O que é isto? Vontade do legislador (voluntas legislatoris) e vontade da lei (voluntas legis): sobre o modo como se interpretam as leis

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17/04/2023 às 16:01
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O QUE É ISTO? VONTADE DO LEGISLADOR (voluntas legislatoris) E VONTADE DA LEI (voluntas legis): sobre o modo como se interpretam as leis

Ari Timóteo dos Reis Júnior

Mestrando em Direito

Abril/20203

  1. Introdução

O recurso à vontade de legislador já foi chamado de “argumento psicológico”1, sendo o método pelo qual os enunciados normativos devem ter seu significado atribuído correspondentemente à vontade de seu emissor, para o caso, o legislador histórico. Trata-se de uma forma de interpretar antiga, que direcionada à garantir a fidelidade à lei e que geraria a “desresponsabilização política” do intérprete.

Na escola da exegese, que reduzia o Direito ao texto da lei, teve grande importância na resolução das insuficiências do conteúdo sintático do texto legal, na perspectiva de um objetivismo que permitia uma dedução lógica dessa vontade2. Por outro lado, já no positivismo de kelseniano3 ela perde essa importância para se situar lado a lado aos demais argumentos interpretativos. Queremos com isso ilustrar que o tema da intepretação da lei, bem como as ideias sobre o papel e importância da intenção legislativa (que se inclui na primeira) é tão amplo e já se escreveu tanto sobre que seria inviável um exame profundo nos limites desse trabalho. Ela implica inúmeras dificuldades teóricas, práticas e hermenêuticas4, embora seja preciso delimitar seu sentido e sua adoção ou não no presente trabalho.

Em princípio, levar a sério a intenção legislativa pareceria a opção mais democrática, pois os legisladores representam as maiorias, e essa seria a maneira de proceder num Estado de Direito em que vigore a separação de Poderes. Todavia, existem objeções que, se não determinam o abandono da ideia, impõe sua adequada acepção.

  1. Da tese psicológica da vontade do legislador (voluntas legislatoris)

A dificuldade ontológica refere-se à inexistência de uma intenção legislativa, entendendo que esta seria um mito, uma falácia ou uma ficção, pois o legislador não é um ser unipessoal ao qual se poderia atribuir vontade5. Seria procurado algo inexistente, uma falsa personificação da decisão de uma coletividade. Não há uma intenção coletiva, a não ser a intenção de se votar uma lei, que não vai muito além disso, pois não é possível se somarem as multifacetadas vontades individuais, sempre diversas, a não ser na perspectiva de que aprovaram um texto e nada mais que isso. Diversas intenções podem existir, sendo impossível homogeneizá-las de modo a traduzi-las como vontade do legislador.

Uma dificuldade gnosiológica também é apontada no sentido de que, mesmo que existisse essa intenção legislativa, não seria possível acessá-la. Se votam o texto e não intenções, e a aprovação do texto pode decorrer de diversas razões de votar de cada parlamentar ou maiorias parlamentares. O exame dos trabalhos preparatórios e outros documentos ou indícios como representativos da occasio legis possibilita apenas conjecturas discutíveis6 e atraem as vicissitudes do método histórico de interpretação. Além disso, muitas vezes as questões objeto da controvérsia jurídica não foram objeto de debate parlamentar ou, então, a formulação linguística adotada no texto da lei foi justamente o resultado de um compromisso para se conseguir a aprovação da lei, no sentido de se deixar de resolver problemas mais sensíveis. É de se questionar, como ceticamente o faz PERELMAN7, se o papel dos juízes é idêntico ao do historiador do Direito, que procura descobrir o que realmente aconteceu na discussão e votação de uma lei ou, ao contrário, se deve procurar uma interpretação razoável que permita a “melhor” solução, a mais justa para o caso particular, de acordo com a lei em vigor; o autor não acredita que os debates parlamentares possam legitimamente prestar-se a esclarecimentos quando a maioria parlamentar finalmente votou a favor de um texto vago. Nesse aspecto, VERMEULE8 contesta a capacidade do Poder Judiciário perscrutar os materiais legislativo na busca dessa intenção, principalmente porque tais documentos são enganosos e muitas vezes o propósito da norma não é exclusivamente legal, mas econômico e social, e os juízes não estariam preparados para analisar tais aspectos. Assim, tal procedimento conduziria mais a erros do que à correta aplicação das leis.

Por fim, também se questiona se haveria utilidade prática na noção de intenção do legislador, porque a intenção do autor das leis nem sempre importa. Por exemplo, o transcurso do tempo pode torná-la obsoleta, bem como pode redundar em consequências nefastas e inconstitucionalidades. Ademais, comumente pode ser utilizada para substituir o comando normativo pela intenção do próprio intérprete, servindo de argumento retórico e pretexto para isso.

No debate norte-americano há uma preocupação com as consequências práticas em se admitir uma interpretação baseada na intenção do legislador: qual a relevância de se apelar à intenção do legislador e quais efeitos práticos que isso implica? Nessa perspectiva, MACCALLUM JR9 entende que não faz sentido falar em intenção legislativa; já SUNSTEIN10 trilha um caminho um tanto consequencialista de considerar que um Judiciário formalista que não busque soluções além do texto, incentivaria os legisladores a ter mais cuidado com o texto da lei. Por sua vez, para SHEPSLE11, a intenção legislativa é um oximoro, uma expressão contraditória, sem consistência interna.

Com base no exposto até agora, observa-se uma forte presença do argumento cético de que a intenção legislativa é irrealista, porque a noção de um legislador é mera ficção: não existe tal pessoa, de modo que falar de intenção legislativa seria equivocado e, de qualquer forma, meramente conjectural. O cerne do argumento é o de que uma coletividade (como os parlamentos) não pode ter uma intenção

Destarte, a noção psicológica da vontade do legislador deve mesmo ser abandonada. A ideia é que a lei signifique o que está em seu texto e não o que os legisladores desejavam, de modo que mais importa a voluntas legis do que a voluntas legislatoris.

  1. Da tese institucional da vontade da lei (voluntas legis)

De tudo quanto foi dito não significa que a lei nasce por acaso, como se fosse algo naturalístico como um “olho d´água”; o que concluímos foi a inadequação da busca do sentido psicológico “inserto” na legislação. As teses mais modernas deixam de considerar a intenção do legislador como algo psicológico ou “estado de espírito”, adotando uma concepção institucional. A legislação é tratada como algo racional em busca de propósitos racionais, de modo que a intenção que importa é aquela manifestada no discurso público e traduzida como ato legislativo e não as concepções subjetivas dos membros do Parlamento. A este respeito, observe o que diz maccormick:

[a atribuição de uma intenção “objetiva” ao Parlamento] deriva de uma leitura da legislação como um todo, orientada pela assunção da racionalidade parlamentar na consecução de uma tarefa teleológica guiada por alguma concepção de justiça e do bem comum – concepção essa que talvez seja contestável, talvez até contestada. Não se trata, portanto, de uma “intenção” descoberta como um fato histórico a partir de elementos externos aos materiais colocados à interpretação e às suposições comuns que a comunidade de intérpretes pode fazer sobre o processo racional de produção do Direito. Trata-se de um instrumento heurístico interno à interpretação jurídica, não um dado novo acrescentado de fora 12

Como nos diz NASCIMENTO, “a visão de MacCormick traz uma possibilidade mais moderna de usar a intenção legislativa, que é a mais frequente hoje em dia, dentro de uma concepção mais institucional que propriamente psicológica, sem a necessidade de que haja respaldo empírico para tal argumento, ou seja, sem compromisso com a veracidade”13.

Para EKINS14 a intenção legislativa a ser considerada não é a da maioria que votou a lei, mas a intenção representada pela escolha justificada do ato legislativo, pelo que se vê que a concepção como estado psicológico é definitivamente abandonada. O ato de legislar baseia-se em boas razões (para servir ao bem comum), que devem ser levadas em conta na interpretação; a intenção legislativa a ser considerada não é a da maioria que votou a favor de uma lei (não é psicológica), mas a intenção representada na escolha justificada no ato legislativo:

o foco da pesquisa interpretativa é justamente o que é plausível inferir que o Parlamento pretendia ao promulgar o texto estatutário pertinente, ou seja, qual conteúdo de significado pretendia transmitir […]. A legislatura age por razões e usa a linguagem racionalmente, o que significa que os intérpretes têm boas razões para refletir sobre a provável cadeia de raciocínios da legislatura para determinar o significado que a legislatura provavelmente buscou transmitir15

Assim, a intenção legislativa exerce um papel na interpretação ao conceber que atos racionais de legislação se apresentam de forma coerente e direcionada à um fim, direcionada à solução de problemas sociais e alcançar valores, não havendo necessidade de respaldo empírico para esse entendimento. Daí porque a voluntas legis parece ser mais um instrumento eurístico interno à interpretação, uma construção hipotética, quem vem aliada às demais significações obtidas na interpretação.

  1. Do abandono da vontade da lei diante da mudança paradigmática

Ao que tudo indica, toda complexidade da vontade do legislador e/ou vontade da lei perde o sentido se mudarmos o paradigma de análise.

A noção de paradigma, no sentido aqui usado, advém da filosofia da ciência de KUHN16, cuja perspectiva historicista leva ao entendimento de que a evolução das ciências não se dá numa espécie de aproximação das descrições científicas com a realidade, mas sim numa mudança de paradigmas17. Os paradigmas consubstanciam modelos teóricos, vigorantes durante um certo tempo na comunidade científica e servem como parâmetro para a aferição dos “problemas” científicos e da sua própria solução1819. Um paradigma, pois, é aquilo que os membros da comunidade partilham20. Nesse sentido, a revolução científica opera uma verdadeira mudança na concepção de mundo, como se a comunidade científica fosse subitamente transportada para um novo planeta, onde objetos então familiares são vistos sob uma luz diferente2122.

É possível a reconstrução dos modelos teóricos do Direito a partir do paradigma, que tem duplo aspecto: por um lado, possibilita o desenvolvimento científico como um processo  que se verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação dos aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões de mundo, consubstanciados, no pano de fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do mundo; por outro, também padece de óbvias simplificações, que só são validas à medida que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em contextos determinados.23

Como já se disse24, não podemos fincar nossa compreensão de mundo em um modelo que somente reproduz o que foi dito, numa constante reinvenção da roda, repousado em uma razão preguiçosa que se nega a pensar ou evoluir, contentando-nos com uma repetição sem fim. Por outro lado, é, sim, importante e útil termos um suporte em ideias alheias já consolidadas, posto que somente nos concebemos enquanto incluídos num contexto social, cultural, ético, científico etc., contudo, isto não pode implicar na castração a inovações e ousadias positivas, que permitam, talvez, um progresso no modo de viver e de enxergar a sociedade. Neste sentido, a transição paradigmática abre grande espaço para a inovação, a criatividade e a opção moral, o que permite um novo conhecimento que, como nos diz SOUZA SANTOS25 se "assenta num des-pensar do velho conhecimento ainda hegemônico, do conhecimento que não admite a existência de uma crise paradigmática porque se recusa a ver que todas as soluções progressistas e auspiciosas por ele pensadas foram rejeitadas ou tornaram-se inexequíveis."

Nesse contexto, a busca pela vontade da lei ou do legislador parece ser mais adequada ao paradigma da filosofia da consciência, de uma suposta separação sujeito-objeto, texto-norma e aplicação-interpretação, que ainda se apega à subjetividades e objetividades, tentando descobrir algo que se encontre nos textos da lei, como se existisse algo bruto esperando para ser descoberto, tal como uma pepita de ouro à espera do garimpeiro; ou que acredita que as respostas estão previamente dadas pela lei, mesmo antes das perguntas.

Em primeiro lugar, texto é evento, é um fato, não é um mero enunciado linguístico. A partir do momento em que se opera o giro ontológico-linguístico26 e se trabalha com a fenomenologia hermenêutica27, não há mais problemas como indagações sobre vontade da lei ou do legislador.

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O ponto de partida histórico da hermenêutica se dará no campo da compreensão das Escrituras pelo movimento protestante. A doutrina lançada por Lutero quebrava o monopólio do clero católico na interpretação da Bíblia, defendendo que todos são seus intérpretes, de onde surge o problema de como interpretar seu texto. Em razão das peculiaridades desses textos, não era possível perguntar para o autor nem buscar sua intencionalidade, de modo que os intérpretes tinham apenas em mãos o próprio texto, que funciona como limite e condição de possibilidade. As obscuridades do texto bíblico só poderiam ser solucionadas utilizando-se outras partes do próprio texto. Todo entendimento deveria advir do próprio texto (princípio da “Scriptura sola”).

Apenas no séc. XIX é que a hermenêutica volta a ganhar destaque no cenário do pensamento filosófico, surgindo a proposta de uma teoria hermenêutica que não fosse particular ao texto religioso, mas uma disciplina geral ligada à compreensão humana28. São buscados critérios de interpretação que conduzam à uma compreensão objetiva de qualquer pensamento que possa ser reduzido à forma escrita.

A proposta de SCHEIERMACHER é focada em reconstruir o pensamento de outra pessoa através da interpretação de suas expressões linguísticas, o que se daria através de métodos que vão além da mera análise sintática (gramatical) do texto e tem a finalidade de encontrar o “espírito” do criador por traz do texto. Nesse sentido, defende uma técnica de interpretação gramatical, uma técnica de intepretação psicológica e um método. Segundo a técnica gramatical, o leitor pode utilizar o conjunto sintático-semântico da própria linguagem do texto. Nisto, deve observar o distanciamento histórico que se forma entre autor e leitor e também que a compreensão de sentido de uma palavra ou expressão deve-se dar a partir do contexto maior do todo no qual ela se insere. Logo, é erro do leitor atribuir a uma determinada passagem uma primazia, já que o sentido somente emerge de seu conjunto, não podendo representar sentidos isolados. Na interpretação psicológica, deve-se buscar o subjetivismo do autor do texto, mas sem recorrer-se à elementos extralinguísticos, o que poderia ser feito partindo-se de uma busca de sua linguagem própria ou seu estilo particular, em conjunto com as demais obras e levar em conta toda a vida desse autor.

DILTHEY irá além ao reconhecer que, diferentemente das ciências naturais, que visam explicar as causas de determinado fenômeno, as ciências do espírito assumem a compreensão do mundo, o que demanda uma dimensão histórica da experiência. Toda compreensão humana acontece a partir e dentro de uma dimensão histórica que deve ser assumida e identificada pelo intérprete. Essa dimensão histórica do texto a ser estudado é obtida através de regras técnicas.

Essa perspectiva ainda se ligava à visão instrumental da hermenêutica, ancorada no universo epistemológico, onde se insere a ruptura provocada pelo “giro hermenêutico” de HEIDEGGER e GADAMER. Há uma passagem do epistemológico para o ontológico, diante da impossibilidade de se reduzir a linguagem à perspectiva científico-moderna. A interpretação é um modo de ser, mais que um simples ato de conhecer. Nesse sentido, a compreensão se dá a partir de um mundo circundante articulado em forma linguística. A linguagem, por sua vez, não é um mero mecanismo para transmissão de informações, mas antes, uma condição de acesso ao mundo.

A linguagem não é mais entendida como cálculo, mas como meio universal, ou seja, o homem é linguagem, é tempo e muda. A verdade está no Dasein, sendo também ela precária, mutável, porque baseada na linguagem e na percepção do homem. Só se pode falar de linguagem aí onde o ser se desvela, ou seja, no homem, um ser histórico que, quando pergunta, já o faz dentro de uma tradição cultural específica. Assim, atribui-se outra dignidade à tradição e ao preconceito, que era vistos como contrários à ciência pelo iluminismo.

A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da intepretação textual exata, se compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia.29

Portanto, toda intepretação depende de uma posição prévia, visão prévia e concepção prévia. Isso modifica todo pensamento filosófico, na medida em que estava baseado na possibilidade de acesso a um mundo externo à nós. A própria linguagem, que estava marcada pela condição de ser uma criação externa que funciona como uma ponte entre o interno e o externo, transmuda seu sentido para uma compreensão de que linguagem e mundo estão interligados, pois o mundo se apresenta a nós enquanto linguagem. Ademais, não há essência das coisas, pois a compreensão do mundo e de todas as coisas se dá a partir de uma tradição, de uma história, de uma compreensão prévia. Contudo, isso não nos leva ao relativismo, tendo em vista que a tradição serve como pano de fundo que confere sentido.

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Destarte, interpretar não é a explicitação de um estado bruto de coisas externas, até mesmo porque não se pode deparar com “fatos” brutos (não há um grau zero de sentido), não é uma explicação de um fato, mas é tornar explícito o modo como foi compreendido o ente no interior do mundo, conforme remissões significativas historicamente constituídas. Assim, a interpretação revela seu fundamento existencial (categoria pela qual o homem se constitui), pois a compreensão não é um modo de conhecer, mas um modo de ser; é constituição da realidade da presença nas possibilidades que lhe são possíveis. Interpretar é explicitar o compreendido, porque compreendemos para interpretar e não interpretamos para compreender, sendo a interpretação a explicitação do compreendido30.

Nesse contexto, o sentido não é algo que possa ser arrancado do texto; ele é atribuído a partir da facticidade em que inserido o intérprete e respeitando os conteúdos de base do texto, que devem nos dizer algo. Assim, no interior do círculo hermenêutico, em que toda interpretação começa no texto, o sentido exsurgirá de acordo com as possibilidades (horizonte de sentido) do intérprete em dizê-lo. O texto não é algo em abstrato, um mero conceito, uma pauta geral ou um mero enunciado linguístico, que seria apenas a ponta do icebertg e que, debaixo, estariam submersos valores a serem descobertos pela subjetividade do intérprete. Há uma incidibilidade entre interpretação, compreensão e aplicação o que se relaciona com a diferença ontológica entre texto e norma, porque não há conceito sem coisas, nem é possível extrair do texto algo que lhe seja imanente.

O texto não está a disposição do intérprete porque ele é produto da interação de forças que não se dá num esquema sujeito-objeto, mas, sim, a partir do círculo hermenêutico, que atravessa o dualismo metafísico (objetivista e subjetivista). Há um sentido forjado na intersubjetividade que se antecipa ao intérprete, que está, desde sempre, jogado na linguisticidade. É preciso entender que a interpretação do texto exsurgirá a partir de um lugar originário, produto da antecipação de sentido (estrutura prévia de sentido), porque não há conhecimento de objetos do mundo sem que tenhamos uma relação significativa com o mundo que nos envolve e nos carrega.

Por isso, a aplicação (que não é cindida da intepretação) não é subsuntiva; mas, o sentido do texto se dá a partir do modo de ser-no-mundo no qual está inserido o intérprete.

Assim, a diferença entre texto e norma, na perspectiva de STRECK31, é uma diferença ontológica. Se em HEIDEGGER32, o ente só existe em seu ser e o ser tem a função de dar sentido aos entes (que não existem por si em sua “entidade”), o texto jurídico só existe na medida em que a ele se atribui uma norma. O texto não existe em sua “textitude”, mas apenas em sua norma, que é o sentido atribuído na interpretação/aplicação.

Daí advém a noção de círculo hermenêutico que, nessa perspectiva, significa que sempre ingressamos no processo de compreensão com algo antecipado. Não há grau zero de sentido. Por exemplo, se falo de uma inconstitucionalidade, já sei o que é Constituição, Direito constitucional, jurisdição constitucional etc. Isto porque toda compreensão hermenêutica pressupõe uma inserção no processo de transmissão da tradição. Toda compreensão hermenêutica pressupõe uma inserção no processo de transmissão da tradição, de modo que a pré-compreensão é um momento essencial da hermenêutica, sendo impossível ao intérprete se desprender da circularidade da compreensão.

Destarte, a intepretação não tem base exclusivamente no texto, mas também a facticidade, consistente no selo histórico imprimido em nosso ser, tendo um sentido existencial e, pois, rompendo com o esquema sujeito-objeto, na medida em que se afasta tanto da ontologia da coisa (objetivismo) como da subjetividade. Há uma relação da compreensão com o todo que se põe em nosso caminho. É o todo pela parte e a parte pelo todo. Não se compreende a floresta sem árvore, nem a árvore sem floresta.

Pelo que foi dito, parece possível concluir que a vontade da lei ou vontade do legislador perde seu sentido. Não porque o texto seja algo naturalístico, mas porque a compreensão se faz através da fusão de horizontes, mediada por pré-compeensões e somente diante do caso concreto e na aplicação da lei, nunca abstratamente.

  1. Conclusão

Pelo exposto, podemos concluir que a vontade do legislador e/ou a vontade da lei é uma complexidade que surge num paradigma que não consegue resolver o problema da subjetividade do intérprete. Essas ideias, ao fim e ao cabo, não conferem norte seguro, possibilitam pretexto para subjetivismos e decisionismos, e causam mais problemas do que soluções. Na maioria das vezes surgem como argumento retórico aliado à outros argumentos interpretativos.

Reconhecia que a interpretação não se opera num vazio de sentido, e que o texto da lei é um evento que se inserirá no círculo hermenêutico, parece claro que a vontade da lei e a vontade do legislador são anacrônicas, frutos do paradigma positivista, que não consegue dar conta da discricionariedade do intérprete, devendo, pois, serem abandonadas.

Sobre o autor
Ari Timóteo dos Reis Júnior

Procurador da Fazenda Nacional. Mestre em Direito. Professor de Direito Tributário. @ari_timoteo_junior

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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