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Guarda municipal não pode exercer polícia de trânsito

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2. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MUNICÍPIO E A INDENIZAÇÃO

A indenização, após longo período de controvérsia, alcançou o status constitucional, conforme se observa do disposto no art.º, V e X, da CF: "Art. 5º (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Ademais, prevê o art.186 do Código Civil: "Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

Já o art.927 do mesmo diploma legal: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".

MARIA HELENA DINIZ, tecendo comentários, preleciona:

"O ato ilícito é praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando o direito subjetivo individual. Causa dano a outrem, criando o dever de repará-lo. Logo, produz efeito jurídico, só que este não é desejado pelo agente, mas imposto pela lei. Para que se configure o ato ilícito, será imprescindível que haja: a) fato lesivo voluntário, causado pelo agente, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência; b) ocorrência de um dano patrimonial ou moral, sendo que pela Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça serão cumuláveis as indenizações por dano moral e material decorrentes do mesmo fato; e c) nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente"

(in Código Civil Anotado. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p.169).

Mas a responsabilidade do Município de Itajaí deve ser aferida frente ao disposto no art.37, §6º, da CF, que estabelece: "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".

Nesse mesmo sentido, JOSÉ DA SILVA PACHECO, apresentou considerações sobre o tema: "Houve, pelo art. 37, § 6º, da CF de 1988, alteração no concernente à responsabilidade civil, inspirada no princípio basilar do novo Direito Constitucional de sujeição de todas as pessoas, públicas ou privadas, aos ditames da ordem jurídica, de modo que a lesão aos bens jurídicos de terceiros traz como conseqüência para o causador do dano a obrigação de repará-la" (em parecer publicado na RT-635:103).

E, nas palavras do Ministro GARCIS VIEIRA:

"Para obter a indenização, basta que o lesado acione a Fazenda Pública e demonstre o nexo causal entre o fato lesivo (comissivo ou omissivo) e o dano, bem como o seu montante. Comprovados esses dois elementos, surge naturalmente a obrigação de indenizar. Para eximir-se dessa obrigação incumbirá à Fazenda Pública comprovar que a vítima concorreu com culpa ou dolo para o evento danoso. Enquanto não evidenciar a culpabilidade da vítima, subsiste a responsabilidade objetiva da Administração. Se total a culpa da vítima, fica excluída a responsabilidade da Fazenda Pública; se parcial, reparte-se o quantum da indenização"

(STJ, REsp nº. 38.666, Min.GARCIA VIEIRA, in RSTJ 58/396).

É a teoria do risco administrativo, sobre o qual obtempera TUPINAMBÁ MIGUEL CASTRO DO NASCIMENTO no seguinte sentido:

"No risco administrativo, há duas nuances fundamentais. Sua própria compreensão e a deslocalização do ônus probatório. Nele, basta o A. provar o dano sofrido e seu nexo causal com a atividade estatal prestada. O respeito à esfera jurídica alheia, patrimonial ou moral é que gera a obrigação de indenizar. A responsabilidade nasce de uma presunção: houve falta anônima da administração pública, o que, na doutrina francesa, se chama faute de service. O A. da ação não necessita comprovar qualquer culpa ou dolo, visto ser a responsabilidade objetiva, nem comprovar que existiu a falta anônima. Tanto a culpa quanto a falta do serviço são presumidas. A nosso sentir, trata-se, quanto à primeira, de presunção absoluta, não se admitindo prova em contrário; quanto à segunda, só se admitem específicas excludentes.

No entanto, a carga probatória, para se eximir da responsabilidade, passa a ser do Estado, e assim mesmo limitadamente. Não basta comprovar a inocorrência de culpa de seu agente, ou do próprio Estado, ou se pretender provar que não houve, concretamente, falta anônima da administração. Prova neste sentido é irrelevante e desimporta ao julgamento da causa ou à definição do ressarcimento. O que passa a ser ônus do Estado e, em compreensão, útil à isenção da responsabilidade é provar uma das excludentes admitidas: culpa exclusiva da vítima, ou de terceiro que não agente público em atividade, e caso fortuito ou força maior (...)"

(in Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Aide, 1993. p.19).

Logo, se configurado o nexo causal necessário à imputação da responsabilidade civil objetiva ao ente público e não produzida nenhuma prova que puder dar ensejo ao reconhecimento da culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou motivo de força maior, merece ser indenizado o Autor, o que será analisado nos tópicos seguintes.

2.2. DANOS MATERIAIS

Por conta dos procedimentos deflagrados pela guarda municipal do Município de Itajaí, reconhecidos nesta sentença, como sem competência para agir na guarda e fiscalização de trânsito, o Autor teve seu carro apreendido, conforme faz prova o "termo de apreensão de veículos nº 737" de fl.34, onde atesta as condições do veículo no momento em que foi guinchado, dando conta que não havia nenhuma avaria na sua lataria. Isso no dia 03/04/2007, às 18h20min.

O Autor alega e traz as fotos de fls.42/43 para comprovar que, quando foi retirar o seu veículo Ford Escort GLX, 1997, renavan 680720464, placas MAW9000, no dia 04/04/2007, percebeu uma série de arranhões e amassados na lataria, cuja restauração totalizaria valores variantes entre R$1.900,00 e R$4.890,00.

Além disso, para a retirada do carro do pátio da empresa que detém a concessão da guarda de veículos, GHR CONCESSIONÁRIA, teve que despender R$101,00 (cento e um reais), conforme fl.41.

Então, na esteira do delineado no item anterior, não resta dúvida quanto ao acontecimento do evento (conduta ilegítima de agentes do Réu) e o dano no veículo do Autor, sendo o nexo de causalidade claro.

Já julgou o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina:

"REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS OCORRIDOS EM ACIDENTE DE TRÂNSITO – VEÍCULO DO ENTE PÚBLICO QUE COLIDE NA RETAGUARDA – BOLETIM DE OCORRÊNCIA APONTANDO PARA A RESPONSABILIDADE DESTE – TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA – NEXO DE CAUSALIDADE SUFICIENTEMENTE DEMONSTRADO – INDENIZAÇÃO DEVIDA – DEMORA DO AUTOR NO AJUIZAMENTO DA ACTIO – IRRELEVÂNCIA – TERMO A QUO PARA A INCIDÊNCIA DOS JUROS MORATÓRIOS E CORREÇÃO MONETÁRIA CORRETAMENTE FIXADOS – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO IMPROVIDO

- ´A presunção juris tantum de veracidade de que goza o boletim de ocorrência só será desconstituída por prova robusta em sentido contrário´ (AC n. 2005.042349-2, de Itajaí, Rel. Fernando Carioni, j. 20.07.2006)

- ´Comprovado pelo autor o evento lesivo, o dano e o nexo de causalidade, incumbe ao réu alegar e provar as causas que o eximem da responsabilidade, tais como a culpa exclusiva da vítima, o fato de terceiro ou o caso fortuito ou força maior. Do contrário, impõe-se-lhe a obrigação de reparar o dano´ (AC n. 2002.009409-4, de Joaçaba, Rel. Des. Sônia Maria Schmitz, j. 30.06.2006)

- Sendo o caso em espécie de responsabilidade extracontratual, a questão encontra-se pacificada pelos verbetes 54 do STJ e 562 do STF, dos quais extrai-se que o prazo inicial para a incidência dos juros moratórios é data do evento danoso, restando nítido o acerto da vergastada sentença.

- ´É devida a correção monetária dos danos decorrentes do ilícito desde o momento em que tais danos foram tornados líquidos, seja pela comprovação do desembolso efetuado, seja pela apresentação do orçamento adotado como idôneo para apuração do quantum a ser ressarcido´ (REsp. 168366/DF, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 21.09.1998, p. 0202)"

(TJSC, Apelação cível n. 2007.004294-4, da Capital, Relator: Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, j.22/03/2007).

E "A indenização mede-se pela extensão do dano" (art.944 do Código Civil).

Portanto, merece o Autor ser ressarcido no valor de R$2.001,00 (dois mil e um reais), atualizados monetariamente, relativos aos danos causados por prepostos do Réu na lataria do seu veículo – menor orçamento de fl.44 – e pelo gasto para retirá-lo do pátio após a apreensão indevida (fl.41).

2.3. DANOS MORAIS

Como se tudo isso não bastasse, o Autor ainda teve sua carteira de habilitação apreendida pelos mesmos agentes sob o fundamento do art.220, II, do CTB, que dispõe: "Art. 220. Deixar de reduzir a velocidade do veículo de forma compatível com a segurança do trânsito: (...)II - nos locais onde o trânsito esteja sendo controlado pelo agente da autoridade de trânsito, mediante sinais sonoros ou gestos; (...)Infração - grave; Penalidade – multa".

Mesmo que os agentes da guarda municipal do Réu fossem competentes para lavrar autuações, conforme já delineado na decisão que antecipou a tutela, é possível aplicar toda e qualquer penalidade na legislação prevista, desde que se dê ciência ao infrator e, se for o caso, se instaure previamente o competente processo administrativo.

A hodierna legislação inegavelmente trouxe certa moralidade ao trânsito quando chamou à ordem aquele condutor que, portando sua carta de habilitação, cometia absurdos nas vias públicas escorado na impunidade institucionalizada.

Andou bem o legislador em condicionar a aquisição ou suspensão do direito dirigir veículos motorizados ao comportamento do motorista. Contudo, impôs uma contraprestação à Administração Pública: dar ciência ao administrado tanto das infrações cometidas quanto das decisões proferidas em defesa prévia e em processo administrativo. Terminado este, então, e havendo penalidade a ser imputada, é que poderia ter sido retido o documento.

Isso porque, procedendo de modo diverso, a autoridade não oportuniza ao cidadão defender-se da penalidade que lhe é imputada.

O due process of law é previsto no art.5º, LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil, quando diz que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". E também no art.5º, LV, da CF, in verbis: "(..) aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (art. 5º, LV, da CF).

A esse respeito, o Ministro LUIZ FUX, do Superior Tribunal de Justiça, comenta: "O princípio do contraditório é reflexo da legalidade democrática do processo e cumpre os postulados do direito de defesa e due process fo law. A inserção do contraditório em sede constitucional timbra de eiva de inconstitucionalidade todo e qualquer procedimento que o abandone" (FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 254).

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Não poderia seguir outra linha de raciocínio o diploma de trânsito: "Art.265. As penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação serão aplicadas por decisão fundamentada da autoridade de trânsito competente, em processo administrativo, assegurado ao infrator amplo direito de defesa".

Portanto, os agentes do Réu, além de incompetentes para a prática dos atos fiscalizatórios do trânsito, transgrediram regra basilar do Código de Trânsito Brasileiro e da Constituição da República Federativa do Brasil, pois tolheram o direito do cidadão de se defender contra a retenção de sua CNH, o que veio a prejudicar a sua normal rotina, eis que experimentou dissabores originados da inacessibilidade ao seu veículo de trabalho e inassiduidade às aulas do curso de pós-graduação que freqüenta.

As alegações do Réu de que a CNH teria sido recolhida por conta de adulterações, não restaram comprovadas. Muito pelo contrário, segundo o documento de fl.36, expedido pela Delegacia Regional de Polícia de Itajaí, a CNH do Autor foi apreendida com embasamento no art.220, II, do CTB (Código de Trânsito Brasileiro), entretanto, este dispositivo "não comina penalidade de suspensão do direito de dirigir, tampouco, a medida administrativa de recolhimento da CNH, portanto, não se obteve a clarividência atinente ao cometimento de infrações que incidam em procedimento administrativo punitivo" (ipsis literis fl.36).

O boletim de ocorrência de fl.35 reforça tal interpretação, eis que confeccionado 40min após dos fatos deflagradores desta ação, e não contestado de forma robusta pelo Réu. E "A presunção juris tantum de veracidade de que goza o boletim de ocorrência só será desconstituída por prova robusta em sentido contrário" (TJSC, AC nº 2005.042349-2, de Itajaí, Rel.FERNANDO CARIONI, j.20/07/2006).

O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina já teve oportunidade de se manifestar em caso semelhante:

"MANDADO DE SEGURANÇA - CONSTATAÇÃO DE ÁLCOOL EM NÍVEL SUPERIOR AO PERMITIDO POR LEI - RETENÇÃO DA CARTA DE HABILITAÇÃO - PROCESSO ADMINISTRATIVO POSTERIOR - ATITUDE PREMATURA DA AUTORIDADE DE TRÂNSITO - ILEGALIDADE CARACTERIZADA.

Fere direito líquido e certo, defensável pelo writ of mandamus, a apreensão pela autoridade administrativa da habilitação para dirigir sem que seja assegurado o exercício da ampla defesa.

Em que pese o esforço despendido pela autoridade de trânsito em fazer cumprir a Legislação pertinente, esqueceu-se ela de que a atitude extrema em reter o documento só é viável posteriormente ao processo administrativo, se dele resultar penalidade a ser imputada"

(TJSC, Apelação cível em mandado de segurança n. 00.013158-0, de Blumenau, Relator: Des. Volnei Carlin, j.31/05/2001).

Os danos morais estão incutidos na esfera subjetiva da pessoa, cujo acontecimento tido como violador atinge o plano de seus valores mais íntimos, repercutindo em aspectos referentes tanto à reputação perante os demais membros da sociedade ou mesmo no tocante à mera dor interior.

Sobre o tema, leciona YUSSEF SAID CAHALI: "Dano moral, portanto, é a dor resultante da violação de um bem juridicamente tutelado, sem repercussão patrimonial. Seja dor física - dor-sensação, como a denomina Carpenter - nascida de uma lesão material; seja a dor moral - dor-sentimento, de causa material" (in Dano e Indenização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p.7).

O fato de o Autor ter ficado privado de seu veículo, ilegalmente apreendido, mais o fato de ter que se defender administrativa e judicialmente contra as autuações contra si lavradas já evidencia seu sofrimento e incômodo, caracterizando-se assim o prejuízo extrapatrimonial passível de ressarcimento.

Some-se, ainda, o fato de ter sua CNH apreendida sumariamente em procedimento absolutamente arbitrário por parte da guarda municipal que é incompetente para tanto, o que faz sobrepujar o quão desagradável e penoso foi todo o ocorrido.

Conforme ensina CARLOS ALBERTO BITTAR : "Qualificam-se como morais os danos em razão da esfera da subjetividade, ou do plano valorativo da pessoa na sociedade, em que repercute o fato violador, havendo-se, portanto, como tais aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o da intimidade e da consideração pessoal), ou o dá própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (o da reputação ou da consideração social)" (BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. p.45).

No que tange ao valor a ser arbitrado a título de indenização por danos morais, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR assinala que "resta, para a Justiça, a penosa tarefa de dosar a indenização, porquanto haverá de ser feita em dinheiro, para compensar uma lesão que, por sua própria natureza, não se mede pelos padrões monetários" (in Alguns aspectos da nova ordem constitucional sobre o direito civil. Revista dos Tribunais, 662/7-17).

É, pois, de se ter sempre em mente que a indenização deve compensar a sensação de dor da vítima e representar "uma satisfação, igualmente moral, ou, que seja, psicológica, capaz de neutralizar ou anestesiar em alguma parte o sofrimento impingido" (RT 650/66), levando-se em conta a gravidade do dano, a personalidade da vítima, a personalidade do autor do ilícito e o patrimônio dos envolvidos (vítima e autor do evento danoso).

Por outro lado, não há que se falar em limites do valor da reparação. O quantum devido deverá sempre ser arbitrado levando em consideração os fatores pertinentes a cada caso específico, equacionando a dor sentida e o valor devido a título de indenização, chegando a uma quantia justa e proporcional.

É óbvio que a quantia não pode ser tão grande que se converta em fonte de enriquecimento sem justa causa. Também não deve ser pequena a se tornar insignificante.

Nada mais oportuno, então, do que a aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, que uns chamam de máximas, outros dizem estar implícitos na Carta Magna, e outro, ainda, que aplica-se apenas como forma de interpretação.

As raízes dos postulados sobre razoabilidade derivam do âmbito jurídico processual, mais precisamente, da garantia do due process of law (devido processo legal), a qual veio a consagrar-se como fundamento constitucional apto a permitir o controle dos atos da Administração Pública.

CADEMARTORI registra:

"Em termos históricos mais amplos, a trajetória de consolidação do princípio do devido processo como princípio conexo com o da razoabilidade, observou duas etapas fundamentais. A primeira delas, tida como eminentemente procedimental e oriunda do Direito anglo saxão medieval, enfatizava o caráter estritamente formal e processual (procedural process) do Direito, rejeitando expressamente, qualquer âmbito de análise substancial que permitisse ao órgão julgador examinar aspectos de injustiças ou arbitrariedades materiais das normas. Numa segunda etapa, produto de um avanço paulatino, o devido processo assumiu um caráter substantivo (substantive due process) onde passou a ser avaliada, também, a razoabilidade e racionalidade das normas, num processo de análise baseado na verificação de compatibilidade entre o respeito pelas liberdades individuais, de um lado, e, por outro, as exigências sóciopolíticas que moldam os valores constitucionais do Estado"

(CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no Estado constitucional de Direito. Curitiba: Juruá, 2001, p.116).

Segundo GRINOVER, apesar do nítido sentido processual que à cláusula se imprimiria na sua tradição histórica, "foi sendo imposto um conceito substantivo de due process of law, emergente do amplo significado a ela subsumido, quando foi reconduzido a um critério de razoabilidade" (GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do direito de ação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 35).

Pode-se dizer que o razoável não é o correto e nem o irrazoável é o equivocado, tomados estes termos em um sentido absoluto, posto que, segundo o que estabeleceu LORD DENNING no caso Secretary of State for Education and Science vs. Metropolitan Borough of Timeside: "two reasonable persons can reasonablv corne to opposite conclusions" (duas pessoas razoáveis podem chegar a conclusões razoáveis opostas) ou seja que, somente há irrazoabilidade quando a decisão é "so wrong that no reasonable person could sensibly take that view" (tão erradas que nenhuma pessoa razoável poderia manter tal ponto de vista). Portanto, a razoabilidade se explicitará a partir de um juízo básico de senso comum.

Já o princípio da proporcionalidade originou-se na Alemanha, desenvolvendo-se, inicialmente, na esfera do direito administrativo, mais especificamente, nas disposições sobre o exercício do poder de polícia e seus limites, desde o século XIX.

Mais tarde, com o advento da atual Constituição da Alemanha, isto é, após 1949, o princípio da proporcionalidade passou a ser reconhecido, na esfera jurídico-constitucional, como parâmetro vinculante de toda a atividade legislativa. Entende-se que a matriz da proporcionalidade encontra-se no princípio do Estado de Direito sendo que este, na condição de princípio constitucional fundamental, vincula o legislador, na medida em que serve de fundamento para o princípio da reserva da lei proporcional.

Mais uma vez URQUHART CADEMARTORI ensina:

"A jurisprudência alemã desenvolveu o conteúdo do princípio da proporcionalidade em três níveis. Assim, a norma, para corresponder ao princípio da reserva legal proporcional, deverá, simultaneamente ser adequada (geeinet), necessária (notwenndig) e razoável (angemessen). Os requisitos de adequação e da necessidade significam, primacialmente, que o objetivo traçado, seja pelo legislador, seja pelo administrador, bem como o meio utilizado por eles, deverão ser ambos, como tais, admitidos, ou seja, possíveis de ser utilizados. Paralelamente a isto, o meio utilizado deverá ser adequado e necessário"

(CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no Estado constitucional de Direito. Curitiba: Juruá, 2001, p.116).

No âmbito doutrinário brasileiro, autores, como Celso Antonio Bandeira de Mello e Odete Medauar, deram singular enfoque ao princípio da proporcionalidade ao considerá-lo como uma espécie de desdobramento ou faceta da razoabilidade. Assim, MELLO traz à tona uma concepção que o enquadra dentro da obediência a critérios aceitáveis racionalmente pela autoridade pública e que devem estar em sintonia com o "senso moral das pessoas equilibradas" e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo:Malheiros, 1994, p.54).

A respeito dessa expressão, pode se traçar uma aproximação conceitual entre a idéia de "senso moral" com a idéia de "senso comum". Este pode ser entendido como algo que não está referido a uma capacidade interna ou faculdade que tenham todos os homens e que lhes permita pensar, conhecer ou julgar de forma isolada. Ao contrário disto, refere-se à constatação da existência de um mundo comum a eles e no qual todos se encontram e reconhecem.

Assim, o senso comum não se irradia, então, como uma capacidade solitária, exercida independentemente entre os homens e que, apesar disto, faz que todos deduzam as mesmas conclusões, como ocorre, por exemplo, com as operações matemáticas. Contrariamente a esse entendimento, a base do senso comum é a noção básica das pessoas da existência de um mundo compartilhado (ARENDT. Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense/ Edusp. 1981. p.221).

Por essa razão, é que o homem, ao experimentar o senso comum, o faz ciente de compartilhá-lo, inclusive em termos valorativos, com os outros homens e não de forma isolada.

O princípio da proporcionalidade é fundamental para ponderação no momento de equacionar a legalidade substancial, não somente das medidas punitivas a serem adotadas, mas com respeito a quaisquer providências derivadas do Poder Público (MEDINA OSÓRIO, Fábio. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT, 2000. p.171)

Tanto a razoabilidade como a proporcionalidade, são padrões, não somente limitadores, como também de modulação das liberdades individuais.

URQUHART CADEMARTORI termina: "No tocante à proporcionalidade, esta decorrerá da verificação, dentro de uma perspectiva de senso comum, do atendimento destes valores, por parte do emissor do ato estatal, no seu grau necessário e pertinente ao caso concreto, objeto de apreciação, posto que o significado dos direitos fundamentais não é de caráter unívoco" (CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no Estado constitucional de Direito. Curitiba: Juruá, 2001. p.116).

Enfim, atendendo ao princípio da razoabilidade e proporcionalidade, bem como a gravidade do dano, a personalidade da vítima, a personalidade do autor do ilícito e o patrimônio dos envolvidos (vítima e autor do evento danoso), entendo moderada a indenização pelo dano moral sofrido pelo Autor da quantia de 15(quinze) vezes o valor das multas oriundas das infrações anuladas, que totaliza R$9.576,90 (nove mil, quinhentos e setenta e seis reais e noventa centavos).

Para rematar, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA não decepciona:

"RESPONSABILIDADE CIVIL. MULTA DE TRÂNSITO INDEVIDAMENTE COBRADA. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. DANO PRESUMIDO. VALOR REPARATÓRIO. CRITÉRIOS PARA FIXAÇÃO

1. Como se trata de algo imaterial ou ideal, a prova do dano moral não pode ser feita através dos mesmos meios utilizados para a comprovação do dano material. Por outras palavras, o dano moral está ínsito na ilicitude do ato praticado, decorre da gravidade do ilícito em si, sendo desnecessária sua efetiva demonstração, ou seja, como já sublinhado: o dano moral existe in re ipsa. Afirma Ruggiero: "Para o dano ser indenizável, ´basta a perturbação feita pelo ato ilícito nas relações psíquicas, na tranqüilidade, nos sentimentos, nos afetos de uma pessoa, para produzir uma diminuição no gozo do respectivo direito."

2. É dever da Administração Pública primar pelo atendimento ágil e eficiente de modo a não deixar prejudicados os interesses da sociedade. Deve ser banida da cultura nacional a idéia de que ser mal atendido faz parte dos aborrecimentos triviais do cidadão comum, principalmente quando tal comportamento provém das entidades administrativas. O cidadão não pode ser compelido a suportar as conseqüências da má organização, abuso e falta de eficiência daqueles que devem, com toda boa vontade, solicitude e cortesia, atender ao público.

3. Os simples aborrecimentos triviais aos quais o cidadão encontra-se sujeito devem ser considerados como os que não ultrapassem o limite do razoável, tais como: a longa espera em filas para atendimento, a falta de estacionamentos públicos suficientes, engarrafamentos etc. No caso dos autos, o autor foi obrigado, sob pena de não-licenciamento de seu veículo, a pagar multa que já tinha sido reconhecida, há mais de dois anos, como indevida pela própria administração do DAER, tendo sido, inclusive, tratado com grosseria pelos agentes da entidade. Destarte, cabe a indenização por dano moral.

4. Atendendo às peculiaridades do caso concreto, e tendo em vista a impossibilidade de quantificação do dano moral, recomendável que a indenização seja fixada de tal forma que, não ultrapassando o princípio da razoabilidade, compense condignamente, os desgastes emocionais advindos ao ofendido. Portanto, fixo o valor da indenização a ser pago por dano moral ao autor, em 10 (dez) vezes o valor da multa.

5. Recurso especial provido"

(STJ, REsp 608918 / RS, Relator(a) Ministro JOSÉ DELGADO, j.20/05/2004).

Lembrando que "as proposições poderão ou não ser explicitamente dissecadas pelo magistrado, que só estará obrigado a examinar a contenda nos limites da demanda, fundamentando a seu proceder de acordo com o seu livre convencimento, baseado nos aspectos pertinentes à hipótese sub judice (em juízo) e com a legislação que entender aplicável ao caso concreto" (STJ, Resp nº 792.497/RJ, Relator Ministro Francisco Falcão, j.16/12/2005).

III – DISPOSITIVO

ISSO POSTO, JULGO PROCEDENTES os pedidos formulados na ação nº 033.07.024282-0, ajuizada por DEMIAN CAMPOS LEITE contra o MUNICÍPIO DE ITAJAÍ(SC) para:

a) declarar nulos os autos de infração nº 54525611B, 54525547B, 54525548B e 54525549B, e as penalidades impostas em decorrências deles, eis que lavrados por agentes da guarda municipal sem competência para fiscalizar o trânsito;

b) condenar o Réu a reparar os danos materiais indenizando o Autor na quantia de R$2.001,00 (dois mil e um reais);

c) condenar o Réu a reparar os danos morais indenizando o Autor na quantia de R$9.576,90 (nove mil, quinhentos e setenta e seis reais e noventa centavos);

Declaro a EXTINÇÃO DO PROCESSO ex vi do art.269, I, do CPC.

Na forma do art.20 do CPC, condeno o Réu ao pagamento das despesas processuais – que fica isento, conforme art.35, alínea ´h´, da Lei Complementar nº 156/97 com redação da Lei Complementar nº 161/97 – e dos honorários advocatícios devidos ao Autor, que, consoante art.20, §§4º e 3º, do CPC, fixo em R$2.000,00 (dois mil reais).

Oficie-se ao CODETRAN (Coordenadoria de Trânsito de Itajaí) e ao DETRAN (Departamento Estadual de Trânsito de Santa Catarina) com cópia desta decisão, para que dêem baixa das autuações no prontuário do condutor ora Autor, bem como não computem a pontuação em sua CNH.

Tendo em vista a ocorrência, em tese, de possível crime de abuso de autoridade (Lei Ordinária Federal nº 4.898/65) por parte do agentes públicos, guardas municipais, Ewerson Luiz Gama e Edney Gomes de Andrade, do Réu, forte no art.40 do CPP (Código de Processo Penal - Decreto-Lei nº3.689/41), encaminhem-se cópias de fls.25-38 e desta sentença ao Ministério Público.

Deixo de sujeitar a presente sentença ao duplo grau de jurisdição para o reexame necessário em face de o valor da condenação não exceder a 60(sessenta) salários mínimos, nos termos do art.475, §2º, do CPC.

Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Itajaí(SC), 27 de agosto de 2007.

RODOLFO CEZAR RIBEIRO DA SILVA

Juiz de Direito

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Sobre o autor
Rodolfo Cezar Ribeiro da Silva

Juiz de Direito em Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rodolfo Cezar Ribeiro. Guarda municipal não pode exercer polícia de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1560, 9 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16806. Acesso em: 28 mar. 2024.

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