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O dano extrapatrimonial contratual no âmbito das relações de consumo

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Sumário: 1. Proposta de Trabalho - 2. Os Princípios Informativos do Direito Contratual Clássico- 3. A Constituição Federal de 1998 e o Direito dos Contratos - 4. O Código de Defesa do Consumidor: 4.1. Natureza das Normas Protetivas dos Consumidores: Ordem Pública; 4.2. Âmbito do Microssistema; 4.2.1. Os Direitos Básicos dos Consumidores: A Efetiva Reparação; 4.2.2. A Responsabilização Objetiva dos Fornecedores; 4.2.3. A Disciplina dos Contratos no Âmbito do CDC: 4.2.3.1. Os Contratos de Adesão; 4.2.3.2. As Cláusulas Abusivas - 5. O Dano Extrapatrimonial; 5.1. Distinção com o Dano Moral; 5.2. A Desnecessidade da Comprovação de Prejuízo; 5.3. O Dano Extrapatrimonial por Violação ao Princípio da Boa-Fé, em decorrência da imposição de cláusulas abusivas.


1. Proposta de Trabalho

O presente trabalho monográfico tem como tema central o dano extrapatrimonial contratual no âmbito do Código de Defesa do Consumidor.

Em primeiro lugar, cumpre-nos destacar que o conceito de dano extrapatrimonial que utilizamos em nosso trabalho não guarda nenhuma relação direta com o instituto do dano moral, nada obstante ambos os termos serem utilizados indistintamente pela doutrina.

Para nós, o dano extrapatrimonial decorre da simples violação de um direito ou dever jurídico que o ordenamento jurídico outorga ou impõe às pessoas em dada sociedade, quer físicas, quer jurídicas.

Já o dano moral seria toda a agressão dirigida à esfera íntima do indivíduo (honra, nome, afeição, sentimentos etc.), quer lhe atingindo a imagem, quer os seus sentimentos pessoas. Enfim, tem-se por dano moral aquele decorrente da violação dos direitos da personalidade.

Assim, o instituto do dano extrapatrimonial possuiria um caráter preventivo ou intimidatório-repressivo, ao revés do caráter ressarcitório, objetivo esse das indenizações por dano moral.

Logo, em vista da dicotomia adotada, os danos moral e extrapatrimonial poderiam até coexistir, haja vista a natureza distinta de ambos, o que procuraremos demonstrar no transcorrer do nosso trabalho.


2. Os Princípios Informativos do Direito Contratual Clássico

Sob os influxos da Revolução Francesa, o Direito Privado sofreu grande influência por parte de seus três postulados: "Liberdade, Igualdade, Fraternidade".

Entendeu a Revolução que o Homem, ser livre e racional, detinha o direito ou a liberdade de autodeterminar-se segundo a sua própria vontade, o que representava em uma de suas faces a possibilidade de contratar e ser contratado, bem como a de estipular o conteúdo da contratação.

O liberalismo acentuado reinante no início do século XIX influenciou toda a construção doutrinária e legislativa da teoria contratual, fazendo com que o contrato, como instrumento jurídico que possibilita a circulação de riquezas, resultasse totalmente dominado por dois princípios básicos: o da lei entre as partes (lex inter partes) e o da observância do pactuado (pacta sunt servanda). O primeiro impede a alteração do que as partes convencionaram; o segundo obriga-as a cumprir fielmente o que avençaram e prometeram reciprocamente.(1)

A teoria clássica do contrato, informada por esses dois princípios, levou à conseqüências máximas a autonomia da vontade, desprezando o próprio conteúdo do contrato e a realidade exterior, como as condições sociais envolvendo as partes contratantes. Atendia a um modelo de sociedade estabilizada, tanto do ponto de vista político, como do sociológico e do econômico, mesmo que nela houvesse disparidades sociais e econômicas.(2)

Se duas ou mais pessoas desejassem firmar entre si qualquer contrato, tudo aquilo que porventura estipulassem teria força de lei entre elas, tornando-se o conteúdo do contrato intangível, imodificável.

Diante do pensamento que dominava a teoria contratual clássica, surgiram, além dos princípios já citados, outros informativos do direito contratual: a) princípio da autonomia da vontade; b) princípio do consensualismo; c) princípio da força obrigatória; d) princípio da boa-fé; e) princípio da relatividade dos efeitos dos contratos.

Para o mestre Orlando Gomes o princípio da autonomia da vontade "significa o poder dos indivíduos de suscitar, mediante declaração de vontade, efeitos reconhecidos e tutelados pela ordem jurídica."(3), vale dizer, a possibilidade dos contraentes escolherem a espécie contratual que melhor corresponda aos seus objetivos, além de poderem fixar o conteúdo do contrato, quer restringindo, quer ampliando os seus direitos e obrigações.

Tal poder de autoregramento de interesses, por sua vez, até mesmo sob a égide da teoria contratual clássica não é absoluto, encontrando limites nos bons costumes e nas normas de ordem pública.(4)

O princípio do consensualismo ainda é liberdade: é a liberdade quanto à forma que deve revestir os contratos e os negócios jurídicos unilaterais. Em especial quanto aos contratos, caracteriza-se o consensualismo dizendo que em regra basta o acordo entre as partes, para que estas fiquem vinculadas - consensus obligat(5), ao contrário do que ocorria no direito romano, no qual dominavam o formalismo e o simbolismo que submetiam a validade de determinado contrato ao aperfeiçoamento de determinado ritual.

O princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes. Celebrado que seja, com observância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os contratantes, sejam quais forem as circunstâncias em que tenha de ser cumprido. Estipulado validamente seu conteúdo, vale dizer, definidos os direitos e obrigações de cada parte, as respectivas cláusulas têm, para os contratantes, força obrigatória. Diz-se que é intangível, para significar a irretratabilidade do acordo de vontades. Nenhuma consideração de eqüidade justificaria a revogação unilateral do contrato ou a alteração de suas cláusulas, que somente se permitem mediante novo concurso de vontades. O contrato importa restrição voluntária da liberdade; cria vínculo do qual nenhuma das partes pode desligar-se sob o fundamento de que a execução a arruinará ou de que não o teria estabelecido se houvesse previsto a alteração radical das circunstâncias.(6)

Essa força obrigatória atribuída pela lei aos contratos é a pedra angular da segurança do comércio jurídico.(7) Vê-se que uma das razões a justificar a rigidez dos princípios contratuais clássicos é a segurança das relações jurídicas.

O princípio da intangibilidade do conteúdo dos contratos significa impossibilidade de revisão pelo juiz, ou de libertação por ato seu.(8)

As cláusulas contratuais não podem ser alteradas judicialmente, seja qual for a razão invocada por uma das partes. Se ocorrem motivos que justificam a intervenção judicial em lei permitida, há de realizar-se para a decretação da nulidade ou da resolução do contrato, nunca para a modificação do seu conteúdo.(9)

O princípio da boa-fé, para a teoria contratual clássica, corresponde a um estado de espírito em harmonia com a manifestação de vontade que vinculou as partes contratantes. É a intenção pura, isenta de dolo ou malícia, manifestada com lealdade e sinceridade, de modo a não induzir a outra parte ao engano ou erro.(10) É a chamada boa-fé subjetiva, um estado de ignorância sobre características da situação jurídica que se apresenta, suscetível de lesionar os direitos de outrem.

Por último, o princípio da relatividade dos efeitos do contrato quer dizer que o contrato produz efeito apenas e tão-somente entre as partes que nele se vincularam, não favorecendo ou prejudicando terceiros.

Como se vê, a teoria contratual clássica tem como pilar central a vontade dos indivíduos, pouco se importando com a justiça ou equilíbrio da estipulação contratual. O direito deve apenas proteger a vontade, reconhecida a sua força vinculativa, criadora de direito e obrigações. A vontade é, portanto, a força fundamental que vincula os indivíduos.(11)

Nesse sentido, doutrina o professor Serpa Lopes que "na teoria contratual clássica, todo o edifício do contrato assenta na vontade individual que é a razão de ser de uma força obrigatória. As partes não se vinculam senão porque assim o quiseram e o papel da lei resume-se em consagrar esse entendimento. Nada pode o juiz ante essa vontade soberana; a sua função limita-se a assegurar-lhe o respeito, na proporção da inexistência de qualquer vício de consentimento ou de qualquer vulneração às regras de ordem pública."(12)

Para o professor português João Calvão da Silva, "moralmente, a teoria da autonomia da vontade louva-se na ideia de que a vontade livre dos indivíduos não podia senão realizar a Justiça. Cada pessoa é o melhor juiz dos seus interesses. Logo, o contrato, acordo de vontades, é conforme os interesses das partes contratantes, não se concebendo que alguém queira conscientemente o contrário do seu interesse. Deste modo, o equilíbrio de interesses dos contratantes está garantido e a justiça contratual salvaguardada. << Quem diz contratual, diz justo >> (Fouillée)."(13)

Em que pesem tais considerações, a teoria contratual moderna, máxime após a promulgação da Constituição Federal de 1998, substituiu a visão individualista do direito por um viés social, solidário, sendo que os princípios contratuais clássicos, centrados no indivíduo, passaram a ser focados na sociedade, tendo as estruturais contratuais tradicionais sofrido forte abalo, o que provocou profunda mudança no direito privado, máxime no dos contratos.


3. A Constituição Federal de 1998 e o Direito dos Contratos

A Constituição Federal de 1998 positivou novos valores que representam os hodiernos anseios da sociedade brasileira, afastando o ranço individualista que até então marcava o direito privado.

Com efeito, a Carta Política sufraga, como valores supremos da ordem jurídica, os ideais de dignidade, de igualdade, de liberdade, de segurança, de propriedade e de justiça, antepondo-os, como inerentes à natureza humana, ao Estado, ao legislador e ao intérprete.(14)

Quis o constituinte ampliar o espectro de nossa Constituição, exatamente para direcionar, sob sua ótica, o legislador ordinário, impondo-lhe balizas e limites claros, definidos e expressos, sobre diferentes temas de cunho político, social e econômico, a exemplos de outros sistemas ocidentais em que de há muito se têm imiscuído conotações, principalmente sociais, aos esquemas tradicionais, que reduziam à regulamentação da estrutura do Estado e de suas relações com os cidadãos em seu território a temática constitucional.(15)

Abandona-se, dessa forma, o neutralismo do Estado antes chamado "de Direito" pela noção de "Estado de Justiça", impregnado de valores que lhe cabem defender e perseguir, estes, aliás, declarados solenemente no preâmbulo de nossa Carta e em seus textos iniciais, e que representam os valores mais elevados da própria natureza humana.(16)

"O individualismo e o abstencionismo ou neutralismo do Estado liberal", anota o constitucionalista José Afonso da Silva, "provocaram imensas injustiças, e os movimentos sociais do século passado e deste especialmente, desvelando a insuficiência, permitiram que se tivesse consciência da necessidade da justiça social, conforme nota Lucas Verdú, que acrescenta: "Mas o Estado de Direito, que já não poderia justificar-se como liberal, necessitou, para enfrentar a maré social, despojar-se de sua neutralidade, integrar, em seu seio, a sociedade, sem renunciar ao primado do Direito. O Estado de Direito, na atualidade, deixou de ser formal, neutro, individualista, para transformar em Estado material de Direito, enquanto adota uma dogmática e pretende realizar a justiça social". Transforma-se em Estado Social de Direito, onde o "qualificativo social refere-se à correção do individualismo clássico liberal pela afirmação dos chamados direitos sociais e realização de objetivos de justiça social"."(17)

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O direito passa a ser um instrumento de justiça e inclusão social na sociedade atual, instrumento de proteção de determinados grupos na sociedade, de realização de novos direitos fundamentais, de combate ao abuso do poder econômico.(18)

Dentro desse novo contexto introduzido pela Constituição Federal de 1988, o Direito Privado é impregnado de elementos sociais, o que redunda na eliminação dos resquícios individualistas e formalistas até então vigorantes, submetendo a sociedade brasileira aos novos valores sociais que representam os anseios e expectativas do mundo contemporâneo, dentre as quais destaca-se a Justiça Social, exigindo do Estado uma atuação firme para a defesa da sociedade.

Tal atuação dar-se-á, principalmente, através da intervenção estatal no domínio privado, com o objetivo de preservar os interesses tidos por relevantes, reflexos esses dos valores positivados no texto constitucional.

A respeito da citada intervenção estatal, a professora gaúcha Cláudia Lima Marques dá-nos conta de que "no início, o intervencionismo estatal dar-se-á através da planificação de certas atividades, pela fiscalização e controle de certos negócios, pela fixação de quotas e preços mínimos. Mas, aos poucos, o intervencionismo estatal evolui de modo a fomentar a edição de leis limitadoras do poder de auto-regular determinadas cláusulas (p. ex.: cláusulas de juros) e determinar o conteúdo de certos contratos, passando a ditar o conteúdo daqueles contratos em atividades imprescindíveis (por exemplo: de transportes, fornecimento de água, luz)." (19)

Em obra precursora da nova visão do direito privado, o jurista gaúcho Clóvis do Couto e Silva dilucida: "Exemplo frisante da limitação da liberdade de dar cláusulas ao negócio jurídico é o da fixação de preços para certas utilidades. O ato administrativo que, com base em lei especial, determina o preço, altera as obrigações em curso no contrato.

Dentro da filosofia do Estado liberal, atos dessa natureza seriam inadmissíveis, por existir, como já anotamos, a separação nítida e quase absoluta entre Estado e Sociedade. É manifesto, porém, que tal separação não dizia respeito a todos os aspectos, pois, do contrário, não se poderia compreender em que consistiriam as funções do Estado. Este intervinha para tornar orgânicos, na vida social, os princípios apregoados pelo liberalismo e erradicar tudo aquilo que se vinculasse à estruturação de classes ao estilo do sistema feudal. A ingerência do Estado efetuava-se no sentido da igualdade, no do nivelamento, no da generalização dos princípios políticos decorrentes da inserção do "Bill of Rights" nas cartas constitucionais."(20)

"Modernamente", segue o mestre, "o Estado possui funções de formador subsidiário do meio econômico e social, exarando normas que se dirigem à planificação de certas atividades dos particulares, em determinados momentos, e editando, por vezes, legislação marginal ao fenômeno sociológico do mercado.

No desempenho dessas prerrogativas, derivadas do conceito de Estado Social praticam-se atos "iure imperii", destinados a alterar e ajustar os negócios privados, afeiçoando-os à política governamental. Alguns desses atos refletem-se nas relações obrigacionais, como aqueles, por exemplo, que fixam preços: estipulando as partes preço superior ao constante da tabela, é nula a estipulação, e, se a fixação de preço ocorrer na vigência do contrato, o preço convencionado será reduzido ao montante previsto na determinação administrativa."(21)

Ante a nova filosofia do chamado Estado Social, haverá um intervencionismo cada vez maior do Estado nas relações contratuais, no intuito de relativizar o antigo dogma da autonomia da vontade com as novas preocupações de ordem social, com a imposição de um novo paradigma, o princípio da boa-fé objetiva. É o contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na sociedade de consumo, mas, assim como o direito de propriedade, agora limitado e eficazmente regulado para que alcance a sua função social.(22)

Com efeito, a partir da crescente intervenção estatal nos negócios privados, visando regulá-los e limitar a incidência de uma plena autonomia da vontade, passa o Direito a ser visualizado predominantemente por sua face social, preocupado em estabelecer uma ordem jurídica justa, e não apenas imposta, abstraída de quaisquer preocupações ético-sociais.

Por isso, segundo anotou o gênio alemão de Karl Larenz, a preocupação com o direito justo "concierne a los juristas, porque, si bien es cierto que los juristas pueden limitar-se a cumplir las normas de un concreto Derecho positivo, o las decisiones judiciales que en ese Derecho sean vinculantes, no pueden evitar que se los coloque incesantemente ante el problema de saber si lo que hacen es o no <<justo>>, sobre todo cuando las relaciones vitales cambiam y los casos no se planteam ya de un modo igual."(23) A preocupação atual dos juristas passa a ser a busca da realização de justiça, e não apenas a de se aplicar a lei mecânicamente, verificando se a hipótese fática subsume-se à legal, sem qualquer influência de valores metajurídicos.

A Constituição Federal deixa isso claro, especialmente sob a inteligência de seu artigo 170, quando fixa as finalidades da Ordem Econômica. Há liberdade de ação no mercado, tendo em vista o princípio da livre iniciativa; todavia, a liberdade de ação é contrabalançada pelos demais princípios regentes da ordem econômica, máxime o da proteção dos consumidores.

É induvidoso que a Constituição Federal claramente adotou o modelo econômico capitalista, fundado na livre iniciativa e na livre concorrência: a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema econômico, o sistema capitalista.(24)

Explicitado o sistema capitalista como aquele pelo qual faz opção a ordem econômica na Constituição de 1988, cabe indagarmos se, ao fazê-lo, o texto constitucional rejeita – ou não rejeita – a economia liberal e o princípio da auto-regulação da economia. (25)

Essa indagação é, também, prontamente respondida: há nela, nitidamente, rejeição da economia liberal e do princípio da auto-regulação da economia. Basta, para tanto, ler o art. 170: a ordem econômica liberal é substituída por uma ordem econômica intervencionista. (26)

Face o texto constitucional o modelo capitalista encontra limites, e esses limites visam inibir quaisquer posturas que de alguma forma agridam os princípios retores da ordem econômica, dentre os quais o da livre concorrência e o da defesa dos consumidores(27).

Como bem adverte Sérgio Varella Bruna, "A liberdade de iniciativa empresarial, portanto, porque inserida no contexto constitucional, há de ser exercitada não somente com vistas ao lucro, mas também como instrumento de realização da justiça social – da melhor distribuição de renda – com a devida valorização do trabalho humano, como forma de assegurar a todos uma existência digna. Assim, o lucro não se legitima por ser mera decorrência da propriedade dos meios de produção, mas como prêmio ou incentivo ao regular desenvolvimento da atividade empresária, segundo as finalidades sociais estabelecidas em lei. A liberdade de iniciativa, destarte, mais do que uma garantia individual, passa a ser uma técnica de produção social, dentre da qual se insere o sistema de mercado, cujos objetivos são juridicamente estabelecidos. Isso eqüivale a dizer que o estabelecimento de uma ordem econômica, que tem por obrigação a realização da justiça social, através da proteção do consumidor, da busca do pleno emprego, da redução das desigualdades sociais, entre outros, condiciona não só a ação do Estado, mas as ações de toda a sociedade. Todos, inclusive os empresários, devem orientar suas atitudes com vistas à consecução de tais objetivos."(28)

Busca o Estado, em sua concepção social, proteger determinados valores, determinados grupos de pessoas que a própria Constituição Federal houve por bem zelar, com destaque especial aos consumidores.

Prova disso é o fato de que "A Constituição Federal de 1998, pela primeira vez na história dos textos constitucionais brasileiros, dispõe expressamente sobre a proteção dos consumidores, identificando-os como grupo a ser especialmente tutelado através da ação do Estado (Direitos Fundamentais, art. 5º, XXXII)"(29)

Isso ocorreu porque, na realidade, a plena economia de mercado, assim entendida aquela em que o Estado deixava aos particulares a missão de autoregularem os seus interesses, e que implicava necessariamente na visão absolutista dos direitos subjeivos, já não mais se mostrava adequada à efetiva proteção daqueles que não detinham os meios de produção e informação, não mais garantia o atingimento de uma das finalidades da República: a proteção à dignidade da pessoa humana.

Era necessária a intervenção estatal com o objetivo precípuo de restabelecer o equilíbrio dos agentes sociais de há muito rompido na prática, através da imposição de políticas mínimas, impondo, algumas vezes, restrições ao pleno exercício das atividades econômicas, já que o modelo jurídico-econômico fundado no voluntarismo e individualismo exacerbados, conseqüência das concepções difundidas nos séculos XVIII e XIX, não se mostrava adequado e consentâneo à realidade social atual. Face à dinâmica atual da vida econômica e social brasileiras, não poderia o Direito deixar de se adequar às novas realidades.

Tendo isso em conta, Carlos Maximiliano já advertia: "Não pode o Direito isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica; e esta não há de corresponder imutavelmente às regras formuladas pelos legisladores. Se as normas positivas se não alteram à proporção que envolve a coletividade, consciente ou inconscientemente a magistratura adapta o texto preciso às condições emergentes, imprevistas. A jurisprudência constitui, ela própria, um fator do processo de desenvolvimento geral; por isso a Hermenêutica se não pode furtar à influência do meio no sentido estrito e na acepção lata; atende às conseqüências de determinada exegese: quanto possível a evita, se vai causar dano, econômico ou moral, à comunidade. O intuito de imprimir efetividade jurídica às aspirações, tendências e necessidades da vida de relação constitui um caminho mais seguro para atingir a interpretação correta do que o tradicional apego às palavras o sistema silogístico de exegese."(30)

O que estava a faltar na sociedade brasileira era justamente a adaptação do direito privado às novas realidades do país(31). Fruto de tais concepções sociais, a Lei nº 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor - positivou o que há de mais moderno no direito contratual e obrigacional na seara do direito comparado, dando efetividade à norma constitucional determinadora da proteção dos consumidores, eis que reconhecida a sua vulnerabilidade no mercado de consumo face aos demais agentes econômicos.

E isso se deu através da imposição de pautas mínimas de conduta aos fornecedores de produtos e serviços, com o fim induvidoso de moralizar a relação econômica, posto que o direito não pode caminhar divorciado dos princípios morais que imperam na sociedade e que norteiam as consciências a conceberem os relacionamentos dentro de um mínimo de decência e pudor econômico, sob pena de se converterem estes em instrumento de pura especulação e destruição, ao invés de se tornarem fatores construtivos da riqueza nacional.(32)

Assim, atento a essa realidade da sociedade de massas e com a visão ideológica dos postulados da nova teoria contratual, que pressupõe a relevância do interesse social de forma a influir sobre as relações obrigacionais privadas, o legislador brasileiro editou o Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90, que surge como o mais novo e amplo conjunto de normas sobre matéria contratual, para disciplinar, na condição de norma geral, todos os negócios jurídicos envolvendo relações de consumo.

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Sobre o autor
Alessandro Schirrmeister Segalla

advogado em São Paulo , especialista em Direito das Relações de Consumo com Extensão em Direito Processual Civil pela PUC-SP, Aluno Especial do Programa de Mestrado em Direito da USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGALLA, Alessandro Schirrmeister. O dano extrapatrimonial contratual no âmbito das relações de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2008. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

Texto adaptado de trabalho apresentado como exigência parcial para a obtenção do título de Especialista em Direito das Relações de Consumo perante a PUC/SP. Agradecimentos: Professor Luiz Antonio de Souza, da PUC/SP e Exmo. Sr. Min. José Augusto Delgado, do Superior Tribunal de Justiça

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