (i) pelo juiz, ou (ii) pela parte, incluindo-se aqui o Ministério Público, desde que este participe do processo (ARAÚJO, op. cit., p. 16).

Quando o incidente for instaurado pelo Juiz, são hipóteses de cabimento os incisos I e II do artigo 476 do CPC, quais sejam:

Art. 476. Compete ao juiz, ao dar o voto na turma, câmara, ou grupo de câmaras, solicitar o pronunciamento prévio do tribunal acerca da interpretação do direito, quando:

I – verificar que, a seu respeito, ocorre divergência;

II – no julgamento recorrido a interpretação for diversa do que lhe haja dado outra turma, câmara, grupo de câmaras ou câmaras cíveis reunidas. (g.n.)

Ao parágrafo único do mesmo artigo, é facultada a parte o requerimento do incidente:

Art. 476. (...)

Parágrafo único. A parte poderá, ao arrazoar o recurso ou em petição avulsa, requerer, fundamentalmente, que o julgamento obedeça ao disposto neste artigo.

Muito embora a redação do caput do artigo 476 do CPC indique que "compete ao juiz" suscitar o incidente em questão (quando verificadas as hipóteses acima elencadas), os Tribunais pátrios consagraram que se trata apenas de uma faculdade do magistrado. Senão vejamos:

A suscitação do incidente de uniformização de jurisprudência em nosso sistema constitui faculdade, não vinculando o juiz, sem embargo do estímulo e do prestígio que se deve dar a esse louvável e belo instituto. [15]

Conforme ensina Greco Filho (op. cit., p. 347), na hipótese do inciso I a divergência é verificada entre os próprios Juízes votantes, enquanto no inciso II a divergência é em relação a acórdão anterior de outra Turma, Câmara, Grupo de Câmaras ou Câmaras Cíveis Reunidas.

Tendo em vista o fato de que o julgamento do incidente é realizado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal (art. 479 CPC), não caberá sua instauração quando a questão já está sendo julgada em tribunal pleno [16].

Importante observar, por fim, que o incidente só será admitido quando a divergência for ativa, ou seja, nas hipóteses em que haja decisões recentes com entendimento contrário ou que isso potencialmente possa vir a ocorrer, quando for notório o entendimento contrário de membros do órgão colegiado. Por essa razão, os Tribunais têm rejeitado o incidente quando a divergência apontada encontra-se superada, ou quando os membros prolatores dos paradigmas já não estiverem atuando naquele órgão, inexistindo probabilidade, portanto, de que novas decisões conflitantes sejam proferidas [17].

Como se depreende da exegese do artigo em questão, portanto, as hipóteses de cabimento são amplas, sempre que verificada a divergência jurisprudencial que ainda vigore dentro do próprio órgão colegiado que irá analisar a questão, seja a cisão entre os próprios Juízes, turmas, câmaras ou grupos de câmaras.

7.2 DO JUÍZO PRÉVIO DE ADMISSIBILIDADE.

Suscitado o incidente de uniformização, o órgão julgador competente pelo caso fático que o ensejou deverá emitir juízo de admissibilidade, que se fundará na existência da divergência, lavrando um acórdão acerca da questão. Após, os autos seguem ao presidente do tribunal para que seja marcada data de julgamento. Vejamos o artigo 477 do Código de Processo Civil:

Art. 477. Reconhecida a divergência, será lavrado o acórdão, indo os autos ao presidente do tribunal para designar a sessão de julgamento. A secretaria distribuirá a todos os juízes cópia do acórdão.

O acórdão de que trata o artigo supra, porém, dada sua legitimidade para mero reconhecimento da divergência jurisprudencial apontada, não se presta a discutir o mérito da questão. Trata-se, na verdade, de uma referência para o julgamento a ser realizado, expondo a questão (que deverá ser exclusivamente de direito), e os entendimentos divergentes. Cópia deste acórdão deverá ser enviada a todos os membros do Tribunal.

Neste momento, caberá ao órgão julgador apurar a efetiva conveniência do incidente suscitado, a qual se configura, como tratamos anteriormente, pela probabilidade de que decisões conflitantes continuem sendo proferidas. Neste sentido [18]:

O órgão julgador dispõe de uma margem de discrição, no exame de conveniência e da oportunidade de admitir o incidente, por vezes suscitado com invocação a aresto divergente isolado, ou já superado no tempo. Pode ser negado processamento à argüição feita pela parte, quando com intuito procrastinatório, sendo notória a orientação jurisprudencial dominante.

O reconhecimento da divergência pelo órgão julgador, porém, trata-se de juízo prévio de admissibilidade. Com efeito, quando do efetivo julgamento do incidente pelo Tribunal, será novamente proferido juízo de conhecimento, para que ogo após, caso tenha sido positivo, ocorrer o julgamento do incidente. É o que se depreende pela exegese do artigo 478 do Código de Processo Civil, in verbis:

Art. 478. O tribunal, reconhecendo a divergência, dará a interpretação a ser observada, cabendo a cada juiz emitir o seu voto em exposição fundamentada. (g.n.)

7.3 DO JULGAMENTO.

Recebidos os autos do incidente, o Presidente do Tribunal designará sessão de julgamento, na qual necessariamente deverá ser alcançada a maioria absoluta dos seus membros, sob pena de impossibilidade de fixação de súmula acerca da matéria em questão.

O parágrafo único do artigo 478 exige também o parecer do Ministério Público acerca da matéria, na pessoa do Procurador Geral da Justiça ou do Procurador Geral da República:

Art. 478. (...)

Parágrafo único. Em qualquer caso, será ouvido o chefe do Ministério Público que funciona perante o tribunal.

Conforme aponta Araújo (op. cit., p. 22-23), é admissível que haja aprovação do verbete apenas pela maioria simples dos membros do tribunal, mas neste caso o resultado produziria efeitos apenas e tão somente para o caso em referência, não se prestando o julgamento a sumular a matéria. Segundo o doutrinador, a produção de efeitos na demanda sub judice "se coaduna com o princípio da utilidade dos atos jurídicos, os quais sempre deverão ser aproveitados quando estão em conformidade com o espelho legal".

Neste sentido [19]:

O julgamento que não obtiver maioria absoluta dos juízes titulares com direito a voto valerá apenas para o caso concreto, devendo ser obedecido pela turma que julgar o recurso.

Com propriedade, Greco Filho (op. cit., p. 348) se insurge contra o julgamento em que não se verifique a maioria absoluta dos membros. Nas suas palavras, "o incidente seria inútil" na hipótese. De fato, muito embora devamos ressalvar a aplicabilidade da decisão ao caso concreto que suscitou o incidente, tal julgamento não resultaria na uniformização jurisprudencial pretendida.

Finalmente, fixada a interpretação do direito pela maioria absoluta dos membros do tribunal, é elaborada a súmula, que nada mais é que uma síntese da tese consolidada pelo julgamento. Vejamos o artigo 479 do nosso Código Adjetivo:

Art. 479. O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.

Parágrafo único. Os regimentos internos disporão sobre a publicação no órgão oficial das súmulas de jurisprudência dominante.

Tendo em vista a consumação da finalidade uniformizadora do incidente, após seu julgamento retornam os autos para a Câmara, Turma ou Grupo de Câmaras competente para decidir o caso originário, o qual deverá observar o entendimento recém firmado pelo tribunal pleno.

7.4 DA INADMISSIBILIDADE RECURSAL.

Conforme ensina Greco Filho (ibid., p. 348), em face da fixação de tese não cabe recurso, exceto embargos de declaração. Isso se deve, naturalmente, ao fato de que a uniformização jurisprudencial é de interesse público, independentemente da possibilidade de ser suscitado pela parte. Por este motivo, sustentou o doutrinador que apenas o Ministério Público possui interesse para recorrer de tal decisão, porque "para ele [o Ministério Público] a sucumbência existe desde que a tese que ele entenda corresponder ao interesse público na tenha sido, finalmente, a vitoriosa" (ibid., p. 349).

7.5 DOS EFEITOS DA DECISÃO SUMULADA.

Os efeitos da fixação de jurisprudência promovida pelo tribunal pleno devem ser considerados quanto (i) ao caso fático que ensejou o incidente e (ii) ao poder vinculante em relação aos casos futuros acerca da matéria sumulada.

No que tange aos autos originários, a vinculação da decisão proferida no julgamento do incidente é obrigatória, devendo a tese vencedora ser aplicada in casu. Em relação ao caso que ensejou o incidente, portanto, a aplicabilidade do entendimento fixado no acórdão de uniformização é cogente.

Já em relação aos casos futuros relativos à mesma matéria apreciada, retoma-se a polêmica acerca da imperatividade dos precedentes jurisprudenciais. Via de regra, inexiste efeito vinculante em relação à tese firmada pelo Tribunal pleno. Como assevera Araújo (op. cit., p. 23), "será facultativa a aplicação do resultado do incidente, já que nosso direito não prevê a súmula vinculante" [20]. Vicente Greco (op. cit., p. 348), por sua vez, assim explica a dicotomia quanto à eficácia de tal decisão:

O valor desse precedente é relativo. Ele tem força vinculante para o caso concreto cujo julgamento está em curso, porque o processo, voltando à Câmara, Turma ou Grupo de Câmaras para aplicar a lei ao caso concreto, só pode seguir o entendimento fixado pelo pleno, mas para os casos futuros terá apenas a autoridade de uma decisão já tomada pelo órgão mais elevado do tribunal. (g.n.)

Muito embora, portanto, o precedente não possua intrinsecamente eficácia vinculante, em atenção ao Princípio da Primazia Legislativa que norteia o Ordenamento Jurídico brasileiro, muitos tribunais têm acrescentado em seus regimentos internos a proibição de que os julgamentos de seus órgãos sustentem tese superada por súmula. Trata-se, na hipótese, de atribuição de eficácia vinculante à súmula emitida pelo Tribunal.


8 CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Tem-se reconhecido cada vez mais a importância da jurisprudência no ordenamento jurídico pátrio, mormente quando se discute alternativas para desembaraçar o Poder Judiciário. Sob essa ótica podemos considerar a tendência de atribuição de eficácia vinculante aos precedentes jurisprudenciais, a exemplo da Emenda Constitucional de nº. 45, de 30 de dezembro de 2004, que instituiu a súmula vinculante, a ser emitida pelo Superior Tribunal Federal, e do regimento interno de diversos tribunais brasileiros, que têm vetado a seus membros a adoção de tese contrária às suas súmulas.

À margem da polêmica discussão acerca da constitucionalidade do chamado efeito vinculante, porém, a uniformização de jurisprudência representa intrinsecamente tema de fundamental importância, independentemente da força cogente que os precedentes exerçam. Como é cediço que a coercibilidade da norma encontra-se justamente na sua efetiva aplicação pelo Poder Judiciário, a uniformização reforça a segurança no próprio ordenamento jurídico, porque se reconhece desde logo pela sociedade a exegese da norma, consagrada pelas súmulas emitidas pelos nosso Órgãos Colegiados.

Conforme aponta Araújo (2002, p. 11), especialmente em face das alterações no Código de Processo Civil e na Consolidação das Leis do Trabalho instituídas pela lei de nº. 9.756, de 17 de dezembro de 1998, a uniformização será essencial para que se obtenha a celeridade dos procedimentos recursais pretendidos pelas alterações da nossa lei adjetiva. Com efeito, a uniformização representa verdadeira otimização no trâmite processual, seja pela possibilidade dos Julgadores se referenciarem em casos efetivamente idênticos, seja pela redução de litígios fundados em teses minoritárias, o que Dinamarco batizou de jurisprudência lotérica [21].

Por outro lado, não se pode perder de vista que a jurisprudência não poderá ser uniformizada se em atropelo às garantias constitucionais do devido processo legal. Ou seja, a uniformização jamais deverá ocorrer se em detrimento de princípios tais como a Persuasão Racional do Juiz ou da Inafastabilidade do Judiciário. Muito embora nosso ordenamento evite ao máximo a existência de dissidência, inegável a possibilidade de que esta ocorra, como conseqüência natural do processo jurisdicional difuso e em contribuição ao ininterrupto desenvolvimento do Direito. Neste sentido as palavras de Maior (apud JAMBO, 2005) [22]:

Interpretar é extrair o sentido da lei no caso concreto. Há vários sentidos possíveis dentro do ordenamento – muito embora existam limites a respeitar, daí porque se falar em interpretação possível. Assim, se juízes chegam a conclusões distintas, e seus fundamentos são justificáveis, racionais e obedecem aos princípios gerais, é porque o ordenamento comporta que essa variedade de sentidos venha a existir. (g.n.)

A esse respeito, Reale (op. cit., p. 171-172) recorda um caso singular, em que, em um curto espaço de tempo, duas causas idênticas foram levadas à apreciação por câmaras diversas de determinado Tribunal. Recorda o doutrinador que cada câmara defendeu uma das teses, concluindo, após citar esse episódio, que "é da própria natureza da jurisprudência a possibilidade desses contrastes, que dão lugar a formas técnicas cada vez mais aperfeiçoadas de sua unificação".

Partindo deste ponto de vista, podemos extrair ao menos um elemento positivo na divergência jurisprudencial: trata-se da prerrogativa dos Julgadores de formarem seu livre convencimento, ditando novos rumos à exegese legal sempre que confrontados com novo contexto fático, evitando-se, assim, a estagnação do Direito. Espera-se do Julgador, ademais, a análise pormenorizada do caso sub judice, cujas peculiaridades eventualmente possam conduzir a resultado diverso da interpretação habitual dos demais aplicadores da lei.

Ou seja, muito embora inatacáveis os princípios do devido processo legal, bem como a perspectiva de que o valor intrínseco das teses jurídicas possa prevalecer sobre os precedentes consagrados, ainda assim faz-se necessário reconhecer a importância de institutos que se prestem à uniformização jurisprudencial, sob pena de enfrentarmos consideráveis prejuízos no entendimento do Direito e nas próprias relações sociais tuteladas.

Visa o instituto, portanto, como bem sustentou Vigliar (op. cit., p. 17-37) não apenas otimizar a prestação jurisdicional, mas preservar os Valores Segurança, Igualdade, Economia e Respeitabilidade nas relações entre o Estado e o Jurisdicionado.


NOTAS

01 REYNOLDS, William L. Judicial Process. p. 71-73.

02 "Nosso sistema da lei de caso utiliza a doutrina do precedente. Uma doutrina antiga, com raízes tão distantes quanto os `Years Books´, segundo o preceito de que os casos atuais devem ser decididos da mesma forma que foram decididos no passado. Um outro nome para esta doutrina é stare decisis (da antiga máxima, stare decisis et non quieta movere.) Enquanto o stare decisis é aplicado em cortes americanas hoje, espera-se que no evento em que um caso aparentemente similar não é seguido, a corte explique porque o precedente não foi aplicado (...). Finalmente, a corte pode revogar o precedente, mas igualmente deve justificar tal decisão. Ainda que nossas cortes não apliquem rigidamente o stare decisis, essa doutrina exerce uma influência muito forte. Como se pode se esperar de uma doutrina com tamanha influência, o stare decisis possui muitas virtudes. Podem ser divididos em três grupos: eficiência, previsibilidade, e uniformidade ou equanimidade."

03 Antes de adentrar ao tópico, abrimos parênteses para registrar uma questão terminológica. Conforme observa Vigliar (2003, p. 54), "fontes do Direito" são os meios pelos quais se formam ou se estabelecem as normas jurídicas; seriam, portanto, nas palavras de Monteiro (apud VIGLIAR), "os órgãos sociais de que dimana o direito objetivo". Para o presente estudo, porém, utilizaremos a expressão para designar as leis, os costumes, a jurisprudência e outras formas de expressão do Direito, posto que assim restou consagrado pela nossa doutrina.

04 RUDBRUSH, Gustav. Filosofia do Direito. São Paulo. Editora Saraiva: 1937.

05 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 15.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

06 PAULA, Alexandre de. Código de Processo Civil Anotado. V.3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.

07 FARIA, José Eduardo. Eficácia Jurídica e violência simbólica. São Paulo: Edusp, 1988.

08 MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual. 1.ed. Campinas: Bookseller, 1997.

09 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, 4.ed. São Paulo: Lúmen Júris, 2001.

10 GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito Processual Civil.

11 FADEL, Sérgio Sahione. Código de Processo Civil Comentado. Rio de Janeiro, Editora Forense: 2003.

12 MIRANDA, F. Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Forense, 1974.

13 http://www.dgsi.pt

14 BUZAID, Alfredo. Uniformização de jurisprudência. Porto Alegre: Ajuris – Associação dos Juízes do RS, n. 34, 1985.

15 NEGRÃO e GOLVEIA, 2005, p. 523 APUD RSTJ 17/452 e STJ-RT 664/175.

16 Ibid., APUD JTA 37/82.

17 Ibid., APUD 57/67, RT 605/137, RJTJESP 128/253.

18 NERY JUNIOR e NERY, op. cit.. APUD TEIXEIRA, PCSTJ, 361.

19 NEGRÃO e GOLVEIA, 2005, p. 523 APUD RP 5/376, em. 194.

20 Ressalva-se a alteração instituída pela Emenda Constitucional de nº. 45 de 30 de dezembro de 2004.

21 DINAMARCO, Cândido Rangel. Prefácio em VIGLIAR, op. cit., p. 15.

22 MAIOR, Jorge Luiz. Súmulas com Efeito Vinculante. São Paulo: LTR Editora, 1997.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Teoria Geral do Estado. 2.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2000.

ALMEIDA, Cândido Mendes de. Ordenações Filipinas. Rio de Janeiro: 1870. Disponível em: http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm.

ARAÚJO, João Carlos de. Incidente de Uniformização de Jurisprudência – Comentários. São Paulo: LTR Editora, 2002.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9.ed. São Paulo: Malheiros Editores.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

COSTA, Wagner Veneziani; e AQUAROLI, Marcelo. Dicionário Jurídico. São Paulo: WVC Editora.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual - Volume I. 5.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 5.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1993.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro - 1º Volume. 11.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1995.

FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 10.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999.

FRANÇA, R. Limongi. O Direito, a lei e a jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.

GOMES, Luiz Flávio. Eficácia e Extensão das Súmulas Vinculantes. Artigo, 2002. Disponível em: http://www.mundolegal.com.br.

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro - 1º Volume. 9.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1994.

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro - Volume 2. 11.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1996.

HOEPPNER, Marcos Garcia. Manual de Prática Forense Civil. 1.ed. São Paulo: Ícone, 2002.

JAMBO, Paloma Wolfenson. O Poder Vinculante das Súmulas e a Impossibilidade de Identificação Estreita das Causas Submetidas à Justiça. Artigo, 2005. Disponível em http://www.jus.com.br.

LIMA, Leornardo D. Moreira Lima. Stare Decisis e Súmula Vinculante: Um Estudo Comparado. Artigo. Disponível em: http://www.puc-rio.br.

MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. 8.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1995.

MIRANDA, Gilson Delgado; PIZZOL, Patrícia Miranda. Processo Civil: Recursos. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2000.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12.ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2002.

NEGRÃO, Theotonio e GOUVÊA, José Roberto F. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor. 37.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

NERY JUNIOR, Nelson. Os Princípios Fundamentais dos Recursos. 6.ed. Dão Paulo: Editora RT, 2004.

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil - Volume I. 19.ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999.

PINTO, Nelson Luiz. Manual dos Recursos Cíveis.2.ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2000.

SINGUI FILHO, Deusma; LIMA, Maria Cesarineide de Souza; e LIMA, Sálvia Silvana Santos. A Uniformização de Jurisprudência no Estado Democrático de Direito. Monografia. Disponível em: http://www.pge.ac.gov.br.

STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito Brasileiro: Eficácia, Poder e Função. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998.

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A Lei 9.756/98 e suas Inovações. Artigo, 1998. Disponível em: http://www.bdjur.stj.gov.br.

WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Renato Correia de; e TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. 2.ed. São Paulo, 1999.

VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Uniformização de Jurisprudência – Segurança Jurídica e Dever de Uniformizar. São Paulo: Editora Atlas, 2003.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIETZMANN, Luís Felipe de Freitas. Da uniformização de jurisprudência no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1124, 30 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8701. Acesso em: 6 maio 2024.