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Norma geral antielisiva e sua regulamentação

Norma geral antielisiva e sua regulamentação

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1. ELISÃO E EVASÃO FISCAL

1.1.Limites da elisão fiscal frente à evasão

Elisão fiscal e evasão fiscal são dois institutos do direito tributário antagônicos. O primeiro expressa uma não-incidência tributária legalmente admitida, também podendo significar uma tributação reduzida. Por sua vez o segundo se trata de uma ilicitude para escapar da tributação.

Diva Malerbi parte do sentido amplo do termo elisão para, então, separar as duas figuras, as quais servem para referendar as seguintes qualificações jurídicas: (a) abstenção de incidência pura e simples; (b) elisão em sentido estrito ou via jurídica lícita menos onerosa; (c) evasão em sentido estrito ou via jurídica, ilícita menos onerosa; (d) simulação ou ocultação do fato imponível por meio de forma aparente de legitimidade; (e) fraude ou ocultação pura e simples de fato imponível ocorrido. Não é outro o entendimento de Gilberto de Ulhôa Canto [01]. Nas palavras da Mestra antes referida, tem-se:

A elisão tributária refere-se a um certo tipo de situações citadas pelo contexto do direito tributário positivo que, por não estar compreendido dentro do catálogo legal das situações tributáveis existentes, pertence, assim, àquela área de proteção jurídica do particular (relacionada com sua liberdade negocial e, precipuamente, com a sua propriedade), constitucionalmente assegurada, na qual o Estado tributante não pode ingressar. [01]

A clássica distinção desses institutos é dada por Alberto Hensel, aliás o primeiro a formular o método diferenciador entre evasão e elisão fiscal, exposto na 1ª edição de seu "Steuerrecht", de 1924, do qual Gomes de Souza transcreve, devidamente traduzido por ele mesmo da versão italiana no seguinte trecho:

O que distingue a elisão da fraude fiscal é que, neste último caso, trata-se de um descumprimento ilícito de obrigação já validamente surgida com a ocorrência do fato gerador, ao passo que na elisão impede-se o surgimento da obrigação tributária evitando a ocorrência do fato gerador. [02]

Neste aspecto, muito embora nos atos, fatos ou situações possa identificar-se as características de cada instituto, situações de fato há que envolvem mais de uma figura, ou em que elas se confundem [03]. Assim, recomenda-se ter presente lições como a de Canto:

O legislador deve formular a norma de tal maneira que ela tenha o máximo de eficácia, abrangendo todas as situações econômicas de cada tipo. Entretanto, se ele não o faz, ao aplicador da norma falece poder para estender a sua incidência a hipóteses que, embora de conteúdo econômico parecido, não foram judicizadas por disposição legal. O imposto deve levar em conta a capacidade contributiva do sujeito passivo; mas, sendo sua exigibilidade a resultante necessária da lei, somente desta poderá emanar a obrigação tributária, já que o fato gerador é ato, negócio ou situação por ela definido, e não o resultado da respectiva dimensão econômica enquanto não tenha sido por ela encampado. [04]

Elidir é evitar, reduzir o montante ou retardar o pagamento do tributo por atos ou omissões lícitos do sujeito passivo anteriores à ocorrência do fato gerador.

Revela-se na tomada de condutas revestidas pela licitude por parte do contribuinte objetivando a economia fiscal. [05]

No entanto, a conceituação clássica que prevê os atos elisivos como anteriores ao fato gerador é contestada por Carvalho, que lembra que os benefícios fiscais podem ser obtidos até mesmo depois de configurado o fato gerador, colacionando como exemplos o parcelamento e a denúncia espontânea. [06]

Evadir é evitar o pagamento do tributo devido, reduzindo-lhe o montante ou postergar o momento em que se torna exigível, por atos ou omissões do sujeito passivo, posteriormente à ocorrência do fato gerador.

Configura-se no agir consciente e espontâneo do contribuinte, tendente a reduzir ou suprimir o tributo, valendo-se para tal de expedientes ilícitos, via-de-regra a fraude documental ou a deturpação de informações prestadas à Receita. [07] Bem de ver que o divisor de águas entre a elisão e evasão, será a licitude dos atos no intuito da promoção da economia fiscal.

1.2.Planejamento Tributário.

É na economia fiscal e no mais das vezes no planejamento tributário que a elisão fiscal se funda. Aliás, a conseqüência mais evidente do planejamento tributário bem sucedido é exatamente a economia fiscal. A par da conceituação acima descrita da elisão fiscal, bem se vê que quando o sujeito analisa a legislação que deve obedecer, com os olhos daquele que busca maneiras de, sem violá-la, encontrar comportamentos que culminarão em economia fiscal, temos então o planejamento tributário bem sucedido.

É relevante igualmente tratar aqui da distinção entre as figuras da ficção legal e da presunção. Presunção é a ilação que se tira de um fato conhecido para provar a existência de outro desconhecido.

É hipótese de ficção prevista em lei, porque considera ocorrido um fato gerador que na realidade inexistiu.

No planejamento tributário existe verdadeira arquitetura da vida negocial da pessoa física ou jurídica, de modo que antevendo os desdobramentos das relações jurídicas, seja possível reduzir-se o montante do tributo ou até mesmo isentar a operação.

No escólio de Malkowski busca-se a expressão engenharia para tentar desvendar os estratagemas engendrados por contadores e tributaristas:

"Planejamento tributário é a designação corrente para uma série de procedimentos tradicionalmente conhecidos como formas de economia de imposto. Aquela expressão tem, talvez, uma conotação mais sofisticada de engenharia tributária." [08]

Com efeito, o planejamento tributário circunda-se pelo exercício de atividades econômico-tributárias com o escopo de promover a gerencia dos tributos de modo a reduzir o montante recolhido aos cofres públicos, podendo ser tomadas medidas de natureza administrativa como o redirecionamento de atividades, reorganizando a rotina contábil ou reequalizando o quadro societário. [09]

Nesse sentido, pode-se afirmar que o planejamento tributário é atividade não-vedada pelo Sistema Constitucional Tributário, onde se permite ao contribuinte, dentro de um ordenamento infraconstitucional deveras amplo e muitas vezes omisso e contraditório, eleger a forma com que conduzirá suas relações negociais, bem como a forma que disporá seu patrimônio. Ocorrendo a "brecha" na lei ou mesmo incentivos fiscais promovidos pelo Estado, o contribuinte poderá deles se valer para pagar quantidade reduzida de tributos.

1.3.Inexigibilidade da conduta não prevista em lei: Tipicidade e Legalidade

Assim é que a tipicidade e legalidade são princípios que restringem a ação de ambas as partes: do sujeito passivo do tributo, quando busca a elisão fiscal, e do ente público, quando busca ou bloquear o comportamento elisivo ou identificar a figura da evasão e afastar a elisão, modo a punir o infrator.

A tipicidade limita esses comportamentos uma vez que exige que se trate apenas das hipóteses tipificadas. Veja-se que a mudança trazida pela LC 104 isso se tornou relativo (adiante se tratará melhor desse aspecto) e a tipicidade restou afrontada.

A legalidade, igualmente o faz, uma vez que exige que seja apenas e tão-somente a lei a diretriz do ente público na persecução dos seus objetivos fiscalizadores. Da mesma forma, mostra ao contribuinte quais os padrões mínimos (eticamente) que deverá obedecer, mesmo quando estiver propenso ao viés da elisão. E da mesma forma, a legalidade foi maculada no advento da LC 104/01 e da MP 66/02, opinião que comungamos de MARTINS:

O art. 116, portanto, vem ferir frontalmente o artigo 150, inciso I, da Constituição Federal, que é cláusula pétrea [...] Com efeito, o referido dispositivo despoja o Congresso Nacional do poder de produzir a lei tributária e transforma o agente fiscal em verdadeiro legislador, para cada caso aplicando, não a lei parlamentar, mas aquela que escolher. Afetando, ainda, a separação dos poderes, pois autoriza o representante do Fisco a deixar de aplicar a lei do fato a que se destina, e a escolher, no arsenal de dispositivos legais, aquele que resulte mais oneroso, a partir de presunção de que o contribuinte pretendeu utilizar-se da lei para pagar menos tributos. [10]

Assim se percebe que por vezes as presunções e ficções poderão criar figuras inexistentes na legislação e punir aquele que tão-somente tentou a elisão, por meio do planejamento.

O direito tributário assemelha-se ao direito penal em seus princípios, sendo necessária a presença de "tipos" que encerram, com detalhes, conduta tendente a fazer incidir o tributo ou a pena. Não pode o Estado exigir determinada conduta do agente quando esta não resta configurada, previamente, em local algum. Além disso, somente a lei, certa e prévia, poderá determinar determinados tipos. [11]

1.4.Livre contratação

Com a edição da norma antielisiva, o que se pretende buscar, na verdade, é a supressão da livre contratação.

Essa é a coroação da afronta ao principio da livre iniciativa, que é corolário da livre contratação.

Nesse sentido, veja-se que do exame do inciso IV (2) do art. 1º da CF, o regime econômico adotado nacionalmente é o da livre iniciativa. Por sua vez dispõe o art. 170 da Constituição Federal de 1988. [12]

A livre concorrência aparece no inciso IV, constituindo-se na espinha dorsal do regime econômico adotado. O parágrafo único, do art. 170 assegura o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de prévia autorização dos órgãos públicos (ressalvados os casos previstos em lei).

Em que pese o princípio da livre iniciativa não ser absoluto, não se justifica a limitação oposta pela modificação levada a efeito pelo legislador.

É nesse sentido que Kiyoshi Harada assevera:

Pode-se dizer, sem margem de erro, que o conceito de livre iniciativa, que se extrai do exame do Texto Magno, pressupõe a prevalência da propriedade privada na qual se assentam a liberdade de empresa, a liberdade de contratação e a liberdade de lucro. Esses os marcos mínimos que dão embasamento ao regime econômico privado, ou seja, ao regime de produção capitalista, o qual sofre interferências do Estado, por meio de três instrumentos básicos: o poder normativo, o poder de polícia e a assunção direta da atividade econômica. [13]

É evidente que a limitação da destinação dos lucros das empresas não se insere no âmbito do poder de intervenção do Estado na economia, em especial nos instrumentos ofertados pelo art. 174 da Carta Magna.


2. NORMA ANTIELISÃO

2.1.Conceito.

A antielisão, em se tratando de inovação quanto à tipificação tributária incluída no Código Tributário Nacional pela LC 104/2001, em suma se trata de tributar por via ficcional o que antes não era tributado. Assim era o caput do art. 13 da MP nº 66/02 que tratava de praticamente reproduzir a dicção do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional e desse modo institui (provisoriamente) um novo fato gerador.

O caráter dado pela inovação do CTN choca e causa arrepios ao se pensar na forma com que será implementada, nos dizeres de Paulsen:

Há poucos assuntos tão delicados quanto este, que envolve a discutida e questionada interpretação econômica (...). Pelo disposto no parágrafo único do art. 116, ora em questão, resta o Fisco autorizado a desconsiderar atos jurídicos praticados justamente para iludi-lo. Pode, com isso, identificar a ocorrência de fato gerador do tributo e efetuar o respectivo lançamento. Note-se que o artigo exige que o ato tenha o efeito de ocultar a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos que configuram a hipótese de incidência e que ato tenha sido praticado com tal finalidade. [14]

Sua natureza não pode ser confundida com a da simulação. Nesse caso, a desconsideração efetuada decorre da nulidade do ato ou do negócio jurídico simulado, que ocultou um ato ou negócio jurídico real.

Nesse caso, desconsidera-se o simulado e tributa-se o real. É a aplicação prática do regime (e também do espírito) do Código Civil de 2002, com o fito de anular a falsidade não tipificada tributariamente e restaurar a realidade tipificada, com os seus consectários tributários próprios.

Por sua vez, na elisão, dado que inexiste negócio simulado, quando esse é desconsiderado não se desvela qualquer negócio real, tipificado e que era oculto. Resume-se ao expediente da "requalificação", criando um fato imponível não praticado ou mesmo intencionado.

Nessa senda, a cláusula antielisiva e o regramento que era previsto na MP 66/02, a par de trazer inovações materiais na esfera jurídica dos contribuintes, devia obedecer ao princípio da legalidade, com todas as limitações consectárias dessa incidência. Assim é que, nas palavras de James Marins [15], "a tipificação da antielisão não é somente regra de procedimento mas antes de tudo se apresenta como descrição de um fato jurídico para o qual se atribuem conseqüências materiais".

Previsível, portanto, que toda regulação da elisão seguramente deverá conter a descrição hipotética de uma conduta de conteúdo econômico à qual se atrela uma conseqüência.

Com efeito, àquele que praticar negócios jurídicos, ou mesmo atos, com o fito de elidir o fato gerador, se torna passível de sofrer conseqüências fiscais, sendo esse o escopo do arcabouço legal trazido pela inovação de tipo tributário ora descrito.

É neste ponto que a regra da obrigatoriedade do negócio menos complexo acaba imiscuída em todo o regramento da norma antielisão. Isso porque se mostra evidente que quanto menos complexo for o negócio jurídico praticado – referindo-nos aqui àquela complexidade pouco necessária ao sinalagma do mesmo e sem a qual o negócio é da mesma forma implementável, sendo essa complexidade, portanto, descartável – menos dúvidas suscitará à autoridade tributária sobre qual o fito da complexidade.

Assim sendo, diante de maior transparência, dificilmente se terá a incidência da norma antielisiva, ou seja, sem conseqüências fiscais funestas às partes.

Do contrário, quanto mais complexo esse mesmo negócio for, mais chances as partes terão de sofrer as conseqüências fiscais da norma antielisão, exatamente porque essa complexidade poderá trazer suspeitas da autoridade tributária acerca da finalidade dessa, se elisiva ou não.

Com efeito, tem-se que a regra material contida no parágrafo único do art. 116 do CTN se mostra pouco proveitosa para servir como cláusula antielisão, dada a sua generalidade.

O mesmo não se dava com o art. 14 da MP nº 66/02, ao inserir conceitos como "falta de propósito negocial", "abuso de forma", "forma mais complexa ou mais onerosa" que não está tão-somente preenchendo o ventre do parágrafo único do art. 116 do CTN, mas colocando-lhe parâmetros exatamente para lhe aproveitar o conteúdo, mesmo que assim o fazendo invada a esfera de competência da lei complementar.

Nesse sentido, mostra-se evidente que a existência de uma norma geral antielisão (como é o art. 116, § único do CTN) é pouco eficiente à vista de sua generalidade e margem para interpretação. A elisão fiscal somente pode ser combatida através da fixação de tipos específicos, objetivos, completos, direcionados para uma determinada conduta, exatamente como realizado através da edição da MP 66/02.

A cláusula geral tem o propósito de que o sujeito passivo renuncie a adotar práticas elisivas, de modo a renunciar à escolha entre as práticas civis lícitas que se afigurem mais econômicas ao seu dia-a-dia comercial. Visa combater aquele planejamento tributário criado pelo contribuinte exatamente para tornar mais racional – e por conseguinte econômica – a sua vida fiscal.

A distinção se dará pelos critérios que se mostram no auxílio dessa hermenêutica: a licitude ou ilicitude do ato ou negócio jurídico praticado. As tipificações do dolo, da fraude e da simulação no regime do Código Civil encerram necessariamente práticas de ilícitos civis, e portanto a "dissimulação" do parágrafo único do art. 116 do CTN tem como elemento nuclear a ilicitude e a nulidade dos atos ou negócios praticados.

Por sua vez na elisão não há ilícito civil ou penal, não há sequer ilícito tributário, pois o CTN não prescreve qualquer espécie de penalidade para a prática da forma elisiva.

A par disso, é que a MP 66/02, ao contrário do que fez o CTN, inseriu conceitos concernentes ao abuso de direito, ao abuso de forma e portanto remete a outra ordem de raciocínio, especialmente se consideradas as disposições do Código Civil de 2002, que trata do abuso de forma como ato ilícito (arts. 187 e 188), embora não se afigure como ato nulo mas meramente gerador de responsabilidade civil. Se o regime do Código Civil de 2002 for aplicável a essas relações tributárias, então a elisão decorrente de abuso de direito será considerada ato ilícito ensejador de responsabilidade civil aquiliana.

Assim é que não será da transgressão que surgirá a tributação: ao menos essa é a intenção do legislador, a preservar a higidez do art. 3º do CTN. Ademais, a elisão, por não se constituir em causa de nulidade negocial, não corrompe ou macula o ato ou negócio jurídico em sua substância civil ou comercial, mas tão-somente enseja a desconsideração administrativa que é causa para a adoção de uma ficção jurídica que exala efeitos tributários. Mesmo que a elisão seja enquadrada no regime de abuso de forma do Código Civil de 2002, ainda assim não passa de mero ato ilícito gerador de responsabilidade civil, não gera nulidades jamais.

2.2.A norma antielisão e a sua interpretação

A compreensão da norma antielisão se dá concorde a dicção do parágrafo único do art. 116 do CTN e a par da análise da tentativa imposta pelos arts. 13 a 19 da MP 66/02. Dispõe o parágrafo único do 116 que "A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária".

Para a assimilação do novel comando legal em todos os desdobramentos acima propostos, é necessário proceder em estudo compartimentalizado do texto da lei, assim sugerido por James Marins [16]:

i) regra formal ou de estrutura (ou regra de competência administrativa): faculta-se à autoridade administrativa desconsiderar atos ou negócios jurídicos;

ii) regra material: o contribuinte que praticar atos ou negócios jurídicos com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária poderá sofrer a desconsideração desses atos;

iii) regra de aplicabilidade normativa (regra de instituição e regulamentação): somente com observância dos procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária poderá ser promovida a desconsideração pela autoridade administrativa dos atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte.

Assim é que a um só tempo se atribui competência formal para a autoridade administrativa, tipifica-se a conduta do contribuinte considerada elisiva e fixa-se requisitos de aplicabilidade normativa para seu próprio texto, exsurgindo que a norma contém, tendo-se em um único texto, três distintos tipos de regras: regra formal, regra material e regra de aplicabilidade normativa.

No espectro formal: claro está que o texto complementar amplia as prerrogativas de autotutela da Administração Tributária, pois à competência fiscalizatória e declaratória adiciona competência para desconsiderar atos e negócios praticados pelo contribuinte.

Pelo espectro material: descreve condutas ao prever novas hipóteses comportamentais às quais atribui conseqüências administrativas e materiais de natureza tributária.

Isso fica bem evidente observando-se a MP 66/02. Os arts. 13 e 14 cuidavam de regras materiais (dimensão estática); os arts. 15, 16, 17, e 18, caput, tratam de aspectos formais (dimensão dinâmica) e os §§ 1º e 2º do art. 18 e o art. 19, estes sim, indicam o regime processual tributário (dimensão crítica).

2.3.Interpretação econômica

Inarredavelmente, com a instituição da norma geral antielisiva, o Estado busca, antes da subsunção do ato negocial no tipo tributário, seu verdadeiro intento econômico.

A interpretação econômica ganha vulto com o julgamento do caso Gregory vs. Helvering, em 1935, onde a Suprema Corte Americana decidiu pela tributação tomando por base os fatos e não a transação comercial ocorrida. A reboque desse leading case, emerge desconsideração do negocio, vislumbrando-se a intenção negocial dos contribuintes, ou como ficou consignada nos EUA, business purpose. [17]

Ruy Barbosa Nogueira, destaca como aspecto importante a consideração econômica, especialmente no campo dos impostos, tendo-se em vista que esses instrumentos de captação de riqueza, que incidem quase sempre sobre fatos econômicos por meio de categorias jurídicas, podem estar sendo distorcidos ou mal utilizados como pretensões de reduzir ou elidir tributações legítimas. Assim, a consideração econômica poderá, em certos casos, demonstrar a finalidade autêntica de dispositivos e impedir abusos.

Nesse sentido, ressalta HUCK: Na busca de maior segurança para o contribuinte, protegendo-o contra as investidas fiscais do Estado, já não se prega, na atualidade, uma interpretação exclusivamente econômica da norma tributária. [18]

Noutra banda, discorda Amilcar de Araujo Falcão ao dizer que "o método da interpretação econômica é perfeitamente adequado ao princípio da legalidade em matéria de fato gerador". Aduz ainda, que:

Em Direito Tributário, autoriza-se o interprete, quando o contribuinte comete um abuso de forma jurídica, a desenvolver considerações econômicas para a interpretação da lei tributária e o enquadramento do caso concreto em face do comando resultante não só da realidade do texto legislativo, mas também do seu espírito da mens ou retio legis. [19]

Nessa senda, o XIII Simpósio Nacional de Direito Tributário, realizado em São Paulo em outubro de 1998, sob o tema "Elisão e evasão fiscal", resolveu:

A assim denominada interpretação econômica não é acolhida pelo Direito Tributário Brasileiro, em razão do princípio da tipicidade, corolário do princípio da reserva absoluta de lei.

Essa resolução do XIII Simpósio foi tomada antes da Lei Complementar nº 104, de 10-1-01, que acrescentou o parágrafo único ao art. 116 do CTN. [20]

No entendimento de Coelho, argumenta que o discurso de isonomia pregado pelo ente arrecadador, no sentido de contribuintes em igualdade de condições arcarem com igual parcela de tributo, na verdade, revela-se como falácia, visto que o mercado preocupa-se antes de tudo com custos. A redução de capital disponível gera desemprego, desigualdade, ao contrário dos argumentos travados pelo Estado. [21]

2.4 .Poder sancionador administrativo e judicial

À luz da norma antielisiva, o poder sancionador administrativo se desvela na hipótese da desconsideração do negócio jurídico visando eliminar a possibilidade de um comportamento elisivo da qualidade dos descritos acima.

Nesse sentido poderá ser o ato administrativo declaratório ou constitutivo. Declaratório quando reconhece e formaliza a existência de relações jurídicas anteriores. Constitutivo quando cria, extingue ou modifica relações jurídicas, isto é, cria relações novas (constitutividade positiva) ou extingue (constitutividade negativa ou descontitutividade) ou modifica relações preexistentes (decontitutividade parcial ou constitutividade parcial).

Segundo James Marins [22], três aspectos devem ser seriamente observados nessa senda: 1) "o pronunciamento de desconsideração desconstitui o ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte"; 2) "o pronunciamento de desconsideração declara a obrigação tributária"; 3) " o pronunciamento de desconsideração constitui a obrigação tributária".

Ainda segundo o citado doutrinador, a primeira assertiva está correta, pois a desconsideração é inconciliável com a mera declaratividade. O ato administrativo de desconsideração promana eficácia desconstitutiva, embora para fins estritamente administrativos, do ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte que se enquadre na previsão material contida no parágrafo único do art. 116 do CTN.

Tem, portanto, o pronunciamento de desconsideração eficácia constitutiva negativa total ou parcial (modificada) do ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte e que contenha os elementos subjetivos previstos no parágrafo único do art. 116 do CTN.

A segunda e a terceira assertivas nos parece serem falsas. Em primeiro lugar porque a relação tributária material perseguida somente irrompe como efeito logicamente dependente da desconsideração. Não há aqui espaço para declaratividade, pois, em rigor, a obrigação tributária não chegou a nascer, em virtude da prática do ato ou negócio jurídico.

Somente a desconstituição encetada pela Administração Tributária, enquanto fenômeno estritamente endógeno, é que permite a constituição de nova relação jurídica, até então inexistente.

Não se pode falar com propriedade técnica em existência – antes da desconsideração – de relação tributária subjacente, pois para que se possa imaginar a necessidade jurídica de pronunciamento de desconsideração o ato ou o negócio jurídico praticado pelo contribuinte haverá de ter sido eficaz no sentido se empecer o nascimento da relação tributária. Se não foi eficaz e o enlace tributário caracterizado pela cópula deôntica entre o conceito da norma e o conceito do fato já se operou despicienda se torna a desconsideração.

Em segundo lugar porque na verdade o despacho de desconsideração não declara nem tampouco constitui obrigação tributária. A desconsideração, enquanto ato jurídico-administrativo desconstitutivo, não gera por si só o nascimento da obrigação tributária. O despacho de desconsideração não é "fato gerador" da obrigação tributária, mas mero antecedente lógico de outro ato administrativo que é o lançamento, agora sim, embora excepcionalmente da natureza constitutiva pois a chamada "requalificação" do fato é decorrente de uma ficção legal que reescreve a realidade de modo a fazer surtir de um fato não realizado aos mesmos efeitos jurídicos que decorreriam de sua realização. Requalifica, reescreve, mas não muda a realidade fática, nada acrescenta ao mundo real, mas meramente ao mundo jurídico e ainda assim exclusivamente no limitado campo tributário.

Assim se dá na exata medida em que somente a elisão eficaz pode, em determinadas situações, ensejar a desconsideração, e, portanto, se o ato ou o negócio com conseqüências elisivas foi eficaz o contribuinte jamais terá praticado o fato imponível da obrigação fiscal.

Por se tratar de fenômeno jurídico endógeno, a Administração Tributária ao reputar como inválida a operação realizada licitamente pelo contribuinte à luz dos sistemas jurídicos civis ou comerciais não faz desaparecer do mundo jurídico o contrato ou a operação societária realizada, mas tão-somente desconsidera sua existência para os limites da Administração Tributária e suas finalidades fiscais. Como o contribuinte – apesar do pronunciamento de desconsideração – permanecerá sem ter praticado o fato imponível da obrigação tributária, caberá, então, à autoridade administrativa, constituir a relação perseguida através do ato de lançamento. Essa é a síntese do poder administrativo sancionador.

Por sua vez o poder sancionador judicial vem escoltado pela possibilidade legal – como, in casu, a criação e inserção da norma antielisiva no ordenamento legal - e balizado pelas limitações constitucionais e, mais além, também legais.

É nesse aspecto que a distinção entre regre material, formal ou processual é determinante para o exame da competência para legislar uma vez que a fixação dessa prerrogativa tem sede constitucional e está diretamente relacionada com a matéria de ser legislada.

Pelo viés da Constituição Federal devem ser observados os art. 22 (competência privada da União), 24 (competência concorrente da União, dos Estados e dos Municípios), 24, §§ 1º e 2º (competência suplementar dos Estados), 25, § 1º (competência residual dos Estados), 30, incs. I e II (competência dos Municípios para legislar dos assuntos de interesse local e para legislar suplementarmente à legislação Federal e Estadual). A disciplina da competência tributária está disciplinada genericamente nos arts. 145 c/c o 150, I (estrita legalidade em matéria tributária), 146 (lei complementar em matéria tributária) e nos demais dispositivos que estão associados à competência legislativa dos entes tributantes enquanto cuidam da repartição da competência material tributária da União, Estados, Municípios e Distrito Federal.

Quanto ao parágrafo único do art. 116, a parte final diz que compete à lei ordinária a tarefa de disciplinar os procedimentos a serem observados pela autoridade administrativa quando da desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte. Não está, evidentemente, referindo-se a processo, pois não está cuidando de matéria pertinente à lide tributária, mas à fiscalização e lançamento.

A regra não visa a disciplina de possível conflito de interesses decorrente do despacho de desconsideração, mas aponta para momento logicamente antecedente, que é o campo do procedimento de lançamento.

Procedimento de lançamento e lide não se confundem. O procedimento é atividade de caráter inquisitório, investigativo, fiscalizatório, apuratório. É atividade preparatória da prática do ato de lançamento, o que significa dizer que fiscalizar, investigar e apurar não se representam pretensões em si mesmo consideradas, mas meros instrumentos para que se possa validamente alcançar através do lançamento a formalização da pretensão fiscal do Estado sobre a esfera jurídico-econômica do contribuinte.

Nesse sentido, consabido que são lavrados rotineiramente milhares de autos de infração federais, estaduais e municipais nos quais se apuram a existência de obrigações tributárias não cumpridas, se aplicam penalidades administrativas decorrente de seu descumprimento, e que se ensejam o recolhimento aos cofres públicos do resultado de suas apurações e penalizações sem que os obrigados promovam impugnações e disparem a litigiosidade. No desempenho desse mister muitas vezes os agentes administrativos lançam mão de presunções legais que têm o efeito de inverter o ônus da prova no procedimento, como as pautas fiscais e até mesmo os "fatos geradores presumidos" que chegaram a alcançar um status constitucional para que ganhassem valor jurídico (praesumptio iuris tantum e não mera praesumptio facti ou praesumptio hominis ou mesmo ficção legal). Mesmo esse modo do atuar administrativo, embora discutível, não altera a natureza procedimental.

Não obstante ao caráter procedimental o parágrafo único do art. 116 também soma-se o conteúdo substantivo, pois tipifica materialmente condutas do contribuinte das decorrerão conseqüências tributárias formais e materiais.

Da regra embutida no dispositivo em comento, extrai-se o seguinte sentido: se o contribuinte praticar atos ou convolar negócios jurídicos com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, estes atos ou negócios poderão ser formalmente desconsiderados e dessa desconsideração extrair-se-ão conseqüências fiscais substantivas, materiais. A materialidade do conteúdo normativo é clara: da prática de certos atos ou negócios decorre uma conseqüência tributárias formal e outra material, nessa ordem.

Desse modo, enquanto norma geral em matéria de legislação tributária, o parágrafo único do art. 116 ao tempo em que se abre portas para o advento das legislações especiais, fecha o espaço de sua atuação. O novo dispositivo ao remeter à lei ordinária a competência para estatuir "procedimentos", limita o campo legislativo infracomplementar às lindes meramente formais.

É dizer, autoriza unicamente à lei ordinária da União, Estados, Municípios ou Distrito Federal que disciplinem procedimentos e – a contrario sensu – proíbe iniciativas que criem novas regras materiais, isto é, desautoriza que novas hipóteses legais de condutas sejam legisladas para além daquela já esculpida no corpo do CTN.

O campo material esgota-se, a partir do texto do próprio dispositivo, na regra geral posta no CTN – prática pelo contribuinte de atos ou negócios jurídicos com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária – mas não desonera a União, Estados, Municípios e Distrito Federal de promover através de lei ordinária a instituição das hipóteses pelas vias legislativas locais (Congresso Nacional, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais).

2.5.Desconsideração da personalidade jurídica

No Brasil, Antônio Roberto Sampaio Doria [23] o mérito de ter tratado pioneiramente do tema da diferenciação entre elisão e evasão fiscal, em 1970. Não obstante a existência das referidas figuras – elisão, evasão, simulação, negócio jurídico indireto, sonegação, conluio, fraude – tem-se ainda a figura da "desconsideração da personalidade jurídica", que se fundamenta no "abuso do direito". Por ela, desconsidera-se a pessoa jurídica, para o fim de atribuir o cumprimento da obrigação à pessoa física do administrador (sócio, diretor, titular), tendo em vista que o ato ou negócio realizado favorece não a pessoa jurídica (o que seria correto), mas a pessoa física do administrador que acabou se beneficiando do patrimônio ou da renda em questão.

Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio da finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o Juiz determinar que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigação que sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios de pessoa jurídica (Código Civil, Lei nº 10.406/02, art. 50)

É certo que o ato administrativo de desconsideração opera efeitos no âmbito da Administração Tributária, de modo que a desconstituição administrativa do ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte somente produz modificações endógenas, endotributárias, no status jurídico do contribuinte, não alcançando relações exógenas.

Deve-se indagar, no entanto, o que deve ser considerado como "Administração Tributária" para fins da fixação dos limites administrativos dos efeitos do ato desconsideratório. Ao menos quatro critérios podem ser apresentados quanto a extensão de seus efeitos: 1) critério do tributo: unicamente com relação ao tributo objeto da fiscalização tributária; 2) critério orgânico limitativo: tão-somente com relação ao órgão fazendário ao qual se vincula a autoridade administrativa que a pronunciou; 3) critério orgânico ampliativo: com relação ao ente tributante e todos os seus órgãos fazendários; 4) critério unitário: com relação a Administração Tributária como um todo.

Para critério do tributo a desconsideração teria seus efeitos limitados exclusivamente ao tributo sob fiscalização.

Não está, porém, ao alvedrio do legislador a adoção de qualquer dos critérios acima noticiados. O critério a ser consagrado deve ser apto para conferir coerência ao sistema. Assim, por exemplo, se a desconsideração do ato ou do negócio jurídico implica a identificação de crédito tributário com relação a determinado tributo, mas em contrapartida gera redução ou direito a repetição de outro imposto, não é ilícito ao órgão fazendário sustentar, no âmbito de sua competência, que somente o resultado que lhe é conveniente deva ser considerado.

Também os terceiros juridicamente interessados nos atos ou negócios objetos da desconsideração administrativa devem sofrer os efeitos tributários da desconsideração estritamente no âmbito de sua própria esfera jurídica. Não poderão ser considerados responsáveis, a qualquer título, pelos tributos dos quais não sejam contribuintes. A desconsideração de negócios bilaterais não altera a titularidade passiva da dívida tributária, exceto quando o objetivo da desconsideração seja alcançar o verdadeiro responsável pela obrigação tributária.

A desconsideração – por ser endógena – também não altera documentos civis ou comerciais válidos, como estatutos, acordos de acionistas, contratos sociais, formalizações perante a Junta Comercial ou Registro Civil. Também não altera, per se, o valor dos documentos particulares entre os respectivos contraentes, como contratos de prestação de serviços ou de compra e venda de bens móveis, imóveis, aquisição de valores mobiliários, mútuos ou leasings.

Na hipótese de os contraentes pretenderem torná-lo inválidos devem lançar mão dos instrumentos consensuais (transações, distratos etc.) ou mesmo judiciais. Mas há diferenças se se tratar de desconsideração com base em simulação ou com base em abuso de forma. A simulação é causa civil da nulidade do ato e o abusa de forma não. Então, se o ato ou negócio jurídico foi simulado, poderá ser declarado nulo judicialmente, nulidade que pode ser pode ser invocada por quem tiver interesse jurídico nesse pedido (Código Civil de 2002, art. 167). Já a desconsideração por abuso de forma não enseja a nulidade, mas pode gerar pedido do eventual lesado (Código Civil de 2002, art. 167).

Vários problemas decorrerão do silêncio quanto ao tema vertido na MP nº 66/02 (que nesse tocante não foi convertida em lei) que deve conduzir a intermináveis disputas interpretativas.

Ainda que se argumente a fixação de critério unitário somente possa ser levada a efeito por lei complementar, de caráter nacional, caberia à lei ordinária federal (nesse caso a medida provisória) estabelecer ao menos o critério orgânico, se limitativo ou ampliativo.

Além disso, insista-se, como o parágrafo único do art. 13 da MP 66/02 excluía expressamente as hipóteses de dolo, fraude ou simulação, remanescerá sempre a questão da antinomia entre esse dispositivo e o parágrafo único do art. 116 do CTN que somente permite a desconsideração de atos dissimulatórios.

2.6.Crítica à inovação da LC 104 e à norma antielisiva

A MP 66/02, a toda evidência, no que se referia à norma antielisiva, representava criação de nova e genérica hipótese de incidência de tributos que têm por raiz a força excepcionalmente criadora da ficção jurídica, criatura que põe em xeque o princípio da legalidade, enfraquece a segurança da relação tributária, afronta os axiomas elementares do Direito Tributário, além de outras impropriedades.

Causa, por vezes, perplexidade, não só nos contribuintes, mas também nos operadores do Direito Tributário.

Por primeiro, diga-se que há problemas na compatibilização entre a norma do parágrafo único do art. 116 do CTN e sua tentativa de regulação federal pela MP 66/02. Pois o CTN ao cuidar de dissimulação restringiu seu plexo de incidência à conceituação material e à disciplina formal da simulação, simulação relativa, conhecida pela doutrina como dissimulação.

Em outro campo completamente distinto, a MP 66/02 disciplinava hipóteses de abuso de direito, utilizando-se de conceitos como abuso de formas e business purpose test. Nesse caso, registra-se insustentável relação antinômica entre o CTN e a medida provisória referida. Se realmente o propósito legislativo da Lei Complementar nº 104/01 ao inserir o parágrafo único do art. 116 do CTN foi o de criar uma "norma geral antielisão" pode-se, no mínimo, afirmar que se houve o legislador com grande infelicidade, confundiu antielisão com anti-simulação.

Parece ter havido um sério erro que se tentou corrigir através da MP 66/02, que igualmente é o meio equivocado para tanto.

Tecnicamente defeituosa, a cláusula do CTN para servir como regra geral antielisão corrobora-se indiscutivelmente pelo art. 167 do Código Civil de 2002, que merece destaque:

É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

Confunde-se novamente as figuras simulação e elisão. Dissimulação, portanto, é simulação e simulação não é elisão, logo o parágrafo único do CTN não cuida de elisão, mas de simulação. Esse é, portanto, um sério defeito dessa legislação, fomentado já na sua gênese.


3. REGULAMENTAÇÃO DA NORMA ANTIELISIVA

3.1.A Medida Provisória 66/02

A criação da norma antielisiva se deu, como já se disse anteriormente, ab initio pela inserção do parágrafo único no art. 116 do CTN pela Lei Complementar 104 de 2001. Desse dispositivo já se tratou exaustivamente acima.

Entretanto, a referida norma necessita da sua regulamentação, pois não se trata de norma auto-aplicável, delegando a observância de procedimentos a serem estabelecidos em lei, [24] que acabou tendo uma tentativa, no ano seguinte, através da Medida Provisória 66, que se tornou a Lei 10.637/2002 (não no tocante a regulamentação da norma antielisiva).

No entanto, no que se referia a regulamentação da norma Antielisão, o texto da Lei 10.637/02 foi silente, permanecendo o parágrafo único do art. 116 do CTN não regulamentado.

3.2.A desconsideração da personalidade jurídica na MO 66/02

Quando exsurgir a necessidade de desconsideração de ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte, a teor do parágrafo único do art. 116 do CTN, a autoridade tributária deverá obedecer ao rito procedimental próprio. Vejamos aqui o modelo proposto pela MP 66/02, de natureza inquisitória e não processual.

Esse é o roteiro que deveria seguir a autoridade tributária para aplicar a desconsideração da personalidade jurídica no caso concreto, segundo James Marins [25]:

a) início do procedimento de fiscalização (Mandado de Procedimento Fiscal – MPF, emitido por Coordenadores, Superintendente, Delegado ou Inspetor);

b) notificação prévia ao contribuinte (Auditor-Fiscal);

c) relatório de desconsideração (Auditor-Fiscal);

d) notificação ao contribuinte do relatório de desconsideração (Auditor-Fiscal) e oportunidade de manifestação para o sujeito passivo (contribuinte);

e) representação de desconsideração (Auditor-Fiscal);

f) despacho de desconsideração/requalificação (de competência do Coordenador, Superintendente, Delegado ou Inspetor que tenha emitido o MPF);

g) ato de lançamento (Auditor-Fiscal);

h) auto de infração (Auditor-Fiscal);

i) impugnação administrativa (contribuinte);

j) processo administrativo nos termos do Dec. 70.235/72 (Delegacias de Julgamento, Conselhos de Contribuintes, Câmara Superior de Recursos Fiscais).

Como particularidade se destaca que o rito acima tem a natureza jurídica de garantia formal da relação jurídico-tributária. Isso porque preserva a Fazenda Pública, ao evitar a prática de atos administrativos de gestão fiscal ilícitos, ao passo que ampara o contribuinte, ao assegurar o cumprimento de garantias mínimas de validade procedimental, como do próprio texto do procedimento se conclui.

Esse roteiro se norteia pelo conjunto de princípios aplicáveis ao procedimento segundo a classificação que adotamos em nosso Direito Processual Tributário Brasileiro. Assim é que devem ser observados os princípios gerais do procedimento e do processo, que são legalidade objetiva, vinculação, oficialidade, verdade material, dever de investigação e dever de colaboração e os princípios específicos do procedimento, que são inquisitoriedade, cientificação, formalismo moderado, fundamentação, acessabilidade, celeridade e gratuidade.

3.3.Os critérios e o procedimento de desconsideração da personalidade jurídica

O pressuposto inicial é a emissão de Mandado de Procedimento Fiscal (MPF) na forma como regulamentado pelo Decreto nº 3.724, de 10 de janeiro de 2001. Assim tem início o processo de desconsideração da personalidade jurídica, mandado esse emanado de ação fiscalizadora instaurada anteriormente.

A emissão da MPF é da competência do Coordenador-Geral, Superintendente, Delegado ou Inspetor, que integre a estrutura de cargos e funções da Secretaria da Receita Federal. Nesse mandado consta, sob pena de nulidade formal (entre outros dados): a indicação do tributo ou da contribuição alvo do procedimento fiscalizatório, o correspondente período de apuração, e o prazo para realização da fiscalização.

Calha ressaltar que concorde o princípio da cientificação, antes da prática de qualquer providência, devem obrigatoriamente os Auditores-Fiscais competentes notificar o contribuinte através de termo de início de fiscalização [26].

Após, segue-se a representação de desconsideração, embasada nas provas colhidas pelo fiscalizador. Esta representação, contudo somente poderá ser encaminhada à autoridade competente para apreciá-la após a notificação prévia do contribuinte (princípio da cientificação) que terá o prazo de 30 (trinta) dias para os esclarecimentos e a juntada de provas que julgar necessários (arts. 16, § 1º da MP nº 66/02).

Portanto, já se vê que deverão ser produzidos pelo Auditor-Fiscal competente, em momentos distintos, dois relatórios: o relatório inicial e o relatório de representação.

Formado o relatório de representação, cumpre ao Auditor-Fiscal promover a nova notificação ao contribuinte. Visa oportunizar defesa ao contribuinte e deverá obrigatoriamente possibilitar ao contribuinte o conhecimento integral do relatório de representação no qual conste todos os elementos indicativos que permitam ao sujeito passivo apreender com exatidão quais são as motivações objetivas e subjetivas que ensejam a pretensão desconsideratória (art. 16, § 1º, segunda parte, da MP nº 66/02). O princípio da cientificação no campo fiscalizatório oportuniza ao contribuinte que se manifeste quando julgue necessário ou quando instado a colaborar com a Administração Tributária.

Nesse sentido, a par do contraditório, ao notificar o contribuinte de que a Fazenda Pública pretende desconsiderar seus atos ou negócios jurídicos por entender que poderiam ter sido realizados de forma menos complexa ou menos onerosa ou ainda que tivesse sido praticado um negócio jurídico indireto, isto é, ao estabelecer a "suposição" de que foram praticados com finalidade elisiva, se está presumido uma realidade subjetiva ("intenção" do contribuinte) e provocando o sujeito passivo para que prove o contrário.

Segue-se a representação de desconsideração propriamente dita e somente será encaminhado à autoridade que emitiu o MPF se o Auditor-Fiscal responsável permanecer convencido da necessidade e viabilidade técnica da desconsideração, ainda que tenha o sujeito passivo usado da faculdade de se manifestar quanto a isso. Nesse caso tais argumentos serão incorporados ao relatório, que servirão de base aos fundamentos de sua representação de desconsideração.

Concorde a lei, a representação deverá conter relatório (relatório de representação) circunstanciado do ato ou negócio praticado e a descrição dos atos ou negócios equivalentes ao praticado (princípio da fundamentação do to administrativo) e deverá ser instruída com os elementos de prova colhidos pelo servidor, no curso do procedimento de fiscalização, até a data da formalização da representação e os esclarecimentos e provas apresentados pelo sujeito passivo (art. 15, § 3º, incs. I e II).

A nulidade da representação surge quando a mesma é apresentada não fundamentada ou fundamentada em elementos que não foram submetidos à apreciação do contribuinte quando da notificação prévia. Não é lícito à autoridade tributária acrescentar elementos novos após a oitiva do sujeito passivo. Se após a notificação prévia ao contribuinte surgirem novos elementos relevantes, deverá o contribuinte ser cientificado novamente de modo que lhe seja oportunizado manifestar-se nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 16 da MP nº 66/02.

Segue-se assim o despacho de desconsideração, que será dirigido à mesma autoridade administrativa responsável pela ordem de instauração do procedimento de fiscalização. Isto é, ao Coordenador-Geral, Superintendente, Delegado ou Inspetor, conforme o caso competirá receber e apreciar a representação e exarar o ato ou despacho de desconsideração. Cumpre esclarecer que a MP nº 66/02 utiliza-se das duas locuções com o mesmo sentido, "ato" de desconsideração no caput do art. 16 e "despacho" de desconsideração no caput e § 2º do art. 17 e no § 2º do art. 18.

Pelo teor do art. 17 da medida provisória sub examen, esse despacho, além de sua fundamentação, deve conter necessariamente: I – a descrição dos atos ou negócios jurídicos praticados; II – a discriminação dos elementos ou fatos caracterizadores de que os atos ou negócios jurídicos foram praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária; III – a descrição dos atos ou negócios equivalentes aos praticados, com as respectivas normas de incidência dos tributos (requalificação); IV – o resultado tributário produzido pela adoção dos atos ou negócios equivalentes referidos no inciso III, com especificação, por tributo ou base de cálculo, da alíquota incidente e dos encargos moratórios.

A autoridade a quem dirigido o despacho tem a responsabilidade de fundamentar a sua decisão. Assim, cumpre à autoridade que exara o ato de desconsideração justificar porque razões os esclarecimentos e as provas apresentados pelos contribuintes não foram suficientes para infirmar a presunção que se estabeleceu acerca da pratica de atos "dissimulatórios".

Isso porque se os esclarecimentos e provas trazidos aos autos de procedimento pelo contribuinte não forem ao menos apreciados, padecerá de nulidade o despacho de desconsideração por falta de fundamentação.

Com efeito, o sujeito passivo não pode ver seus atos jurídicos lícitos serem desconsiderados com base em "presunção de falta de propósito negocial" ou "presunção de abuso de forma" sem ao menos saber formalmente a razão pela qual suas justificativas e provas não forem suficientes, condição que prejudica seu posterior direito de defesa. De nada serve a lei prever explicitamente a oportunidade de apresentação de esclarecimento e provas que possam desfazer a presunção legal se a autoridade administrativa não tiver a obrigação de apreciá-las.

Tem-se assim, em seguida, o ato de lançamento existente no regime jurídico da MP nº 66/02, que os elenca em dois tipos. O primeiro ato de lançamento está previsto no § 2º do art. 17 ao disposto que o sujeito passivo terá o prazo de trinta dias a partir da data que for cientificado do despacho de desconsideração para efetuar o pagamento dos tributos acrescidos de juros e multas de mora.

O segundo ato de lançamento estava previsto no art. 18, ao prescrever que a falta de pagamento "dos tributos e dos encargos" previstos no § 2º do art. 17 "ensejará o lançamento do respectivo crédito tributário, mediante a lavratura de auto de infração, com aplicação de multa de ofício".

Veja-se que esses dispositivos não cuidavam de modalidade de lançamento por declaração (art. 147 do CTN), pois o ato administrativo não tem matriz em qualquer espécie de declaração do contribuinte; tampouco pode-se falar em lançamento por homologação ou auto-lançamento (art. 150 do CTN), pois não se dá in casu qualquer hipótese de antecipação de pagamento.

Tal nos remete obrigatoriamente ao lançamento de ofício (art. 149 do CTN). Nesse caso, a hipótese da desconsideração de atos ou negócios jurídicos como fundamento para a realização do ato de lançamento somente se pode escorar em um dos nove incisos do art. 149 do CTN.

Sempre tem-se presente que o parágrafo único do art. 13 da MP nº 66/02 expressamente afasta do regime jurídico da desconsideração as hipóteses de dolo, fraude ou simulação, estas sim condutas que se afiguram como atos ilícitos. Se não houver ato ilícito, o lançamento de ofício que decorre do despacho de desconsideração é o previsto no inc. I do art. 149 do CTN e carece de título jurídico para incluir juros ou multa de mora e, portanto, se afiguraria inaplicável a Segunda parte do § 2º do art. 17 da MP nº 66/02. Isso se dá porque o lançamento de ofício nesse caso é de caráter constitutivo e não meramente declaratório.

Constitui modificando a realidade para tomar como existente um fato imponível que não foi e jamais será praticado pelo contribuinte porque esse adotou formas elisivas e lícitas (elisão eficaz) que produziram o efeito de evitar (e não de dissimular) a ocorrência do fato imponível ou de algum dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

Assim é que se percebe que no primeiro momento a fazenda usa de presunção (da falta de propósito negocial ou do abuso de forma decorre a presunção iuris tantum de que o ato ou negócio jurídico foi praticado para fins de elisão fiscal) e em um segundo momento de utiliza de uma ficção legal (ao dar como praticado um fato gerador jamais produzido pelo sujeito passivo). Dessa ficção legal – que decorre logicamente do despacho de desconsideração – é que nasce, estritamente para fins fiscais, a obrigação tributária.

Em seguida, então, tem-se o Auto de infração propriamente dito. Interpretando-se o regime da MP nº 66/02, isso nos conduz à ilação de que no ato de lançamento de ofício previsto no § 2º do art. 117 não é lícito conter a imposição de juros ou multa de mora (consideradas as ressalvas feitas acima sobre a eventual ilicitude do ato), pois a obrigação tributária irrompe exclusivamente do despacho de desconsideração que enseja a adoção da ficção legal concernente na existência da prática de fato imponível jamais praticado realmente pelo contribuinte, pois a ficção legal se apresenta como técnica legislativa que permite considerar verdadeira uma situação sabidamente falsa, não se pode tornar real aquilo que não é, embora conduza ao mesmo resultado.

Equivale dizer, tudo isso, que embora o fato imponível ou de algum dos elementos da obrigação tributária jamais tenha sido praticado (ou se configurado na forma como descrito pelo despacho de desconsideração), produz-se equivalente efeito tributário por força exclusivamente da incidência da regra ficcional.

Veja-se que ao partir da Fazenda Pública do pressuposto de que realmente ocorreu a prática de atos ou negócios jurídicos de efeitos elisivos isso significa que a obrigação tributária não chegou a nascer (pois se tivesse nascido não teria havido ato ou negócio elisivo eficaz) e portanto, mesmo se desconsiderados esses atos ou negócios o fato imponível permanecerá sem ter sido materialmente praticado pelo contribuinte.

Portanto, do ato administrativo desconstitutivo (despacho de desconsideração) não nasce a obrigação tributária, mas sim da aplicação de ficção legal requalificadora que considera como havido o fato inexistente (e constitui relação tributária materialmente falsa, mas que se pretende seja acolhida como verdadeira para fins estritamente fiscais). Segundo James Marins [27]:

Traduzir isso com singeleza é dizer-se que a Fazenda Pública serve-se da ficção legal que considera ter-se realizado o fato jurídico tributário enquanto na verdade foi realizado o ato elisivo, não torna inexistente o fato inexistente mas alcança o mesmo resultado tributário.

3.4.As limitações do poder discricionário da administração

Em que pese a natureza inquisitória do procedimento de investigação tributária, o contraditório e os princípios administrativos e constitucionais mais comezinhos garantem ao contribuinte certa segurança de que não se tornará vítima de abusos e exageros por parte do Fisco.

Nesse sentido, manifesta sua preocupação Machado, que enfaticamente adverte:

Qualquer que seja a posição que se adote, tem-se de admitir que uma norma geral antielisão nada mais é do que um reforço aos poderes da Administração Pública. Se colocada em texto de lei complementar pode ter sua constitucionalidade contestada, pois colide com o princípio da legalidade que tem com um de seus desdobramentos essenciais a tipicidade, vale dizer, a exigência de definição, em lei, da situação específica cuja concretização faz nascer o dever de pagar tributo. [28]

Claro está que a norma antielisiva acabou por relativizar essa presunção, mas tenha-se em mente que mesmo no procedimento de desconsideração da personalidade jurídica há a amplitude da defesa do contribuinte, como acima se viu. Ou seja, ainda com a inovação lega aqui tratada, há importantes limitações à discricionaridade do poder administrativo.

Com efeito, entre as principais garantias de higidez da relação jurídico-tributária estão a legalidade, irretroatividade e a anterioridade. São as conhecidas garantias dos contribuintes. Estes princípios expressam, simultaneamente, as condições mínimas de aceitabilidade jurídica da relação jurídica e os standards mínimos de sua aceitabilidade social. Tributo cuja instituição seja presidida pela legalidade estrita (tipicidade), irretroatividade, pela anterioridade, pela isonomia e pela capacidade contributiva é tributo eficaz; sua hígida instituição protege não apenas o contribuinte, mas a Fazenda Pública protege a manutenção do erário e, portanto, fortalece o próprio supedâneo econômico do Estado de Direito.

A distorção negativa dessa presunção ensejará a lide de pretensão insatisfeita ou a lide de pretensão resistida. Na pior hipótese, a sonegação. Por sua vez a tributação sadia, limpa, transparente, isenta de impurezas – jurídica – é fator que interessa não apenas aos contribuintes, mas à Fazenda, à sociedade, ao Estado Constitucional e Democrático de Direito.

Corolário disso é que essas garantias – do Estado e do contribuinte – se inserem no campo das limitações constitucionais ao poder de tributar, consoante expressão consagrada por Aliomar Baleeiro, e grafadas constitucionalmente no art. 150, incisos I e III, letras "a" e "b". Evitam que aqueles que temporariamente exerçam o "poder de tributar" dele excedam e comprometam permanentemente o equilíbrio do contrato social tornado corpóreo através da Constituição escrita e gravem com risco o Estado de Direito.

Nesse aspecto, se a cláusula antielisão contém regra material consistente na descrição de um fato (praticar atos ou negócios jurídicos com a finalidade de dissimular...) ao qual atribui a conseqüência fiscal que impõe a constituição de uma dívida tributária; se, portanto cria uma classe aberta de fatos geradores supletivos, suplementares, sucedâneos ou sub-rogatórios, então reclama a observância dos princípios constitucionais da legalidade, irretroatividade, anterioridade, isonomia e capacidade contributiva.

Com respeito ao princípio da legalidade, a sua observância deve partir de uma análise que contemple as variadas facetas do mesmo fenômeno. Deve o intérprete indagar, em primeiro lugar, qual o veículo normativo é formalmente competente para introduzir o preceito antielisivo no sistema tributário, em seguida deve-se saber qual é ou quais são as pessoas políticas habilitadas constitucionalmente a fazê-lo. Depois, deve-se perquirir se o conteúdo material dessa lei se concilia como regime constitucional tributário e ao final indaga-se quanto a eficácia da tributária no tempo tanto sob o ponto de vista externo, das limitações constitucionais, como sob o ponto de vista de suas próprias prescrições temporais (vacatio legis, regulamentação etc.).

Veja-se ademais que a lei complementar, embora tenha a função de fixar normas gerais não tem competência constitucional para instituir tributos (exceto nos casos previstos constitucionalmente e que não se aplicam à hipótese em exame). A competência instituidora é privativa das pessoas políticas dotadas de competência tributária (União, Estados, Municípios e Distrito Federal).

Como a Lei Complementar nº 104/2001 supostamente extraiu do sistema tributário da Constituição Federal de 1998 uma nova hipótese supletiva de incidência tributária, essa nova hipótese demanda não apenas sua regulamentação, mas sua instituição através dos veículos normativos locais que devem obediência à "norma geral" do parágrafo único do art. 116 do CTN.

Assim é que, por exemplo, a instituição pela União do Imposto sobre Renda deve obedecer às cláusulas gerais dos arts. 43 e seguintes do CTN; que a instituição do ICMS, de competência dos Estados, deve atender às prescrições da Lei Complementar 87/96 e o Imposto sobre Serviços, de esfera municipal, deve ser instituído localmente com obediência às disposições do Decreto-Lei 406/68. A lei complementar adquire no mínimo o valioso status de norma geral de segurança que se interpõe entre a Constituição e a instituição de hipóteses normativas tributárias em todas as esferas fazendárias.

Portanto é possível concluir que a natureza da Lei Complementar 104/2001 é de norma geral em matéria de legislação tributária (art. 146 da CF) enquanto que a MP nº 66/02 continha dupla faceta, pois operava tanto como norma jurídico-tributária em sentido estrito (norma instituidora de hipótese normativa material com fulcro do CTN), como também surgia na condição de norma jurídico-tributária em sentido amplo (de caráter formal), que regulamenta a atribuição de competência funcional da autoridade administrativa (procedimento para promoção da desconsideração de atos ou negócios, que é antecedente lógico do proceder fazendário destinado à tributação das condutas elisivas).

Impende também que se examine se além da lei ordinária podem as medidas provisórias operar validamente como veículos introdutores de normas disciplinadoras do parágrafo único do art. 116 do CTN, pois ainda que gozem de "força de lei" as MPs têm hoje competência material e formal limitadora por força da Emenda Constitucional nº 32 de setembro de 2001.

Nesse sentido, a par do §1º do art. 62 da Constituição Federal de 1988, veja-se que a regra contida no §2º admite a utilização de medidas provisórias que impliquem a instituição e a majoração de tributos desde que respeitado o princípio da anterioridade e desde que seja convertida em lei até o último dia do exercício financeiro em que foi editada. Portanto, ainda que admitida constitucionalmente a utilização da medida provisória como veículo normativo adequado para a matéria contida nos arts. 13 a 19 da MP nº 66/02, deveria ser enfrentada a limitação eficacial referente ao princípio da anterioridade e também as questões que podem ser suscitadas com relação a irretroatividade.

Não obstante, o parágrafo único do art. 116 do CTN, na condição de norma geral com conteúdo material e não aquinhoada com função instituidora da nova hipótese normativa supletória, prerrogativa essa das leis ordinárias da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, não produz qualquer efeito jurídico até o advento da norma instituidora/regulamentadora, no caso a MP 66/02 tentou fazer as vezes de regulamentação, acabando engavetada no que tangia à norma antielisiva.


4. Considerações à guisa de conclusão

Procurou-se demonstrar criticamente a impropriedade da inovação tentada pela legislação provisória. Em verdade, ciente o ente administrativo que o planejamento tributário se encontrava sendo usado como via de economia fiscal pelos contribuintes mais diligentes, usou-se da norma antielisão especialmente para buscar uma medida de vedação ao planejamento tributário.

Portanto, o ente público buscou quedar a tentativa de economia fiscal na sua gênese, engendrando norma geral que busca impedir essa tentativa do contribuinte.

Igualmente, a MP 66/02, à toda evidência, representava criação de nova e genérica hipótese de incidência de tributos que têm por raiz a força excepcionalmente criadora da ficção jurídica. Em verdade, nessa senda o ente público tentava extrapolar mesmo os seus objetivos iniciais, por si só curiosos: tentou vedar o planejamento tributário, mas acabou criando uma figura que coloca situação delicada a observância ao princípio da legalidade, enfraquece a segurança da relação tributária, afronta os axiomas elementares do Direito Tributário, além de outras impropriedades.

Ademais, na norma instituidora ainda se confundiu as figuras da simulação e da elisão, de modo a se criar quase que uma norma antisimulação quando se queria criar norma antielisão.

É dizer, a norma antielisão consubstancia falsa vedação ao planejamento tributário uma vez que não cumpre o fim para o qual foi proposta. Trata da figura da elisão tributária, mas para combatê-la cria instrumentos que dão excessivo e extremamente subjetivo poder às autoridades tributárias.

No final das contas, transfere a responsabilidade de discernir entre a tentativa de elisão e a simples positivação de negócio jurídico complexo (que poderia redundar em elisão) totalmente à autoridade tributária, fato que certamente redunda em um maior número de impugnações dos sujeitos passivos e ainda, transfere o debate tributário da segurança dos princípios constitucionais e tributários para a subjetividade dos escaninhos do Fisco.

Tem-se assim que o planejamento tributário permanecerá existindo, mesmo com o advento das normas antielisão. Seja por mera pontualidade e diligência do contribuinte, seja pelo desejo de praticar a elisão.

Na outra ponta, deu-se ao fiscal tributário excessivo poder, inclusive de desconsiderar os mais comezinhos princípios constitucionais e tributários, sempre no intuito que nos últimos anos tem sido a linha mestra do Fisco: o aumento de arrecadação.

Claro que o contraditório permite ao sujeito passivo desdobrar a sua defesa inclusive quando questionado sobre o negócio jurídico que operou e gerou elisão. Entretanto, permitir a lei a fixação de critérios para declarar os negócios entre os contribuintes, administrativamente, como ficções que visam a elisão, nos parece demasiado exagero, uma vez também que é consabido que em sede administrativa nem sempre as mais fundamentadas razões encontram eco e são acolhidas, seja por sentimento de emulação da autoridade administrativa ou mesmo pela prática iterativa de se negar o direito aquele que faz jus, em nossa nação.

Portanto, no nosso sentir, para combater o planejamento tributário criou-se um monstro maior que a própria sangria que talvez este instituto estivesse causando ao Fisco. Mostro este que pisoteia a legalidade, fere a liberdade e coloca o cidadão comum em situação curiosa: não mais poderá eleger maneiras de economizar fiscalmente, nem aquelas permitidas por lei, circunstância essa que, diga-se, trespassa o limite do razoável e se mostra teratológica.


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Notas

01 CANTO, Gilberto Ulhôa. Elisão e evasão fiscal. Caderno de pesquisas tributárias, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 13, p. 34, 1988.

02 MALERBI, Diva. Elisão tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. p. 13 e 75. apud CANTO, Gilberto Ulhôa. Elisão e evasão fiscal. p. 34

03 GOMES DE SOUZA, Rubens. Compendio de legislação tributaria. 4ª. Ed. São Paulo: Resenha Tributária, 1982. p. 56.

04 Segundo Piero Villani, em Caderno de Pesquisas Tributárias nº 13/573-660 (São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1988).

05 CANTO, Gilberto Ulhôa. Elisão e evasão fiscal. In: Caderno de Pesquisas Tributárias, nº 13. p. 49-50

06 MARINS, James. Elisão Tributária e sua Regulação. São Paulo: Dialética, 2002. p. 31.

07 CARVALHO, Cristiano. Breves considerações sobre elisão e evasão fiscais. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães. (org.). Planejamento tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 58.

08 VAZ, Carlos. Evasão tributaria. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 87.

09 MALKOWSKI, Almir. Planejamento tributário e a questão da Elisão fiscal. Leme: De Direito, 2000. p. 41.

10 MARINS, James. Obra citada. p. 33.

11 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Norma antielisão é incompatível com o sistema constitucional brasileiro. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. O planejamento Tributário e a lei complementar 104. São Paulo: Dialética, 2002. p. 123/125.

12 MACHADO, Hugo de Brito. A norma antielisão e o principio da legalidade – análise crítica do parágrafo único do art. 116 do CTN. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. (org) O Planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2002. p. 111.

13 Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – soberania nacional;

II – propriedade privada;

III – função da propriedade;

IV – livre concorrência;

....................

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

14 HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. São Paulo : Atlas, 13ª ed. 2004, p. 36

15 PAULSEN, Leandro. Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à luz da Doutrina e Jurisprudência. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 635.

16 MARINS, James. Elisão Tributária e sua Regulação. São Paulo: Dialética, 2002. P. 59.

17 MARINS, James. Elisão Tributária e sua Regulação. São Paulo: Dialética, 2002. P. 52.

18 ESTRELLA, André Luiz Carvalho. A norma antielisão Revisitada: Art. 116, parágrafo único, CTN. In:: PEIXOTO, Marcelo Magalhães. (org.). Planejamento tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 125.

19 HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão: rotas nacionais e internacionais. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 328.

20 FALCÃO, Amilcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 18 e 32.

21 Art. 104. ....................................................................................

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

22 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Limites atuais do planejamento tributário. In: ROCHA, Valdir de Oliveira. (org) O Planejamento tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2002. p. 283.

23 MARINS, James. Elisão Tributária e sua Regulação. São Paulo: Dialética, 2002. P. 69/71.

24 Conforme Geraldo Ataliba, em prefácio da obra Elisão tributária, de Diva Malerbi.

25 PAULSEN, Leandro. Obra citada. p. 638.

26 MARINS, James. Elisão Tributária e sua Regulação. São Paulo: Dialética, 2002. P. 76/77.

27 Conforme parágrafos do art. 2º do Dec. 3.724/01 combinados com o art. 7º do Dec. 70.235/72.

28 MARINS, James. Elisão Tributária e sua Regulação. São Paulo: Dialética, 2002. P. 79/83.

29 MACHADO, Hugo de Brito. Obra citada. p. 109.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HUGO, Maicon Guedes. Norma geral antielisiva e sua regulamentação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1208, 22 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9071. Acesso em: 19 maio 2024.