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Maus-tratos a crianças e adolescentes (art. 13 do ECA)

comunicação ao juiz da infância e sindicância nos hospitais

Maus-tratos a crianças e adolescentes (art. 13 do ECA): comunicação ao juiz da infância e sindicância nos hospitais

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Recentemente surgiram algumas dificuldades no relacionamento de prepostos da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca de Teresópolis com os hospitais da cidade, no que concerne à comunicação de atendimentos oriundos de possÍveis maus-tratos a crianças e adolescentes. A controvérsia se instalou no bojo da edição da Resolução 02/06 pelo Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça. Como se sabe, aquela ordem cancelou praticamente todas as portarias normativas baixadas por Juízes menoristas no Estado do Rio de Janeiro. Não houve avaliação de mérito individual, com a solução no atacado ocorrendo apenas no confronto com o rol do Art. 149 do ECA, então tido por restrito. O Conselho da Magistratura modificou seu entendimento quando editou a Resolução 30/06, admitindo interpretação extensiva do Art. 149 desde que cumpridos determinados ritos.

De todo modo, no conjunto das portarias canceladas estava aquela que determinava aos hospitais a comunicação referida no Art. 13, endereçando-a ao Juízo, em que pese o artigo nominar o Conselho Tutelar. Ocorreu iniciativa do Ministério Público, de oficiar ao Hospital das Clínicas de Teresópolis informando a desnecessidade da comunicação, em face da nova realidade decorrente da Resolução 02/06. Instalou-se certa confusão. A notícia é de que, além de deixar de remeter as comunicações por determinado período, houve ainda recusa de informação pelo hospital, quando lá comparecia preposto de Juízo em sindicância sobre alguma situação específica. Houve também dúvida do Comissário quanto à legalidade da tarefa recebida, quando lhe era dada tal ordem.

Tomei a liberdade de estudar o assunto, dada sua gravidade, até porque o Conselho Tutelar, ainda enfrentando conhecidas carências, salvo melhor juízo, não estava em plenas condições de assumir toda a tarefa de receber e processar todas as ocorrências que lhe seriam direcionadas de forma exclusiva, como também parecia absurdo o óbice à sindicância de preposto do Juiz.

Das pesquisas realizadas, parece-me que não é possível a qualquer hospital deixar de prestar informações requisitadas pelo Juízo. Igualmente, não é possível ao hospital desatender requerimento de informações, ainda que verbal, de Comissário de Justiça, quando envolvem interesse de criança ou adolescente. Da mesma forma, resguardadas necessidades de sigilo profissional, não deve o Comissário titubear ante à necessidade da fiscalização/sindicância de que tratamos.

A conclusão a que chego é decorrente da combinação de diversos artigos do ECA, interpretados de forma sistêmica, além da analogia com outros normativos. Entendo, inclusive, que a Resolução 02/06, se pode ter incidido em cancelamento – circunstancial, sem exame de mérito específico – da portaria mencionada, não afasta o que, independente daquele instrumento, pode ser tido já por obrigação regular do nosocômio. É o que analisaremos a seguir.


CONTEXTO - O DRAMA DOS MAUS-TRATOS

Preliminarmente, por mais que pareça desnecessário deve ser lembrado o território minado de dramas sobre o qual caminhamos. Os maus-tratos físicos e psicológicos a crianças e adolescentes impedem o seu desenvolvimento sadio. Atentam contra sua saúde física, mental, moral, espiritual e social. Portanto, agridem, frontalmente os direitos fundamentais infanto-juvenis, conforme inscritos no Art. 3º do ECA.

Além disto, maus-tratos invadem o Art. 5º da Lei Menorista que não admite "negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Por isso é que deve ser punido "na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seu direitos fundamentais".

A literatura e mesmo o noticiário têm sido fartos nos relatos que indicam como principais agressores de menores seus próprios pais ou parentes próximos. Considerada a família como núcleo primário da construção social sadia, vê-se a gravidade que tais danos provocam ao futuro cidadão, e por extensão, à sociedade em que – com alma rasurada e psique desconforme - atuará.

Em alentado estudo sobre o tema, VIVIANE NOGUEIRA DE AZEVEDO GUERRA [01] deduz as diversas conseqüências decorrentes de maus-tratos, dividindo-as em orgânicas e psicológicas. Nas orgânicas, relaciona:

"1) Seqüelas provenientes de lesões abdominais, oculares, de fraturas de membros inferiores e superiores, do crânio, de queimaduras, que poderão causar invalidez permanente ou temporária;

2) A morte: para a vítima, conhecida como violência fatal e muitas vezes bastante subestimada em função das dificuldades de se detectar as reais causas de morte".

Relaciona ainda as conseqüências psicológicas que assim resumiremos:

1Sentimento de raiva, de medo quanto ao agressor;

2Quadros de dificuldades escolares;

3Desconfiança;

4Autoritarismo – ponto onde, citando Greven, menciona a criação de "(...) paradoxal subserviência para com a autoridade e a rebelião contra ela – o que freqüentemente é uma marca das personalidades autoritárias (...)". Menciona ainda a violência infantil estudada por Miller, ocorrida nas infâncias tanto de Hitler quanto de Stalin. Aquele estudioso atribui à violência contra a criança a conseqüente "morte da alma", na medida em que a criança não possa encontrar ninguém que a proteja;

5Delinqüência – mostrando o "elo entre condutas delinqüenciais e punição física corporal", considerado pelo estudioso Dr. Ralph Welsh, como mais decisivo do que a situação econômica do delinqüente;

6Violência doméstica – alertando para o fato de que a punição corporal recebida pela criança por parte daqueles que deviam lhe ensinar tornam-se modelos para sua futura conduta igualmente violenta "contra outros adultos amados, especialmente esposas, maridos, amantes";

7Parricídio/matricídio – como forma de acabar com a violência em casa, pelo extermínio do agressor.

Após dissecar várias questões teóricas e fáticas em torno do assunto, a autora conclui, fazendo uma análise da forma como a questão ‘violência doméstica’ tem sido tratada na imprensa [02]. Dentre os vários itens que indicam distorção em tal cobertura, um deles trata criticamente do "complô de silêncio" que cerca o tema. Denuncia:

"As notícias, de modo geral, não trazem à tona quem fez a notificação dos fatos, nem enfatizam a necessidade de que isto seja feito por todo cidadão que tomar conhecimento de um problema desta natureza, na tentativa de se entender que tal conduta pode significar a diferença entre a vida e a morte para uma criança. Cumpre ressaltar que este complô de silêncio contribui, também, para que a sociedade se mantenha passiva e descompromissada em termos da proteção à infância e adolescência".

Haveria extensa literatura a citar como alerta sobre o tema. Entendemos, entretanto, que a autora até pela sua formação na área do Serviço Social, bem sintetiza as preocupações em torno do assunto. Deixa claras as conseqüências assustadoras, das quais é fácil deduzir um impagável custo social que ajuda a explicar parcela substancial da nossa atual realidade dramática e preocupante. Por isso é que a autora não admite "complô de silêncio". No que não está só.


O ECA NÃO ADMITE SILÊNCIO

No presente estudo defendemos que o ECA não admite silêncios criminosos. Vejamos, por exemplo, o que diz o Art. 13:

Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

Nota-se que o artigo termina, harmonizado com o principio da precaução, com ressalva ampliativa da obrigação. Ou seja, a comunicação ao Conselho não afasta a exigência de "outras providências legais". No caso, ao não discriminá-las, deixa o legislador certa margem discricionária àqueles que são obrigados à comunicação, e também para o intérprete legal.

A infração ao dispositivo encontra-se capitulada no Art. 245:

Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente: Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

Os dois artigos precisam ser lidos em conjunto. Um dispõe a obrigação, e se encontra no capítulo que trata do direito à vida e à saúde. Daí deduz-se, até pelos artigos próximos, a obrigação inafastável dos profissionais de saúde. Entretanto, por esta via só se chegaria à noticia dos casos ingressados em hospitais ou ambulatórios. Por isso quis o legislador ampliar o leque de obrigados. E assim o fez no Art. 245. Note-se ainda que tal obrigação, programaticamente, não é só de hospitais, creches, escolas e profissionais de tais instituições. Assim estabelece o Art. 18:

É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Não se esqueça, ainda, do Art. 4º que atribui a efetivação dos direitos infanto-juvenis como obrigações "da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público". Assim fica claro o conteúdo pretendido pelo legislador. Mais do que o zelo por uma forma, tem a lei uma finalidade. Inibir, evitar, punir os maus tratos a crianças e adolescentes. Evitar o "complô de silêncio". Para isso compromete todos os membros da sociedade, independente da condição em que nela se insiram.

Diga-se, também, que o Art. 5º prevê punição na forma de lei a "qualquer atentado, por ação ou omissão" aos direitos de que se trata.

Mas, há mais. Mesmo quando menciona entidades ou instituições o legislador, para ser coerente com a teleologia que estabeleceu, não poderia – como não o fez – isentar quem quer que fosse, pela mera indicação de um responsável. Assim, embora haja competências exclusivas, e atribuições específicas, há deveres que são gerais. À parte o indispensável acordo para recionalização de esforços, a ação do Conselho Tutelar não é suficiente para excluir qualquer outra ação legitimada, seja do Juiz, seja do Promotor. É necessário que a lei seja interpretada com tal inteligência. Se não, como se fazer para extirpar o câncer dos maus tratos, em caso de autoridade omissa em tema de tal relevância e urgência?

Por isso é que se tem defendido, hoje em dia, interpretação finalística, extensiva – e, acima de tudo, realista! – do Art. 262 do ECA [03]. Dela se deduz que, atribuída à autoridade judiciária atuação supridora das tarefas do Conselho Tutelar em caso de sua inexistência, não é admissível que o Magistrado se omita em caso de Conselho desaparelhado, inoperante ou ineficaz. Tal hermenêutica demonstra indispensável proatividade e cautela em jurisdição que não admite lacuna.

Dentro dessa linha de raciocínio torna-se necessário efetuar leitura similar dos Artigos 13 e 245, ou seja, percebendo a importância do Juiz como destinatário das comunicações. Assim entende, por exemplo, o Procurador de Justiça do Estado de São Paulo, ROBERTO JOÃO ELIAS, em sua obra Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, no caso do Art. 13:

"Além da comunicação ao Conselho Tutelar, a polícia deverá ser acionada, para a instauração de inquérito, que deve apurar a existência de delitos praticados contra o menor. Em alguns casos, a autoridade judiciária deve ser imediatamente comunicada, pois pode haver necessidade de suspensão do poder familiar (pátrio poder) ou concessão de guarda em caráter de urgência". [04] (grifamos)

O mesmo autor, desta feita, comentando o Art. 245 assim consignou:

"Autoridade competente, no caso, tanto pode ser o Juiz da Infância e da Juventude quanto o Ministério Público e o Conselho Tutelar. É válida, também, a comunicação feita à autoridade policial. Importa, sobre tudo que o atentado à criança ou ao adolescente seja esclarecido, e os responsáveis, devidamente punidos". [05] (grifamos)

Vê-se que a gravidade do tema obriga inclusive aos - por dever de oficio - sempre zelosos guardiões da lei e de seus ritos, os integrantes do Ministério Público, à necessidade da interpretação extra-literal. Tanto se dá porque o dever mencionado só se justifica pelo compromisso democrático que o instrui. Assim é que a Promotora de Justiça, Mestre em Direito Civil, Drª. PATRÍCIA PIMENTEL DE OLIVEIRA CHAMBERS RAMOS em seu trabalho "Infrações Administrativas" orienta sobre o Art. 245:

"A autoridade competente mencionada pela infração administrativa é o Conselho Tutelar, conforme se verifica pelo disposto no Art. 13 e Art. 56 do Estatuto. Assim, desde que o profissional comunique ao Conselho Tutelar, não estará incorrendo na infração administrativa. De qualquer forma, é de todo recomendável que, além do Conselho Tutelar, a comunicação também seja encaminhada à Promotoria da Infância e da Juventude, na medida em que esta tem a função de zelar pela proteção de crianças e adolescentes e fiscalizar a atuação do Conselho Tutelar, sem prejuízo de igual comunicação à Delegacia de Proteção da Infância e da Juventude ou à Delegacia mais próxima quando o profissional responsável verificar indícios de crime praticado contra o menor". [06]

No caso, vê-se que, mesmo defendendo que o destinatário primário da comunicação seja o Conselho Tutelar, dá a autora interpretação ampliada pela prudência que recomenda, dela excluindo, como destinatário, somente o Juiz. Do que, como já visto, discorda o Promotor paulista antes citado.

A autora, data venia, parece promover a exclusão do Magistrado por buscar aqueles que primeiramente deteriam tarefas executivas em torno do caso. Parece-nos que não quis com isto imaginar que o Juiz não tenha, subsidiária ou alternativamente, as mesmas tarefas. Tanto parece não ser assim que, pouco depois, discorrendo sobre outro aspecto do problema, menciona:

"Todavia, o médico, o professor ou o responsável por estabelecimento de atenção á saúde ou educação, por força do dispositivo legal previsto no Art. 245, passou a ser considerado uma das autoridades, na concepção publicista e protetiva das normas de proteção da infância, incumbidas de zelar pela criança ou adolescente, numa rede integrada e complexa da qual fazem parte também o Conselheiro Tutelar, o Policial, o Promotor de Justiça e o Juiz". [07] (grifamos)

Ora, nesta hermenêutica, se o médico ou professor ou diretor de estabelecimento é ‘autoridade’, não atenderia à lógica que também não o fosse, e até com muito mais propriedade, o Juiz.

E é com firmeza que a mesma autora defende interpretação ampliada para a identificação extra-literal dos sujeitos ativos obrigados à comunicação, aí incluindo "(...)enfermeiros, dentistas, psicólogos, conselheiros familiares, farmacêuticos, terapeuta ocupacional, ou quaisquer outros que tenham atendido a criança ou o adolescente(...)". E coroa tal raciocínio com a lapidar construção de hermenêutica teleológica:

"Deve fazer parte do exercício da cidadania plena o direito e o dever e todo e qualquer cidadão notificar uma situação de maus tratos a crianças e adolescentes a órgãos de proteção. Tal dever decorre da doutrina da proteção integral, compelindo a família, a sociedade e o Estado a participar e promover a defesa dos direitos de crianças e adolescentes". [08] (grifamos)

Os autores citados atingem o âmago da mens legislatoris. Maus tratos destroem vidas. Não podem ser admitidos. Para tanto são obrigados à comunicação não só os agentes indicados literalmente. TODOS AQUELES QUE TIVEREM CONHECIMENTO DA ILICITUDE SÃO COMPELIDOS À AÇÃO. DEVE SE DIRIGIR A COMUNICAÇÃO NÃO SÓ À ENTIDADE INDICADA LITERALMENTE. TODOS AQUELES QUE PUDEREM INTERVIR PARA COIBIR A ILICITUDE DEVEM SER CHAMADOS À AÇÃO. ISTO É O QUE PEDE A SENSATEZ DA INTERPRETAÇÃO FINALÍSTICA. NÃO TEM SENTIDO QUE SEJA O JUIZ EXCLUÍDO DO ROL DE POSSÍVEIS DESTINATÁRIOS DA COMUNICAÇÃO. Se não se recomenda a duplicidade de esforços, a confusão ou o retrabalho, menos ainda se autoriza a lacuna. Assim, a questão se resume à indispensável harmonização de iniciativas, através de acordos de trabalho, mesmo assim, nunca excludentes ou manietadores do empenho de quem quer que seja.

Pode se argüir, como faz a Dra. Patrícia, que a ótica estrita do Art. 13 somente obriga a comunicação ao Conselho Tutelar. Entretanto, parece-nos que, omisso o potencial comunicante em tal prudência, basta ao Juiz, por ofício ou portaria, dando-se por competente, incluir-se no rol de destinatários das comunicações para que a infração ao Art. 13 ocorra em caso de descumprimento, passando a incidir, assim, as penas do Art. 245.


OUTROS ASPECTOS LEGAIS QUE TORNAM NECESSÁRIA A ATUAÇÃO DO JUIZ

A – A relevância da autoridade do Juiz

Presente que o Art. 245 não fala em Conselho Tutelar, mas sim em ‘autoridade competente’, não pode ser menosprezada a linha interpretativa decorrente da leitura do Art. 146, que menciona:

"A autoridade a que se refere esta Lei é o Juiz da Infância e da Juventude, ou o juiz que exerce essa função, na forma da lei de organização judiciária local". (grifamos)

Mesmo que se considere a hipótese de que o lembrete se tenha feito somente no intuito de coibir a delegação de ações jurisdicionais a pessoas a tanto não autorizadas, como parece defender ROBERTO JOÃO ELIAS (2004) [09], não se deve olvidar que tal motivação não foi explicitada. Portanto, em todos os artigos nos quais não haja menção expressa de atribuição de competência, é o Juiz da Infância e da Juventude a autoridade a ser considerada. E, assim deve ser, como temos defendido já em outros trabalhos [10], no sentido de permitir a transição – segura e sem lacunas! - da realidade existente sob o Código de Menores à nova construção em rede, solidária, ampliada e participativa.

A diretriz de transição, parece-nos, está dada, inexoravelmente, pela ordem do Art. 262. Assim, evita-se situação de lacuna ou mesmo, subsidiariamente, situação de anomia. É preciso considerar que de uma situação em que predominava, nítido e inconteste, o poder tutelar do Juiz da Infância, foram imaginados mecanismos da democracia participativa que, se nascem de uma consciência cidadã em amadurecimento, a hegemonia dessas idéias nem sempre encontra pronta organicidade. Muitos dos sistemas apenas esboçados pelo Constituinte de 1988 como mecanismos de gestão participativa, seguem, quase 20 anos depois, ainda em elaboração. Penosa tem sido a implantação das estruturas previstas no SUS, nos Estatutos da Cidade, do Idoso, da Igualdade Racial, e tantos outros. Em duas décadas, quantas gerações de crianças não se sucedem? Não quis o legislador que estas ficassem desprotegidas no aguardo da resultante do inevitável embate político-institucional que dita o ritmo da efetiva implantação dos deveres estabelecidos pelo Constituinte. Com perspicácia, manteve-se o Juiz da Infância em posição estratégica de elemento de transição.

E quis mais o legislador, quis que as tarefas de determinadas entidades de proteção fossem, ao menos, complementares entre si. Por isso é que, em nota explicativa à tese em que defende ter o legislador equiparado o Conselho Tutelar à autoridade judiciária, firmou o Promotor de Justiça paranaense Murilo José DIGIÁCOMO:

"Vide Art. 236, em que o embargo ou impedimento da atuação tanto do membro do Conselho Tutelar quanto do Juiz da Infância e da Juventude caracteriza a mesma infração penal, o Art. 249, em que o descumprimento de determinação de qualquer das citadas autoridades caracteriza a mesma infração administrativa e, é claro, o próprio Art. 262, que na inexistência de Conselho Tutelar no município, confere suas atribuições ao Juiz da Infância e da Juventude". [11]

Em outro ponto do texto, o autor assim afirma:

"Vale observar que tanto o Conselho Tutelar quanto o Juiz da Infância e Juventude são AUTORIDADES PÚBLICAS, com poderes e atribuições assemelhados (e em alguns casos idênticos)". (grifamos)

Pronuncia tais assertivas no contexto em que defende não ser possível ao Juiz valer-se dos serviços do Conselho Tutelar, dada a autonomia deste órgão. E esclarece a confusão, existente para alguns leitores apressados do ECA, de que a instalação do Conselho Tutelar reduz atribuições do Juízo da Infância e da Juventude:

"Também é importante registrar que a criação e implantação do Conselho Tutelar no Município, apesar do disposto no Art. 262 do Lei 8.069/90 (a contrariu sensu), não deve conduzir à ‘dispensa’, pela autoridade judiciária, dos ‘agentes de proteção’ já credenciados e em atividade, pois seus serviços continuarão sendo necessários para o adequado funcionamento do Juízo da Infância e da Juventude".

E ainda:

"Claro está, portanto, que os ‘agentes de proteção da infância e juventude’, ao contrário do que pensam alguns, não apenas ainda têm sua atuação contemplada pelo ordenamento jurídico pátrio, como esta é agora, mais do que nunca, fundamental para a plena eficácia do sistema de garantias idealizado pelo legislador estatutário, pois através dele o Juízo da Infância e Juventude se fará onipresente para impedir e/ou reprimir ameaças ou violações de direitos de crianças e adolescentes, no mais puro espírito da PROTEÇÃO INTEGRAL preconizada pelo Art. 227, caput da Constituição Federal" (grifamos)

Aqui cabe comentar a ênfase dada pelo autor, sempre tão citado por seus pares, Promotores de Justiça, quando em luta por cerceamento de ação de Juiz menorista, quando tida por abusiva. Pois este mesmo autor não faz por menos: diz que é necessário ao Juiz da Infância ser "onipresente", portanto, ubíquo, estando em toda parte. Logo, inclusive na fiscalização de hospitais e similares ou como destinatário de suas comunicações.

Em outro ponto do texto, após firmar os papéis de cada uma das instituições que examina, o autor detalha que a proteção integral requer que não se exclua a atuação de outros. Mas é evidente que de tal raciocínio poderia surgir indesejável sobreposição, retrabalho, ou mesmo confusão de atuações. Por isso é que reforça a necessidade de entendimento e cooperação para harmonização dos esforços:

"Ao arremate, resta apenas dizer que a atuação dos órgãos acima relacionados (notadamente Conselho Tutelar, Juiz da Infância e Juventude, e "agentes de proteção"), pode ser complementada por outros órgãos e entidades existentes no município, sendo que para evitar lacunas, antagonismos e paralelismos, todos devem se reunir periodicamente a fim de avaliar a sistemática de atendimento adotada, aprimorando-a cada vez mais, sendo certo que o foro adequado para tais reuniões não é outro senão o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, ao qual poderão ser formuladas diretamente reivindicações visando a melhora na política de atendimento para a área infanto-juvenil, que como sabemos este órgão tem missão constitucional de elaborar".

B – Urgência não admite exclusividade

A calamidade pública, por sua natureza, exige especialidade, profissionais treinados e estratégia. Mas em salvamentos o Corpo de Bombeiros não há de recusar o auxílio da Guarda Municipal, por exemplo. O caso é de cooperação, não de exclusividade ou concorrência.

Por isso é que muito bem se pronuncia a Dra. PATRÍCIA TAVARES, no encerramento do ensaio "As Medidas Pertinentes aos Pais ou Responsáveis" [12], quando, embora a lei preveja competência ao Conselho Tutelar para aplicação de medidas aos pais ou responsáveis de menores em situação de risco, afirma a necessidade, ainda que em caráter de exceção, de que o encargo seja cumprido pelo Juiz da Infância e da Juventude. Vejamos:

"No que tange à aplicação, pela autoridade judiciária, das medidas concernentes aos pais ou responsável, em substituição ao Conselho Tutelar, tal prática é possível em procedimentos especialmente instaurados com vista a provocar a revisão da medida aplicada pelo órgão, ou, excepcionalmente, em procedimento em curso na Vara da Infância e da Juventude, onde tais medidas se mostrem necessárias e urgentes, sempre com a cautela de não anular a atuação do referido colegiado." (grifamos)

Com todas as ressalvas e cuidados que demonstra a autora reconhece, harmonizada com a diretriz da proteção integral, a indispensabilidade da atuação da Vara da Infância em ato a priori de competência do Conselho Tutelar.

A analogia com o tema que analisamos é evidente, até porque tal ação tem se feito necessária por presentes a necessidade e a urgência à questão dos maus-tratos, ainda mais quando a atuação do Conselho Tutelar venha a ser insuficiente ao atendimento das demandas.

C – Direito lesionado ou ameaçado merece apreciação judicial

A mesma autora, em outro trabalho denominado "As Medidas de Proteção", tece considerações (pp. 523/524 da obra citada) a respeito do procedimento para aplicação das medidas de proteção pelo Poder Judiciário, ainda que sejam de competência primária do Conselho Tutelar.

Após atestar o entendimento pacífico quanto à norma do Art. 262 do ECA, destaca a polêmica que se instala quando o Conselho Tutelar se mostra "inoperante – ou até mesmo incompetente – no exercício de suas atribuições". Embora recomende a excepcionalidade e repise a necessidade de que não se estimule a inoperância do Conselho Tutelar, desvalorizando-o, sempre suprindo-lhe as faltas, afirma, de maneira taxativa:

"Não seria correto afirmar que tal procedimento está despido de respaldo legal, pois, como já foi dito antes, não se pode admitir que do Poder Judiciário seja retirada a possibilidade de apreciação de qualquer situação de ameaça ou de lesão a direito, quiçá, se esta for atinente à matéria infanto-juvenil". (grifamos)

E para exemplificar menciona o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS – 8ª Câmara Cível – Des. Rel. RUI PORTANOVA – Apelação Cível nº 70004777447 – Julgamento em 05/12/2002):

"ECA. MEDIDA DE PROTEÇÃO. APLICAÇÃO. CONSELHO TUTELAR. As atribuições do Conselho Tutelar não impedem a apreciação judicial de situações de lesão ou ameaça a direito da criança e do adolescente e a eventual aplicação de medida de proteção".

Como já afirmamos na introdução, é tão grave o problema dos maus-tratos que nada pode agredir mais a integridade físico-psíquica da criança ou do adolescente. É grave lesão de direitos que, dentro do espírito das citações acima, não pode ficar sem atuação do Judiciário, ainda que presente na Comarca o Conselho Tutelar.

D - Exemplo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Na seara em que nos encontramos, de leitura teleológica do ECA, afinada com a realidade concreta e com a diretriz protetiva do Art. 227 da Constituição, é relevante citar o exemplo de cuidado que teve o Legislador quando inscreveu na Lei 9.294/96, o inciso VIII do Art. 12, pela Lei nº 10.287 de 20/09/2001.

No Art. 56 do ECA foi estatuído como obrigação dos estabelecimentos de ensino a comunicação de faltas e evasão escolar. Entretanto, naquela altura o destinatário era somente o Conselho Tutelar, sem prejuízo, obviamente da regra supletiva, já comentada, do Art. 262.

Entretanto, mais de uma década depois, coerente com o princípio da precaução e presentes as dificuldades impostas pela realidade, fez o Legislador, na Lei específica que regula o ensino no Brasil (Lei de Diretrizes e Base da Educação), ampliação do rol de destinatários.

Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: (...)        VIII – notificar ao Conselho Tutelar do Município, ao juiz competente da Comarca e ao respectivo representante do Ministério Público a relação dos alunos que apresentem quantidade de faltas acima de cinqüenta por cento do percentual permitido em lei.

Bem se vê que a preocupação foi impedir a lacuna, dando maior eficácia à disposição do ECA. Assim, entendemos, deve caminhar qualquer leitura que se faça do Estatuto. Eventuais duplicidade de providências, sobreposição de esforços e outros possíveis males decorrentes da tríplice comunicação, deverão ser resolvidos por acordos de trabalho. Sempre vale ressaltar a notícia de esforços bem sucedidos nesta área, e por isso a iniciativa da FICAI – Ficha de Comunicação de Aluno Infreqüente – implantada no município de Porto Alegre, e que implica na divisão de tarefas entre as Secretarias de Educação, os Conselhos Tutelares e o Ministério Público, merece citação [13]. Entretanto, enquanto providências similares não surgem ou não atingem eficácia, não dá para admitir lacunas. Em sede menorista, é melhor pecar por ação – ainda que tida por excessiva – do que por omissão. E ainda muito mais quando se trata de maus tratos.


COMO SE DÁ A ATUAÇÃO DO JUIZ

A jurisdição menorista é por demais peculiar. Temos defendido em outros trabalhos já mencionados não só que a inércia em tal magistratura é exceção, como ainda que nela existe poder de polícia de natureza especial. Dessa constatação resulta evidenciado a existência de poder normativo subsidiário. Este pode se exercitar sob a forma da expedição de alvarás ou portarias normativas.

Em nosso Estado, com o surgimento da Resolução 30/06 do Conselho da Magistratura, o Tribunal de Justiça superou a, até então, predominante visão do rol do Art. 149 do ECA como cláusula taxativa e restrita. Por uma série de razões – desde necessária atualização hermenêutica até análise lógica e finalística –, com o rito adequado, o Juiz pode extrapolar aquele elenco, tido por exemplificativo.

Vale registrar que, ao contrário do que alguns podem pretender, a nova disposição é avançada e progressista. Tanto assim que ao encerrar o seu voto, acolhido por unanimidade, a Relatora do processo 2006.011.00491, Desembargadora LETÍCIA SARDAS assim consignou:

"(...) voto no sentido da aprovação da MINUTA DE RESOLUÇÃO ofertada por este pequeno grupo de magistrados, que, à frente de seu tempo, com certeza têm a consciência de que são os responsáveis pelo mundo em que vivemos".

Portanto, Juízes "à frente de seu tempo", exercendo indispensável ativismo, contam, hoje com instrumento de ação de índole administrativo-jurisdicional, além das ferramentas meramente administrativas (como fiscalizações, sindicâncias e expedição de ofícios) ou exclusivamente jurisdicionais.

Logo, a fiscalização, sindicância ou coleta de informações em um hospital poderá surgir de uma decisão nos autos de um processo, de uma portaria, ou, pura e simplesmente da ação regular administrativa do Juízo. Estão obrigados a atender tais ordens os seus destinatários, sob as penas da lei.

Em caso de decisão judicial descumprida, sujeita-se o infrator às penas por crime de desobediência, podendo ainda ser enquadrado no Art. 236 do ECA que comina detenção de 06 meses a 02 anos a quem impeça ou embarace a ação de autoridade judiciária, Conselheiro Tutelar ou representante do Ministério Público no exercício das defesas prescritas na proteção integral. Se o caso é de descumprimento de ordem administrativa, sujeita-se o infrator às sanções do Art. 249.

Pode parecer mais duvidosa a possibilidade de aplicação de sanções quando da ação do Comissário, desprovida da formalidade de apresentação de oficio assinado pelo Juiz ou portaria normativa por ele expedida. Entendemos que não procede a dúvida. O Art. 151 do ECA estabelece como obrigações da equipe inter-profissional (onde entendemos, se insere a atuação do Comissário de Justiça), dentre tantas, desenvolver trabalhos de "prevenção e outros, tudo sob imediata subordinação à autoridade judiciária". ‘Trabalhos de prevenção e outros’ não são uma espécie determinada, clausulada e de discriminação rígida. Dependem de hermenêutica e discricionariedade ampla frente ao fato concreto. A urgência é que determinará a minúcia da ação. Como não convém que tal poder interpretativo seja amplamente concedido, ele é prerrogativa do Magistrado, a quem tais ações devem estar subordinadas.

Da mesma forma se deve interpretar o Art. 370 da Consolidação Normativa da Corregedoria Geral da Justiça. Ali se diz que o Comissário de Justiça da Infância e da Juventude exerce funções de "fiscalização, garantia e proteção dos direitos" menoris. O Art. 371 busca explicitar como concretamente se dá tal exercício. Para isso estipula rol de deveres que, obviamente, não exaure o universo de tarefas do Comissário, até porque vários dos itens são bastante genéricos. De todo modo, as expressões "inspecionar", "fiscalizar", "desenvolver trabalhos de cunho preventivo", "cumprir ordem ou diligência", "relatar ocorrência de ameaça ou violação de direitos", abundantes no referido artigo, apontam claramente para a natureza do papel que se espera exerça o Comissário. Mas, o dicionário ensina que ‘comissário’ é o que ‘exerce comissão’, ou seja cumpre encargo que lhe foi atribuído por outrem. Por isso o segredo está na construção "hierarquicamente subordinado ao Juiz", que introduz o Art. 370. Logo, o Comissário é um agente do Juiz da Infância e da Juventude que cumpre tarefas protetivas e preventivas, cuja natureza é exemplificada no Art. 371 do Código de Normas, conforme lhe for determinado pelo Magistrado.

Portanto, o Comissário atua como a longa manus do Magistrado. Até prova em contrário, o faz sempre sob sua ordem direta. Desde que identifique sua condição profissional e a natureza do seu mandato – conforme lhe determina o inciso I do Art. 371 do Código de Normas -, não pode ser cerceado em sua atuação. Certo é que para determinadas ações (apreensões, arrombamentos, etc.) poderá lhe ser necessária a ordem específica e formal. Salvo melhor juízo, esta descabe, no entanto, nas suas funções de rotina, como fiscalizações e sindicâncias, posto que inerentes ao exercício do cargo.

Por isso é que entendemos que o cerceamento à ação do Comissário e a recusa de prestar informações é cerceamento indevido e ilegal ao próprio Juiz. Punível, portanto à luz do Art. 236 do ECA.

Neste particular, entretanto, nada obsta que, se entender necessário, o Juiz edite provimento específico, atribuindo determinada tarefa a determinado Comissário. Neste caso, além de suas credenciais regulares, apresentaria o Comissário portaria com a designação para, por exemplo exercer ’fiscalizações, sindicâncias, e coleta de informações’ junto as entidades que fossem especificadas no provimento.


UMA PALAVRA SOBRE O ART. 13 E O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

Em geral a interpretação mais corriqueira para a expressão ‘maus-tratos’ busca referir o resultado de opressão ou agressão física, ou seja, postura comissiva. Entretanto, não se admite mais concepção tão estreita. O desenvolvimento das ciências da mente e do comportamento fizeram ver a gravidade de maus-tratos também no campo das omissões. Não é só um ‘fazer’ que agride. Um deixar de agir também pode ser maléfico. A falta de carinho, abraço e atenção podem ferir a alma. A vitima muitas vezes não chega a um pronto-socorro, mas carregará seqüelas por toda a existência.

Por isso é que surgiram especificações no campo dos maus-tratos. Categorias como assédio sexual, assédio moral e bullying, surgiram para melhor descrever ações ou omissões nem sempre físicas, mas sempre causadoras de danos psicológicos e morais.

Sem pretender aprofundar o assunto, fazemos sua menção, entretanto, para alertar para o fato de que um ferimento menor, mas que à primeira vista não mereceria maiores cuidados, na mirada mais atenta pode revelar descaso, desleixo ou abandono, maus-tratos, portanto.

Sendo assim vale a pena referir a ligação teleológica entre os artigos 13 e 70 do ECA. Aquele fala em necessidade da comunicação não só dos maus-tratos confirmados, mas também daqueles em que ainda haja tão somente ‘suspeita’. Há coerência com a instituição do princípio da precaução conforme estabelecido no Art. 70, que fala não só em ‘prevenir’, mas como prevenir a mera ‘ameaça’.

Logo, os comunicantes aos quais endereçados os artigos 13 e 245 devem atentar para os objetivos do Legislador.


CONCLUSÃO

COMO AFIRMAMOS NO INÍCIO, INDEPENDENTE DA EDIÇÃO DE PORTARIA, MESMO SE PRESENTE O CONSELHO TUTELAR NA COMARCA, NÃO SE ADMITE SEJA O JUIZ DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE AFASTADO DA APURAÇÃO DE DENÚNCIAS OU INDÍCIOS DE MAUS-TRATOS A CRIANÇAS OU ADOLESCENTES. O PROBLEMA É GRAVE DEMAIS PARA COMPORTAR FORMALISMOS OU SILÊNCIOS. O JUIZ É AUTORIDADE. Embora não seja a única, é um evidente esteio central na construção promovida pelo ECA. Tanto assim que sua atuação, independente da jurisdição, configura exercício de poder de polícia; determina poder normativo subsidiário; traduz-se em instância de transição, complementar e supletiva. Ademais, é preposto do Estado para aplicação da justiça, e desta, como órgão, não se pode afastar qualquer ameaça ou lesão de direitos quanto mais se envolvidos direitos menoris.

PORTANTO, DATA VENIA, SOB QUALQUER ÓTICA, NOS PARECE INACEITÁVEL QUE EXISTA QUALQUER DÚVIDA SOBRE A POSSIBILIDADE DE DIRIGIR-SE O COMISSÁRIO DE JUSTIÇA A UM ESTABELECIMENTO DE SAÚDE E ALI FISCALIZAR, SINDICAR OU OBTER INFORMAÇÕES. A leitura sistêmica do ordenamento assim o autoriza, independente de qualquer outra formalidade. Esta, entretanto, pode ser estabelecida (como a portaria específica antes mencionada) como forma de facilitar a compreensão dos destinatários da diligência. Achamos cabível a analogia com fiscais de outras autoridades (vigilância sanitária, trabalho, posturas, etc.). A estes, devidamente identificados, não se recusa acesso ou informação. Por que seria aceitável a recusa àquele que fiscaliza em prol dos interesses da proteção integral à infância e à adolescência?

TAMBÉM NÃO HÁ RAZÃO PARA QUE, INSTADO PELO JUÍZO (ATÉ MESMO POR MERO OFÍCIO), SE RECUSE O HOSPITAL À COMUNICAÇÃO DO ART. 13 DO ECA. O artigo é claro. A comunicação – prioritária – ao Conselho Tutelar, não exclui "outras providências legais", que podem ser arbitradas pelo próprio hospital, conforme a gravidade e urgência do caso, ou determinadas pelo Juízo, pelo meio que lhe convier. Se ocorreu cancelamento circunstancial de portaria sobre o tema, basta reeditá-la ou, mesmo, salvo melhor juízo, repetir a mesma determinação, por via de ofício firmado pelo Magistrado. Aqui se soma a compreensão analógica do Art. 160 do ECA (possibilidade de requisição de documento a qualquer repartição ou órgão público).

Lembremos, novamente, que o tema – maus tratos a crianças e adolescentes – não admite tergiversações.


Notas

01 Em "VIOLÊNCIA DE PAIS CONTRA FILHOS: a tragédia revisitada", Cortez Editora, 4ª edição, pp 46/48.

02 Obra citada, pp 250

03 Assim tem feito, por exemplo, no arrazoado de diversas decisões a Juíza Inês Joaquina Sant’Ana Santos Coutinho, da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca de Teresópolis.

04 Editora Saraiva, 2004 pp 15

05 Obra citada, pp 285

06 Ensaio que integra a obra "Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos Teóricos e Práticos" – Lúmen Júris Editora, 2006, pp 441/442.

07 Obra citada, pp 444

08 Obra citada, pp 443

09 Obra citada, pp 166 – onde menciona audiências e advertências conduzidas por escreventes, quando atos jurisdicionais são função especifica do magistrado.

10 "O EDIFÍCIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL PRECISA DE PORTARIA – Sobre a edição de portarias normativas pelo Juiz da Infância e da Juventude", 2006, dat.

11 Em "Agentes de Proteção da Infância e Juventude: necessidade de sua coexistência com o Conselho Tutelar" – nota nº 10 – disponível no endereço http:/ /www. mp.rs.gov.br/infancia/doutrina/id.204htm

12 Constante do Curso de Direito da Criança e do Adolescente, pp. 532

13 Para maiores detalhes ver FICAI – um instrumento de rede de atenção pela inclusão escolar, ensaio da Promotora de Justiça SIMONE MARIANA DA ROCHA, às fls. 495/505 da obra Pela Justiça na educação (FUNDESCOLA/MEC - Brasília, 2000)


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Denilson Cardoso de. Maus-tratos a crianças e adolescentes (art. 13 do ECA): comunicação ao juiz da infância e sindicância nos hospitais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1384, 16 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9745. Acesso em: 28 mar. 2024.