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Interceptação telefônica e a tutela da intimidade

01/10/1999 às 00:00
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Comumente procura-se, ao desenvolver um tópico, partir do aspecto legislativo, tomando-se como apontamento o que o preceito legal determina acerca do que se pretende desenvolver, no entanto, alguns destes tópicos, apesar de estarem consagrados muitas vezes em normas cuja validez é indiscutível, muito pouco abordados, reclamam mais acuidade em sua tutela, pois, como assevera o antigo parlamentar e ministro da justiça de Weimar Gustav Radbruch (1) uma das maneiras que podemos encarar o Direito é como atitude que refere as realidades jurídicas aos valores, considerando o direito como fato cultural, contudo, estas realidades evoluem vertiginosamente, atribuindo ao poder legiferante uma tarefa de renovação ininterrupta. Tome-se por base o direito à intimidade, assegurado na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5.º, inciso X, in verbis: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação", embora encontre-se entre os direitos e garantias fundamentais (cláusula pétrea), há muito vem-se prescindindo desta garantia, mas que, ao contrário, merece tutela pronta e urgente do direito, na afirmação de Costa Jr. (2) : "a necessidade de encontrar na solidão aquela paz e aquele equilíbrio, continuamente comprometidos pelo ritmo da vida moderna". Não apenas pela necessidade, mas pelo direito que a pessoa tem de isolar-se, resguardar-se, manter-se distante do alarde das multidões, alhear-se das, muitas vezes, insuportáveis solicitações diárias, dos olhares e ouvidos ávidos, "recolhendo-se ao seu castelo" (3) , ou como afirma Benda (4) "El concepto de privacy, elaborado en el Derecho norteamericano, comprende el derecho a la libertad personal o a permanecer apartado de la Sociedad o de la observación de los demás, pero, asimismo, al aislamiento, al reconocimiento de una esfera íntima y propia, a la intimidad del hogar, a la reserva de los diferentes ámbitos de existencia frente a la Sociedad en torno.". Nuno Rogério (5) em anotações à Lei fundamental da República Federal da Alemanha, aduz que "a inscrição de direitos resulta muitas vezes de reação ou proclamação positiva face a uma denegação ou a um vácuo", certamente, no caso da intimidade deve-se analisar amiúde se a sua formulação positiva a torna eficaz "erga omnes" revelando esta sua verdadeira natureza, ou é independente desta.

Observando a atual inquietude proveniente do progresso tecnológico, social e econômico, que produz a corrosão e o devassamento da "privatividade" das pessoas, poder-se-ia afirmar que esta é incompatível com a vida moderna, porém o já citado Prof. Costa Jr. (6) afirma que "esse desejo de subtrair as nossas experiências íntimas ao controle do mundo exterior, interiorizando-as, justifica-se pelo fato de nada mais ser que o corolário de nosso anseio por uma personalidade independente", de maneira que não há como restringir esse direito que é fundamental, pelo mero fato de sê-lo.

Pois bem, estão inclusos no direito à intimidade a tutela a que a intimidade não venha a sofrer agressões, nem venha a ser divulgada. Assim, no âmbito da intimidade encontram-se dois aspectos: 1.º a invasão; e 2.º a divulgação, sendo que ambos consistem em agressões, não havendo, desse modo, razão para distinguir tais esferas privadas, pois tratam-se mais de momentos de um único direito. Não sobejando dúvidas acerca do direito à intimidade, imanente a todo ser humano, cabe expor que este, contudo, como todo direito fundamental, sofre limitações (reduções, diminuições, mas não eliminação). E aqui pode-se mencionar a famigerada lei 9.296 de 24 de julho de 1996 que veio disciplinar as interceptações telefônicas que menciona o art. 5.º, inciso XII da CF/88. Inúmeras considerações já foram elaborados a respeito, como Delmanto e Delmanto Jr (7) , que afirmam que a redação desse mencionado dispositivo (art. 5.º, inc. XII) é falha entendendo que o dispositivo refere-se apenas as comunicações telefônicas, afirmam ainda que a interceptação telefônica durante a instrução judicial estaria colidindo com as garantias da igualdade, do contraditório e ampla defesa; o célebre Min. Luiz Vicente Cernicchiaro (8) afirma que o art. 5.º, inc. LVI da CF/88 que consagra o princípio de serem admitidos todos os meios de prova não obtidos por meio ilícito, relaciona-se com a intimidade, também o Prof. Antonio Magalhães Gomes Filho (9) dá ênfase à violação do princípio da proporcionalidade pela Lei 9.296.

Doravante, o ilustre Prof. Lênio Streck (10) , ao tratar da Interceptação telefônica assevera que "somente se justifica a invasão da esfera dos direitos fundamentais do indivíduo para o combate dos crimes que representem ameaça aos valores constitucionais, erigidos como metas pelo Estado Democrático de Direito." Porém, o direito à intimidade, cláusula pétrea, é inviolável, e, obviamente, com a interceptação não apenas o sujeito objeto desta, terá seu direito violado, terceiros sofrerão as conseqüências do ato delitivo por aquele, supostamente, praticado. Acerca disso já se manifestou, o notável penalista da Universität Frankfurt a.M., integrante do BVerfG, Winfried Hassemer (11) aduzindo que: "Na escuta telefônica, por exemplo, pessoas que não estão sendo investigadas acabam sendo observadas e milhares de dados que são coletados acabam ficando no computador da polícia. Não são esquecidos, não são apagados, são arquivados e isso constitui uma invasão da privacidade dos cidadãos não suspeitos. Essa privacidade tem que ser respeitada e está fora do direito de intervenção estatal." Ora, o direito à intimidade integra a categoria dos direitos da personalidade, é essencial, inerente a cada pessoa, assim, certamente, essa "restrição" à intimidade das pessoas debilita a pretensão de um Direito Penal garantista. Porém, Hassemer (12) ainda chama a atenção para o fato de que "o processo penal está se antecipando cada vez mais. Sempre foi necessário a existência de uma suspeita, pelo menos, para se poder investigar. Agora já se permite o início de uma investigação mesmo antes de existir qualquer suspeita.".

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O direito à intimidade deriva, segundo Costa Jr., do espírito do sistema, do complexo da valoração normativa do nosso direito, da consciência social, das idéias e tendências dominantes, e nosso Direito Penal não pode renunciar a certos princípios a título de modernização, particularmente, princípios erigidos constitucionalmente. Faz-se pertinente, ainda, expor o percuciente argumento do Prof. Magalhães Gomes Filho (13) ao asseverar que "especialmente no campo penal, é inconcebível que o Estado banalize os direitos fundamentais para obter provas." O notável Prof. E. Benda (14) afirma que "cuando el Estado quiere invadir la esfera del individuo, es decir, cuando se propone desvelar procesos o características que aquél desea reservar para sí, precisa de fundamentos suficientemente justificativos." e brilhantemente segue " Incluso el comportamiento personal en la esfera más íntima puede tener relevancia social". E, nesse caso, há verdadeiro conflito entre interesse particular e geral, portanto, deixa-se por derradeiro, a afirmação desse autor que com sua argúcia aduz "De todas las formas siempre deberá restar inmune un margem, por estrecho que resulte, de libre configuración de la vida privada; no existe objetivo estatal alguno que justifique la intromisión en él." (15)


NOTAS

(1) - RADBRUCH, G. Filosofia do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 1997, p. 46

(2) - COSTA JR., Paulo José. O Direito de estar só. São Paulo: RT, 1995, p. 12

(3) - COSTA JR., Paulo José. idem, p. 12-13

(4) - BENDA, E. Dignidad humana y derechos de la personalidad. in: Manual de Derecho ConstitucionalMadrid. 1996, p. 130

(5) - Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, com ensaio e anotações de Nuno Rogério. Editora Coimbra, p. 78. A Lei Fundamental assegura o direito à intimidade em seu Artigo 10 que trata do sigilo da correspondência, correio e telecomunicações e Artigo 13, que trata da inviolabilidade do domicílio.

(6) - COSTA JR., Paulo José. idem. p. 29

(7) - DELMANTO, R.; DELMANTO JR., R. A permissão constitucional e a nova lei de interceptação telefônica. Boletim do IBCCrim n.º 47, outubro de 1996, p. 2

(8) - CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Lei 9.296/96 - Interceptação telefônica. Boletim do IBCCrim n.º 47, outubro de 1996, p. 3

(9) - GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A violação do princípio da proporcionalidade pela Lei 9.296/96. Boletim do IBCCrim n.º 45, agosto de 1996, p. 14

(10) - STRECK, Lênio. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, p. 57

(11) - HASSEMER, W.Três temas de Direito Penal. Porto Alegre: ESMP, 1993, p. 92

(12) - HASSEMER, idem, p. 92

(13) - GOMES FILHO, Antonio Magalhães. idem. p. 15

(14) - BENDA, E. idem, p. 129

(15) - BENDA, E. idem, p. 131-2

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Sobre o autor
Pablo Rodrigo Alflen

Professor do Departamento de Ciências Penais e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito (PPGDir) da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS, Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Coordenador do Núcleo de Direito Penal Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da UFRGS, Professor de Direito Penal da Universidade Luterana do Brasil. Membro do Conselho Científico do Centro de Estudos de Direito Penal e Processual Penal Latinoamericano (Forschungsstelle für lateinamerikanisches Straf- und Strafprozessrecht) da Georg-August-Universität Göttingen, Alemanha.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Pablo Rodrigo Alflen. Interceptação telefônica e a tutela da intimidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/199. Acesso em: 29 mar. 2024.

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