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Princípio do "non bis in idem"

uma releitura à luz do direito penal constitucionalizado

Princípio do "non bis in idem": uma releitura à luz do direito penal constitucionalizado

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O Princípio do Non Bis In Idem, embora não esteja expressamente previsto constitucionalmente, tem sua presença garantida no sistema jurídico-penal de um Estado Democrático de Direito. Certamente se avolumou com o incremento do respeito à dignidade da pessoa humana e com a consolidação de um Direito Penal que se ocupa precipuamente do fato delituoso, ao invés de concentrar-se na obstinada perseguição, rotulação e segregação do indivíduo ao qual se apôs o rótulo de criminoso. É a prevalência do "Direito Penal do fato" sobre o "Direito Penal do autor".

O princípio em comento estabelece, em primeiro plano, que ninguém poderá ser punido mais de uma vez por uma mesma infração penal. Mas não é só. A partir de uma compreensão mais ampla deste princípio, desenvolveu-se o gradativo aumento da sua importância. Hodiernamente, uma das suas mais relevantes funções é a de balizar a operação de dosimetria (cálculo) da pena, realizada pelo magistrado.

Temos que observar que se consolidou o entendimento de que uma mesma circunstância não deverá ser valorada em mais de um momento ou em mais de uma das fases que compõem o sistema trifásico estabelecido pelo art. 68 do Código Penal.

É certo que, já há muito tempo, não se admite, por exemplo, o reconhecimento de uma circunstância agravante que funcione como elemento constitutivo, como qualificadora ou como majorante (causa de aumento) do delito. Não é aceitável, neste sentido, o reconhecimento da agravante "com emprego de fogo" para o crime de incêndio (art. 250, CP); ou "contra mulher grávida" (art. 61, II, "h", CP) para o aumento da pena do crime de aborto (eis que a gravidez é pressuposto lógico para a própria possibilidade da interrupção da vida intra-utrerina). Do mesmo modo, não se tolera que o homicídio qualificado pelo "motivo fútil" (art. 121, § 2º, II) sofra a agravação genérica do art. 61, II, "a", do CP; ou que o crime contra a liberdade sexual praticado contra descendente, que já sofre majoração da pena por força do art. 226, II, seja, pelo mesmo fato, genericamente agravado (art. 61, II, "e’, do CP).

O incremento do prestígio do princípio, no entanto, não parou por aí. Indo muito além das situações (até mesmo óbvias) que expusemos, notamos que se formaram posicionamentos rijos a respeito de diversas hipóteses até então consideradas dúbias.

Hoje, uma condenação penal transitada em julgado que se presta à caracterização da reincidência, não pode funcionar, na fase da fixação da pena-base, como mau antecedente (Súmula 241, STJ).

Sustenta-se, também, o entendimento de que se o juiz se amparou em uma valoração negativa dos motivos do crime para fixar a pena-base em quantidade mais elevada (atendendo ao que determina o art. 59 do CP), o posterior reconhecimento da agravante "motivo torpe" (art. 61, II, "a", do Código Penal), no segundo estágio do sistema trifásico, ficaria inviabilizado. Pois, caso contrário, ao ser reconhecida a agravante da torpeza do motivo, um mesmo fator – a motivação do crime – estará sendo valorado mais de uma vez, em dois momentos distintos da operação de dosimetria da pena. O mesmo elemento – o motivo reprovável – seria usado como fundamento para a fixação da pena-base mais elevada e para o aumento da pena, na segunda fase, em aproximadamente 1/6 do valor inicialmente fixado (valor fracionário recomendável [01] para o caso das atenuantes e agravantes). Trata-se de posição que, apesar de aparentar extremismo, não deixa de fazer sentido.

Um exemplo elucidativo: imaginemos que alguém tenha praticado um furto, e que o tenha feito por motivo torpe (o agente subtraiu do seu desafeto o dinheiro que seria destinado à compra de alimentos para a sua família, justamente com o intuito de acarretar a privação). É bem provável que o juiz, após análise do caso, se desconhecer a motivação do crime, venha a fixar a pena-base próxima do mínimo legal (digamos, um ano de reclusão). Sabendo da torpeza da motivação, no entanto, e atendendo aos critérios do artigo 59 do CP, suponhamos que ele estabeleça uma pena-base mais elevada: 3 anos de reclusão. Quando passa ao segundo estágio do sistema de dosimetria da pena, reconhece a já mencionada agravante do art. 61, II, "a", e faz incidir um aumento de 1/6 sobre a pena-base anteriormente fixada. Supondo a ausência de quaisquer outras circunstâncias agravantes ou atenuantes, e também de causas de aumento e de diminuição da pena, torna-se definitiva a punição em 3 anos e 6 meses de reclusão. Percebamos que, no presente caso, o peso exercido pelo motivo do crime na pena atribuída, na primeira fase, é de hipotéticos 2 anos de reclusão; e que, num momento posterior, ao ser reconhecido como circunstância agravante, o mesmo fator levou a novo aumento da pena (mais 6 meses de reclusão). Esta dupla (ou múltipla) valoração é vedada pelo Princípio do Non Bis In Idem.

Nosso escopo, nos lindes do presente artigo, ao invés de ser o de trazer a lume, em espécie, uma a uma, as várias novas releituras jurídicas induzidas pela ampla compreensão do Princípio do Non Bis In Idem, é a de atrair a atenção do leitor para um sedicioso dado. Proliferaram, recentemente, críticas e soluções inovadoras destinadas ao trato do problemático bis in idem (algumas, inclusive, merecedoras de maior reflexão e melhor elaboração – como esta que apresentamos por último, capaz de imobilizar o magistrado ou de engessar a metodologia de cálculo da pena). A grande preocupação com a dupla (ou múltipla) punição suscitou ponderações sobre várias das facetas do complexo procedimento de determinação da pena. O que nos intriga é que, apesar da epidêmica valorização do Princípio do Non Bis In Idem, e da fecunda multiplicação de críticas relativas ao seu descumprimento, não se tenha dado a devida importância a um velho e desgastado instituto penal. Vem passando em branco, praticamente ilesa, a questionável reincidência. E vem sendo desperdiçada a oportunidade de criticá-la com a dureza merecida.

Como prova da freqüência da violação de princípios por regras destoantes da lógica do Direito Penal Constitucional; e como evidência de que esta violação é comumente ignorada, citamos a reincidência. Esta agravante genérica, prevista pelo art. 61, I, do CP, constitui flagrante ofensa ao princípio sob análise e continua sendo aplicada (jurisprudência) e lecionada (doutrina).

Talvez se possa conceber que o fator reincidência seja, de alguma forma, contemplado pelo ordenamento. Talvez seja admissível até mesmo a conferência do condão de influir na determinação da pena do agente. Não objetivamos o rechaço pleno e definitivo do fator reincidência. Mas o certo é que o seu posicionamento no sistema jurídico-penal como agravante, isto é, como "circunstância que sempre agrava a pena", é intolerável. A melhor maneira de nos fazermos compreender é através de exemplos.

Para demonstrar o quanto pode ser injusto o obrigatório incremento da pena por conta do reconhecimento desta agravante genérica, visualizemos a seguinte hipótese: uma pessoa pratica um crime de injúria simples (art. 140, caput, CP). Por este (ínfimo e questionável) delito é condenada a uma pena de 1 (um) mês de detenção. Um ano após o cumprimento da sua pena, essa pessoa cometeu uma lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (art. 303 da Lei 9.503/97). Da pena de 6 meses a 2 anos que lhe poderia ser imposta, recebeu uma condenação a 2 anos de detenção. No segundo estágio do sistema de determinação ou dosimetria da pena (fase das agravantes e atenuantes), o juiz, ao reconhecer a reincidência, deve operar o respectivo aumento da pena (que, preferencialmente, deve girar em torno de 1/6, conforme coesa orientação doutrinária). Note-se: pelo crime de injúria (que fundamenta a reincidência), o agente recebeu uma pena de 1 (um) mês de detenção; pelo reconhecimento da reincidência em si (apesar de o crime anteriormente praticado ser de menor potencial ofensivo), a pena foi aumentada em 4 (quatro) meses de detenção (!). O aumento da pena determinado pela reincidência supera a pena total aplicada ao delito anteriormente cometido. [02] A hipótese aventada não é de improvável acontecimento, mas, sim, de fácil configuração. Aliás, na maioria das vezes em que alguém cometer um delito menos grave (como um crime culposo) e, depois, cometer uma infração mais reprovável (como um crime doloso), a punição pela reincidência suplantará a pena total atribuída pela primeira transgressão. É possível não enxergar a injustiça? O mesmo fato (cometimento de crime e condenação) gera duas sanções penais: uma direta (pena total pelo primeiro crime) e uma indireta (aumento da pena na segunda condenação). Se pelo primeiro crime, em si, se impôs uma pena de 1 mês de detenção, como conceber que, pela reincidência, seja imposta uma pena quatro vezes mais elevada? E há uma importante observação a realizar: justamente por conta dessa reincidência, a pena, que seria cumprida no regime aberto, deverá ser cumprida em regime semi-aberto. E o que é pior: para os mais rigorosos, não adotantes da interpretação determinadora da prevalência do caput do art. 33 (que não prevê regime inicialmente fechado para a detenção) sobre o seu § 2º (que estabelece que somente o não-reincidente poderá cumprir a pena em regime semi-aberto ou aberto), a reincidência levará, por fim, ao início do cumprimento da pena em regime fechado. Assim, o fato pretérito (injúria), pelo qual o agente já cumpriu pena, não só contribui para o aumento da intensidade da nova punição que lhe é dirigida em termos quantitativos (valor da pena privativa da liberdade), mas também qualitativos (o cumprimento da pena se dará, inicialmente, em regime mais severo).

Note-se que não tratamos de situação caracterizadora de anti-socialidade ou de contumácia criminosa. Qualquer cidadão exemplar pode, por pequenos deslizes comportamentais, cometer uma injúria e, principalmente, no frenético trânsito de nossas cidades, um "delito de circulação".

Evidentemente, conhecemos a justificativa universal para a consideração da reincidência: "não é o primeiro fato que determina o aumento da pena; é a reincidência em si, o fato de praticar o agente uma nova infração penal após já haver sido condenado". O discurso não consegue ocultar seu tom falacioso. Pois, na verdade, se eliminarmos o fato pretérito e considerarmos inexistente aquele evento pelo qual o agente já cumpriu ou está cumprindo pena, teremos a fatal redução da pena e a amenização da sua forma de execução.

De outro lado, é claro que o criminoso inveterado, que por várias vezes se insurgiu contra a ordem social e por várias vezes se submeteu – em vão – ao sistema prisional, poderá, eventualmente, fazer jus a um tratamento diferenciado. Se uma pessoa passa várias vezes pelo (caótico) sistema prisional e, nem por isso, deixa de cometer delitos e de agredir bens jurídico-penais, está a revelar comportamento mais perigoso e deliberadamente anti-social. É, em primeira análise, merecedora de resposta penal mais severa.

Então há, simultaneamente, a exigência da imposição de sanção penal que seja "necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime" (art. 59, CP), para a devida proteção dos bens jurídicos essenciais; e, em contrapartida, a vedação do bis in idem. A solução não está no sacrifício de um comando para o atendimento do outro. Está no equilíbrio, na razoabilidade que deve ser estabelecida entre eles. Esse é o juízo inspirado pelos preceitos delineadores da ideologia constitucional.

Se não se pode abrir mão, por completo, do instituto da reincidência, pela necessidade de um tratamento diferenciado para os delinqüentes contumazes, também não se pode desprezar a garantia de que não se puna várias vezes o mesmo fato criminoso.

Já que se faz necessário uma resposta penal mais severa para os delinqüentes contumazes, é preciso que, para que ela possa ser legitimamente instituída, restem estabelecidos critérios claros e confiáveis. Muito mais confiáveis do que a obrigatória agravação da pena, pura e simplesmente. Em primeiro lugar, há que se definir quais serão os alvos dessa resposta mais severa (a questão do quem); em segundo, de que forma se dará essa severização (a questão do como).

Sobre a questão do quem, destarte, urge ressaltar que não é toda pessoa que voltou a delinqüir após haver recebido uma condenação penal que deverá ser alvejada pelo enrijecimento da repressão estatal. Que se reserve a reação mais drástica para os casos mais graves. A reincidência específica, mormente em se tratando de delitos dolosos, e a renovação da prática de crimes hediondos ou afins, por exemplo, podem ser consideradas como fortes indícios da necessidade de uma repressão penal mais severa. Em tais casos, havendo sido constatada a insuficiência da medida penal – tendo em vista a reiteração das ofensas de alta gravidade – mostra-se imperativa providência mais rigorosa. Repita-se: providência direcionada não a todo e qualquer reincidente, indiscriminada e indistintamente; mas aos que insistem em perpetrar as condutas mais censuráveis, renovando ataques a bens jurídicos essenciais por intermédio de comportamentos particularmente desvaliosos.

Acerca do como, temos a aduzir que a intensificação da resposta penal não necessariamente requer uma providência tão inflexível quanto o obrigatório aumento da pena pelo reconhecimento da reincidência. É muito mais racional restringir a influência do fator reincidência e, quiçá, limitá-la à modificação do tempo exigido para a progressão de regime, das condições para o sursis, ou dos requisitos para o livramento condicional, por exemplo. Talvez até se possa conceber a influência da reincidência na quantidade da pena, em casos particularíssimos (jamais da maneira como atualmente se realiza); mas a providência que se afigura mais recomendável, em virtude do menor conflito com o Princípio do Non Bis In Idem, é o estabelecimento de requisitos mais rígidos para a obtenção de benefícios.

Ao final, não se teria o aumento da pena, na segunda condenação, para toda e qualquer pessoa que voltasse a cometer um delito, mas sim o aumento do rigor penal (preferencialmente no que tange à obtenção dos benefícios) para alguns casos específicos, que envolvam comportamentos desvirtuados que figurem entre aqueles mais graves.

É evidente que nosso objetivo, com tão poucas palavras, não pode ser o de esgotar o tema. Nem tampouco de nele nos aprofundar. O intento, presentemente, é apenas o de induzir a uma reflexão. A partir da instauração do Estado Democrático de Direito, além de terem surgido novos princípios balizadores do Direito Penal, observáveis a partir das diretrizes constitucionalmente impostas, remodelaram-se os princípios penais pré-existentes. Para que eles atendam aos parâmetros constitucionais (e isso é imprescindível!), devem sofrer uma releitura. É este, justamente, o caso do Princípio do Non Bis In Idem, que tem seu conteúdo estendido e, dentre outros fatores, demanda uma nova postura no que atine ao trato da reincidência pelo nosso ordenamento jurídico-penal. Com isso, mesmo institutos já sedimentados, cujas aplicabilidades são aparentemente incontroversas, e que continuam a ser intuitivamente prestigiados, mostram-se necessitados de uma remodelação (teórica e pragmática) que os ajuste à ideologia constitucional.


Notas

01 BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 211.

2 Se pensarmos em um segundo delito de maior gravidade, a disparidade se revelará ainda mais gritante. Caso o segundo crime cometido seja um homicídio, se a pena-base fixada for de 12 anos (termo médio), lidaremos com um aumento de aproximadamente 2 anos de prisão (que, aqui, diferentemente do que se verifica no caso da injúria, importa em reclusão), aumento que supera a pena total do primeiro crime em vinte e quatro vezes.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JORIO, Israel Domingos. Princípio do "non bis in idem": uma releitura à luz do direito penal constitucionalizado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1161, 5 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8884. Acesso em: 28 mar. 2024.