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Elaborando a denúncia criminal

Elaborando a denúncia criminal

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Sumário: 1- Introdução. 2- A Persecução Penal como Monopólio Estatal. 3- persecução Penal: Ação e processo. 4- Da Juridicização à Jurisdicionalização. 5- Alternativas: Arquivamento, Diligências, Denúncia. 6- Condições da Ação. 7- Princípios de regência e Princípios Informativos. 7.1) Princípio da Precisão. 7.2) Princípio da Concisão. 7.3) Princípio da Precisão. 7.4) Princípio da não Limitação da Acusação 8- Elaborando a Denúncia ou Queixa. 9- Controle da Denúncia ou Queixa. 10- Conclusões.


1- INTRODUÇÃO

O período recente da legislação penal brasileira tem se marcado pelo balanço de medidas de descriminalização e descarcerização e de medidas de recrudescimento penal.

Marco importante foi a Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/90) que trouxe os institutos da composição cível, transação penal e a suspensão condicional do processo. Antes dela, porém, a Lei nº 8072/90 havia estabelecido o rol dos crimes hediondos, vendando-lhes a concessão da liberdade provisória e da progressão de regime, neste último caso medida declarada recentemente (e infelizmente) inconstitucional pelo STF.

A Lei nº 9.714/98 versou sobre as penas substitutivas, em franca medida de descarcerização (merecendo encômio). Ao revés, as Lei nº 9.437/97 e 10.826/03 recrudesceram o tratamento penal em relação às armas de fogo (também merecendo aplausos, ainda que com algumas impropriedades). Mais recentemente, a Lei nº 11.343/06 estabelece disciplina penal e processual para os delitos relacionados a entorpecentes, estabelecendo uma dicotomia entre o usuário e o traficante, com visível abrandamento do tratamento deferido ao primeiro.

O que se constata do balanço destas alterações, ora em um sentido, ora em outro, é que a criminalidade não reduz, ao contrário, se expande e se sofistica. Na verdade, este não é um fenômeno sazonal de nosso País, mas um fenômeno mundial, que acompanha o aumento da complexidade da sociedade moderna.

O descomunal desenvolvimento da humanidade nos últimos duzentos anos ampliou significativamente o rol de bens jurídicos passíveis de tutela penal. A estruturação científico-dogmática do direito penal permitiu a concepção de legislações abrangentes e complexas. Por outro lado, também se incrementaram as possibilidades de cometimento de ilícitos, pois a delinqüência não se manteve infensa à tecnologia.

O fato é que hoje a criminalidade é uma realidade presente, embora não haja motivo para alarmismos ou precipitações, sempre desastrosos em termos de repressão penal. Mas esta constatação é importante para que a sociedade, e principalmente os operadores jurídicos (e aqui faço abranger a todos os que trabalham na área jurídica), não ignorem esta problemática. No caso dos operadores jurídicos esta preocupação se traduz em problemas técnicos.

Não é incomum o profissional jurídico, assim como ocorre nas áreas médicas, por exemplo, se especializar em determinada área, afastando-se de outras. Mas no caso do direito e do processo penal, ainda nestas hipóteses onde se busque evitar trabalhar-se nesta área, é de bom alvitre que noções fundamentais sejam aprendidas e mantidas em constante atualização, pois a cobrança prática em relação a estes conhecimentos pode vir de formas inusitadas.

De qualquer forma, na fase de formação, este conhecimento inarredavelmente será ensinado e sobre ele se operará cobrança. Há, portanto, presente demanda de trabalhos de exposição e sistematização da matéria, em especial de trabalhos que possam conceder ao aluno uma visão prática, que é imprescindível ao bom exercício de sua profissão futuramente, qualquer que seja a especialidade.

O presente trabalho, tendo em vista esta constatação, buscará abordar aspectos teóricos e práticos de uma das mais importantes questões da área penal: a denúncia.

A denúncia, juntamente com a decisão final, representa momento crucial da persecução penal. Como peça motriz do procedimento judicial penal, demanda especial atenção e enseja uma série ampla e substancial de questões. Estas questões é que serão adiante tratadas, com especial ênfase a aspectos práticos, acerca dos quais os manuais usualmente utilizados no estudo do processo penal são relativamente carentes.

Antes, porém, é necessário que lancemos algumas pontuações para constituição de uma base teórica fundamental à compreensão do singular papel desenvolvido pela denúncia criminal, não se olvidando que a presente abordagem não está voltada exclusivamente ao profissional, mas também ao estudante, daí sendo escusada a menção a algumas conceituações e realização de abordagens de questões já de domínio geral do profissional, mas não necessariamente do estudante.


2- A PERCECUÇÃO PENAL COMO MOMOPÓLIO ESTATAL

A noção de Estado como hoje a conhecemos é relativamente recente, datando de três séculos. Mais recente ainda é a noção de Estado de Direito e de Estado Democrático de Direito.

A concepção material de um Estado de Direito pressupõe o exercício, pelo ente estatal, de uma série mínima de atividades, algumas das quais com exclusividade. Dentre estas últimas, encontram-se as atividades típicas dos poderes, segundo a clássica teoria da tripartição das funções-poderes. Uma destas atividades é a de administração da justiça.

O exercício jurisdicional é monopólio estatal, até porque a jurisdição é emanação da própria soberania. Isto não significa que a composição de litígios, com aplicação da lei ao caso concreto, seja exclusiva do Estado, uma vez que há possibilidade de juízos arbitrais na área privada. Mas no campo do direito público, particularmente em relação ao Direito Penal, a regra da inafastabilidade de apreciação jurisdicional é regra absoluta, visto que a persecução penal é monopólio do Estado. Não há, em regra, aplicação concreta final da lei penal fora do âmbito do poder judiciário. Esta é uma premissa fundamental.

A aplicação da lei penal se faz através do exercício da ação penal, cuja manifestação concreta é o processo penal, aqui mencionado no sentido de veículo daquela. Temos, portanto, a formação de um tripé: jurisdição, ação e processo, como elementos interligados [01].

A correta compreensão destes institutos começou a ser urdida a partir de meados do século XIX. Mas é interessante observar que os estudos que fundaram a moderna dogmática processual foram conduzidos tendo em pauta o processo civil, cuja matriz hermenêutica é voltada para a resolução de conflitos entre sujeitos privados e com aplicação de direito com idêntica natureza. Houve uma visível dicotomia entre o processo civil e o processo penal, tendo este último sido notoriamente negligenciado frente à quantidade e profundidade dos estudos destinados ao processo civil.

Esta perspectiva se traduziu em uma visão míope, que desconsiderou os benefícios dos estudos do processo à luz de uma teoria geral do processo. O sincretismo processo-direito material do período anterior à independência dogmática do processo ainda influenciou toda a elaboração científica então conduzida, de forma que se partiu da equivocada premissa de que a diversidade da natureza dos direitos materiais postos em apreciação decorresse, necessariamente, uma diversidade ontológica e invencível dos fenômenos processuais correlatos.

Conseqüência deste fato foi a enorme perda gerada pela desconsideração dos benefícios que seriam gerados a partir da consideração do processo através do prisma de uma teoria geral do processo, que permitisse o estudo conjunto dos infinitos pontos de comunhão entre o processo penal e o processo civil.

Por outras palavras, o equívoco da perspectiva que norteou até bem recentemente o estudo do processo residiu em não atentar para o fato de que o que há de comum entre o processo civil e o processo penal é muito mais significativo do que o que há de diversidade.

Esta falha tem sido paulatinamente corrigida pela adoção de uma visão centrada não mais na ação, típico reflexo da matriz privatista que serviu de base ao processo, a qual é substituída por uma visão centrada na jurisdição, mais própria a abarcar o direito público, seja penal ou de natureza diversa. [02]

Somente a pouco tempo começamos a ver que a ação existe em função do exercício da jurisdição, ocupando esta última o centro do sistema, e não o inverso.

Passamos a poder compreender que o que há de essencial para o Estado e para a sociedade é o exercício da jurisdição, sendo a ação e o processo opções de como este exercício pode ser lavado a efeito.

Desta forma, a persecução penal é monopólio do Estado, sendo exercida través de uma ação que origina um processo.


3- PERSECUÇÃO PENAL, AÇÃO E PROCESSO

Não só no campo do direito processual a dicotomia entre a natureza civil ou penal do caso concreto produziu efeitos danosos, pois estes se fazem presentes mesmo no campo do direito material.

O estudo do fenômeno da juridicização é conduzido fundalmentalmente sob a perspectiva do direito de natureza civil ou privada. Ocorre, porém, que a juridicização decorrente da norma penal não traduz fenômeno diverso. De fato, o Estado, in casu a União, titular da competência legislativa penal, ex vi do artigo 22, inciso I, da CF/88, estabelece através da legislação penal uma pauta de comportamentos, uns estimulados, outros indesejados.

Para tanto, a legislação penal se vale de normas materializadas em regra sob a forma de tipos, ou seja, previsões positivadas abstratas que agregam a um comportamento uma sanção (conceito válido para o tipo incriminador).

A ocorrência no mundo empírico da hipótese abstratamente prevista enseja a juridicização, que eqüivale à entrada daquele fato concreto no mundo jurídico, tornando-o apto a gerar alguma conseqüência juridicamente relevante.

A juridicização conduz, em linha de princípio, ao direito subjetivo, que condensa a atribuição a uma pessoa da capacidade de agir fática e juridicamente em vista deste direito e das conseqüências que ele prevê. Ao direito subjetivo podem vir agregadas a ação e a pretensão.

Superado o sincretismo imanentista, que confundia os planos do direito material e processual, hoje sabemos que há direito subjetivo material, ação de direito material e pretensão de direito material, e há direito subjetivo de ação, ação processual e pretensão processual.

Observada esta separação dos planos, temos que "a ação é o direito subjetivo público que tem qualquer pessoa de exigir do Estado a prestação jurisdicional. Essa definição convém a todos os tipos de ação." [03]

A moderna concepção de ação, descortinando a independência dos planos material e processual, concebe a ação como "um direito abstrato que independe da existência ou inexistência do direito substancial (material) que se pretende, através dela, ver reconhecido ou satisfeito." [04] A propósito, lembram Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco:

"Caracteriza-se a ação, pois, como uma situação jurídica de que desfruta o autor perante o Estado, seja ela um direito (direto público subjetivo) ou um poder. Entre os direitos públicos subjetivos, caracteriza-se mais especificamente como direito cívico, por ter como objeto uma prestação positiva por parte do Estado (obrigação de dare, de facere, praestare): a facultas agendi do indivíduo é substituída pela facultas exigendi.

Nessa concepção, que é da doutrina dominante, a ação é dirigida apenas contra o Estado (embora uma vez apreciada pelo juiz, vá ter efeitos jurídicos na esfera jurídica de outra pessoa: o réu ou executado). Nega-se, portanto, ser ela exercida contra o adversário isoladamente, contra este e o Estado ao mesmo tempo, ou contra a pessoa física do juiz." [05]

Mas enquanto o direito de ação abstratamente considerado é um direito constitucional genérico e ilimitado, aproximando-se, como advogava Couture, do próprio direito de petição, o direito de ação processual é limitado, uma vez que condicionado pelas denominadas condições da ação, cuja ausência conduz ao juízo de "carência de ação". Não obstante a dicotomia entre o direito (objetivos) processual civil e penal, esta categoria, a das condições da ação, é comum a ambos.

Para desincumbir-se da obrigação de prestação jurisdicional que lhe é carreada, o Estado instituiu o processo. Múltiplos significados podem ser conferidos ao vocábulo. Como conjunto de atos concatenados a uma finalidade, certamente que não há ação sem um "processo", porque a prestação jurisdicional terá necessariamente de envolver uma série de atividades do ente estatal, no caso o Estado-Juiz. Mas a instituição de um processo como uma relação jurídica de direito público é uma opção do legislador. Surgiu como uma conseqüência do desenvolvimento dogmático do direito processual e como exigência de um Estado Democrático de Direito.

Na esteira deste raciocínio, a presença de um processo como relação jurídica de direito público regrada por normas que observam os cânones e valores constitucionais é mecanismo imprescindível para assegurar a legitimação do exercício do poder sub especie jurisdicionis. A respeito, pertinente mencionar as conclusões do Ministro Celso de Melo no julgamento do HC 73.338, in verbis:

"A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido — e assim deve ser visto — como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu — que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória —, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público. A própria exigência de processo judicial representa poderoso fator de inibição do arbítrio estatal e de restrição ao poder de coerção do Estado. A cláusula nulla poena sine judicio exprime, no plano do processo penal condenatório, a fórmula de salvaguarda da liberdade individual" [06]

Ordinariamente, a legitimidade para o exercício do direito de ação é atribuída ao respectivo titular do direito subjetivo material, havendo, porém, situações onde esta regra é excepcionada, em especial diante dos novos direitos de terceira geração, de feição difusa ou coletiva.

Especificamente no caso do direito penal, ocorrida a juridicização pela correspondência entre o suporte fático concreto (fato do mundo natural) e o suporte fático abstrato (tipo), surge para o Estado o jus puniendi a que se relaciona o jus perseqüendi in juditio, porque o direito de punir não será exercido senão em juízo, através de um "due process of law", permeado pela ampla defesa e pelo contraditório.

O jus perseqüendi in juditio corporifica-se em um processo, que, por imposição lógica, apresenta fases distintas, de proposição, defesa, instrução e julgamento. A propositura, no caso do processo penal, é feita através do oferecimento da denúncia ou queixa, que nada mais é do que a "petição inicial do processo penal".

No processo penal, a legitimidade para propositura da ação e desencadeamento do respectivo processo é atribuída, em regra, ao Ministério Público, e excepcionalmente ao ofendido, não mais havendo as ações penais instauradas por portaria da autoridade policial, como anteriormente ocorria nos caos de contravenções e delitos de trânsito [07].

O fato de um órgão estatal dar início à ação penal perante outro órgão do Estado, não legitima a ilação de que atue o Ministério Público em situação diversa da que atuaria o titular de um direito privado qualquer. Aliás, a legitimação ordinariamente concedida à pessoa física ou jurídica, ou a órgão, não altera ou interfere na substância do direito que está sendo exercido. O contrário é que pode ocorrer. No caso do direito penal, sendo o direito subjetivo titularizado pelo Estado, a concessão a um órgão seu ou extraordinariamente ao ofendido não altera esta titularidade, exatamente porque a legitimação ad causam, condição da ação, é um instituto de natureza exclusivamente processual, ainda que se busque o aporte da dimensão material. Em síntese, não repercute sobre a dimensão material.


4- DA JURIDICIZAÇÃO À JURISDICIONALIZAÇÃO

Juridicização e jurisdicionalização não se confundem. Um fato relevante penalmente é juridicizado assim que um suporte fático concreto encontra correspondência com o suporte fático abstrato de um tipo. Esta subsunção opera-se no plano abstrato. Não requer qualquer providência humana e tampouco demanda conhecimento por qualquer um de que ela se tenha operado.

Se um indivíduo dispara uma arma para cima e vem a atingir, sem querer, um indigente que se encontrava no interior de uma mata e cujo corpo jamais vem a ser encontrado, tal fato não será de conhecimento de ninguém, e jamais será objeto de investigação ou processo. Não obstante, ainda que desconhecido de qualquer pessoa e especialmente das autoridades e agentes que conduzem a persecução penal, ocorreu neste fato, em tese, um homicídio culposo, pois uma ação humana causou a morte de uma pessoa.

Quando o fato vem a ser conhecido e é levado a juízo, há a jurisdicionalização, ou seja, o fato típico é objeto de persecução penal através do exercício do direito de ação e da formação de uma relação processual. Observa-se que, para que isso ocorra, é fundamental que os agentes e autoridades encarregados de realizar a persecução penal tenham conhecimento do fato penalmente relevante.

O conhecimento acerca da existência de um delito pode ocorrer de forma direta, quando agentes estatais encarregados da atividade policial tomam ciência direta da infração. Nestes casos, a investigação iniciará por iniciativa dos próprios agentes policiais, e quiçá, inclusive através de prisão em flagrante.

Mas a maioria das situações é de conhecimento indireto dos fatos, através da notitia criminis, que é uma comunicação de conhecimento efetuada à autoridade policial. Não se trata de ato jurídico lato sensu, pelo que não requer capacidade jurídica ou objeto lícito ou mesmo forma especial. Desta comunicação poderá ou não ocorrer a instauração de uma investigação criminal. Se houver necessidade de representação, por exemplo, e esta não for exercida, o feito não irá adiante, salvo a remessa, se for o caso, para o juizado especial, pois tem sido requerida a renúncia em audiência judicial ao direito de representação.

Com o advento da Lei nº 9.099/95, passamos a ter duas espécies de procedimentos investigatórios básicos, ou seja, o inquérito policial e o termo circunstanciado. Esta fase, conduzida pela autoridade policial e denominada fase inquisitorial, marca-se por atividades eminentemente administrativas. Não fica inviabilizada a presença de atividades jurisdicionais, praticadas pela autoridade competente e que se consubstanciam nas prisões cautelares, apreciação de pedidos de busca e apreensão etc... O que ocorre é que, em regra, a atividade é de investigação, e não ostenta caráter jurisdicional, não estando, portanto, sujeita a recursos.

Em vista desta natureza, a necessidade de contraditório e ampla defesa não é regra nesta fase. A propósito, pertinente citar a conclusão do julgamento do RHC 16.152/SP, pela Sexta Turma do STJ, onde o relator, Ministro Hamilton Carvalhido, asseverou que "o inquérito policial é mero procedimento de natureza inquisitorial, destinado à apuração das infrações penais, cuja falta em nada impede a propositura da actio poenalis, se de outros elementos de sua prova dispuser o seu titular, não havendo falar em exercício do direito de defesa nessa fase da persecutio criminis."

Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 82.354, tendo por relator o Ministro Sepúlveda Pertence decidiu:

"Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio." [08]

Mas o mesmo Excelso Pretório, quando analisando o sigilo em investigação levada a efeito pelo Ministério Público, concluiu diversamente:

"Entendeu-se que eventual sigilo em procedimento investigatório não pode ser oposto ao acusado e ao seu defensor relativamente aos atos de instrução já realizados e documentados. Nesse sentido, esclareceu-se que o segredo deve ser mantido somente quanto aos atos de investigação, tanto na deliberação quanto na sua prática, quando necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse social (CPP, art. 20). Todavia, uma vez formalizada a diligência, em documento, deve-se permitir o exercício do direito de defesa na fase preliminar da persecução penal. Citaram-se, ainda, algumas normas infraconstitucionais que tratam da inoponibilidade ao defensor do sigilo eventualmente decretado na persecução penal (Lei 8.906/94, art. 7º, XIV; CPPM, art. 16; Lei 6.368/76, art. 20). Além disso, asseverou-se que invocar a intimidade dos demais investigados para obstar o acesso aos autos importa restrição ao direito de cada um dos envolvidos. Por fim, aduziu-se que, diversamente do inquérito penal, que possui regramento próprio no CPP, os procedimentos investigatórios do Ministério Público não encontram figura nem forma legais, a dificultar o exercício do direito de defesa. HC parcialmente deferido para garantir ao paciente, por intermédio de seus advogados regularmente constituídos, o direito de acesso, no que lhe diga respeito, aos autos de procedimento investigatório em trâmite perante a Procuradoria da República, no Estado do Rio de Janeiro. Ressaltou-se que este provimento assegura ao paciente o direito de acesso apenas às informações formalmente documentadas nos autos desse procedimento." [09]

É fato já assentado na doutrina e na jurisprudência que eventuais nulidades do inquérito não contaminam de nulidade a ação penal nele embasada. A respeito, o STJ a pouco assentou que "eventuais vícios procedimentais ocorridos no inquérito policial não teriam o condão de inviabilizar a ação penal, porquanto aquele constitui mera peça informativa, não sujeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório." [10]

Obviamente, a prova produzida na fase inquisitorial, sem ampla defesa e contraditório, apresenta escasso valor, não podendo, por si só, lastrear um decreto condenatório. Sua finalidade é, precipuamente, subsidiar a denúncia (ou queixa) ou o arquivamento.

E as investigações podem ser levadas a efeito pelo próprio Ministério Público? O tema ainda rende controvérsia. A respeito manifestou-se o STJ em recente julgamento:

"Em que pese o Ministério Público não poder presidir inquérito policial, a Constituição Federal atribui ao Parquet poderes investigatórios, em seu artigo 129, incisos VI, VIII e IX, e artigo 8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar n.º 75/1993. Se a Lei maior lhe atribui outras funções compatíveis com sua atribuição, conclui-se existir nítida ligação entre poderes investigatórios e persecutórios. Esse poder de modo algum exclui a Polícia Judiciária, antes a complementa na colheita de elementos para a propositura da ação, pois até mesmo um particular pode coligar elementos de provas e apresentá-los ao Ministério Público. Por outra volta, se o Parquet é o titular da ação penal, podendo requisitar a instauração de inquérito policial, por qual razão não poderia fazer o menos que seria investigar fatos?" [11]

No mesmo diapasão, manifestou-se o Ministro Gilson Gipp no Recurso Especial nº 756.891/GO, em cuja ementa consta:

"I. Não obstante se verifique, atualmente, o debate em torno da questão pelo Supremo Tribunal Federal, o entendimento consolidado desta Corte é no sentido de que são válidos, em princípio, os atos investigatórios realizados pelo Ministério Público. II. A interpretação sistêmica da Constituição e a aplicação dos poderes implícitos do Ministério Público conduzem à preservação dos poderes investigatórios deste Órgão, independentemente da investigação policial. III. Independentemente da investigação policial, o Ministério Público pode se valer de outros elementos de convencimento, como diligências complementares a sindicâncias ou auditorias desenvolvidas por outros órgãos, peças de informação, bem como inquéritos civis que evidenciem, além dos fatos que lhe são próprios, a ocorrência, também, de crimes. IV. A vedação dirigida ao Ministério Público é quanto a presidir e realizar inquérito policial. Precedente do STF" [12]

No âmbito do Supremo Tribunal federal, o Ministro Nelson Jobim, no julgamento do RHC 81.326, asseverou que "a Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, VIII). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do Parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar diligência nesse sentido à autoridade policial." [13]

Todavia, o mesmo Sodalício, no Inquérito nº 1.957, relatado pelo Ministro Carlos Velloso entendeu que "não há impedimento para que o agente do Ministério Público efetue a colheita de determinados depoimentos, quando, tendo conhecimento fático do indício de autoria e da materialidade do crime, tiver notícia, diretamente, de algum fato que merecesse ser elucidado." [14]

De minha parte, não vejo como se possa negar pode investigatório ao Ministério Público, o qual tendo mais (atribuição de formação da opinio delicti) certamente tem que ter o menos (poder de investigar). Esta foi a correta conclusão do julgamento do Habeas Corpus nº 0006761860, Câmara Especial Criminal, Tribunal de Justiça do RS, onde o Relator, Desembargador Marco Antônio Barbosa Leal, concluiu:

"No que tange ao exercício da atividade investigativa pelo Ministério Público, a legitimidade constitucional emerge estampada no artigo 129, inciso VI, da Carta Política.

O dispositivo em comento assegura ao Ministério Público o poder de realizar diligências investigatórias, objetivando formar a opinio delictis. Aliás, não teria sentido que o Parquet, titular exclusivo da ação penal pública, não pudesse colher, por conta própria, elementos necessários ao oferecimento da denúncia." [15]

Não se vai advogar aqui a supressão da polícia e a inflação do Ministério Público a ponto de esvaziar a atividade policial. Todavia, em situações excepcionais, a atuação investigativa da instituição é medida não só recomendada como necessária. De qualquer forma, seria de bom alvitre que nos espelhássemos no sistema anglo-saxão, onde a colaboração entre o órgão acusador e a polícia é muito mais intensa e desburocratizada, resultando celeridade e eficiência.

Qualquer que seja o posicionamento quanto a esta matéria, algo, porém, é certo: o inquérito policial não é condição "sine qua nom" para a denúncia.

Documentos, peças de informação e procedimentos oriundos de órgãos administrativos e comissões parlamentares de inquérito podem lastrear o oferecimento da denúncia de forma direta, prescindindo da instauração de procedimento investigatório pela polícia. Assim, não é incomum que procedimentos disciplinares administrativos ou realizados por Tribunal de Contas estribem denúncia.

No caso dos delitos sujeitos a ação privada, a instauração de procedimento policial carece de requerimento do interessado, diversamente do que ocorre nos delitos de ação pública, onde a autoridade age de ofício.

Recebidos elementos de informação que podem, em tese, ter repercussão penal, três caminhos se abrem.


5- ALTERNATIVAS: ARQUIVAMENTO, DILIGÊNCIAS, DENÚNCIA

Recebidos o procedimento policial ou os elementos de informação relativos a fato que em tese (ainda) poderá ter repercussão penal, três caminhos se abrem ao órgão de acusação.

De proêmio, é preciso atentar para o fato de que nessa fase vige o "in dubio pro societate", de forma que a dúvida opera em favor da propositura da ação penal, para que, sob crivo da ampla defesa e do contraditório, seja assegurado não só o direito do réu a sua defesa, mas também o direito da sociedade de ver a lei aplicada de forma transparente e correta ao fato concreto.

A primeira das alternativas que se apresenta é o arquivamento. Se manifesta a atipicidade do fato ou a presença de causa de exclusão da ilicitude, não há necessidade de instauração de ação judicial.

Todavia, a inexistência de suporte mínimo acerca de um juízo de tipicidade deve estar cabalmente caracterizada, o mesmo valendo acerca da presença de causas de exclusão da ilicitude, como, ad exemplum, caso de notória presença de legítima defesa.

A presença de uma dirimente não implicará no arquivamento do feito necessariamente. É que pode ser o caso de aplicação de medida de segurança. A inimputabilidade decorrente de menoridade, de seu turno, terá por consectário a necessidade de re-atuação do feito como procedimento da infância e juventude, para apuração do fato e eventual aplicação de medida de proteção, inclusive com remessa ao juízo competente.

Há, ainda, outras hipóteses que podem ensejar o arquivamento. A ausência de um suporte probatório mínimo em situação de impossibilidade de suprimento da deficiência é outra hipótese. Neste caso, tem aplicação o artigo 18 do CPP e a Súmula 524 do STF, contrario sensu, de forma que o surgimento de novas provas pode permitir a reabertura das investigações dentro do prazo prescricional.

Obviamente a promoção de arquivamento lançada pelo agente ministerial e a decisão judicial (imprescindível) que o determina devem ser fundamentadas, não só pode força do artigo 93, inciso IX, da CF/88 (caso da decisão judicial), como por expressa determinação legal no caso da manifestação do agente do Parquet (artigo 43, inciso III, da Lei nº 8.625/93).

Há possibilidade de ocorrer o denominado arquivamento implícito, que ocorre quando a denúncia é oferecida com exclusão de um dos indiciados. É de bom alvitre que este procedimento seja evitado, seguindo a peça incoativa uma promoção de arquivamento específica em relação ao agente excluído.

Não sendo caso de arquivamento, pode ocorrer de não haver material probatório mínimo necessário para a propositura da ação penal. A propositura de ação penal gera, por si só, danos à imagem do acusado. Em vista disso, mister a presença de elementos de convicção mínimos para caracterizar a "justa causa".

Consoante se depreende da redação do artigo 16 do CPP, somente poderá o Ministério Público solicitar a devolução dos autos à autoridade policial para a realização de diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia. Contrario sensu, se a diligência não for essencial, poderá o pedido ser indeferido. Impende considerar, no entanto, que o dominus litis é o órgão ministerial, a ele cumprindo verificar, em linha de princípio, da necessidade ou não de novas diligências. Nesta ordem de idéias, somente de forma excepcional e em caso de escancarada desnecessidade podem ser os pedidos de diligências indeferidos. A respeito, pertinente a citação de manifestação do STF, através do Ministro Celso de Mello, no julgamento do Inquérito nº 2.041:

"As diligências probatórias requeridas, ao Poder Judiciário, pelo Ministério Público, no contexto de um inquérito policial, objetivam permitir, ao Parquet, que este, com apoio nos resultados delas emergentes, venha a formar, eventualmente, a opinio delicti, pois é o Ministério Público o destinatário, por excelência, dos elementos de informação produzidos no contexto da investigação penal. Não cabe, em regra, ao Poder Judiciário, substituindo-se, indevidamente, ao membro do Ministério Público, formular juízo em torno da necessidade, ou não, da adoção de medidas probatórias reputadas indispensáveis, pelo dominus litis, à formação de sua convicção a propósito da ocorrência de determinada infração penal, ressalvada, no entanto, a possibilidade de controle jurisdicional sobre a licitude de tais diligências de caráter instrutório" [16]

O indevido indeferimento de diligências antes da instauração da ação penal está sujeito à correição parcial, desde que prevista no respectivo código de organização judiciária.

Então, pelo que se nota, deve o magistrado ter extrema cautela no indeferimento de diligências, o que somente deve ser feito quando absolutamente irrazoável o pedido.

Mas e qual o parâmetro para se aquilatar a essencialidade da diligência? Deve ser analisada a presença dos elementos necessários à propositura da denúncia e a inexistência de necessidade de investigação em relação a novos fatos ou aspectos do fato em apuração que possam conduzir a uma alteração em sua conformação jurídica. Por outras palavras, será possível o indeferimento quando já havendo elementos para a denúncia, destinar-se a diligência a suprir aspectos secundários, que não impedem o oferecimento de denúncia apta.

Vale registrar que no Estado do rio Grande do Sul, grande parte das diligências atualmente estão sendo solicitadas diretamente pelo Ministério Público à autoridade policial, de forma que o controle judiciário foi bastante reduzido, remanescendo, porém em relação aquelas providências sobre as quais recai a cláusula de reserva de jurisdição, como por exemplo, a quebra de sigilo telefônico.

Não sendo o caso de arquivamento e já estando presentes elementos para o oferecimento da denúncia, seja pela desnecessidade de diligências, seja pela realização daquelas que eram imprescindíveis, a elaboração da denúncia passa a ser a alternativa.

A alternativa do oferecimento da denúncia enseja uma série de questões a começar pelas condições da ação.


6- CONDIÇÕES DA AÇÃO

A plausibilidade da presença do jus puniendi, decorrente da juridicização de um fato em vista de um suporte probatório mínimo, ensejará a propositura da ação penal. O direito de ação, como já mencionado, comporta óticas que o conduzem de um grau maior de abstração até o seu exercício concreto. De direito genérico e ilimitado sob o prisma constitucional (direito individual) a ação, em seu exercício prático, apresenta limitações materializadas nas denominadas condições da ação.

Concebidas a partir da teoria eclética da ação, de Liebmam, as condições da ação representam o meio termo entre um direito completamente abstrato e o exercício do direito de ação com julgamento de mérito, ou seja, representam uma ponte entre as teorias abstratas da ação e as teorias concretas, estas últimas exigindo que para que houvesse ação devesse o autor ter reconhecido o seu direito.

Desta forma, as condições da ação tomam por paradigma analítico a situação concreta, mas in statu assertionis, ou seja, na conformação como ela se coloca na peça vestibular e em perfunctória avaliação. A verificação concreta das situações que compõe as condições será finalmente dirimida através do julgamento do mérito. Então, basicamente o que afasta as condições da ação do mérito é a consideração da prova e a cognição definitiva sobre ela e sobre o fato como uma realidade concreta e não meramente afirmada. Vale dizer, as mesmas questões são levadas em consideração tanto para análise da presença das condições da ação como do mérito, mas, no primeiro caso, elas são tomadas em linha de conta unicamente para aferir a possibilidade de válido exercício do direito de ação, e não para dirimir a situação fática de direito material sobre ela lançando um julgamento.

Concebidas primordialmente pela visão do processo civil e cognitivo, as condições da ação estão presentes igualmente nas ações de cunho cautelar e executivo, e também na ação penal, onde uma quarta condição entre em voga.

A primeira das condições da ação é a legitimidade ad causam. Como anteriormente referido, ordinariamente legitimado para a ação é o titular do direito posto em apreciação para que se veja declarado ou executado. Trata-se de uma questão de lógica, mas que comporta exceções. No caso da ação penal, o titular do jus puniendi, que é a dimensão material, é o Estado, e esta legitimidade é conferida a um órgão, hoje o Ministério Público. Excepcionalmente, poderá o ofendido de forma exclusiva ou subsidiária, ser legitimado. Daí resulta a presença de três espécies de ações quanto à legitimidade. A ação penal pública, também dita exclusiva, que é a regra e que se caracteriza pela legitimidade do órgão ministerial. A ação penal privada, em que a legitimidade é deferida ao lesado, e a ação penal pública subsidiária, onde a inércia do Ministério Público passa a legitimar a ação do ofendido.

Os casos de ação privada compreendem em regra, aquelas hipóteses nas quais o bem jurídico lesado é personalíssimo ou de interesse preponderantemente individual ou nos quais o strepitus fori poderia ser mais prejudicial do que o próprio delito.

Há, ainda, as ações penais públicas condicionadas à representação, mas esta não é condição da ação e sim condição de procedibilidade. O instituto não é uma condição da ação porque não é comum a todas elas, tratando de um condicionante externo, fruto de mera opção de política legislativa.

Vale ressaltar que inexiste no direito brasileiro a denominada ação penal adesiva do direito teutônico.

Por consectário da necessidade de legitimação, não pode o Ministério Público ajuizar ação penal em caso de ação privada, embora deva nela interferir para velar por sua regularidade e eventualmente aditá-la ou oferecer denúncia substitutiva se verificar hipótese de sua legitimação. Ao revés, em ação penal pública, não pode particular ajuizar se não for em atuação subsidiária, legitimada por inércia do órgão acusador, pois "o Direito Penal, enquanto ramo do Direito Público, não pode permitir que a vítima consagre seus interesses privados através da estrutura estatal-judiciária penal. A Constituição Federal admite a intervenção da vítima no processo penal unicamente através da ação penal privada subsidiária da pública (art. 5°, LIX, da CF), nos casos de inércia do órgão ministerial. Contrario sensu, havendo movimentação do Ministério Público, porém em direção contrária ao interesse da vítima, tem-se por não configurada da exceção constitucional à acusatoriedade pública". [17]

Em contraponto, legitimado passivo é o agente do delito, salientado-se que a responsabilidade penal é pessoal e intransmissível, em regra. Trata-se do Princípio da Intranscendência, que é de direito material (artigo 5º, inciso XLV, da CF/88).

Da mesma forma, a um direito penal da culpabilidade repugna a idéia de que a responsabilização penal recaia em pessoas jurídicas. Não obstante, tal encontra previsão na Lei nº 9.605/98 em relação aos crimes ambientais. Esta previsão poderá gerar um paradoxo. É que não está afastada a possibilidade de responsabilidade de pessoa jurídica de direito público. Chegaríamos a possibilidade de o Estado punir penalmente a si mesmo. [18]

A segunda condição da ação é o legítimo interesse. Modernamente, o interesse se traduz em necessidade, utilidade e adequação do provimento. Em termos de direito penal e processo penal a análise de tais elementos perde muito em conteúdo e espectro. É que, sendo impossível a aplicação de sanção penal fora do processo penal, o qual, aliás, versa sobre direitos essencialmente indisponíveis, sempre será necessária a demanda judicial. A utilidade do provimento, de seu turno, está in re ipsa, e consiste exatamente em legitimar a aplicação da sanção, que por sua vez tem sua finalidade (repressão, prevenção e ressocialização).

Um viés que tem sido pouco explorado reside na consideração, para os fins de utilidade do provimento jurisdicional, do princípio da insignificância. Nestes casos usualmente se tem buscado o fundamento de atuação do princípio no direito material. Todavia, bem se poderia alvitrar, mercê da consideração da proporcionalidade, que diante de infrações de mínima ofensividade, estaria comprometida a utilidade prática da imposição de sanção, e, por conseguinte, faltaria utilidade à própria ação. Certamente o argumento pode ser combatido com a ponderação de que o que in casu é de pouca utilidade, em tese, é a aplicação da sanção, mas para que esta ocorra é indispensável a ação. Logo, a utilidade da ação permanece, como premissa imprescindível da pena. O que não subsistiria é a utilidade da sanção.

Uma hipótese, ainda que um tanto cerebrina, de falta de interesse processual por falta de utilidade seria o caso de uma denúncia que pede a absolvição do acusado. De fato, se há elementos para a absolvição, o procedimento teria sido o arquivamento, não havendo utilidade em um processo podendo desde já ser pedida a absolvição.

Por fim, no que tange à adequação do provimento, é muito difícil de se conceber a falta de interesse no processo penal. Isto porque o pedido é invariavelmente de condenação e formulado de forma genérica, ou, traçando um paralelo com o processo civil, de forma "ilíquida".

A possibilidade jurídica do pedido no que diz respeito à ação penal, ao contrário do que ocorre com o interesse, cresce em importância. É que, enquanto no processo civil, em regra à parte é lícito escolher o pedido mediato e imediato a seu talante, no processo penal este é vinculado e genérico. Vinculado no sentido de que invariavelmente o pedido imediato será de condenação ou pronúncia. Genérico no sentido de que o pedido mediato, ou seja, a aplicação da sanção, não comporta quantificação expressa. Fica assim, afastada qualquer outra espécie de pedido.

Há, no caso da ação penal, uma quarta condição da ação: a justa causa. Ela existe em vista da importância dos direitos postos em jogo e da gravidade das conseqüências que a propositura da ação penal apresenta em relação ao acusado. O só fato de ser proposta ação penal já repercute negativamente na imagem do acusado perante sua comunidade e seguramente representa um gravame psicológico ponderável, pois este passa a ter a espada de Dâmocles sobre sua cabeça. Este é um mal necessário e inafastável, mas que pode e deve ser tratado com cautela. Uma das facetas desta cautela é justamente a exigência de justa causa para a propositura ação. Mas qual a sua materialização prática? Concretamente, toma a feição da necessidade de plausibilidade e mínimo suporte na acusação.

Nesta ordem de idéias, tem-se a ausência de justa causa quando manifesta a atipicidade da conduta, há ausência de um suporte probatório mínimo a arrimar a acusação ou há causa extintiva da punibilidade. Assim, por exemplo, decidiu o TJRS, na Apelação Crime nº 70010948438, Oitava Câmara Criminal, relatora a Desembargadora Lúcia de Fátima Cerveira no seguinte sentido:

"Denúncia amparada em mera suposição da vítima, que, no entanto, não restou corroborada pelo restante da prova carreada aos autos. A simples constatação de que o acusado é propenso à prática de delitos não tem o condão de, isoladamente, pressupor sua autoria em um delito sobre o qual não lhe recaiam quaisquer outros indícios de participação. E sem tais elementos não há justa causa para instauração da ação penal, pois do contrário estaríamos a admitir a propositura de processos criminais contra qualquer pessoa, com base apenas em suspeitas e suposições. Mesmo que se possa dizer que a alegação da denúncia poderia eventualmente ser comprovada em juízo, deve haver um rastro inicial mínimo, que faça com que nisso possamos acreditar. Caso contrário, bastaria que se denunciasse para que depois se buscassem aqueles elementos que minimamente já deviam estar presentes como condição de possibilidade. Ausência de fumus boni iuris para que a ação penal tenha condições de viabilidade." [19]

No mesmo escólio, o julgamento do Habeas Corpus nº 70015222060, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, relator o Desembargador Nereu José Giacomolli, em cuja ementa se lê:

"1. O hábeas corpus pode ser utilizado como instrumento de collateral attack, possibilitando a extinção do inquérito policial ou até mesmo do processo penal quando inequívoca a atipicidade do fato, quando faltar indícios suficientes da existência e autoria, quando houver extinção da punibilidade pela prescrição, entre outras causas. 2. Por justa causa entende-se a presença de um substrato probatório suficientemente apto a desencadear o exercício da pretensão acusatória, ou seja: indícios razoáveis de autoria e materialidade de um fato típico e ilícito, bem como a possibilidade de incidência legítima do ius puniendi. 3. No caso concreto, o paciente foi acusado da prática de estelionatos e formação de quadrilha. Entretanto, a prova dos autos indica que paciente e acusado não são a mesma pessoa. 4. Ausência de justa causa para a propositura da ação penal, uma vez que feita sem um lastro mínimo de provas" [20]

Por outro lado, somente a ausência primu ictu oculi do fumus delicti pode ensejar o reconhecimento da falta de justa causa, não sendo possível a análise aprofundada do material probatório em sede de cognição sumária do habeas corpus, usualmente utilizado para buscar-se o trancamento da ação penal ab origene.

Se pela análise inicial se constatar a presença das condições da ação estará aberto passo para a confecção da peça inaugural da instância criminal por excelência: a denúncia, a qual se submete a uma série de princípios.


7- PRINCÍPIOS DE REGÊNCIA E PRINCÍPIOS INFORMATIVOS

Alguns princípios foram legalmente estabelecidos para reger a ação penal, manifestando-se na denúncia. Outros devem ser observados na confecção da denúncia, ainda que sua omissão não conduza necessariamente à nulidade.

No primeiro caso, temos variações conforme a classificação da ação quanto à legitimidade. Assim, a ação penal pública tem como princípios da oficialidade, a indisponibilidade, a obrigatoriedade e a indivisibilidade. Já a ação pena privada está sujeita aos princípios da oportunidade ou conveniência, da disponibilidade e da indivisibilidade.

O princípio da intranscendência a meu juízo é na verdade, como já referido alhures, um princípio de direito material, ligando a sanção ao agente exclusivamente. Somente por reflexo a ação é por ele atingida, mas ela não é logicamente incompatível com a substituição processual, a qual é ausente por opção legislativa.

O princípio da oficialidade na verdade já foi versado, e se caracteriza exatamente pela titularidade da ação penal em um órgão oficial, como regra, ou seja, o Ministério Público.

A natureza do direito penal, eminentemente público, é infensa, por natureza, à disponibilidade. Ninguém pode dispor daquilo que não lhe pertence, e o jus puniendi é direito do Estado, de toda a sociedade, daí surgindo o princípio da indisponibilidade (artigo 42 do CPP). Tal regra tem recebido temperamentos, citando-se o a transação penal na Lei dos Juizados Especiais. Mas uma vez ajuizada a ação, não há espaço para desistência ou abandono.

A indivisibilidade também é decorrência do caráter público do jus puniendi que não se compraz com privilégios ou quebra da igualdade. A ação privada, tomando em linha de conta o interesse individual, abre espaço para a disponibilidade e conveniência, de forma que o querelante é quem decide, livremente ou não, se ingressa com a ação, e, o fazendo, se abranger, sendo mais de um crime, todos ou apenas alguns. Pode ele, ainda, perdoar o agente ou abandonar a causa, dando ensanchas à perempção.

A questão da indivisibilidade pode gerar problemas. É que a ausência de um dos agentes na queixa pode significar renúncia tácita do direito de queixa, a qual se estende aos demais acusados e implica extinção da punibilidade. Por esta ótica, a aplicação do artigo 48 do CPP não legitimaria o aditamento para inclusão de co-réu. Ocorre, porém, que a ausência tanto pode ser deliberada como pode resultar de equívoco. Desta forma, se a ausência de um dos co-réus evidenciar renúncia ao direito de queixa, o correto é pedir a extinção da punibilidade em relação a todos. Ao revés, se resultar de mero lapso, o caminho é o aditamento para inclusão do acuado faltante.

Há princípios outros que norteiam a elaboração da denúncia e cuja observância a tornam uma peça mais consentânea a sua finalidade. Trataremos de alguns.

7.1) Princípio da Objetividade

A denúncia é uma peça de acusação direta voltada ao conteúdo penalmente relevante, Por isso, deve ir diretamente à exposição deste conteúdo. Esta em voga o comportamento do agente e exclusivamente no espectro do penalmente relevante.

Fatos irrelevantes ou ilustrativos nada acrescem a este conteúdo e sua inserção no conteúdo da denúncia deve ser evitada. Se o agente, por exemplo, era amigo íntimo ou inimigo capital da vítima, mas não se valeu de sua amizade para facilitar a execução da tentativa de homicídio, ou se a inimizade não revela anterior premeditação, tal fato é irrelevante. Também não importa saber o que a vítima e o réu fizeram antes ou depois da execução do delito, a não ser que estes fatos possam caracterizar delito autônomo ou alterar a configuração jurídica.

Por outras palavras, a denúncia não é instrumento para que se conte estórias sobre o delito, mas para expor de forma direta o comportamento típico do agente e eventualmente o comportamento da vítima ou de terceiros ou outras circunstâncias somente se relevantes. O núcleo da denúncia é o comportamento do acusado e seus efeitos típicos diretos.

Assim por exemplo, se o delito deixou viúva e cinco filhos sem sustento, embora tal fato seja evidentemente relevante para a dosimetria da pena, não pertence ele ao conteúdo da denúncia.

Mas qual o motivo desta limitação? Corre-se o risco de ter de provar fatos que em nada mudam a capitulação do delito ou sua conformação fática quando se insere elementos que não dizem respeito diretamente ao que cumpre apurar no processo penal: o comportamento do agente.

É preciso não olvidar que a denúncia, assim como a exordial cível, tem enorme repercussão na condução do processo e, principalmente, na delimitação do seu objeto, a lide do processo civil e (porque não?), do processo penal. [21]

As decisões tomadas em sua elaboração repercutirão durante todo o processo, e os erros, salvo aditamento (enquanto possível), emendatio libelli e mutatio libelli, não podem ser corrigidos.

Daí porque se deva ir diretamente ao conteúdo relevante para a formulação da acusação, que é o comportamento típico e suas circunstâncias essenciais, sem rebuscos e sem utilizações de expressões condicionais. A denúncia não pode ser condicional.

7.2) Princípio da Concisão

Ligado ao princípio da objetividade está o da concisão. Além de ser objetiva e ir direto ao conteúdo penalmente relevante, a denúncia deve ser concisa, vale dizer, deve buscar referir-se ao fato em apuração de forma direta e simples, sem estender-se em demasia em explicações, até porque não é uma peça de convencimento.

Isto não impede que tenhamos denúncias extensas. É possível, como já vi na prática, denúncias com centenas de fatos. O que se está dizendo é que, na menção a cada um deles, a abordagem deve ser simples, direta, objetiva, e clara, afastando-se delongas. Devem ser evitadas a linguagem prolixa, as palavras inúteis ou excessivas ou frases truncadas ou que possam dar margem a mais de um sentido.

7.3) Princípio da Precisão

Uma das grandes conquistas do Estado de Direito foi, pela consagração da ampla defesa e do contraditório dentro do devido processo legal, retirar do direito penal a nefasta função de subsidiar a tirania e o despotismo que lhe foi conferida por séculos, quando figurou como mecanismo de legitimação formal das mais réprobas atrocidades.

Mas é pressuposto funcional de um sistema acusatório permeado pelos modernos valores constitucionais que a acusação seja exercida de forma que o acusado tenha plena ciência de todos os fatos que lhe são imputados. Ele não pode defender-se regularmente se não sabe do que está sendo acusado.

Por isso, a denúncia deve imputar fatos certos, e definir de forma precisa, na medida do possível, a conduta de cada agente. Deve mencionar todas as circunstâncias relevantes conhecidas, narrando o modus operandi e as conseqüências diretas da infração.

Especial realce merecem as situações onde se apresenta o concurso de agentes, pois, por vezes, não é possível precisar de forma exata a ação de cada um dos envolvidos. É pensar-se, por exemplo, em um roubo com vários agentes que se utilizam de artifícios para esconder a identidade. Os crimes societários, tributários e contra o sistema financeiro, por exemplo, também se prestam a corriqueiramente criar situações onde a exata discriminação da ação de cada um dos envolvidos gera um quadro de nebulosidade insolúvel. Certamente estas circunstâncias não podem ser óbice intransponível para o oferecimento da peça acusatória, o que seria chancelar a alicantina do próprio agente que busca ocultar sua ação cometendo o delito em concurso. De fato, "o crime de autoria coletiva não obriga a denúncia a permenorizar o envolvimento do réu, bastando a narrativa genérica do delito, sem que tolha o exercício de defesa." [22]

O que não se pode admitir, porém, é a denúncia vaga, genérica (quando possível determinar condutas), que não imputa fatos certos e determinados. Neste sentido é a doutrina de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, in verbis:

"Em hipóteses de co-autoria, a peça acusatória deve historiar a participação de cada um dos acusados, a fim de que possam individualmente responder à imputação. É o que deflui do sistema penal brasileiro que, por imposições de ordem constitucional, não admite a responsabilidade objetiva e acolhe o princípio da personalidade. Não se exige a descrição pormenorizada, mas a suficiente para que o acusado possa exercer com plenitude sua defesa." [23]

A respeito, é de grafar mudança jurisprudencial operada no âmbito do STF no julgamento do HC 86.879, relatado pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, onde se lê:

"Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei no 7.492, de 1986). Crime societário. Alegada inépcia da denúncia, por ausência de indicação da conduta individualizada dos acusados. Mudança de orientação jurisprudencial, que, no caso de crimes societários, entendia ser apta a denúncia que não individualizasse as condutas de cada indiciado, bastando a indicação de que os acusados fossem de algum modo responsáveis pela condução da sociedade comercial sob a qual foram supostamente praticados os delitos. (...) Necessidade de individualização das respectivas condutas dos indiciados. Observância dos princípios do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), da ampla defesa, contraditório (CF, art. 5º, LV) e da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III)."

Este posicionamento diverge daquele que vinha sendo consagrado pela doutrina e jurisprudência e que pode ser visto, ad exemplum, na ementa do HC 31.294, julgado pela sexta turma do STJ, tendo por relator o Ministro Amilton Carvalhido. Veja-se:

"A denúncia, à luz do disposto no artigo 41 do Código de Processo Penal, deve conter a descrição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias e, por conseqüência, no caso de concurso de agentes, a definição da conduta de cada autor ou partícipe. É firme o entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que, em faltando à Acusação Pública, no ensejo do oferecimento da denúncia, elementos bastantes ao rigoroso atendimento do seu estatuto formal (Código de Processo Penal, artigo 41), principalmente nos casos de crime coletivo ou societário, é válida a imputação genérica do fato-crime, sem a particularização das condutas dos agentes, co-autores e partícipes, admitindo, como admite, a lei processual penal que as omissões da acusatória inicial possam ser supridas a todo tempo antes da sentença final (Código de Processo Penal, artigo 569)." [24]

Especificamente em relação a delito societário, tem-se que "é dispensável a descrição minuciosa e individualizada da conduta de cada acusado, bastando, para tanto, que ela narre a conduta delituosa de forma a possibilitar o exercício da ampla defesa." [25]

A denúncia tisnada pela pecha de imprecisão, da qual decorra potencial prejuízo ao direito de defesa, é írrita, e não poderá ser recebida pelo juiz. Não é por outro motivo que o STJ, através de sua quinta turma, no HC 59.312, relatado pelo Ministro Gilson Dipp, em caso de delito de curandeirismo, firmou que:

"Se a inicial acusatória imputou à paciente a prática do delito de curandeirismo de forma genérica, deixando de detalhar qual a conduta por ela realizada que se adeqüa ao tipo penal atribuído, não explicitando quais os "trabalhos de curandeirismo" foram praticados pela ré, resta configurado o constrangimento ilegal. Não se constata o atendimento dos requisitos do art. 41 do CPP, pois os fatos delituosos não se encontram devidamente expostos, com suas circunstâncias, de modo a permitir o exercício da ampla defesa. A despeito de não se exigir a descrição pormenorizada da conduta do agente, isso não significa que o órgão acusatório possa deixar de estabelecer qualquer vínculo entre o denunciado e a empreitada criminosa a ele atribuída." [26]

Assim, o equilíbrio na peça portal do procedimento criminal reside em dizer tudo o que é preciso para imputar uma conduta delituosa, somente o necessário para descrever esta, e nada menos do que o indispensável para o exercício do direito de defesa.

7.4) Princípio da não Limitação da Acusação

É certamente equivocada a disseminada idéia de que o órgão público de acusação tem por missão invariável a busca da condenação a qualquer custo. Qualquer agente público deve ter em mira, como escopo fundamental, a correta aplicação da lei. A persecução penal não tem escopo diverso.

No tocante à denúncia, urge, porém, não olvidar que se busca apenas o início da ação penal. Seu conteúdo é uma projeção da almejada condenação, que poderá advir ou não, podendo o próprio órgão da acusação postular a absolvição se o caderno probatório não fornecer o esperado lastro de convicção. Desta natureza e função da denúncia deflui a vigência do "in dubio pro societate".

Em termos de elaboração da denúncia, isso se traduz no princípio da não limitação da acusação, cuja feição prática se materializa na inconveniência de o órgão da acusação limitar ex ante o espectro da acusação. Na prática, tem-se que o que interessa para o órgão da acusação é o fato e aquilo que razoavelmente se pode dele extrair em termos de capitulação. A matéria eventualmente alegável em defesa, como v.g. privilegiadoras, atenuantes, minorantes ou circunstâncias que possam eventualmente atenuar a culpabilidade, não devem constar na denúncia. Sua inserção poderia coarctar prematuramente a acusação, sendo necessário, eventualmente, posterior aditamento. Por outro lado, ao órgão da acusação interessa exatamente esta ótica, ou seja, a formulação de uma imputação de fato delituoso. A perspectiva da presença de uma justificativa para ele ou de uma causa de exclusão ou atenuação da culpabilidade é da defesa.

Mas note-se, e isto é importante, não parte o órgão da acusação do pressuposto que tenha de ser buscada a versão dos fatos mais gravosa ao acusado, como se houvesse um compromisso em condená-lo da forma mais severa possível. Não é ele inimigo do réu e seu compromisso é com a lei e com a sociedade. O problema é eminentemente técnico. Diante dos fatos é possível, normalmente, se produzir versões das mais favoráveis ao acusado até as mais gravosas. Como a denúncia é uma proposta acerca do conjunto de fatos que deverão ser apurados e de sua conformação e características, ela deve abarcar todo o conteúdo possível que deles se pode extrair. Não deve ela subtrair aspectos relevantes da apuração judicial. Então, o que se nota é que o compromisso do órgão acusatório é com a apuração da verdade real, e não com a condenação mais gravosa ao réu. Esta última poderá ou não ocorrer. E é esta busca da verdade real que motiva a atuação voltada a abarcar de forma mais abrangente possível os fatos na peça inicial.

Desta necessidade não se pode inferir, todavia, possa o Ministério Público, e isso vale, como de resto tudo quanto dito até agora, também para o querelante, formar um juízo da acusação absolutamente ao seu alvedrio e destoante daquilo que dos fatos razoavelmente se pode extrair. Este aspecto foi bem realçado no julgamento do HC 72.506, onde o STF, na voz no Ministro Celso de Mello concluiu:

"A inépcia da denúncia caracteriza situação configuradora de desrespeito estatal ao postulado do devido processo legal. É que a imputação penal contida na peça acusatória não pode ser o resultado da vontade pessoal e arbitrária do órgão acusador. Este, para validamente formular a denúncia, deve ter por suporte necessário uma base empírica idônea, a fim de que a acusação penal não se converta em expressão ilegítima da vontade arbitrária do Estado" [27]

Como já dito, há um espectro onde validamente pode transitar a acusação, desde uma visão mais branda ao acusado até aquele lhe é mais gravosa. O que deve ser buscado é a formulação de uma denúncia que busque permitir a apuração mais ampla possível dos fatos dentro de um critério de razoabilidade e lógica, que indicará o que é validamente extraível dos fatos.


8) ELABORANDO A DENÚNCIA OU QUEIXA

A denúncia não difere em sua funcionalidade de uma inicial cível. Os requisitos básicos estão no artigo 41 do CPP, o qual, porém, não os traz todos, mas apenas o essencial.

O primeiro ponto que deve conter a denúncia é o seu destinatário, o juízo ou órgão jurisdicional a que se destina. Nas comarcas de vara única, que são a grande maioria das comarcas de entrância inicial, dificuldade alguma há, devendo ser a denúncia endereçada ao juiz da comarca da localidade em questão. Mas nas comarcas com mais de uma vara, torna-se inviável saber de antemão qual o juiz será competente especificamente, a não ser que exista disposição estabelecendo competências específicas. Tais regras, ausentes do código de processo penal, estão nos códigos de organização judiciária ou normatizações próprias de cada "justiça". Assim, por exemplo, no Estado do Rio Grande do Sul, a primeira vara de cada comarca é competente para dos delitos dolosos contra a vida. Já na capital, há varas especializadas em delitos desta espécie.

Após o cabeçalho, vem a introdução, com identificação do órgão ou pessoa (se for ação privada) que está oferecendo a denúncia, e menção do seu embasamento (inquérito, termo circunstanciando ou documentos). Um exemplo seria: "O Ministério Público, por seu agente signatário, no exercício de suas atribuições constitucionais, vem perante V. Exa., com base no inquérito policial número tal (ou relatório do tribunal de constas nº tal, ou nos documentos oriundos do processo judicial nº... ) oriundo da delegacia de polícia de(...), oferecer denúncia (ou denunciar):"

Também é usual a menção, se for o caso, do termo de representação neste local.

Após segue-se a qualificação do acusado ou acusados. Normalmente a formatação desta parte é bem destacada, mas é mera questão de estilo pessoal que assim seja. Na qualificação do acusado devem ser utilizados todos os elementos disponíveis para sua identificação tais como nacionalidade, nome, prenome, alcunhas, data de nascimento, filiação, grau de escolaridade, número de documento de identidade, número do cadastro de pessoas físicas e título eleitoral, residência e paradeiro.

Nem todos estes elementos são imprescindíveis, como, por exemplo, números de documentos, mas sua menção auxilia à prefeita identificação do acusado e a realização de futuras diligências.

A alcunha é importante porque não é incomum os réus serem conhecidos exclusivamente por seu apelido. Os números de documentos facilitam diligências. Se o réu não é localizado em seu endereço, antes de proceder-se a sua citação por edital é de todo conveniente que sejam realizadas diligências para sua localização. Pois bem, os números de documentos facilitam sobremaneira a sua procura junto a cadastros públicos e privados. Por vezes, um pedido de diligências de localização esbarra na ausência de mais elementos de identificação quando há apenas um nome e uma filiação já que surgem homônimos que apresentam inclusive os mesmo nomes de filiação. Aliás, neste passo urge mencionar, ad cautelam, que conforme a Súmula nº 351 do STF, é nula a citação por edital de acusado preso no mesmo estado da federação. Logo, se não localizado o réu, pelo menos uma consulta aos órgãos policiais e ao gestor do sistema penitenciário é imperativa.

A menção à residência e paradeiro se justifica porque podem não coincidir. O réu tem residência em certo lugar, mas está, exempli gratia, "atualmente recolhido junto ao presídio tal".

Após a qualificação vem a narrativa dos fatos. A lei exige descrição dos fatos delituosos com todas as suas circunstâncias. Como já vimos, as circunstâncias mencionadas no artigo 41 do CPP obviamente são as penalmente relevantes e não fatos que, sendo meramente interligados ao delito, repercussão alguma possam ter na capitulação ou na aferição da culpabilidade, ou seja, circunstâncias são as circunstâncias do crime.

Não há uma regra formal de como devam ser expostos os fatos. Todavia, é de bom alvitre, e recomenda a lógica que os fatos sejam descritos separadamente, um a um, em seqüência, dos mais graves para os mais leves e/ou em seqüência cronológica. Assim se temos um homicídio como segundo delito em ordem cronológica, será ele primeiro mencionado, por ser o fato principal. Se temos três delitos, sendo um deles homicídio, será ele primeiro descrito, e os demais em ordem cronológica, o que facilita a visualização do iter criminis.

Na descrição dos fatos, conforme lembra Tourinho Filho, reportando-se à doutrina de João Mendes, deve ser mencionado o autor (quis ou wer), os meios empregados (quibus auxilis ou womit), o mal produzido (quid ou was), os motivos (cur ou warum), o modo de execução (quomodo ou wie), o lugar (ubi ou wos) e o tempo (quando ou wann). [28]

Na prática há uma ordem na enumeração das circunstâncias. Inicia-se pelo tempo, com menção do dia, mês, ano e hora. Nem sempre é possível ter estes dados apurados com precisão. Quid inde? Mencioná-los com a maior proximidade possível.

Assim se sei que o delito foi praticado em março de 2006, mas não sei a data, devo mencionar no mês de março, "em data não apurada", mas posso mencionar se conhecido, o período dentro do mês, como por exemplo, "em fins de março de 2006, em data não precisada". O mesmo vale para a hora, lembrando que esta pode ter fundamental importância, como ocorre no artigo 155, § 1º, do CP (furto durante o repouso noturno).

Não conhecido o horário precisamente, pode ser indicado por aproximação ou relacionado a um horário específico, como "em horário não precisado, mas após as 22hs".

Após, vem a menção ao local. Igualmente a precisão absoluta nem sempre é possível. Se conhecido um endereço, deve ser mencionado, caso contrário, deve-se indicar a localização pelos elementos disponíveis. Vale lembrar que a localização é elemento para apuração da competência.

Segue a menção do fato delituoso, com descrição da conduta típica, dos meios utilizados e do dano potencial ou efetivo causado, se for o caso. Também é de bom alvitre que desde já sejam mencionadas circunstâncias relevantes como as qualificadoras. A descrição típica deve ser descrita com o máximo de fidelidade ao texto legal, deixando-se a sua corporificação específica para o restante da narrativa. Esta menção ao texto legal facilita a defesa do acusado, pois na seqüência da narrativa ele tomará ciência de quais fatos específicos ensejaram o enquadramento de sua conduta naquele tipo.

Temos assim, a menção do fato em uma narrativa múltipla. Primeiramente é mencionada a ação como se mostra no tipo legal e posteriormente a sua materialização no caso concreto. Vejamos um exemplo:

"No dia 01 de janeiro de 2006, por volta das 19h30min, na Rua Borges de Medeiros, nº 000,em Porto Alegre-RS, Tício de tal obteve para vantagem ilícita mediante emprego de meio fraudulento, consistente em induzir Mévio de tal em erro através da emissão de um cheque nº001, da agência nº000, do Banco Y, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, causando-lhe prejuízo de R$ 400,00.

Na ocasião, o denunciado dirigiu-se ao estabelecimento comercial da vítima e efetuou o pagamento de compras que havia feito com a mencionada cártula, a qual não tinha provisão de fundos em poder do sacado quando de sua apresentação para compensação, o que era de conhecimento do emitente."

Observa-se que, no primeiro parágrafo, os elementos essenciais do fato são descritos, com menção da figura típica através da utilização de uma fórmula a mais próxima possível do tipo legal, seguindo-se, no segundo parágrafo, a uma narrativa do que consistiu, na prática, a conduta antes descrita. Nesta sistemática, o acusado tem possibilidade de conhecer o fato específico pelo qual é acusado bem como a conformação legal do tipo respectivo. Vejamos um exemplo de concurso de agentes em homicídio qualificado:

"No dia 01 de março de 2005, em horário não apurado, mas durante a noite, no interior de uma oficina mecânica situada na Rua Presidente Vargas, nº 000, em Passo Fundo-RS, Mévio de Tal e Tício de tal, em comunhão de esforços e unidade de desígnios, embuídos de motivação torpe e mediante recurso que dificultou a defesa da vítima, através do emprego de disparos de um revolver calibre. 38 (apreendido conforme auto de apreensão da fl. 25 do IP), mataram Caio de Tal, causando-lhe as lesões corporais descritas no auto de necropsia da fl. 37 do IP, o qual refere "perfuração por PAF no tórax, entre sexta e sétima costelas, causando hemorragia aguda e perfuração por PAF na região temporal direita, causando desorganização da massa celáfica".

Na oportunidade, o denunciado Mévio, objetivando ocultar uma dívida que tinha com a vítima, atraiu Caio, seu irmão (conforme certidões de nascimento das fls. 67 e 68 do IP), para o interior da oficina com a justificativa de verificar um motor de um veículo, momento em que o denunciado Tício, em adrede acerto com Mévio, e valendo-se da surpresa, de inopino, desferiu em Caio dois disparos de arma de fogo que produziram as lesões acima descritas e ocasionaram a morte da vítima."

Mais uma vez se observa que no primeiro parágrafo foi mencionada a fórmula legal, com acréscimo da menção do instrumento utilizado e descrição da materialidade. No segundo, seguiu-se a descrição dos fatos que caracterizaram concretamente a ação e as qualificadoras do motivo torpe (ocultação da dívida), e recurso que dificultou a defesa da vítima (surpresa e ardil para atrair a vítima). Absolutamente irrelevante saber a origem da dívida e desaconselhável mencionar o seu valor, porque fatores que não interferem na caracterização da motivação torpe, embora posam ser de revelo na fixação da pena, visto que insignificante o valor maior é a reprovabilidade. Tampouco importa saber onde estavam a vítima e réu anteriormente ou onde os comparsas efetuaram o ajuste para a empreitada. Logo, a narrativa descreve o fato com todos os seus elementos essenciais, viabiliza o direito de defesa, mas não incorre em excessos de descrição de fatos e circunstâncias irrelevantes. Sobreleva considerar que de cada uma das circunstâncias mencionadas resultará um aspecto da capitulação.

Da menção à "comunhão de esforços e unidade de desígnios" (ou conjunção de vontades e união de esforços) decorre a aplicação do artigo 29 do CP. Da afirmação do motivo torpe e do recurso que dificultou a defesa da vítima decorrem as qualificadoras do artigo 121, § 2º, incisos I e IV, do CP. Da menção ao fato de a vítima ser irmão de um dos agentes decorre a aplicação para este (já que circunstância de caráter pessoal e não elementar) da agravante do artigo 61, inciso II, alínea "e", do CP.

Suponhamos agora que os agentes tivessem se valido da colaboração de um adolescente que segurou a vítima, constatando-se que Mévio dirigiu os demais. A denúncia ficaria;

"No dia 01 de março de 2005, em horário não apurado, mas durante a noite, no interior de uma oficina mecânica situada na Rua Presidente Vargas, nº 000, em Passo Fundo-RS, Mévio de Tal e Tício de tal, em comunhão de esforços e unidade de desígnios entre si e com o unimputável Trajano de tal, embuídos de motivação torpe e mediante recurso que dificultou a defesa da vítima, através do emprego de disparos de um revolver calibre. 38 (apreendido conforme auto de apreensão da fl. 25 do IP), mataram Caio de Tal, causando-lhe as lesões corporais descritas no auto de necropsia da fl. 37 do IP, o qual refere "perfuração por PAF no tórax, entre sexta e sétima costelas, causando hemorragia aguda e perfuração por PAF na região temporal direita, causando desorganização da massa celáfica".

Na oportunidade, o denunciado Mévio, objetivando ocultar uma dívida que tinha com a vítima, atraiu Caio, seu irmão (conforme certidões de nascimento das fls. 67 e 68 do IP), para o interior da oficina com a justificativa de verificar um motor de um veículo, momento em que o adolescente Trajano o segurou, imobilizando-o, e o Tício, em adrede acerto com Mévio, de inopino, desferiu em Caio dois disparos de arma de fogo que produziram as lesões acima descritas e ocasionaram a morte da vítima.

O denunciado Mévio organizou e dirigiu a execução do delito, instigou Tício à participar e contratou a participação do adolescente mediante promessa de paga, instigando-o" [29]

Se possível a caracterização de delito de corrupção de menores em relação ao adolescente, haveria um novo fato a ser denunciado. Caso contrário, Mévio responderia também pela agravante do artigo 62, inciso III, do CP. Pela organização e condução da empreitada e pela instigação de Tício, também são aplicáveis as agravante do artigo 62, incisos I e II, do CP.

Imaginemos, agora, o mesmo delito na modalidade da conatus:

"No dia 01 de março de 2005, em horário não apurado, mas durante a noite, no interior de uma oficina mecânica situada na Rua Presidente Vargas, nº 000, em Passo Fundo-RS, Mévio de Tal e Tício de tal, em comunhão de esforços e unidade de desígnios, embuídos de motivação torpe e mediante recurso que dificultou a defesa da vítima, através do emprego de disparos de um revolver calibre. 38 (apreendido conforme auto de apreensão da fl. 25 do IP), tentaram matar (ou deram início ao ato de matar) Caio de Ta, somente não consumando seu desiderato homicida por circunstância alheias as suas vontades.

Na oportunidade, o denunciado Mévio, objetivando ocultar uma dívida que tinha com a vítima, atraiu Caio, seu irmão (conforme certidões de nascimento das fls. 67 e 68 do IP), para o interior da oficina com a justificativa de verificar um motor de um veículo, momento em que o denunciado Tício, em adrede acerto com Mévio, e valendo-se da surpresa, de inopino, desferiu em Caio dois disparos de arma de fogo, o qual, esquivando-se, logrou fugir do local e foi socorrido por transeuntes"

Na capitulação a inserção do artigo 14, inciso II, do CP.

Vale registrar, aproveitando o ensejo, que, quando desconhecidos os motivos e diante de delito onde a sua presença pode ensejar alteração legal, deve ser mencionada esta circunstância, deixando claro que não repercutiram sobre a acusação exatamente pelo seu desconhecimento.

E nos delitos culposos? Há que mencionar a modalidade de culpa (negligência, imperícia ou imprudência) e o fato ou fatos específicos que as caracterizam. Vejamos um exemplo:

"No dia 01 de janeiro de 2006, por volta das 13h10min, na BR 116, KM 000 em Torres-RS, Agripa de tal, na condução de uma motocicleta, para a qual não tinha Carteira de Habilitação, placa 000, chassi nº 0000, deu causa, por imprudência e negligência, à morte de Justiniano de tal, causando-lhe as lesões corporais descritas no auto de exame de necropsia da fl.10 do IP, que refere como causa mortis ‘hemorragia interna, consecutiva a traumatismo abdominal com laceração do baço’.

Na ocasião, o denunciado conduzia a vítima na sua motocicleta, sem capacete (negligência), oportunidade em que ingressou na RS 116 inadvertidamente, sem observar a aproximação de um caminhão, placa 000, conduzido por Constantino de tal(imprudência), dando causa a uma colisão da qual resultaram as lesões que levaram à morte da vítima.

O denunciado não tinha Carteira de Habilitação para condução do veículo."

Após a descrição dos fatos, temos o dispositivo, onde será feita a capitulação dos fatos e os pedidos. Exemplificando:

"ASSIM AGINDO, fulano de tal incorreu nas sanções do(s) artigo(s)..... E para que contra ele se proceda, o Ministério Público oferece a presente denúncia, requerendo que, recebida e autuada, seja o réu citado para se ver processar, sob pena de revelia, inquirindo-se as pessoas a seguir arroladas e realizando-se as diligências diante mencionadas (se for o caso), seguindo-se até final condenação"

No caso de delitos contra a vida, o pedido não será pela condenação, mas pela procedência da denúncia para o fim de pronunciar o réu.

Junto à denúncia, pode ser oferecido rol de testemunhas e procedida a juntada de documentos, lembrando que o inquérito ou termo circunstanciado sempre a acompanhará quando lhe servir de base (artigo 12 do CPP).

É comum o rol vir na seqüência do dispositivo e trazer completa qualificação das testemunhas. De certa forma, a qualificação por demais pormenorizada acaba por expor a testemunha. Por outro lado, é direito do acusado ter plena ciência de quem são as testemunhas, até para que possa contraditá-las. Desta forma, a fim de preservar a testemunha e não comprometer o direito de defesa, somente dados essenciais devem ser mencionados, como nacionalidade, estado civil, nome e filiação, mencionado-se o endereço com alusão à pagina do inquérito ou termo circunstanciado em que se encontra, o que, inclusive, facilita a localização posterior do depoimento onde este dado deve estar.

Também podem seguir-se ao dispositivo, na mesma peça, pedidos de diligências, de prisão, ou promoções. As diligências somente poderão ser as não essenciais, que não prejudiquem o oferecimento da denúncia, como por exemplo, postulando a juntada de um documento, a localização de uma testemunha ou acusado etc...

As promoções podem postular a extinção da punibilidade ou o arquivamento em relação a algum delito ou agente, ou ter por objeto pedido de restituição de coisas apreendidas formulado pelo acusado ou por terceiros.


9- CONTROLE DA DENÚNCIA OU QUEIXA

Observados todos os aspectos já mencionados, deverá o propositor da denúncia atentar para o último controle, o dos prazos. No caso das ações privadas, há o prazo decadencial, que é de seis meses, conforme os artigos 103 do CP e 38 do CPP. A inobservância deste prazo induz extinção da punibilidade por força do artigo 107, inciso IV, do CP. O prazo não se suspende ou interrompe. Desta forma, se tramita procedimento investigatório, deve o querelante observar para que termine (ou forneça subsídios para a queixa) antes deste interregno. A decadência autoriza sua decretação de ofício e deve ser alegada pela defesa já na defesa prévia ou primeira oportunidade em que se manifestar nos autos.

No caso de ação pública, condicionada ou não, o prazo para denúncia será de cinco dias se o réu estiver preso e de quinze se estiver solto, contado o prazo, neste último caso, do último recebimento do inquérito ou termo circunstanciado pelo Ministério Público (artigo 46 do CPP). Também é de quinze dias o prazo caso a denúncia seja oferecida com dispensa do procedimento policial (artigo 39, parágrafo único, do CPP), contando-se do recebimento dos documentos ou informações (artigo 46, parágrafo 1º, do CPP).

Mas há prazos especiais na legislação extravagante. Na Lei nº 5.250/67 (Crimes de Imprensa), o prazo "prescricional" (na verdade é de decadência) é de três meses, conforme o parágrafo 1º do artigo 41. O prazo de aditamento da queixa é de dez dias (artigo 40, § 3º) e não de três, como ocorre no CPP. Atentar, ainda, para o fato de que o prazo de prescrição dos delitos é de dois anos, independentemente da sanção, conforme o artigo 41, caput. O prazo para queixa subsidiária é de 10 dias (artigo 40, § 1º).

Na Lei nº 8.038/90 (processos de competência originária dos tribunais), o prazo em caso de réu preso também é de cinco dias, havendo expressa menção de que não haverá suspensão em vista de pedido de novas diligências, exceto se for relaxada a prisão. Em caso de réu que não esteja preso, o prazo é de quinze dias, com interrupção em caso de diligências.

No Código Eleitoral, o prazo para oferecimento da denúncia é 10 dias (artigo 357, da Lei nº 4.737/65).

Na revogada Lei de Tóxicos (Lei nº 10.409/02), o prazo é de dez dias (artigo 37, caput), prazo mantido na nova legislação (Lei nº 11.343/06), em seu artigo 57, caput.

Na Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 4.898/65), o prazo é de 48 horas (artigo 13, caput).

A inobservância dos prazos no caso da ação pública não tem maiores conseqüências diretas, podendo, porém, repercutir sobre a segregação cautelar, embora os vencimentos de prazos somente possam autorizar o deferimento do writ quando irrazoável sua superação, valendo lembrar que o prazo de término da instrução no procedimento comum, que é de ordem jurisprudencial e é de 81 dias, é contado globalmente, e não de forma individualizada.

Oferecida a denúncia, cumprirá ao magistrado proceder ao seu controle tendo em mira os vetores dos artigos 41 e 43 do CPP. Diante da ausência de requisitos essenciais, a denúncia não poderá ser recebida. Em regra, o não recebimento não impede nova propositura da ação penal, desde que suprida a falha ou omissão.

Já no caso do artigo 43, temos rejeição, sendo que há verdadeiro julgamento antecipado do mérito. Com efeito, segundo o artigo 43, inciso I, a denúncia ou queixa será rejeitada quando o fato evidentemente não constituir crime, hipótese que corresponde exatamente ao artigo 386, inciso III, do CPP. Se o fato narrado nem mesmo em tese constitui ação típica fica afastada de plano a plausibilidade da acusação, sendo possível julgamento de mérito. Mas note-se, somente a atipicidade da conduta primu ictu oculi é que legitima a rejeição da denúncia. [30]

Quanto ao princípio da insignificância como fundamento da rejeição espelhada neste dispositivo, há reservas. No julgamento da Apelação Crime nº 70011545449, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, o Relator, Desembargador João Batista Marques Tovo rejeitou esta possibilidade, conforme se verifica em seu voto:

"Não se pode afirmar, de antemão, que o fato narrado não constituiu crime. Isso porque a imputação diz respeito a fato que não dispensa a produção de prova para a apreciação de sua correspondência à norma jurídica, havendo a alegação do acusado de que a res era de sua propriedade e as circunstâncias de sua conduta. Ademais, o valor da res (R$ 500,00), em princípio, não parece ser insignificante. Aliás, não importa, nesse momento e no caso concreto, que não tenha havido prejuízo, ou que tenha sido de pouca monta.

Entretanto, ressalto que o juízo de admissibilidade da ação penal não vincula o julgamento do mérito, de modo que o argumento pode ser repetido, diante da prova a ser colhida, se for o caso e se assim entender a eminente Julgadora." [31]

No mesmo diapasão, o julgamento da Apelação Crime nº 70014960777, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, relator o Desembargador Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, em cujo voto se lê:

"A decisão que rejeitou a denúncia, considerando a conduta como delito de bagatela, pela insignificância, se mostra equivocada, pois se trata de furto praticado em concurso de agentes e com rompimento de obstáculo, sendo que não deve ser levado em consideração apenas o valor dos objetos subtraídos, mas também, dentre outros elementos, as conseqüências da prática delituosa. No caso concreto, somente o dano causado no veículo, segundo o auto de constatação de dano, foi de R$ 90,00 (noventa reais), e além disso, deve ser contabilizado também o desvalor da ação levada a efeito pelo acusado, que, inclusive, foi preso em flagrante e possui dois processos em andamento, ambos crimes contra o patrimônio e praticados com o mesmo modo de execução, qual seja, furto praticado em concurso de agentes e com rompimento de obstáculo (fl. 29).

Cabe ressaltar, que embora o apelado não tenha alcançado o sucesso na empreitada criminosa, verifica-se a ousadia e audácia na sua tentativa de subtrair os bens.

É certo que o Judiciário está assoberbado de processos, mas não se pode esquecer da vítima que, espoliada de seus bens, procura resposta legal ao ataque sofrido. Além do que, a instrução processual poderá, até, conduzir ao posicionamento esposado na decisão atacada, mas rejeitar-se a denúncia, especialmente quando já recebida, parece atuação precipitada, e não é isso que a sociedade espera do Judiciário.

Portanto, tendo o acusado praticado conduta antijurídica prevista no Código Penal, não há como, de imediato, aplicar-se o princípio da intervenção mínima vigente na seara penal, considerando-se essa conduta como delito de bagatela e insignificante, porque se estaria, inclusive, incentivando a prática de delitos semelhantes, com segurança e certeza da impunidade.

Desta forma, atendidos os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, e estando a conduta típica e jurídica devidamente descrita na denúncia, não há porque, de plano, ser rejeitada." [32]

No inciso II, há rejeição se já estiver extinta a punibilidade pela prescrição ou outra causa. As causas de extinção da punibilidade estão no artigo 107 do CP, em rol que não é exaustivo. Implicam comprometimento do próprio direito material (jus puniendi), de forma que também há julgamento de mérito. Obviamente que se a hipótese não for evidente, como é o caso da prescrição, há necessidade de que existam elementos nos autos que autorizem concluir pela presença da causa.

O inciso III contempla hipótese de ilegitimidade de parte ou ausência de condição para o exercício da ação. Poderia ter dito simplesmente falta de condições da ação ou de procedibilidade. Mas no caso deste inciso, o parágrafo único ressalva a possibilidade de propositura da ação se sanado o defeito. Há uma impropriedade neste parágrafo único, pois se alterado o querelante ou o réu, na verdade, utilizando-se dos elementos de identificação da ação (eadem pars, eadem petitum, eadem causa petendi) [33]verifica-se que é uma nova ação, e não a mesma, que está sendo proposta. Ela somente será a mesma se com os mesmos elementos e suprida a falha for novamente proposta.

Se o julgamento é de mérito, então há formação de coisa julgada, mas há divergência quanto ao recurso cabível. É que no Estado do Rio Grande do Sul há predominante corrente jurisprudencial que entende que, em caso de rejeição, o recurso cabível é apelação, e não o recurso em sentido estrito.

De qualquer forma, a divergência implica aplicação do princípio da fungibilidade.

Uma vez recebida a denúncia, o seu controle recairá especialmente na defesa, a quem cumpre, por dever de ofício, verificar a regularidade da peça e apontar tudo quanto possa interessar à defesa do acusado.

Lastimavelmente se tem preconizado nas faculdades que a defesa prévia deve limitar-se a postular singelamente a inocência do acusado e apresentar rol de testemunhas a fim de "não abrir a estratégia da defesa". Nada mais equivocado. É este o momento para que defeitos da denúncia sejam apontados, até mesmo para se evitar que o réu seja submetido à necessidade de ter de passar por uma instrução, e ter de aguardar um julgamento.


10 CONCLUSÕES

O direito penal e o processo penal tratam dos interesses e direitos mais valiosos para a sociedade moderna. O caráter fragmentário e excepcional da intervenção penal indica que o fato jurídico subjacente (delito) e suas conseqüências (sobretudo a pena) apresentam invulgar importância para a sociedade como um todo e para cada indivíduo que nela vive.

Um sistema penal adequado é imprescindível para o Estado e para a sociedade. Sem a previsão de pautas de comportamento sancionadas a vida em sociedade seria inviável. Por outro lado, há necessidade de um sistema processual de máximo garantismo, a fim de que as grandes conquistas dos direitos individuais e liberdades públicas sejam mantidas intangíveis.

Nesta perspectiva, é necessário que cada profissional e estudante de direito reflita seriamente acerca da importância destas duas disciplinas. Esta reflexão deveria, também, induzir uma mudança de mentalidade nas nossas faculdades, mais voltadas ao direito privado. As matrizes privatistas que colmataram a formação dogmática moderna do direito tem perdido espaço no Estado Democrático Social de Direito que se desenha como opção do atual momento.

Movidos por esta consciência, devemos dedicar mais atenção ao direito público, e especialmente ao direito penal e processual penal. Também não deve ser olvidada a necessidade de que o ensino tenha em perspectiva a atividade prática, para que o conhecimento não se transforme em estéril teoria.

Assim como ocorre com a exordial cível, a denúncia representa juntamente com a sentença ou acórdão, momento crucial do processo penal. Suscita múltiplas e variadas questões e demanda uma singular cautela em sua elaboração, pois nela se condensa todo o sistema de valores constitucionais, direta ou indiretamente.

Movido pela intenção de compartilhar um pouco de conhecimento e alguma experiência amealhada, pus-me a escrever o presente trabalho. Muito do que aqui explanado, que é apenas fração do que há para se discutir, certamente não tardará a perder, ao menos em parte, atualidade, ainda que a dinâmica do processo penal não se tenha revelado de forma tão incisiva como a do processo civil.

É por isso que a pretensão maior, que espero tenha sido atingida, é chamar a atenção para o fato de que muito há a aprender fora dos bancos acadêmicos, e para a necessidade de estudo e aprimoramento constante em cada área.

Encerro assim este trabalho como sentimento de satisfação da tentativa de contribuir para discussão de idéias e difusão de um pouco de conhecimento e experiência, colocando-me a disposição dos colegas para o debate, que é nossa grande ferramenta de pesquisa.


Notas

01 Sobre o tema, ver o meu "Jurisdição, Ação e Processo à Luz da Processualística Moderna: Para onde caminha o processo?" na Revista Forense, nº 376, p. 145-180.

02 A visão do processo centrada na ação toma a como centro de gravidade a ótica de quem exerce o direito. A visão centrada na jurisdição, toma em linha de conta a ótica do Estado. É inegável que a ação está a serviço da jurisdição, sendo apenas uma das múltiplas opções de que poderia se valer o legislador para dar concretude do exercício da jurisdição. A visão centrada na ação ressente-se de muitas imprecisões diante de conflitos de direito público, ao passo que a a visão centrada na jurisdição presta-se a resolver com maior facilidade toda a gama de problema práticos envolvidos no complexo fenômeno da administração da justiça.

03 Hélio Tornaghi. A Relação Processual Penal, 2ª edição, editora Saraiva, São Paulo, 1987, p. 134.

04 J. E. Carreira Alvim, Elementos de Teoria Geral do Processo, 7ª edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1997, p. 120.

05 Teoria Geral do Processo, 14ª edição, Malheiros, São Paulo, p. 253.

06 DJ 19/02/96.

07 A respeito, após a CF/88 decidiu o STF: "Ação penal por contravenção. Constituição Federal de 1988, art. 129, I. Entre as funções institucionais do Ministério Público está a de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei. Legitimidade do Ministério Público para promover, privativamente, a ação penal, na espécie. Nulidade do processo, ab initio, porque iniciada a ação penal por portaria do órgão jurisdicional." (RE 139.168. Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 10/04/92).

08 DJ 02/02/04.

09 HC 88.190, relatado pelo Ministro Cezar Peluso, disponível no informativo nº 438.

10 RHC 18698 / RJ. DJ 20.03.2006 p. 308, Quinta Turma, relatora Ministra Laurita Vaz.

11 HC 38495 / SC, DJ 27.03.2006 p. 334, Sexta Turma, relator o Ministro Hélio Quaglia Barbosa.

12 DJ 09.10.2006 p. 348.

13 Dj 01/08/03.

14 DJ 11/11/05.

15 Julgado em 26/08/2003.

16 DJ 06/10/03.

17 Recurso em Sentido Estrito nº 70015840002, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 16/08/2006.

18 A propósito, ver de minha autoria "A Estrutura Conceitual do Delito e o Finalismo" e "Responsabilidade Ambiental", disponíveis nos sites http://www.jus.com.br e http://www.jurid.com.br.

19 Julgado em 16/08/2006.

20 Julgado em 14/06/2006.

21 Embora exista acirrada divergência, é possível conceber-se uma lide penal onde interesses imediatamente oposto estejam em choque. De um lado, o jus libertais do acusado, de outro o jus puniendi do Estado. Digo diretamente porque indiretamente a liberdade também é um direito tutelado pelo Estado.

22 Habeas Corpus nº 70005217583, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gaspar Marques Batista, Julgado em 21/11/2002.

23 As Nulidades no Processo Penal. 6ª edição, Revista dos Tribunais, 1999, p. 96.

24 DJ 09.10.2006 p. 362.

25 RHC 16173 / SP. DJ 20.03.2006 p. 304, relatado pela Ministra Laurita Vaz.

26 DJ 09.10.2006 p. 329.

27 DJ 18/09/98.

28 Fernando da Costa Tourinho Filho. Processo Penal, 27ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, 1º volume, p, 396. Na menção, a primeira palavra corresponde à fórmula latina e a segunda à alemã.

29 A menção ao calibre da arma é efetivamente ".38", e não simplesmente "38", pois corresponde a 0,38 polegada. Calibre é a distância entre dois cheios do cano quando a arma é raiada.

30 Consultar a Apelação Crime Nº 70013442520, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcel Esquivel Hoppe, Julgado em 15/03/2006.

31 Julgado em 15/09/2005. Em sentido contrário Apelação Crime nº 70015079221, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Julgado em 17/08/2006.

32 Julgado em 16/08/2006.

33 É a teoria da lavra de Chiovenda que foi expressamente agasalhada pelo artigo 301, parágrafo 2º, do CPC, perfeitamente utilizável no processo penal.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Elaborando a denúncia criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1241, 24 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9196. Acesso em: 28 mar. 2024.