Capa da publicação Cultura do cancelamento digital e o tribunal da internet
Capa: Netflix

A cultura do cancelamento digital e o tribunal da internet.

Há limites para essa nova concepção?

16/09/2020 às 16:23
Leia nesta página:

Este artigo aborda um novo modo de materializar opiniões, denominado como "cultura do cancelamento", o qual se coaduna com a realização de linchamentos virtuais, em uma espécie de "tribunal da internet".

Não é novidade que a internet se faz mais presente na sociedade a cada dia que se passa, trazendo à vida de seus usuários mais facilidade. No entanto, apesar dos diversos benefícios que resultam dessa tecnologia, apresentou-se na rede social “twitter um novo modo de materializar opiniões, denominado como “cultura do cancelamento”. Referido movimento, pelo o qual os usuários criticam determinada pessoa em face de alguma fala ou ato por ela praticado, realiza uma espécie de invalidação pessoal (como forma de justiça social), ocorrendo, na maioria das vezes, sem direito à resposta.

Apesar de ser um método mais comumente utilizado contra famosos e subcelebridades do mundo digital, objetivando a perda de seguidores e até mesmo de parcerias publicitárias, a cultura do cancelamento, que funciona como uma espécie de penalidade (e que já se espalhou por diversas redes sociais), vem se coadunando com a realização de linchamentos virtuais de pessoas anônimas, iniciando-se a partir do momento em que surge a notícia de que determinado sujeito teria, supostamente, praticado ato considerado ilícito (ou até mesmo imoral).

Em verdade, o que se demonstra é uma espécie de “tribunal da internet”, pelo o qual os usuários, ao visualizarem determinada acusação nos meios digitais, ainda que de maneira informal, se sentem no direito de opinar e, inclusive, realizar um julgamento pessoal, como uma tentativa exacerbada de encontrar justiça para o caso concreto. Não obstante, tendo em vista que essa forma de pré-julgamento se concretiza apenas com as informações de determinada fonte, as consequências que podem resultar são inúmeras, ferindo diversos direitos que foram conquistados ao longo dos anos, inerentes à pessoa humana.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, inciso LVII dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Denominado como princípio da presunção de inocência (ou não culpabilidade), Damásio de Jesus nos ensina que “dele decorre a exigência de que a pena não seja executada enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória. Somente depois de a condenação tornar-se irrecorrível é que podem ser impostas medidas próprias da fase da execução”1.

Ocorre que, com esse modelo de justiça social, evidente que tal princípio não é observado. Pelo contrário, no momento em que a notícia é visualizada por quem está “navegando”, este se sente no direito de imediatamente expressar sua opinião, mesmo sabendo que pode haver o risco do sujeito ser absolvido em um processo judicial. Sabe-se que o julgamento através das redes sociais é manifestado através da subjetividade dos indivíduos e, portanto, são poucos os que evidenciam compreensão pelos princípios constitucionais.

A Carta Magna, inclusive, traz em seu artigo 5°, inciso XXXVII a vedação do juízo ou tribunal de exceção2. Decorrente desse inciso, o princípio da imparcialidade busca trazer às partes uma segurança na decisão de sua lide, vez que cabe ao magistrado analisar o processo com a imparcialidade que lhe é devida, ou seja, sem realizar distinções em relação às partes de um processo. No entanto, apesar de ser um princípio restrito aos juízes no julgamento de processos, importante se faz sua análise no presente artigo, tendo em vista que são os usuários quem controlam as informações que recebem no meio digital.

Destarte, considerando que as fontes são da própria escolha de quem se predispõe a demonstrar sua opinião (que nada mais é do que um julgamento sobre o que lhe está sendo exposto), ou, ainda, de pessoas próximas e de seu relacionamento, inegável não se tratar de um parecer isento. Aliás, para que haja essa invalidação, a primeira impressão se faz suficiente, não havendo contraditório e ampla defesa ao sujeito evidenciado.

De acordo com o Supremo Tribunal Federal, “ofende a garantia constitucional do contraditório fundar-se a condenação exclusivamente em elementos informativos do inquérito policial não ratificados em juízo” (Inf. 366/STF, HC 84.517/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 19.10.2004. Precedentes citados: HC 74.368/MG, DJU de 28.11.1997, e HC 81.171/DF, DJU de 07.03.2003). Logo, se uma condenação judicial não pode lastrear-se apenas nos elementos colhidos em fase de investigação, quão arriscado é permitir que qualquer pessoa seja julgada, ainda que de forma digital, com base apenas em informações colhidas brevemente pela internet (considerando que há consequências e que o cancelamento se demonstra como uma forma de penalidade)?

Por outro lado, a Constituição Federal, em seu artigo 5°, inciso IV protege a livre manifestação do pensamento3. No entanto, Ingo Sarlet estabelece que, embora a doutrina e jurisprudência adotem a tese da posição preferencial da liberdade de expressão, também admitem não se tratar de direito absoluto, devendo ser observados os critérios da proporcionalidade e da preservação do núcleo essencial dos direitos em conflito4.

Insta salientar, portanto, que há limites, desde que eventual restrição tenha caráter excepcional, seja promovida por lei e/ou decisão judicial, e tenha por fundamento a salvaguarda da dignidade da pessoa humana5. Assim, evidente que a livre manifestação de pensamento não pode ser utilizada para infringir à imagem, à honra, à vida privada e à dignidade da pessoa humana. Quando o usuário pratica uma atividade ilícita no exercício dessa exteriorização, o limite se estabelece, devendo ser analisado caso a caso, vez que a internet é uma forma de comunicação de grande alcance e que a responsabilização não é automática.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Não se pode olvidar que os debates sociais e a pluralidade de vozes na afirmação de um mesmo movimento se fazem cada vez mais necessários, trazendo à tona assuntos de relevância social e ajudando a formar uma sociedade mais justa e igualitária. Contudo, é preciso a compreensão de que a utilização desse meio como forma de manifestação de pensamento pode afetar a vida alheia de forma significativa, podendo causar, inclusive, violência psicológica.

Colige-se, portanto, que à liberdade de expressão deve ser comedida pelo princípio da proporcionalidade, devendo haver equilíbrio entre essa liberdade e outros direitos igualmente relevantes. No entanto, apesar dos aspectos ponderados, ainda não há um limite pré-estabelecido de forma ostensiva (no meio digital), nem tampouco meios eficazes de controle para essa nova forma de justiça social, que se materializa através das redes sociais. Assim, enquanto a sociedade não se conscientizar de que julgar alguém, ainda que de forma online, pode ser extremamente prejudicial, tal prática continuará a ser realizada, causando prejuízos incalculáveis, que podem ser evitados com um simples ensinamento de infância: saber se colocar no lugar do outro.


Notas

1 JESUS, Damásio. Direito Penal: Parte Geral. 36. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

2 Art. 5°, inciso XXXVII da Constituição Federal de 1988 – não haverá juízo ou tribunal de exceção.

3 Art. 5°, inciso IV da Constituição Federal de 1988 – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.

4 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

5 Idem.

Sobre a autora
Patrícia Tonelli de Melo

Técnica em Serviços Jurídicos, estudante de Direito do 9° Semestre.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos