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Aspectos gerais da "carteirada" liberatória e o princípio da taxatividade

08/08/2011 às 10:03
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São comuns, no Brasil, casos de pessoas influentes, dotada de luzes sociais, holofotes aquecidos, reluzentes e incandescentes, querendo se valer de suas qualidades especiais para ingressarem em locais abertos ao público, geralmente acessíveis com o pagamento de ingressos, exigindo tratamento diferenciado e almejando auferir vantagens com a utilização da chamada carteirada.

São geralmente autoridades públicas ou políticas impregnadas com porção de poder decisório.

Algumas vozes são levantadas. Questionamentos são feitos. Afinal de contas é crime, ilícito civil, é ato imoral ou não existe nenhuma repercussão no campo jurídico para esse fenômeno? A Lei 12.299, de 27 de julho de 2010, Estatuto do Torcedor, em seu artigo 13-A, impõe várias condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, dentre elas "estar na posse de ingresso válido".

A carteirada é considerada ingresso válido? De início, deve-se considerar que a lei penal não pode se afastar do princípio da taxatividade, que serve de proteção social contra os desmandos estatais. Assim, as condutas típicas, merecedoras de punição, devem ser claras e bem elaboradas. Os tipos penais não podem ser dúbios e repletos de termos valorativos porque isto poderia dar ensejo ao abuso do Estado.

Faremos uma primeira abordagem na Lei 8.112/90, que estabelece regime único para os servidores civis da União e versa no em seu art. 117, IX: "Valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública".

Pode configurar, consoante posição doutrinária, ato de improbidade administrativa no sentido de qualquer ação ou omissão que atente contra os Princípios da Administração Pública, violando os deveres de honestidade e impessoalidade, entre outros, deitando âncoras no artigo 11 da Lei 8.429/92.

"Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;"

Agora diretamente ao assunto. Existe conduta típica para quem se utiliza do expediente da carteirada para ingressar em locais abertos ao público, como espetáculos, campo de futebol, cinema, teatros e outros?

A doutrina brasileira, muito vazia de conteúdo normativo, extremamente vacilante, com fúteis agressões ao princípio da taxatividade, caminha para duas direções:

A primeira posição entende que a carteirada se subsume no tipo penal de concussão, previsto no artigo 316 do Código Penal Brasileiro.

"Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida".

A segunda posição entende que o comportamento se agasalha no artigo 4º da Lei 4898/65.

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:

h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;

O ponto nevrálgico da questão quanto à configuração do crime de concussão se esbarra naquilo que vem a ser "vantagem indevida". Ensinam os doutrinadores Damásio de Jesus, Celso Delmanto e outros que vantagem indevida na conduta concussional deve ser patrimonial. Em sentido contrário, leciona com maestria o jurista Guilherme de Souza Nucci, em sua Obra Código Penal Comentado – 4ª Ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003, pág. 863):

"...vantagem indevida: pode ser qualquer lucro, ganho, privilégio ou benefício ilícito, ou seja, contrário ao direito, ainda que ofensivo apenas aos bons costumes. .. há casos concretos em que o funcionário deseja obter somente um elogio, uma vingança ou mesmo um favor sexual, enfim, algo imponderável no campo econômico... Não se tratando de delitos patrimoniais, pode-se acolher essa amplitude".

Na mesma linha de pensamento ensina o jurista Bento de Faria, Código Penal Brasileiro Comentado. Vol. II. 2ª Ed. Record. Editora: Rio de Janeiro, 1959, pág. 99, ao tratar do elemento material do crime vantagem indevida, já afirmava que:

"... pode ser expressa por dinheiro ou qualquer outra utilidade, seja ou não de ordem patrimonial, proporcionando um lucro ou proveito".

Já o professor Fernando Capez leciona no mesmo sentido, afirmando que não se cuida, no caso, de crime patrimonial, mas de delito contra a Administração Pública.

Tutela-se a "...regularidade da administração, no que tange à probidade dos funcionários, ao legítimo uso da qualidade e da função por eles exercida", no dizer de Mirabete (Manual de Direito Penal, Vol. III, 19ª Ed. Atlas: São Paulo, 2003, pág. 319).

Segundo parte da doutrina, a restrição da incidência da norma que incrimina a concussão é homenagem à impunidade e atentado aos Princípios da Moralidade e da Impessoalidade, que regem a Administração Pública, Constituição Federal e, mais que isso, afronta o Princípio da Isonomia, trazido expressamente no caput do art. 5º, que impõe que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...".

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Na recente decisão prolatada nos autos de um processo envolvendo o Sindicato de restaurantes e bares de Brasília, o Ministério Público Federal entendeu que a carteirada é ilegal e constitui crime: "O uso indevido de identidade funcional por parte de policiais federais para, fora de serviço, ingressarem em estabelecimentos ou eventos privados, como meio de isentar-se do pagamento de entrada a todos cobrada e/ou de despesas de outra natureza, constitui, sem dúvida alguma o delito de abuso de autoridade, tipificado no art. 4º, alínea h, da Lei 4.898/1965 (ato lesivo do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder)".

Passamos então a analisar duas situações que podem ocorrer: Se o promotor do evento não oferece objeção quanto à carteirada, não se pode atribuir tipicidade penal a esse fato. Aqui não há que se cogitar concussão, porque não há exigência, uma das elementares da conduta típica. Não se pode falar em abuso de autoridade, mesmo que haja ato lesivo ao patrimônio da pessoa natural ou jurídica. Com a entrada da autoridade sem o pagamento, a permissão dos promotores do evento afasta a tipicidade, diante da disponibilidade do bem jurídico patrimonial.

Aqui poderia se cogitar do instituto do consentimento do ofendido, que funcionaria como causa supralegal de afastamento da ilicitude. Mas antes mesmo de se chegar ao segundo momento de análise do delito, numa concepção tripartida, poder-se-ia utilizar-se da atipicidade penal.

Mesmo sendo o crime de ação penal pública incondicionada, num processo de desconstituição do tipo, estaria afastada a conduta ilícita pela possibilidade da disponibilidade do objeto. Portanto, trata-se de fato atípico.

Se os promotores do evento agora não permitem a carteirada. Como fica essa situação?

Considerando as penas previstas para as duas condutas, a resposta penal que mais se aproxima do princípio da proporcionalidade é a do abuso de autoridade.

Querer atribuir concussão que prevê pena de 02 a 08 anos de reclusão, além da multa para essa conduta é adotar o direito penal do inimigo para as autoridades que se utilizam desse expediente. Aqui nos parece espetáculo cabotino, fruto de aparições midiáticas.

O que se percebe hoje no Brasil é a febre das recomendações normativas de órgãos públicos.

Há recomendação até para que a Polícia informe endereços residenciais atualizados de policiais, verdadeiro aborto jurídico, sem contar das proibições de entrada de autoridades em campos de futebol, utilizando-se das chamadas carteiradas.

O Egrégio TJSC, num julgado especificamente acerca da recomendação do MP, decidiu que aquele que não quer cumprir uma recomendação do Ministério Público não precisa atacá-la na Justiça. Como a recomendação não tem caráter coercitivo, basta desconsiderar a opinião, firmando entendimento que "não há como combater uma simples recomendação; caso haja discordância quanto ao seu conteúdo, cabe ao autor meramente a desconsiderar".

Por derradeiro, é bom frisar que se aprende desde o início nos bancos das faculdades de Direito que num estado democrático de direito apenas se cumpre ordem judicial ou lei.

Assim, decisão judicial não se discute, se cumpre, podendo ser combatida com utilização das vias recursais exaurientes, e a lei, sendo aquela formada pelo processo legislativo, entendido como um conjunto de atos realizados pelos órgãos legislativos visando a formação das espécies normativas previstas no artigo 59 da Constituição Federal de 1988.

O processo legislativo é uma imperiosa exigência do Estado democrático e social de Direito, não sendo válida uma espécie normativa sancionada sem, necessariamente, ter percorrido todos os passos previstos pela Constituição.

Num raciocínio lógico, tendo a Constituição como balizamento do ordenamento jurídico, todas as demais espécies normativas são dela diretamente decorrentes. Destarte, o art. 59 da CF/88 prevê a elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.

Concluindo, é razoável o entendimento de que a conduta carteirada liberatória pode ser considerada ilícito penal de abuso de autoridade, prevista no artigo 4º, alínea h, havendo recusa do promotor do evento em permitir a entrada das autoridades que não estão em efetivo serviço. Mas é bom salientar que a norma regente é a Lei 4898, em vigor desde 1965, e não uma Recomendação ou memorando normativo que não possui caráter coercitivo, nem vinculante, mas apenas didático. Não há necessidade de recomendação onde existe lei determinando ação ou abstenção de condutas. "Interpretatio cessat in claris". Assim, não se perde tempo e nem dinheiro para baixar um ato normativo recomendando as pessoas a não se matarem, pois o artigo 121 do Código Penal contém regra clara. Acredito mesmo que a melhor opção é a autoridade pública pagar o seu ingresso como qualquer cidadão do povo.

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Sobre o autor
Jeferson Botelho Pereira

Jeferson Botelho Pereira. Ex-Secretário Adjunto de Justiça e Segurança Pública de MG, de 03/02/2021 a 23/11/2022. É Delegado Geral de Polícia Civil em Minas Gerais, aposentado. Ex-Superintendente de Investigações e Polícia Judiciária de Minas Gerais, no período de 19 de setembro de 2011 a 10 de fevereiro de 2015. Ex-Chefe do 2º Departamento de Polícia Civil de Minas Gerais, Ex-Delegado Regional de Governador Valadares, Ex-Delegado da Divisão de Tóxicos e Entorpecentes e Repressão a Homicídios em Teófilo Otoni/MG, Graduado em Direito pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro - FENORD - Teófilo Otoni/MG, em 1991995. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Teoria Geral do Processo, Instituições de Direito Público e Privado, Legislação Especial, Direito Penal Avançado, Professor da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais, Professor do Curso de Pós-Graduação de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela FADIVALE em Governador Valadares/MG, Prof. do Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública, Faculdades Unificadas Doctum, Campus Teófilo Otoni, Professor do curso de Pós-Graduação da FADIVALE/MG, Professor da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-Teófilo Otoni. Especialização em Combate à corrupção, crime organizado e Antiterrorismo pela Vniversidad DSalamanca, Espanha, 40ª curso de Especialização em Direito. Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Participação no 1º Estado Social, neoliberalismo e desenvolvimento social e econômico, Vniversidad DSalamanca, 19/01/2017, Espanha, 2017. Participação no 2º Taller Desenvolvimento social numa sociedade de Risco e as novas Ameaças aos Direitos Fundamentais, 24/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Participação no 3º Taller A solução de conflitos no âmbito do Direito Privado, 26/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Jornada Internacional Comjib-VSAL EL espaço jurídico ibero-americano: Oportunidades e Desafios Compartidos. Participação no Seminário A relação entre União Europeia e América Latina, em 23 de janeiro de 2017. Apresentação em Taller Avanco Social numa Sociedade de Risco e a proteção dos direitos fundamentais, celebrado em 24 de janeiro de 2017. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, Buenos Aires – Argentina, autor do Livro Tráfico e Uso Ilícitos de Drogas: Atividade sindical complexa e ameaça transnacional, Editora JHMIZUNO, Participação no Livro: Lei nº 12.403/2011 na Prática - Alterações da Novel legislação e os Delegados de Polícia, Participação no Livro Comentários ao Projeto do Novo Código Penal PLS nº 236/2012, Editora Impetus, Participação no Livro Atividade Policial, 6ª Edição, Autor Rogério Greco, Coautor do Livro Manual de Processo Penal, 2015, 1ª Edição Editora D´Plácido, Autor do Livro Elementos do Direito Penal, 1ª edição, Editora D´Plácido, Belo Horizonte, 2016. Coautor do Livro RELEITURA DE CASOS CÉLEBRES. Julgamento complexo no Brasil. Editora Conhecimento - Belo Horizonte. Ano 2020. Autor do Livro VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 2022. Editora Mizuno, São Paulo. articulista em Revistas Jurídicas, Professor em Cursos preparatórios para Concurso Público, palestrante em Seminários e Congressos. É advogado criminalista em Minas Gerais. OAB/MG. Condecorações: Medalha da Inconfidência Mineira em Ouro Preto em 2013, Conferida pelo Governo do Estado, Medalha de Mérito Legislativo da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, 2013, Medalha Santos Drumont, Conferida pelo Governo do Estado de Minas Gerais, em 2013, Medalha Circuito das Águas, em 2014, Conferida Conselho da Medalha de São Lourenço/MG. Medalha Garimpeiro do ano de 2013, em Teófilo Otoni, Medalha Sesquicentenária em Teófilo Otoni. Medalha Imperador Dom Pedro II, do Corpo de Bombeiros, 29/08/2014, Medalha Gilberto Porto, Grau Ouro, pela Academia de Polícia Civil em Belo Horizonte - 2015, Medalha do Mérito Estudantil da UETO - União Estudantil de Teófilo Otoni, junho/2016, Título de Cidadão Honorário de Governador Valadares/MG, em 2012, Contagem/MG em 2013 e Belo Horizonte/MG, em 2013.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Jeferson Botelho. Aspectos gerais da "carteirada" liberatória e o princípio da taxatividade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2959, 8 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19716. Acesso em: 29 mar. 2024.

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