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Da chamada "alienação de folha de pagamento".

Natureza jurídica, licitação e dispensa à luz do ordenamento constitucional

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29/01/2010 às 00:00
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6. A questão da dispensa de licitação para contratação com instituições financeiras públicas

Visto que a contratação de instituição financeira pressupõe prévio procedimento licitatório, por força do disposto no art. 37, XXI, da Constituição da República, impõe-se perquirir se é possível dispensá-lo em caso da contratação de instituições financeiras públicas, tais como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, por exemplo.

A questão se torna mais relevante em razão do disposto no art. 24, VIII, da lei 8.666/93, o qual em linhas gerais prevê a possibilidade de dispensa de licitação para a contratação de entidade que integre a Administração Pública. Diante disso, poder-se-ia entender que a contratação de instituições financeiras que integrassem a Administração Pública indireta seria viável sem a realização de licitação, desde que elas tivessem sido criadas em data anterior à vigência da Lei 8.666/93 e que o preço fosse compatível com o praticado no mercado. Contudo, é de se ver que a norma em referência deve ser interpretada à luz do ordenamento constitucional, que disciplina de forma criteriosa a atuação do Estado como participante da economia, especialmente no art. 173.

Nesse contexto, antes de se definir a aplicabilidade da norma que permite a dispensa de licitação ao caso presente, faz-se necessário analisar a natureza jurídica da atividade prestada pela instituição financeira no contrato em comento, para então estabelecer qual o regime jurídico a ela aplicado.

6.1 A natureza jurídica da atividade a ser prestada pela instituição financeira e seu regime

Eros Roberto Grau estabelece a atividade econômica (lato sensu) como um gênero do qual se destacam duas espécies: os serviços públicos e a atividade econômica stricto sensu. A prestação de serviços públicos, expõe ele, seria atividade com previsão direta ou implícita na Constituição, marcada pela sua vinculação ao interesse social [09]. Como exemplo, podem-se ter as atividades de transporte público, saúde, educação, correio, dentre diversas outras, as quais são prestadas diretamente pelo Estado ou através de particulares, por meio de autorização, permissão ou concessão.

De outra parte, a atividade econômica stricto sensu é aquela atividade que é desenvolvida dentro do contexto mercadológico. Quando a desempenha, o Estado o faz por exceção, vinculado estritamente às hipóteses constitucionalmente previstas, atuando no mercado em pé de igualdade com os agentes econômicos privados.

A respeito dessa classificação, assim sintetiza o referido Ministro, em voto proferido na ADI 1642 [10]:

A expressão atividade econômica conota, no contexto do art. 173 e seu § 1º, atividade econômica em sentido estrito. O art. 173, caput, enuncia as hipóteses nas quais é permitida ao Estado a exploração direta de atividade econômica. Trata-se, aqui, de atuação do Estado – isto é, da União, do Estado-membro, do Distrito Federal e do Município – como agente econômico, em área da titularidade do setor privado. Atividade econômica em sentido amplo é território dividido em dois campos: o do serviço público e o da atividade econômica em sentido estrito. As hipóteses indicadas no art. 173 do texto constitucional são aquelas nas quais é permitida a atuação da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios neste segundo campo. O preceito não alcança as empresas públicas, sociedades de economia mista e entidades (estatais) que prestam serviço público.

Diante disso, é de se ver que, quando uma empresa estatal, ainda que constituída sob a forma de direito privado, presta serviço público, goza ela das mesmas prerrogativas advindas do regime de direito público. Nesse sentido, o STF tem reconhecido, por exemplo, que a imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, "a", da Constituição se aplica aos Correios [11] e à Infraero [12], as quais, embora sejam empresas públicas de direito privado, são prestadoras de serviço público de competência material da União [13]. Da mesma forma, tem-se reconhecido a impenhorabilidade dos bens dessas empresas, pelo mesmo fundamento [14].

Contudo, quando uma empresa estatal desempenha atividade eminentemente econômica, fica vedada pela Constituição qualquer prerrogativa que não seja extensível aos demais particulares. Isso porque, como referido, o desempenho de atividade econômica stricto sensu por parte do Estado submete-se ao regime da livre concorrência, princípio basilar da ordem econômica, insculpido no art. 170, IV, da Constituição. Assim, qualquer privilégio que fosse instituído apenas para as empresas estatais configuraria flagrante violação a esse princípio, bem como à isonomia, o qual igualmente consta com status constitucional. Tal imposição decorre, ainda, do próprio princípio republicano [15] e do regime capitalista [16] insculpidos na Carta de 1988.

Assim, quando se trata de empresa estatal que participa em igualdade com os particulares, deve-se observar o disposto no art. 173 da Constituição, que assim dispõe:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(...)

II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(...)

§ 2º - As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

Dando efetividade à norma acima transcrita, o STF tem considerado que quaisquer benefícios ou privilégios concedidos a empresa estatal que desempenhe atividade econômica stricto sensu é manifestamente inconstitucional. Veja-se, por exemplo, que foi dada interpretação conforme à norma prevista no art. 3º da Medida Provisória 1.522/96, a qual previu não serem aplicáveis as disposições do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) relativas ao advogado empregado às empresas públicas e sociedades de economia mista. A Corte Suprema reconheceu que a norma só seria constitucional se aplicada apenas àquelas empresas que não explorassem atividade econômica em sentido estrito. Do contrário, criar-se-ia distinção descabida entre tais empresas e os particulares que atuassem em regime de concorrência no mercado [17].

Em relação a essa dualidade de regimes, poderia surgir certa dificuldade no caso de empresas que desempenhem tanto atividade econômica stricto sensu quanto serviços públicos, tal como ocorre com a Caixa Econômica Federal, por exemplo. Observe-se que a essa empresa pública foi delegado o serviço público de exploração de loterias [18], a par de desempenhar ela sua atividade bancária ordinária, a qual é tipicamente econômica, em regime de mercado.

Nesse caso, dever-se-á aplicar o regime atinente a cada uma dessas atividades, de acordo com a sua natureza. Em outras palavras, quando estiver prestando serviços públicos, a empresa poderá ter privilégios relativamente a tais atos, situação que não poderá se dar em relação às atividades econômicas em sentido estrito. Veja-se mais uma vez, a respeito disso, o posicionamento de Eros Grau [19]:

Apenas para exemplificar: ao tratarmos das empresas estatais – entidades da Administração Indireta – que desenvolvem tanto serviços públicos quanto iniciativa econômica, deveremos, tendo em vista a sua aplicação a um e a outro tipo de atuação, construir modelos específicos de regimes de Direito Público e de Direito Privado, sempre desde a ponderação do conteúdo e da finalidade dos princípios que os informam. No caso específico das empresas estatais, tomando também como parâmetro para esta construção a disposição expressa no § 1º do art. 173 do texto constitucional.

Voltando os olhos para o caso presente, pode-se constatar que realizar os pagamentos da folha de servidores ativos, inativos e pensionistas é evidente atividade econômica em sentido estrito, não se confundindo de forma alguma com a prestação de serviços públicos ou com outras atividades estatais diversas. Isso porque ela é típica atividade bancária, que é desempenhada indistintamente por diversas instituições, privadas e públicas, inclusive para particulares.

Estabelecidas essas premissas, impõe-se analisar suas implicações no tocante à questão envolvendo dispensa de licitação no caso de instituição financeira pública.

6.2 Da inaplicabilidade do art. 24, VIII, da Lei 8.666/93 ao caso em tela

Visto o regime privado e concorrencial aplicável para empresas estatais que desempenhem atividade econômica em sentido estrito, não há como se considerar dispensável a licitação para a contratação de bancos públicos no caso presente, uma vez que isso implicaria numa vantagem que contraria frontalmente a Constituição da República.

Nesse sentido, é de todo inaplicável à espécie a norma do art. 24, VIII, da Lei de Licitações, que assim prevê:

Art. 24.  É dispensável a licitação:

(...)

VIII - para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência desta Lei, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)

Observe-se que essa hipótese de dispensa é viável apenas para os casos de contratação de empresas que não desempenhem atividade econômica em sentido escrito, sejam elas prestadoras de serviços públicos ou de outras atividades intrínsecas à Administração Pública.

Em realidade, a hipótese de dispensa em questão relaciona-se com o fenômeno da descentralização, pelo qual a Administração direta, de modo a tornar mais eficiente a atividade estatal, cria entidades autônomas com finalidades específicas, a fim de delegar-lhe incumbências determinadas. No entanto, tal situação não se confunde com a criação, pelo Estado, de empresas de direito privado destinadas a atuar no mercado, as quais têm expresso fundamento constitucional, especialmente marcadas pelo relevante interesse coletivo ou por imperativos de segurança nacional.

Tal posicionamento, refira-se, é defendido por Marçal Justen Filho, que assim escreve a respeito do tema [20]:

Tem de reputar-se que a regra do inc. VIII apenas pode referir-se a contratações entre a Administração direta e entidades a ela vinculadas, prestadoras de serviço público (o que abrange tanto as prestadoras de serviço público propriamente ditas como as que dão suporte à Administração Pública).

A regra não dá guarida a contratações da Administração Pública com entidades administrativas que desempenhem atividade econômica em sentido estrito. Se o inc. VIII pretendesse autorizar contratação direta no âmbito de atividades econômicas, estaria caracterizada inconstitucionalidade. É que as entidades exercentes de atividade econômica estão disciplinadas pelo art. 173, § 1º, da CF/88. Daí decorre a submissão ao mesmo regime reservado para os particulares. Não é permitido qualquer privilégio nas contratações dessas entidades. Logo, não poderiam ter a garantia de contratar direta e preferencialmente com as pessoas de direito público. Isso seria assegurar-lhes regime incompatível com o princípio da isonomia. Essa solução é indispensável para assegurar a livre concorrência.

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O mesmo autor ressalta, ainda, que a dispensa prevista no art. 24, VIII, da Lei 8.666/93 só se aplica a entidades que tenham sido criadas "com a finalidade específica de fornecer bens e serviços à Administração Pública", exercendo tal atribuição de forma exclusiva [21]. Assim, considerando que as instituições financeiras públicas foram criadas precipuamente para exercer atividades econômicas de mercado, em participação com agentes privados – e não atender exclusivamente à Administração –, reforça-se a inaplicabilidade do dispositivo a elas.

A respeito dessas questões, analisando a aplicabilidade de tal dispositivo à empresa Cobra Tecnologia S.A., que é uma sociedade de economia mista vinculada ao Banco do Brasil, assim se pronunciou o TCU, em voto da lavra do Min. Benjamin Zymler [22]:

Definida tal questão, poder-se-á verificar se, de fato, a Cobra constitui pessoa jurídica de direito privado criada para o fim específico de fornecer bens ou prestar serviços à Administração Pública, de forma a poder valer-se da dispensa de licitação, com espeque no inciso VIII do art. 24 da Lei nº 8.666/93. Outrossim, a confirmar-se seu status de empresa pública exploradora de atividade econômica, restará patente sua sujeição ao regime jurídico das empresas privadas (art. 173, § 1o, II, da CF), devendo, portanto, submeter-se à licitação. (grifo nosso)

Tal entendimento do TCU tem sido igualmente adotado pelos Tribunais de Contas dos estados, como se pode ver de decisão do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia [23], o qual entendeu ser incabível a dispensa de licitação para situação que é análoga ao objeto do presente estudo, nos seguintes termos:

(...)

Cumpre salientar, ainda, que as sociedades de economia mista, que exploram atividade econômica, como o Banco do Brasil, são pessoas jurídicas de direito privado criadas pelo Estado para servirem de instrumento para sua atuação no domínio econômico, conforme o artigo 5º, do Decreto-Lei 200/1967, que dispõe sobre a organização da Administração Federal.

(...)

Sendo assim, fica evidente que o referido banco, apesar de fazer parte da Administração Pública Indireta, não foi criado com fim específico de prestar os serviços financeiros, objeto do citado contrato com o Município de Eunápolis, bem como não pertence ao mesmo nível de governo que o contratante, vez que se trata de um banco federal.

(...)

Por derradeiro, da leitura do instrumento contratual ora vergastado, infere-se que o mesmo não atendeu aos pressupostos exigidos pelo art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, bem assim aos arts. 1º, 2º, 3º e 26 da Lei 8666/93, vez que o Banco do Brasil foi contratado para realizar serviços bancários, sem se submeter previamente ao devido certame licitatório, garantia constitucional que visa assegurar o princípio da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para o Poder Público.

Da mesma forma, tem-se visto o ajuizamento de ações civis públicas com o fito de declarar a nulidade de contratos firmados com dispensa de licitação, em casos semelhantes ao que ora se analisa. Veja-se, como exemplo, a seguinte notícia, veiculada na página da Procuradoria da República em Minas Gerais [24]:

MPF pede anulação de contrato de prestação de serviços financeiros firmado entre o Município de Uberaba e a Caixa Econômica Federal Uberaba. O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou Ação Civil Pública perante a Justiça Federal de Uberaba para anular o contrato de prestação de serviços financeiros celebrado entre o Município de Uberaba e a Caixa Econômica Federal. Segundo a ação, o contrato seria nulo, porque foi celebrado sem licitação, em clara afronta ao que dispõe o artigo 37, inciso XXI, da Constituição.

Em 24 de janeiro deste ano, o Município de Uberaba publicou a abertura de licitação, na modalidade pregão presencial, para a contratação de instituição financeira que prestasse, em regime de exclusividade, serviços bancários de processamento da folha de pagamento dos servidores públicos municipais. O serviço incluiria o processamento das folhas da prefeitura municipal e das entidades da administração pública indireta: o Centro Operacional de Desenvolvimento e Saneamento, a Companhia de Desenvolvimento de Informática, a Companhia de Habitação do Vale do Rio Grande, a Fundação Cultural de Uberaba, a Fundação de Ensino Técnico Intensivo Dr. René Barsan, a autarquia Estádio Municipal Engenheiro João Guido e o Instituto de Previdência dos Servidores Públicos Municipais.

Três meses depois, em 04 de abril, a Prefeitura revogou a licitação, que, aliás, se encontrava suspensa devido a questionamentos feitos pelos licitantes, e autorizou a abertura de procedimento de Dispensa de Licitação para a contratação direta da Caixa Econômica Federal. (...)

Assim, pode-se concluir que é incabível a dispensa de procedimento licitatório para a contratação de instituições financeiras no caso sob análise, ainda que sejam elas públicas, pertencentes à Administração Indireta.

Ressalva-se, contudo, que isso jamais impedirá que tais instituições participem do certame licitatório, sendo que em muitos casos terão elas grandes chances de se sagrar vencedoras, dado o seu porte e a qualidade dos serviços que prestam.

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Sobre o autor
Éder Maurício Pezzi López

especialista em Direito Civil e Processo Civil, Advogado da União em Rio Grande-RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÓPEZ, Éder Maurício Pezzi. Da chamada "alienação de folha de pagamento".: Natureza jurídica, licitação e dispensa à luz do ordenamento constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2403, 29 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14261. Acesso em: 19 abr. 2024.

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