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Responsabilidade civil do Estado em relação à segurança pública.

O fenômeno "bala perdida"

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RESUMO

O presente trabalho pretende abordar a responsabilidade civil do Estado brasileiro, no que tange à obrigação de reparar danos causados aos particulares, por seus agentes, em especial, os policiais civis e militares, durante o exercício de suas funções públicas. Busca-se uma abordagem específica sobre a matéria, não havendo intenção de esgotar o estudo, já que não serão examinados todos os aspectos que envolvem a responsabilidade civil estatal, mas somente a resultante da omissão e/ou da má realização do serviço público prestado, relativo à segurança pública.

O corte geográfico estará centrado na cidade do Rio de Janeiro, privilegiando o exame dos fatos correlacionados aos servidores públicos desta unidade federativa. Além disso, a análise ora em estudo prende-se, exclusivamente, aos casos em que a ofensa aos bens jurídicos protegidos pela lei penal brasileira (vida, integridade física, patrimônio, etc.), decorre do fenômeno alcunhado socialmente como "bala perdida". O termo "bala perdida" vem sendo utilizado pela mídia nacional para designar a imprecisão da ofensa, tanto no que concerne à imputação do autor do disparo do projétil de arma de fogo, quanto da própria atividade desenvolvida por esses agentes públicos. Tal expressão tornou-se um axioma com um significado muito amplo, na medida em que revela uma gama de fatores sociais falhos, que atingem inúmeros brasileiros diariamente.

Assim, indiretamente a investigação enfocará a omissão ou a incapacidade do Estado carioca em concretizar a segurança pública, deixando de cumprir o dever imposto pelo texto constitucional relativo à ordem, à paz e à tranqüilidade social (artigo 144, da Constituição Federal).

Para tanto, a pesquisa terá como fonte as jurisprudências proferidas pelo Tribunal de Justiça fluminense, nos últimos dez anos, objetivando verificar a orientação aplicada e apontar a evolução do tratamento dado a essas modalidades de conflitos em que são partes o Estado e o particular.

Ao mesmo passo, servirão de elementos comparativos as decisões emitidas pelo Supremo Tribunal Federal, levando-se em consideração suas competências de Suprema Corte e Tribunal Constitucional, já que se insere na estrutura do Poder Judiciário como órgão de última instância decisória e, portanto, suas afirmações tem caráter de perpetuidade e inalterabilidade.

Por fim, as fontes bibliográficas auxiliarão no desenvolvimento histórico da responsabilidade civil estatal, bem como na indicação dos institutos que a concretizam, além dos ensinamentos doutrinários acerca do tema.

Palavras chaves: responsabilidade objetiva do Estado; "bala perdida"; atividade risco; segurança pública.


INTRODUÇÃO

O Estado, como ente complexo que se apresenta, assentado na condição de pessoa jurídica de direito público, desenvolve atividade funcional por intermédio de seus servidores, dotados de atribuições, que agem em nome e por conta dele, buscando sempre a promoção do bem comum. Dessa forma, ao realizar as funções estatais, precipuamente, devem respeitar os direitos consagrados universalmente nas legislações internas e transnacionais.

Dentre os serviços prestados pelo Estado, a segurança pública, que diz respeito à manutenção da ordem pública, está intrinsecamente ligada ao conceito de integração dos entes federados – União, Estados e Municípios – para que, em ação conjunta, assegurem o bem estar geral, sem ferir os direitos fundamentais, individuais e coletivos, atividades econômicas e sociais, bem como o patrimônio público e privado. [01]

Contudo, as inúmeras e constantes propagandas na mídia têm informado, ao longo das últimas décadas, um crescente aumento da insegurança pública nas grandes cidades, principalmente no Rio de Janeiro, tendo a região urbana recebido maior destaque nos jornais escritos e televisivos. A carência de estudos científicos voltados para a questão contribui, por outro lado, para a crença na inquestionabilidade e na legitimidade das informações midiáticas.

O pano de fundo em que a insegurança pública está assentada, não é revelado pelos meios de comunicação em massa. Os fatores sociais, que contribuem para esse contexto e que estão ligados diretamente à mudança sócio-político-econômica que ocorreram no mundo inteiro, não são citados. Nos últimos anos a fragilidade das relações econômicas transnacionais e a ausência do poder público na manutenção e defesa dos direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, tais como o emprego, a saúde e a segurança, poderiam ser apontados como os principais fomentadores da atual insegurança social.

Na sociedade pós-moderna, importantes mudanças estruturais estão em funcionamento. Dentre aquelas que possuem conexão direta ou indireta com a criminalidade, JOHNSTON (2002) entende que podem ser apontadas: a) a mudança econômica; b) o processo de globalização e localização; c) a mudança no sistema de estratificação, e d) as mudanças na política e no Estado. E mais, para esse autor, a violência policial, em termos conceituais, pode ser considerada como violência sistêmica, na medida em que os seus efeitos são considerados reflexos do passado político brasileiro. [02]

Também colabora com este cenário, o fato dos agentes públicos responsáveis pela segurança coletiva atuarem, na maioria das vezes, contra ela. Segundo o professor de história Marcelo Freixo, o Rio de Janeiro possui a polícia mais violenta do mundo [03]. Segundo ele, foram mais de mil mortes em 2007, com tiros na nuca e à média distância – o que caracterizaria execução sumária. Para se ter uma idéia, isso equivale a quase o dobro da média anual de civis mortos por todas as polícias norte americanas (federal, estaduais, municipais e de condado) no mesmo período: 350 pessoas, segundo dados do FBI. [04]

Corrobora com este entendimento o relatório intitulado "Violência policial no Rio de Janeiro: da abordagem ao uso da força letal", realizado pela pesquisadora Silvia Ramos e emitido pela Rede Social de Justiça e Diretos Humanos, o qual demonstra que o Brasil possui um dos indicadores mais altos de violência letal no mundo, com 50 mil homicídios por ano e uma taxa de 28,5 homicídios por cada 100 mil habitantes, enfocando do Rio de Janeiro, com índice de 56,4, no ano de 2002. [05]

Tal documento reflete a inabilidade do serviço de segurança pública, na medida em que a anomia profissional, a carência de informação e a capacitação técnica reproduzem os piores custos, pagos com a integridade física de membros de uma parcela social economicamente desfavorecida da população carioca. Entre as causas que determinam esse cenário, encontram-se a ausência de investimentos e políticas públicas racionais, com o objetivo de atuação mais decisiva do Poder Judiciário e das instâncias de controle social, como já revelou o sociólogo Luiz Eduardo Soares [06].

Um estudo sobre as competências e capacidades profissionais dos agentes públicos responsáveis pela segurança pública poderia revelar a carência funcional, os salários defasados, o desprestígio público e a corrupção crescente, como já denunciado pelo ilustre professor Eugênio Rául Zaffaroni. [07]

Todavia, o presente estudo pretende enfocar outro lado da questão: a orientação dos tribunais na responsabilização do Estado pelas vítimas atingidas por sua atividade, ligada à segurança pública. Ou, em outras palavras, a análise aqui apresentada indicará apenas "a ponta do iceberg social". O objetivo principal é o de revelar a evolução das decisões pretorianas, na medida em que, de início predominou o entendimento da total irresponsabilidade do Estado, avançando, em seguida, em direção à responsabilidade do Estado pelos atos dos seus agentes públicos, notadamente, os policiais civis e militares.

Antes, porém, será realizado um estudo sobre o conceito de segurança pública, apontando os agentes públicos destacados para tal tarefa e, em seguida, o exame da expressão "bala perdida" e sua incorporação nos documentos oficiais.

No capítulo seguinte serão abordados os temas relativos à responsabilidade civil, tais como conceito, teorias e as causas de excludentes de responsabilidade.

Por fim, no capítulo intitulado "Evolução Jurisprudencial", serão apontadas as principais jurisprudências relativas à (ir) responsabilização do Estado em decorrência dos danos causados no desenvolvimento da atividade policial, indicando a evolução das decisões, cujo ápice baseia-se no acórdão proferido pelo Estado de Pernambuco.

No capítulo relativo à conclusão serão traçadas algumas linhas de orientação para a defesa da responsabilidade do Estado como corolário do perfil constitucional-político do Estado Democrático de Direito.


CAPÍTULO I

SEGURANÇA PÚBLICA

1.1.CONCEITO

A segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo essencial para o desenvolvimento da sociedade, conforme artigo 144, caput, da Constituição Federal. Em consonância com o artigo 5º do mesmo diploma constitucional, a segurança pública é considerada como direito fundamental assegurada aos brasileiros (natos ou naturalizados) e estrangeiros residentes do país. Nesse giro, não poderá ser abolida através de Emenda Constitucional, por estar enumerada no rol das clausulas pétreas (artigo 60, § 4º, IV).

Segundo Alexandre de Moraes, direitos fundamentais podem ser definidos como:

"o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana". [08]

Da mesma forma, a UNESCO, órgão que representa a Organização das Nações Unidas para à Educação, à Ciência e à Cultura, apresenta a definição de direitos fundamentais, nos seguintes termos: "considera-os por um lado uma proteção de maneira institucionalizada dos direitos da pessoa humana contra os excessos do poder cometidos pelos órgãos do Estado e por outro, regras para se estabelecer condições humanas de vida e desenvolvimento da personalidade humana". [09]

Os direitos fundamentais em determinadas situações e com base na lei poderão sofrer restrições. A preservação da ordem pública autoriza as forças policiais a limitarem a liberdade do cidadão, sem que isso configure constrangimento ilegal, que somente existirá no caso de abuso ou excesso.

Assim, para assegurar a almejada segurança civil (proteção individual e do patrimônio) e a tranqüilidade das pessoas em geral (ordem pública), o Estado democrático de Direito dispõe de dois sistemas: o criminal e o de segurança pública que estão intrinsecamente ligados por força de lei e coerência das atividades desenvolvidas. [10]

Muitos são os conceitos formulados para a expressão segurança pública. No entanto, o que a melhor define é a noção do mestre em Ciência Política, Clóvis Henrique Leite de Souza, que aduz segurança pública como:

o conjunto de processos destinados a garantir o respeito às leis e a manutenção da paz social e ordem pública. Inclui ações para prevenir e controlar manifestações de criminalidade e de violência, visando à garantia do exercício de direitos fundamentais. [11]

Nesse sentido, a segurança pública "abrange instrumentos de prevenção, vigilância, repressão, reparação, garantia de liberdades individuais e defesa de direitos sociais". Ainda de acordo com o referido cientista, a segurança pública "deve estar articulada com ações sociais priorizando a prevenção e buscando atingir as causas que levam à violência, sem abrir mão das estratégias de ordenamento social." [12]

Tanto o sistema criminal, quanto o de segurança pública são desenvolvidos pelas polícias no Estado do Rio de Janeiro (civil e militar), as quais possuem atividades específicas. De um lado, a polícia civil possui a atribuição de polícia judiciária, na medida em que atua auxiliando o Poder Judiciário na coleta de provas que instruem o Processo criminal (artigos 4º, do Código de Processo Penal e 144, §4º, da Constituição Federal). Já a polícia militar, possui atribuição ostensiva e de preservação da ordem e segurança pública, realizando seu trabalho discricionariamente, balizado pela lei (artigo 144, §5º, da Constituição Federal). Embora distintos, e funcionando em razão de poderes independentes (judiciário e executivo), os sistemas são interligados e afins, pois ambos possuem em vista o controle da criminalidade, a segurança, a tranqüilidade pública e a justiça igualitária para todos.

Conforme conceitua Guido Zanobini, a polícia é:

a atividade da administração pública dirigida a concretizar, na esfera administrativa, independentemente da sanção penal, as limitações que são impostas pela lei à liberdade dos particulares ao interesse da conservação da ordem, da segurança geral, da paz social e de qualquer outro bem tutelado pelos dispositivos penais. [13]

Para o presente estudo, importa a atividade policial que está associada aos índices de morte (homicídios), decorrente do uso de arma de fogo. De acordo com a UNESCO, mais de meio milhão de brasileiros perderam a vida em virtude do uso de armas de fogo entre 1979 (ano que inicia o Subsistema de Informações de Mortalidade) e 2003 (ano de aprovação do Estatuto do Desarmamento). Isso significa dizer que o Brasil, um país que não estava em guerra, acumulou um maior número de mortes com armas de fogo do que vários conflitos armados, como a guerra do Golfo, as várias Intifadas palestinas, e as guerras de libertação de Angola e Moçambique. [14]

É certo que o fácil acesso às armas de fogo ao longo dos anos agravou este quadro. No período entre os anos de 1997 e 2003, os homicídios com arma de fogo cresceram em 542,7% [15]. Somente em 2003, quase 40 mil brasileiros foram vitimados com armas, colocando o Brasil como campeão mundial – em números absolutos – de mortes por arma de fogo. Desde aprovação do Estatuto do Desarmamento, entretanto, este número despencou para cerca de 34 mil mortes por ano. As estatísticas continuam alarmantes, mas esta queda de 12% – confirmada pelo Ministério da Saúde [16] – representa um passo importante na redução das mortes por arma de fogo no Brasil, em razão, principalmente, da vigência de novas medidas de controle e restrição do uso da arma de fogo.

O fenômeno dos homicídios afeta a sociedade brasileira de forma diferenciada, atingindo, majoritariamente, os segmentos jovens, com idades entre 15 e 24 anos, do sexo masculino, afro-descendentes, que residem em bairros periféricos, favelas, territórios socialmente vulneráveis das grandes metrópoles do país. Se considerarmos todas as causas de morte (naturais ou por causas externas) entre os jovens brasileiros, 38,8% – ou seja, a maior concentração dentre as causas – acontecem com armas de fogo [17]. Essa proporção ultrapassa até a incidência de acidentes de trânsito – que somam 16% do total de mortes entre jovens –, o inverso da situação encontrada na grande maioria dos países [18]. Os dados mostram que o problema das mortes por arma de fogo, embora apresente indícios bastante animadores de melhora para um futuro não muito distante, ainda é muito presente no cotidiano dos brasileiros, tratando-se, portanto, de um tema central para a política de segurança pública do país.

No que tange a ação da polícia ostensiva carioca, segundo pesquisa divulgada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, [19] somente no ano de 2007, ela foi responsável pela morte de 1.330 pessoas. Estas mortes não entram nas estatísticas de homicídios, através dos denominados "autos de resistência". Comparados com os dados de outros países, tem-se que a soma das mortes causadas por todas as polícias dos Estados Unidos é de aproximadamente 350 pessoas por ano. As polícias da África do Sul, em 2003, mataram 681; as da Argentina, 288; as da Alemanha, cinco, e as de Portugal mataram uma pessoa. E o que é mais sintomático: a maioria das vítimas de autos de resistência no Brasil são moradores de favelas e periferias. [20]

1.2.ATIVIDADE POLICIAL

Para impedir ou minimizar os conflitos, o Estado exerce o seu poder de coerção por meio das forças policiais, que são os agentes incumbidos da fiscalização dos deveres impostos por lei ao grupamento social, e, para tanto, estão também condicionados ao respeito e as garantias fundamentais do cidadão, previstos no artigo 144, da Carta Constitucional de 1988. Dessa forma, cada órgão possui sua competência delineada na Carta Magna e atua nos limites da sua circunscrição (delimitação territorial), ou, de acordo com os bens jurídicos tutelados, como a vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.

As forças policiais cumprem um papel importante na preservação e manutenção do Estado Democrático de Direito, pois, sem elas, a convivência harmoniosa e pacífica não existira numa sociedade civilizada, que hodiernamente está cheia de conflitos e de interesses difusos, conforme leciona GRECO (2009). [21]

Dentre as instituições que integram a segurança pública, estão, entre outras, as polícias militares estaduais, emuneradas no §5º do mesmo dispositivo constitucional, que desenvolvem a função de polícia ostensiva, com o condão de zelar pela ordem, pelo sossego público e pela incolumidade física das pessoas.

A polícia civil, por sua vez, como já mencionado, cabe realizar investigações, apurar as infrações penais e indicar a sua autoria, a fim de fornecer ao Poder Judiciário elementos necessários para o exercício em sua função repressiva das condutas criminosas. Tais atividades, de polícia judiciária, reduzem, por conseguinte, a participação ou o envolvimento da categoria nos conflitos armados, o que é comum aos policiais militares.

Assim, no exercício desse mister, lhes são concedidas algumas franquias, como o uso de armas de fogo, algemas e outros instrumentos utilizadas na preservação da segurança coletiva.

No que tange à responsabilidade civil do Estado, em decorrência da atividade ou omissão desses agentes, a vigente Constituição, regula a matéria no artigo 37, §6º, estabelecendo que "as pessoas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos de seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".

A responsabilidade do Estado baseia-se na concepção de que o agente administrativo atua como órgão da pessoa jurídica da qual é funcionário. Por isso, o Estado responde por danos que seus funcionários, nesta qualidade, causem a terceiros. [22]

De acordo com o desembargador Yussef Cahili:

ainda que investido da função de preservar a segurança e manter a ordem social, o policial, portando arma de fogo, natural instrumento perigoso, não esta autorizado ao manuseio disparatado ou imprudente da mesma; de sua má utilização, resultando danos para os particulares, resulta para o ente público a obrigação de indenizar." [23]

O tema será complementado no próximo capítulo.

1.3.BALA PERDIDA

A expressão bala perdida foi introduzida pela mídia, no início da década de 80, para indicar quando alguém fosse lesionado ou morto por disparo de arma de fogo de origem desconhecida. Com o tempo, o termo tornou-se um axioma e foi incorporado a documentos oficiais, ganhando legitimidade. "Bala" é a expressão popularmente utilizada para designar projétil, objeto que se arremessa para ferir, matar, destruir, algo ou alguém, por meio de armas de fogo [24].

Como exemplo de incorporação do termo "bala perdida" tem-se o estudo publicado em 2007 pelo Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, denominado "Relatório Temático Bala Perdida", de responsabilidade dos pesquisadores Mário Sérgio de Brito Duarte, Robson Rodrigues da Silva, João Batista Porto de Oliveira e Leonardo de Carvalho Silva, o qual comprova que de 2006 para 2007, o número de vítimas de "balas perdidas" no município do Rio de Janeiro cresceu 19,4%. Em 2006, foram 224 vítimas por "bala perdida", sendo 19 fatais e 205 não fatais. Das vítimas fatais, 13 eram do sexo masculino, entre as quais, a maioria (16) constituída por jovens e adultos acima dos 18 anos (inclusive). Verificou-se maior incidência de "balas perdidas" nos três primeiros meses do ano de 2006. Os dados indicaram a Capital como a região do Estado onde mais ocorreu o fenômeno: 17 vítimas fatais e 169 vítimas não fatais. A Baixada Fluminense veio logo a seguir com duas vítimas fatais e 19 não fatais. Pelo estudo, a capital fluminense foi a área com maior concentração de eventos de "bala perdida", nesses dois anos. Em ambos os períodos observados, verificou-se que a maior parte das vítimas foram atingidas em "via pública". [25]

Essa realidade cotidiana das grandes cidades e, particularmente, do Rio de Janeiro, vem reacendendo a discussão jurídica sobre a responsabilidade civil do Estado quando ocorre o fenômeno de "balas perdidas". A questão é complexa e deve ser esmiuçada em seus múltiplos aspectos, de modo a delimitar com rigor os limites dessa responsabilidade, que passa a ser objeto do nosso estudo.

Em relação às decisões pretorianas, como outro exemplo de incorporação do termo "bala perdida", vê-se o uso desta expressão, principalmente, a partir do ano de 2000:

RESPONSABILIDADE CIVIL BALA PERDIDA - AÇÃO POLICIAL NÃO COMPROVAÇÃO DO NEXO CAUSAL INDENIZAÇÃO INDEVIDA. A responsabilidade do Estado, em que pese objetiva, em razão do disposto no §6º do artigo 37 da CF, exige a demonstração pelo demandante do requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano causado a terceiros. Quem pretender indenização do Poder Público em razão da ação de seus agentes deve trazer provas aos autos capazes de evidenciar o nexo de causalidade entre a ação e o dano causado. Não o fazendo, impõe-se a rejeições da pretensão. [26]

RESPONSABILIDADE CIVIL. PESSOA ATINGIDA POR DISPARO DE ARMA DE FOGO (BALA PERDIDA) QUANDO ASSISTIA FESTEJOS DE ANO NOVO NA PRAIA DE COPACABANA. INEXISTÊNCIA DE CULPA DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. 1- A segurança pública é atribuição do Estado, conforme mandamento constitucional. Em razão disso, não é possível responsabilizar o Município porque uma pessoa foi atingida por projétil de arma de fogo em disparo feito por desconhecido em meio à multidão que assistia à queima de fogos na praia, em comemoração ao início de um novo ano. 2- O fato de o Município incentivar o comparecimento da população a tais festejos não o torna responsável pela segurança de cada indivíduo que deles participe. Ademais, sequer há prova de que o fato ocorreu no local. 3- Apelo improvido. [27]

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Os danos causados por "balas perdidas" podem ser caracterizados da seguinte forma: a) quando o dano resulta de ação genérica do Estado, como em troca de tiro com marginais, na qual um projétil de sua arma de fogo atinge um terceiro; b) quando o dano resulta de um confronto entre policiais e marginais, sem que se saiba, com precisão, de onde partiu o disparo; c) quando o dano resulta de ação de marginais, em caso fortuito e imprevisível, como nos "assaltos" nas vias públicas, com a omissão genérica do Estado, e; d) quando o dano resulta de confronto unicamente entre marginais, em áreas de reiterada conflagração armada, com omissão específica do Estado. [28]

Em que pesem algumas orientações no sentido de responsabilidade do Estado, mesmo diante da omissão do serviço de segurança pública, como se verá adiante, o estudo aqui desenvolvido se baseará somente nas hipóteses definidas nos itens "a" e "b", acima elencados.

A restrição aqui pretendida afasta os casos em que a omissão do Estado ocorre em razão de um fato que não poderia ser por ele previsto e, portanto, inevitável (terceiro item), configurando hipótese de fortuito externo.

Entende-se por fortuito interno o fato imprevisível, e, por isso, inevitável, que se liga à organização estatal, se relacionando com os riscos da própria atividade desenvolvida pelo Estado. Já o fortuito externo é também fato imprevisível e inevitável, mas estranho a natureza do negócio. É o fato que não guarda nenhuma ligação com a atividade do Estado, como fenômenos da natureza, por exemplo. Duas são, portanto, as características do fortuito externo: a autonomia em relação aos riscos e a inevitabilidade, razão pela qual alguns autores, como Sérgio Cavalieri Filho, o denominam de força maior. [29]

Na omissão genérica do Estado, dada indisponibilidade ou a intransponível dificuldade de realizar o ato (em razão dos recursos disponíveis em face de outras obrigações estatais), aliada a imprevisibilidade do acontecimento, não há como responsabilizar o Estado. Nesse sentido:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. BALA PERDIDA. MORTE. Ação ordinária em que objetiva o autor indenização pelos danos materiais e morais decorrentes da morte de sua esposa, a qual foi atingida, na cabeça, por disparo de arma de fogo, quando em curso alegada ação policial em via pública. E certo responder o Estado, de forma objetiva, pelos danos que seus prepostos, nessa qualidade, causarem a terceiros. (artigo 37, § 6º da Constituição Federal) Todavia, não poderá ser o Estado responsabilizado quando não existir relação de causalidade entre a ação e/ou omissão de seus agentes e o dano suportado pelo particular. Ausência de comprovação do nexo de causalidade, na espécie, diante da insuficiência de provas de que tivesse ocorrido troca de tiros entre policiais e terceiros na via pública, fato que restou indemonstrado. Hipótese tão-somente de omissão genérica. Responsabilidade do ente estatal não caracterizada. Pedido improcedente. Sentença mantida. Desprovimento do recurso. [30]

ASSALTO VIA PUBLICA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INDENIZACAO. IMPOSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ASSALTO NA LINHA VERMELHA. INDENIZAÇÃO OMISSÃO GENÉRICA. IMPOSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. AUSÊNCIA DE LIAME ENTRE O DANO E A OMISSÃO DO ESTADO. O assalto sofrido pelos Autores na Linha Vermelha, sem que tenha sido sob a, vigilância de nenhum policial, não enseja indenização alguma. Tratando-se de omissão genérica, e não específica, responde o Estado subjetivamente, sendo necessário a comprovação de algum liame entre a omissão do Estado e o dano sofrido pelos Autores para sua condenação. RECURSO DESPROVIDO. [31]

Ao mesmo passo, também não importa ao presente trabalho, a omissão específica do Estado (quarto item), que resulta igualmente da impossibilidade de atuação, já que se trata de uma proteção individualizada, subjetiva, de cada particular em todas as circunstâncias e não do resguardo da coletividade, pois não se pode esperar que o Estado seja onipresente a atuar protegendo individualmente cada cidadão.

Mesmo não sendo objeto do estudo é preciso ressaltar que, diferentemente do tratamento dado à omissão genérica do Estado, que causa sua irresponsabilidade, nas hipóteses de omissão específica, o Tribunal carioca vem mitigando esta orientação, permitindo a reparação do dano quando o fato que o enseja, porque verificado de maneira reiterada e contínua, numa área geograficamente delimitada, caracteriza a deficiência do serviço de segurança pública. Em outras palavras, para a configuração desta responsabilidade é preciso que a omissão estatal seja de caráter prolongado e não fortuito, dando margem à ausência de repressão, o que corresponde ao serviço deficiente, in verbis:

No caso em julgamento, restou comprovado que o autor foi atingido por "bala perdida" oriunda de guerra entre traficantes, quando conduzia seu veículo pela Estrada Grajaú-Jacarepaguá, do que resultou a paralisia dos seus membros inferiores. Ora, é sabido que a aludida via é reputada de alta periculosidade, eis que cercada por favelas dominadas pelo tráfico de entorpecentes, sendo certo que, na ocasião do disparo, restou apurada a existência de tiroteio entre bandidos dos morros Cotios e Cachoeirinha, objetivando o controle dos pontos de venda de drogas (fls.20).

De fato, a omissão específica quanto ao policiamento na referida região é fato público e notório, tratando-se de zona de alto risco, na qual é freqüente tanto o confronto entre traficantes, como falsas blitz, revelando a insuficiência de medidas administrativas eficientes capazes de evitar danos como o sofrido pelo autor. Com efeito, tal situação somente confirma a responsabilidade do réu, pela falha no dever de prestar uma segurança pública minimamente eficiente, de forma a "preservar a ordem pública" e garantir a "incolumidade das pessoas", tal como exigido pelo artigo 144, § 6º da CF, evitando que fatos como este, envolvendo guerra de traficantes por pontos de venda de drogas, de onde surgem "balas perdidas" como a que atingiu o autor, continuem a ocorrer com a freqüência inaceitável com que ocorrem. Isso porque, admite-se que em qualquer país, mesmo de primeiro mundo, haja assaltos, mortes, roubos, assassinatos em série, e até, eventualmente, morte por PAF não identificado, sem que o Estado possa ser responsabilizado por isso, dado o caráter eventual e esporádico com que ocorrem.

No entanto, não se pode admitir que em um estado de direito, no qual haja segurança pública minimamente eficiente, pessoas sejam freqüentemente vítimas de "balas perdidas", sempre nos mesmos locais, cuja periculosidade é conhecida de todos, sejam elas oriundas do confronto entre bandidos e polícia, ou o que é pior, do confronto entre facções criminosas na busca pelo domínio de regiões dominadas pelo tráfico, nas quais o Estado se faz ausente. A freqüência com que tais fatos ocorrem na cidade, em especial no local em que o autor foi atingido, torna específica e abusiva a omissão estatal, no que pertine a prestação de segurança pública, afastando a imprevisibilidade e a inevitabilidade que, em regra, serve para justificar a ausência de responsabilidade e afastar a sua obrigação de indenizar.

Neste sentido, vale observar que, de forma análoga, a jurisprudência evoluiu, em dado momento, para admitir a responsabilização das empresas de ônibus, por assaltos ocorridos em certos trechos, cuja freqüência pressupõe a previsibilidade e evitabilidade do fato. [32]

Esta responsabilidade do Estado carioca decorrente de omissão genérica, embora não seja a maioria, é acolhida por alguns juízes de primeira instância e algumas Câmaras Criminais, com fundamento na específica e abusiva omissão estatal, como revelou acima o juiz Gustavo Bandeira, mas não há nenhuma orientação pacífica acerca do tema.

No que se refere às hipóteses de atuação dos policiais (itens "a" e "b"), é inequívoca a responsabilidade do Estado. Em ambas há o nexo entre a atividade da Administração (segurança pública) e o evento danoso, como se pretende apontar.

Como se percebe pelas decisões abaixo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro têm privilegiado a responsabilidade estatal quando possível determinar que o disparo partiu da arma de fogo utilizada pelo agente público:

ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DISPARO DE ARMA DE FOGO. DANO MATERIAL E MORAL. O Estado tem responsabilidade objetiva pelos danos que causa, nos termos do artigo 37, §6º, da Constituição da República da qual somente se libera se demonstrada alguma excludente de responsabilidade. Se a prova testemunhal narra que apenas os policiais militares atiraram, não resta dúvida que a vítima fatal foi atingida por projétil proveniente de arma da polícia. A excludente de responsabilidade constitui fato impeditivo do direito alegado pelo Autor, de modo que compete ao Réu o dever de comprová-la. No caso em exame, a ausência de prova de que o tiro partiu de outra arma que não a de um policial desautoriza acolher a tese de fato de terceiro. O dano moral decorre do próprio ilícito e profundo sofrimento da mãe que perde o filho em conseqüência de desastrada ação militar. Reparação arbitrada pela sentença que atende às condições do evento, suas conseqüências e ao princípio da razoabilidade. Desprovimento do recurso. [33]

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DISPARO DE ARMA DE FOGO. FUNÇÃO POLICIAL. MORTE DA VÍTIMA. DANO MORAL. DESPESAS DE FUNERAL. HONORÁRIOS DE ADVOGADO. ISENÇÃO DE CUSTAS. Responsabilidade civil. Vítima atingida por projétil disparado por policial. Nexo causal suficientemente provado. Valor do dano moral por morte de marido e pai. Fixação de tal valor em reais, com correção monetária. Reembolso das necessárias despesas de funeral, independentemente de comprovação. Percentual relativo a honorários de advogado incidente sobre montante das parcelas vencidas mais 12 de vincendas. Estado isento de custas. Recurso provido parcialmente. [34]

No entanto, de maneira minoritária, há também julgados que impõe a reparação pelo Estado, mesmo nas hipóteses em que não se define a autoria do disparo ou a origem do projétil de arma de fogo:

CONSTITUCIONAL. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. "BALA PERDIDA". LINHA AMARELA. FERIMENTO CAUSADO A TRANSEUNTE EM TIROTEIO PROVOCADO POR TERCEIROS NÃO IDENTIFICADOS. Artigo 37, § 6º da Constituição Federal. Não se desconhece que é francamente majoritária a orientação jurisprudencial no sentido de que o Estado não tem responsabilidade civil por danos provocados em episódios de "bala perdida", sendo invariável o argumento de que o Estado não pode ser responsabilizado por "omissão genérica". Reclama revisão a jurisprudência que reconhece a não responsabilidade civil do Estado do Rio de Janeiro pelos freqüentes danos causados por balas perdidas, que têm levado à morte e à incapacidade física milhares de cidadãos inocentes. O clima de insegurança chegou a tal ponto que os mais favorecidos têm trafegado pelas vias da cidade em carros blindados. Há uma guerra não declarada, mas as autoridades públicas, aparentemente, ainda não perceberam a extensão e a gravidade da situação. Pessoas são assassinadas por balas perdidas dentro de suas casas, enquanto dormem, em pontos de ônibus, em escolas, nas praias e em estádios de futebol. O Estado não se responsabiliza por esta criminosa falta de segurança, escudado por um verdadeiro nonsense teórico-jurídico, como se os projéteis que cruzam a cidade viessem do céu. Além disso, a tese tem servido como efetivo estímulo para que a Administração permaneça se "omitindo genericamente", até porque aos eventos de balas perdidas tem-se dado o mesmo tratamento

jurídico dispensado ao dano causado pelo chamado "Act of God". A vetusta doutrina da responsabilidade subjetiva por atos omissivos da Administração Pública não tem mais lógica ou razão de ser em face do abandono em que se encontra a população da cidade do Rio de Janeiro. Ainda que se concordasse com o afastamento da responsabilidade objetiva, nestes casos, seria possível, sem muito esforço, verificar que no conceito de culpa "stricto sensu" cabe a manifesta inação do Estado e sua incapacidade de prover um mínimo de segurança para a população, sendo intuitivo o nexo causal. Não se trata bem de ver, de episódios esporádicos ou de fortuitos. Tais eventos já fazem parte do dia-a-dia dos moradores da cidade. Pessoas são agredidas e mortas dentro de suas próprias casas. Autoridades são roubadas em vias expressas sob a mira de armamentos de guerra. Dizer que o Estado não é responsável equivale, na prática, a atribuir culpa à vítima. O dano sofrido é a sanção. Recurso provido por maioria. [35]

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – CONFRONTO ENTRE POLICIAIS E TRAFICANTES – BALA PERDIDA – MORTE DA FILHA DOS AUTORES – NEXO DE CAUSALIDADE – DEVER DE INDENIZAR – PENSIONAMENTO – DANO MORAL. Havendo confronto entre o Estado-polícia e traficantes, trazendo a morte de menor, que nada tinha haver com o fato, impõe-se o dever de indenizar ao Estado, independentemente da bala ter sido desferida por arma de policial ou de traficantes. Risco da atividade que dá causa ao dano, impondo o dever de indenizar. Precedentes. Reparação material - pensionamento – que impõe prova. Ausência de presunção de dano. Reparação moral bem mensurada. Conhecimento e provimento parcial do recurso. [36]

Outro requisito estabelecido pelo Tribunal carioca é o efetivo exercício da função pública no momento do dano. Isto porque o texto constitucional, como já se viu, exige para a responsabilização objetiva do Estado, que a ação danosa tenha sido praticada por agente público, atuando nessa qualidade. Assim, na prática do ato danoso o agente estaria exercendo seu encargo público. A expressão "nessa qualidade", prevista no §6º, do artigo 37 da Constituição caracterizaria a obrigação do Estado em indenizar quando o agente desempenhar a função pública ou quando proceder como se estivesse exercendo-a.

Já o dano causado a terceiro por agente público, quando este não realizava sua função, p.ex., no período de folga ou férias, não impõe a obrigação indenizatória do Estado, mas sim, a obrigação pessoal do agente público, que nessa hipótese, pratica atos pessoais.

Em outras palavras, a responsabilidade pelos atos praticados na vida pessoal do agente público será de caráter pessoal, como já se manifestou o nosso Tribunal:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ATO DE AGENTE POLICIAL. INDENIZAÇÃO. Embargos Infringentes. Ordinária. Ferimentos graves causados a pedestre, em virtude de disparo de arma de fogo, ocorrido na via pública, cometido por soldado da Policia Militar, à paisana, quando fora do serviço e sem qualquer relação com sua função. Desentendimento surgido em um bar com outro militar, agindo o policial, tão somente, em favor do companheiro de corporação, que, também, não se encontrava no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las. Inteligência do artigo 37, par.6., da Constituição Federal. Ato praticado por servidor militar "na qualidade de cidadão comum". Indenização repelida. Embargos providos. [37]

Quanto à responsabilidade estatal quando o agente proceder como se estivesse exercendo a função pública, há uma extensão do alcance da obrigação do Estado, uma vez que não se pode dizer que a atividade desenvolvida pelo agente público é lícita. Trata-se dos casos em que, mesmo fora do serviço público, o agente atua se prevalecendo do "múnus" que o cargo lhe oferece para praticar dano contra terceiros. Procede como se estivesse cumprindo seu encargo.

Os casos que configuram tal hipótese apontam a prática de chacinas, com o pseudo fim de combater a criminalidade, mas que dão lugar à pratica do crime denominado uso arbitrário das próprias razões, previsto no artigo 345 do Código Penal. É certo que o combate a criminalidade é dever do Estado, mas tal atividade, como qualquer outra desenvolvida pelo Estado, deve ser juridicamente exigível dentro dos padrões normais e razoáveis de conduta da autoridade pública que tem por lei, o dever de respeitar as normas jurídicas, principalmente as garantias e direitos constitucionais.

O Estado do Rio de Janeiro já vivenciou vários casos de chacinas, podendo-se citar, dentre elas a da Candelária e a de Vigário Geral, que tiveram grande repercussão no Estado e fora dele. Não há dúvida, quanto à obrigação indenizatória do Estado, como expressa a jurisprudência do Tribunal do Estado do Rio de Janeiro:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. POLICIAL MILITAR. DISPARO DE ARMA DE FOGO. MORTE DE CHEFE DE FAMILIA. MORTE DE MÃE DE FAMÍLIA. DANO MORAL. PENSÃO MENSAL. ELEVAÇÃO. Ação Ordinária. Pedido de indenização apresentado pelo menor que teve seus pais assassinados por policiais na chacina de Vigário Geral. Responsabilidade objetiva pelos atos praticados por seus prepostos, ainda que não estivessem a serviço, mas na qualidade de servidores públicos. Arbitramento do dano moral fixado em montante considerado adequado pela jurisprudência dominante. Elevação do pensionamento. Desprovimento da lª Apelação e provimento parcial da 2ª. [38]

CHACINA DA BAIXADA. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. ATO DE AGENTE POLICIAL. OBRIGACAO DE INDENIZAR. Responsabilidade civil objetiva do Estado. Chacina de Vigário Geral. Danos materiais e morais. Aplicação da teoria do risco administrativo. Procedência parcial do apelo. 1. A Constituição Federal responsabiliza as pessoas jurídicas de direito público pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, não sendo exigível que o servidor tenha agido no exercício de suas funções. 2. O essencial para a determinação da responsabilidade do Estado é que o agente da administração haja praticado o ato ou omissão administrativa no exercício de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las. 3. Se a condição de agente do Estado tiver contribuído de algum modo para a prática de ato danoso, ainda que simplesmente lhe proporcionando a oportunidade para o comportamento ilícito, responde o Estado pela obrigação ressarcitória. 4. A responsabilidade civil da Administração pública é agravada em razão do risco assumido pela má sensação do servidor. 5. O dano moral deve ser arbitrado de acordo com o grau de reprovabilidade da conduta ilícita, com a capacidade econômica do causador do dano, com as condições sociais do ofendido, em dimensionamento correspondente à natureza e intensidade do constrangimento por ele sofrido. 6. A pensão devida deve ser paga pelo Estado até o mês de setembro de 2001 e não outubro conforme previsto na sentença recorrida. 7. Juros estipulados em 6% ao ano, uma vez que o evento danoso ocorreu em 1993, época em que vigorava o antigo Código Civil de 1916. 8. Provimento parcial do recurso. Ementário: 04/2008 - N. 4 - 07/05/2008 REV. DIREITO DO T.J.E.R.J., vol. 76, pag. 252. Citados: STJ RESP 645339/RJ, Rel.Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 21/09/04 RESP 688536/PA, Rel. Min. Denise Arruda, julgado em02/02/2006. TJRJ AC 2002.001.01954, Rel. Des. Sérgio Cavalieri Filho, julgado em 08/05/2002 e AC2002. 001.05855, Rel. Des. Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, julgado em 11/02/2003. [39]

Por fim, quanto à hipótese de dano resultante do confronto entre policiais e marginais, sem que se saiba com certeza de onde partiu o disparo de arma de fogo, prevalecem às decisões que desobrigam o Estado, como relatam os julgados abaixo transcritos:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. NEXO DE CAUSALIDADE. INOCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. BALA PERDIDA. OMISSÃO ESPECÍFICA DO ESTADO. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. Em havendo omissão específica por parte de agentes do Estado, a responsabilidade civil exsurge objetivamente. Todavia, se para sua configuração é irrelevante o exame da culpa, nem por isso fica o demandante dispensado da prova da conduta do agente, do evento danoso e do nexo causal entre eles existente. Portanto, inexistindo nos autos comprovação de que o projétil de arma de fogo causador do ferimento sofrido pela Apelante tenha partido de uma das armas utilizadas pelos Policiais Militares que participaram do confronto narrado na exordial, não há como se imputar ao Estado a responsabilidade pelo dano a ela causado. Não restando estabelecido o nexo, impossível a cogitação acerca de eventual responsabilidade. Recurso desprovido, nos termos do voto do Desembargador Relator. [40]

EMBARGOS INFRINGENTES. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO POLICIAL. BALA PERDIDA. NEXO CAUSAL INCOMPROVADO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. PROVIMENTO DO RECURSO. A responsabilidade do Estado, ainda que objetiva em razão do disposto no artigo 37, § 6º da Constituição Federal, exige a comprovação do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano. Não havendo nos autos prova de que o ferimento causado a vítima tenha sido provocado por disparo de uma das armas utilizada pelos Policiais Militares envolvidos no tiroteio, por improcedente se mostra o pedido indenizatório. Daí, em sem mais delongas, a razão de não existir fundamento justo para se imputar ao Estado a responsabilidade pelo evento danoso, por mais trágico que tenha sido o ocorrido na vida do autor postulante. RECURSO PROVIDO. [41]

APELAÇÃO CÍVEL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. FERIMENTOS PROVOCADOS POR BALA PERDIDA DURANTE

CONFRONTO ENTRE POLICIAIS E TRAFICANTES. AUSÊNCIA DE NEXO

CAUSAL. RECURSO IMPROVIDO. 1.A responsabilidade do Estado, em matéria de Segurança Pública, é objetiva, desde que comprovado o nexo causal entre a ação dos agentes estatais e o dano experimentado pelas vitimas, surgindo aí, para este o dever de indenizar. 2. Na hipótese vertente, durante toda a fase probatória, não ficou esclarecida a procedência do projétil que acabou por ferir os autores no interior de sua residência. 3. Assim, por mais dramática que seja a situação vivida pelos autores, como não é possível afirmar que o tiro partiu da arma de um agente público, não tem o Estado que indenizar os danos por estes sofridos.4.Pretensão de reforma da sentença que não pode subsistir em razão da ausência de comprovação do nexo causal.5.Recurso que se nega provimento. [42]

Contudo, em corrente minoritária seguem as decisões que, ao contrário responsabilizam o Estado, mesmo diante da impossibilidade de precisar da qual arma partiu o disparo que causou o dano. Recentemente, a 6ª Câmara Cível carioca responsabilizou o Estado, independentemente se o disparo que atingiu a vítima foi deflagrado por policial ou pelos meliantes perseguidos por aqueles.

DIREITO ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. PERSEGUIÇÃO. TROCA DE TIROS ENTRE POLICIAIS E BANDIDOS. "BALA PERDIDA". AUTOR ATINGIDO POR PROJÉTIL DE ARMA DE FOGO. AVARIAS EM SEU VEÍCULO. INCAPACIDADE TOTAL TEMPORÁRIA PARA O TRABALHO. PERDA TEMPORÁRIA DOS MOVIMENTOS DA MÃO. AUSÊNCIA DE PLANEJAMENTO NO ATUAR ESTATAL. DEVER DE INDENIZAR. É indiferente se o disparo que atingiu a vítima foi deflagrado por policial ou pelos meliantes que eram perseguidos. O nexo de causalidade está na atuação despreparada dos agentes estatais, que causaram a situação de perigo a todos os administrados que circulavam em horário de intenso movimento por local de grande circulação. A função do Estado é garantir genericamente a segurança pública, ao passo que a reiterada omissão transmuda a natureza desse dever em específica. Responsabilidade objetiva do Estado. Danos materiais e morais que devem ser reparados. Redução da verba compensatória. Conhecimento e parcial provimento do recurso. [43]

Tal orientação também foi seguida pela 19ª Câmara Cível da Cidade, estabelecendo a responsabilidade objetiva da Administração prescindindo da prova de que o dano foi causado por projétil oriundo de arma de fogo oficial.

APELAÇÃO CÍVEL. REEXAME NECESSÁRIO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. AÇÃO POLICIAL. FERIMENTO FATAL. PROJÉTIL DE ARMA DE FOGO. PROCEDÊNCIA DESCONHECIDA. INAPETÊNCIA INVESTIGATIVA DA ADMINISTRAÇÃO. RESPONSABILIZAÇÃO OBJETIVA E SUBJETIVA. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. VERBA INDENIZATÓRIA. VALORAÇÃO. PARÂMETROS. PENSIONAMENTO. TERMOS INICIAL E FINAL. CASO CONCRETO. 1. Conquanto inexistente nos autos prova cabal de que o projétil que vitimou fatalmente a filha da autora tenha se originado de arma oficial, não se olvida que a Administração estadual mostrou surpreendente inapetência investigativa dos fatos, deixando de cumprir o dever inquisitorial que lhe incumbia a fim de bem esclarecer os fatos e, eventualmente, punir agentes públicos acaso responsáveis, ou esclarecer sua inocência e a correção de sua conduta. Se é verdade que a inoperância investigativa das autoridades policiais não supre a necessidade de prova do fato constitutivo do direito, nem serve de fundamento para inverter-se o ônus da prova, não se pode, por outro lado, deixar de reconhecer que o vácuo investigativo repercute na formação do juízo de convicção. 2. De toda sorte, na ação que tenha por fundamento fático dano causado à transeunte no decorrer de confrontamento entre policiais e meliantes, não é imprescindível, para responsabilização objetiva da Administração, a prova de que o dano tenha sido diretamente causado por projétil oriundo de arma de fogo oficial. A responsabilidade objetiva do Estado também incide se, da conduta dos agentes públicos, ainda que indiretamente, sobrevier como conseqüência o fato danoso. Tal é o caso quando a Administração, por seus agentes, através de suas ações policiais, colabora para agravar os riscos em que se acha a parcela da população já sujeita aos arbítrios do crime organizado, configurando-se os requisitos do ato comissivo do agente estatal, do dano, e do nexo causal que os relaciona. 3. Comezinha a conclusão de que depoimentos de testemunhas isentas, colhidos sob o crivo do contraditório, em sede judicial, têm maior valia que os colhidos em sede inquisitorial, prestados por pessoas diretamente envolvidas no evento e, por isto mesmo, presumivelmente interessadas no resultado das investigações (considerada a possibilidade de eventual responsabilização administrativa, penal e civil – esta, regressivamente). 4. Mas mesmo que assim não se entendesse, e se afastasse a incidência do § 6º do artigo 37 da CF, adotando-se a teoria da responsabilidade subjetiva pela faute du service publique, ainda assim estaria caracterizado o dever de indenizar, em se tratando de operação policial escancaradamente desastrosa, consubstanciando conduta flagrantemente imprudente, a revelar a falta com dever específico de garantir maior (e não menor) segurança aos cidadãos quando do ingresso dos agentes da Lei nas vielas da favela. 5. A perda de familiar – não de familiar apenas, mas do mais amado dos familiares, o filho, pela mãe – configura inequívoco dano moral. 6. Em que pese à humilde situação financeira da ofendida, sopesa-se que a gravidade do evento, a severidade do dano que se pretende compensar, a finalidade (subsidiária) punitivo pedagógica do instituto e o grau de culpa do ofensor (artigo 944, p.ú., CC/2002) revelam não ser exagerada a indenização fixada ao patamar de R$ 100 mil para o caso concreto. O arbitramento de indenização em valor irrisório, ao invés de cumprir sua função jurídica, constitui para o ofendido uma nova ofensa, a reiteração da injustiça – no caso dos autos, uma declaração de que a vida humana, ceifada pela imprudência estatal, vale menos que os esforços fiscais de saneamento das finanças públicas. 7. O termo inicial do pensionamento é a data do óbito, uma vez demonstrado que a jovem vítima tinha vida econômica ativa já anos antes de seu falecimento. 8. Considerada a humilde situação financeira da autora (mulher de prendas domésticas, sem vínculo empregatício ou profissão, cavando a sobrevivência por "bicos" esporádicos), não seria razoável supor, no caso concreto, que a vítima, de promissora carreira, viesse encerrar as contribuições ao sustento da mãe quando completasse seus vinte e cinco anos de idade (faixa etária em que, presume-se, constituiria núcleo familiar próprio). Assim sendo, inatacável a sentença em prever, a partir da data de vigésimo quinto aniversário de nascimento da finada, não o fim do pensionamento, mas sua redução à metade. 9. Sentido não há em fixar o termo final do pensionamento, na data em que a autora tornar-se septuagenária, já que precisamente aí é que mais precisará de apoio, sendo razoável supor que a boa filha, viva, maior razões teria para prover ou colaborar com o sustento da mãe. 10. Desprovimento do apelo. Confirmação da sentença. [44]

Esta orientação também encontra amparo na doutrina. Segundo Rui Stoco:

São comuns hoje os confrontos entre policiais e marginais nas favelas, na via pública ou interior de estabelecimentos e residências. Nesses casos, embora os policiais possam ter como moderação e cometimento, procedido segundo as normas de conduta estabelecidas para as circunstâncias do momento, responderá o Estado, objetivamente pelos danos que essa ação legítima causar a terceiros. [45]

Para esse autor, nem mesmo o estado de legítima defesa ou estado de necessidade vivenciado pelo agente da autoridade retira do Estado o dever de reparar, pois como se verá no próximo capítulo, tais hipóteses poderiam afastar a obrigação indenizatória:

São acontecimentos não queridos e fruto muito mais do recrudescimento da violência dos marginais que do comportamento dos agentes policiais, mas que impõe uma resposta mais severa destes.

Nem por isso, entretanto, ficará o Estado acobertado pela indenidade civil, pois vige – como regra constitucional – a teoria do risco administrativo, que obriga o Estado a indenizar, sem indagação de culpa em seu sentido amplo. [46]

Assim, não pode o Estado alegar legitimidade quando a tarefa que lhe compete foi realizada com falha ou falta. Este também é o entendimento das decisões abaixo transcritas:

Ação indenizatória. Morte de menor que se encontrava em um bar comprando doces, vitimado por disparos de arma de fogo de agentes públicos, durante uma operação policial (blitz), próxima a favela do Jacarezinho, nesta cidade. Sentença que julga procedente em parte o pedido, condenando o réu ao pagamento de danos morais arbitrados em R$ 50.000,00 e honorários advocatícios. Agravo retido. Alegação de suspeição da testemunha ouvida em Juízo. Rejeição. A hipótese não se enquadra nas disposições legais pertinentes ao tema (artigo 405, § 3º do CPC), posto que a testemunha em questão possui interesse apenas indireto no desfecho da lide, reconhecendo a Jurisprudência que: Não é testemunha legalmente suspeita: (.) - a pessoa arrolada por um das partes, que também demanda, em outro processo, contra a outra (JTAERGS 97/351). Estado-réu que invoca a licitude da conduta de seus agentes, baseando-se, principalmente, no dever de combate a criminalidade, o que o desobriga a qualquer indenização. Se a conduta comissiva do agente do Estado engendrou de forma direta ou concorrente o resultado danoso injusto a terceiro inocente, como no fato - espécie de bala perdida, a conduta ativa de agente policial na troca de tiros com bandidos evidencia no próprio fato o nexo de causalidade necessário à imposição da responsabilidade civil objetiva do Estado (artigo 37,§ 6º da CR/88). Ora, o que o Estado pretende é que a força se sobreponha ao direito, que os fins justifiquem os meios e que as falhas nas tarefas que lhe são próprias sejam legitimadas, sob alegações de combate a criminalidade e estado de necessidade. Fatos que em si mesmos implicaram em sérios sofrimentos aptos a abalar não só o psiqué de sua mãe, pessoa pobre e humilde, vítima da desigualdade em nosso País, como também a sua honorabilidade, gerando inafastável dever de indenizar, máxime porque a Carta Federal garante a proteção da dignidade humana (artigo 1º, III da CRFB/88). Dano moral indenizável. Majoração do quantum a fim de adequá-lo aos Princípios da Proporcionalidade e Razoabilidade. Danos materiais. Na hipótese, além de não existir prova cabal quanto à atividade laborativa desempenhada pela autora, bem como de seus ganhos, não há como mensurar período para sua recuperação, o que acarretaria na subjetivação do dano material, colocando-o no mesmo plano do moral, o que não é possível. Inaplicabilidade da Sumula n. 491 do STF. Desprovimento do primeiro apelo e parcial provimento do segundo recurso, apenas para majorar a verba fixada a título de danos morais para R$ 100.000,00 (cem mil reais), mantida, no mais, a sentença monocrática. [47]

DILIGENCIA POLICIAL COM TROCA DE TIROS. BALA PERDIDA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. OBRIGAÇÂO DE INDENIZAR. Responsabilidade civil do Estado. Artigo 37, par. 6. da CRFB/88. Ato lícito da administração. Troca de disparos de arma de fogo em via pública. Bala perdida. Dever de indenizar. O artigo 5., X da Lei Maior positivou o princípio impositivo do dever de cuidado ("neminem laedere") como norma de conduta, assegurando proteção à integridade patrimonial e extrapatrimonial de pessoa inocente, e estabelece como sanção a obrigação de reparar os danos, sem falar em culpa. A CRFB/88, em seu artigo 37, par. 6, prestigiou a Teoria do Risco Administrativo como fundamento para a responsabilidade civil do Estado, seja por ato ilícito da Administração Pública, seja por ato lícito. A troca de disparos de arma de fogo efetuada entre policiais e bandidos conforme prova dos autos impõe à Administração Pública o dever de indenizar, sendo irrelevante a proveniência da bala. A conduta comissiva perpetrada, qual seja, a participação no evento danoso causando dano injusto à vítima inocente conduz à sua responsabilização, mesmo com um atuar lícito, estabelecendo-se, assim, o nexo causal necessário. Desprovimento do recurso. [48]

DIREITO ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. PERSEGUIÇÃO. TROCA DE TIROS ENTRE POLICIAIS E BANDIDOS. "BALA PERDIDA". AUTOR ATINGIDO POR PROJÉTIL DE ARMA DE FOGO. AVARIAS EM SEU VEÍCULO. INCAPACIDADE TOTAL TEMPORÁRIA PARA O TRABALHO. PERDA TEMPORÁRIA DOS MOVIMENTOS DA MÃO. AUSÊNCIA DE PLANEJAMENTO NO ATUAR ESTATAL. DEVER DE INDENIZAR. É indiferente se o disparo que atingiu a vítima foi deflagrado por policial ou pelos meliantes que eram perseguidos. O nexo de causalidade está na atuação despreparada dos agentes estatais, que causaram a situação de perigo a todos os administrados que circulavam em horário de intenso movimento por local de grande circulação. A função do Estado é garantir genericamente a segurança pública, ao passo que a reiterada omissão transmuda a natureza desse dever em específica. Responsabilidade objetiva do Estado. Danos materiais e morais que devem ser reparados. Redução da verba compensatória. Conhecimento e parcial provimento do recurso. [49]

Direito Processual Civil. Embargos de declaração. Contradição. Omissão. Inexistência. Direito Administrativo. Lesão. Bala perdida. Troca de tiros entre policiais e supostos marginais. Sentença condenando o Estado do Rio de Janeiro a pagar indenização por danos morais. Nexo causal. Aplicação da teoria da causalidade adequada, isto é, a responsabilidade somente recairá sobre aquela condição que poderia concretamente concorrer para a produção do resultado, excluindo-se as demais condições que concorriam, mas que não eram as mais adequadas para produzir o dano. Responsabilidade do Estado. A conduta de seu agente público se não foi aquela que efetivamente deu causa ao resultado - alvejando o apelado com o disparo da arma de fogo -, contribuiu em muito para a causação do dano, já que falhou com o seu dever de segurança. Efeito modificativo. Descabimento. Cognição restrita à omissão, contradição e obscuridade do acórdão. Precedentes: STF, 1ª Turma, REED 255071/SP, Min. Moreira Alves; STF, 2ª Turma, AGAED 265905, Min. Celso de Mello. Rejeição dos embargos. [50]

Nesta linha de entendimento, o Superior Tribunal de Justiça, já se manifestou na lavra do Ministro Luiz Fux, de que nas atividades perigosas desenvolvidas pelo Estado, como é a ação policial, a causalidade entre a ação e o dano deriva do agravamento do risco geral da vida aumentado pelo agente do Estado. Segundo o Ministro, "se a sociedade pós-moderna é uma sociedade de riscos, incube aos agentes o controle do gerenciamento deste risco". Agravado este além do limite aceitável pela comunidade, a conduta se torna possível de ser atribuída como causadora do dano pela agravação do risco. Deste modo, no dizer dessa decisão, na responsabilidade objetiva a imputação do dano ao Estado se dá pela prova do agravamento do risco inerente à atividade por sua conduta em detrimento do lesado. Assim, inverte-se o ônus probatório quanto à ocorrência do agravamento ilícito do risco especifico, incumbindo ao Estado provar que a procedência do disparo de arma de fogo não foi dos seus agentes:

"Consoante cediço, a responsabilidade objetiva do Estado em indenizar, decorrente do nexo causal entre o ato administrativo e o prejuízo causado ao particular, prescinde da apreciação dos elementos subjetivos (dolo e culpa estatal), posto que referidos vícios na manifestação da vontade dizem respeito, apenas, ao eventual direito de regresso, incabível no caso concreto.

Destarte, as razões expendidas no voto condutor do acórdão hostilizado revelam o descompasso entre o entendimento esposado pelo Tribunal local e a jurisprudência desta Corte, no sentido de que nos casos de dano causado pelo Estado, se aplica o artigo 37, § 6º da Constituição Federal.

Ressalte-se ainda, que nos termos do artigo 927, § único, do Código Civil, haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, conceito que abrange, lato sensu, a própria Carta Magna.

(...) Deveras, consoante doutrina José dos Santos Carvalho Filho: A marca da responsabilidade objetiva é a desnecessidade de o lesado pela conduta estatal provar a existência da culpa do agente ou do serviço. O fator culpa, então, fica desconsiderado com pressupostos da responsabilidade objetiva (...), sendo certo que a caracterização da responsabilidade objetiva requer, apenas, a ocorrência de três pressupostos: a) fato administrativo: assim considerado qualquer forma de conduta comissiva ou omissiva, legítima ou ilegítima, singular ou coletiva, atribuída ao Poder Público; b) ocorrência de dano: tendo em vista que a responsabilidade civil reclama a ocorrência de dano decorrente de ato estatal, latu sensu; c) nexo causal: também denominado nexo de causalidade entre o fato administrativo e o dano, consectariamente, incumbe ao lesado, apenas, demonstrar que o prejuízo sofrido adveio da conduta estatal, sendo despiciendo tecer considerações sobre o dolo ou a culpa.

Assim, caracterizada a hipótese de responsabilidade objetiva do Estado, impõe-se ao lesado demonstrar a ocorrência do fato administrativo (invasão de domicílio), do dano (morte da vítima) e do nexo causal (que a morte da vítima decorreu de errôneo planejamento de ação policial).

Consectariamente, os pressupostos da responsabilidade objetiva impõem ao Estado provar a inexistência do fato administrativo, de dano ou ausência de nexo de causalidade entre o fato e o dano, o que atenua sobremaneira o princípio de que o ônus da prova incumbe a quem alega. Contudo, na hipótese vertente, o acórdão deixou entrever que os autores deixaram de produzir prova satisfatória e suficiente de que o óbito da vítima resultou de imperícia, imprudência ou negligência do policial militar que invadiu a casa da vítima, consoante se infere do voto de fls. 184/191, o que revela o provimento do recurso especial.

Nesta esteira, vale-se ressaltar mais uma vez o magistério de Luiz Guilherme Marinoni, no sentido de admitir recurso especial que verse acerca da inversão do ônus da prova, in verbis:

(...) Não se diga, como já fez o STJ, que "o indeferimento do pedido de inversão do ônus da prova na origem, por não se tratar de hipossuficiência, mas, também, pela impossibilidade de se aferir da razoabilidade da verossimilhança das alegações do consumidor, conceito de índole fático-porbatório, atraia a censura da súmula 7 do STJ, impedindo o conhecimento do especial, manejado sob o fundamento de maltrato ao artigo 6º, VIII do CDC". Lembre-se de que os critérios da hipossuficiência, deve considerar apenas a dificuldade de produção de prova. Portanto, a decisão a respeito de hipossuficiência não pode impedir o especial sob o argumento de impossibilidade de reexame de prova. Além disso, como dito no item anterior, não há como confundir exame de prova para a formação da convicção de verossimilhança com redução das exigências de prova para a procedência do pedido ou para a inversão do ônus da prova na sentença.

Decidir sobre a inversão do ônus da prova requer a consideração do direito material e das circunstâncias do caso concreto, ao passo que a formação da convicção nada mais é que a análise da prova e dos demais argumentos.Inverter o ônus da prova não está sequer perto de formar a convicção com base nas provas. Assim, o recurso especial pode afirmar que a decisão que tratou do ônus da prova violou a lei, o que evidentemente não requer o reexame das provas. (grifou-se) (Reexame de prova diante dos recursos especial e extraordinário, publicado na Revista Genesis - de Direito Processual Civil, Curitibanúmero 35, págs. 128/145).

Saliente-se ainda que, a Constituição Federal não assegura a inviolabilidade do domicílio (artigo 5º, inciso XI) de modo absoluto, inserindo, no rol das exceções à garantia, o caso de flagrante delito, desastre, prestação de socorro ou determinação judicial, inocorrentes na presente hipótese.

Destarte, esta Corte, apesar de adstrita a averiguação de ofensa à legislação federal infraconstitucional dentro dos estreitos limites da indicação feita por parte do recorrente, não está com isto impedida de aplicar o direito à espécie. Esta é justamente a ratio do artigo 257 do RISTJ, in verbis:

Artigo 257. No julgamento do recurso especial, verificar-se-á, preliminarmente, se o recurso é cabível. Decidida a preliminar pela negativa, a Turma não conhecerá do recurso; se pela afirmativa, julgará a causa, aplicando o direito à espécie.

Infere-se dos autos que o Policial Militar invadiu o domicílio da vítima, que restou assassinada por bala perdida no interior de sua própria residência, justamente quando procurava saber quem estava no teto da sua casa, não tendo o Estado logrado êxito em demonstrar a procedência do tiro de arma de fogo, disparado de "cima para baixo" no seu crânio, ônus que lhe incumbia, a fim de eximir-se da responsabilidade objetiva.

Ademais, extrai-se dos autos, que os autores às fls. requereram a exumação do cadáver da vítima para exame de balística e verificação do calibre da arma que realizou o disparo fatal, o qual não fora realizada no momento oportuno porque o raio X do Instituto Médico Legal estava quebrado, pedido que restou indeferido pelo juízo a quo.

Destaque-se, por sua vez, o teor do parecer ministerial, acostado aos autos às fls. 117/120, no sentido de condenação do Estado, à luz do artigo 37, § 6º da Constituição Federal, in verbis:

(...) Pois bem, a vítima era pessoa que trabalhava, tinha família, e por infelicidade, morava perto de local em que havia tráfico. Por infelicidade sua, acreditando na inviolabilidade de seu domicílio, subiu na laje, e foi atingida por disparo de arma de fogo, situação de risco criada a partir de desastrada operação policial no local onde habitava.

Pergunta-se: Será que o Estado é isento de qualquer responsabilidade, por não garantir àquela pessoa sequer o direito à inviolabilidade de seu domicílio, dizendo que foi imprudente ao subir na laje de sua própria casa. Parece-nos que não.

(...)

Frise-se que em nenhum momento houve qualquer afirmação pelos policiais em depoimento de que teriam subido na casa da vítima porque ali se estaria praticando qualquer crime, ou porque lá havia qualquer traficante.

Ao contrário, um dos policiais ouvidos, às fls. 97, inclusive declarou que "soube pelo sargento Firmo que ele teria subido na laje da casa da vítima para vasculhar a área".

(...)

Com efeito, a ação dos agentes do Estado contribuiu de forma decisiva par ao evento ocorrido, e neste particular, independentemente da perquirição de culpa ou dolo dos agentes, para o particular que se viu lesionado por bala perdida, sem qualquer participação na perseguição, existe a possibilidade de reparação dos danos sofridos. Isto porque há a responsabilidade civil do Estado face à comprovação indiscutível de que o ato do agente policial foi concausa para os danos patrimoniais e morais de que hoje sofrem os autores da presente ação indenizatória.

Tendo em vista ser cabível a condenação de indenização a título de danos morais e materiais, ratifico o teor da parte dispositiva da sentença, fl. 125, para adotar suas razões de decidir, in verbis:

(...)

Ante o exposto, julgo procedente, em parte, o pedido indenizatório, para condenar o réu a pagar aos autores. " [51]

Sendo o Superior Tribunal de Justiça, órgão de instância superior e competente para reexaminar as questões decididas pelos juízes de primeiro grau e Tribunais estaduais (artigo 105, III, da Constituição Federal), suas decisões têm o condão de firmar a orientação superior, possibilitando, inclusive, a conseqüente reforma dos julgamentos das instancias inferiores. Vale dizer, servem como norte, como referencia da evolução dos julgamentos pretorianos.

Nessa linha de raciocínio, percebe-se uma franca e forte orientação no sentido de não permitir falha nas tarefas ligadas à segurança pública, com críticas severas à imperícia policial e à inabilidade política do Estado, como acervou, entre outros, a desembargadora Helda Lima Meirelles, no acórdão acima transcrito.

Trata-se de uma evolução, que aos poucos vai abandonando a noção de irresponsabilidade do Estado – baseada na tese da hipossuficiência financeira (segurador universal) – tendo em vista o elevado custo social acarretado por sua incompetência funcional, como melhor será apontado no capítulo seguinte.

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Sobre a autora
Ana Patricia da Cunha Oliveira

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Bennett e pós graduanda em Gestão Pública pela Universidade Cândido Mendes/RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Ana Patricia Cunha. Responsabilidade civil do Estado em relação à segurança pública.: O fenômeno "bala perdida". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2721, 13 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18024. Acesso em: 29 mar. 2024.

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