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A desconsideração inversa da personalidade jurídica

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11/10/2011 às 08:14
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6. A EFICÁCIA DA APLICAÇÃO DO INSTITUTO NO DIREITO PÁTRIO

A aplicação do instituto não é pacífica, existindo divergências jurisprudenciais e doutrinárias. Pode-se verificar de forma mais acirrada esta discussão no que tange à aplicação nas relações extramatrimonial, mais precisamente nas relações contratuais com terceiros, ocorrendo séria divergência quanto à aplicação da desconsideração.

Nesse sentido, segue decisão esclarecedora quanto à aplicação inversa do instituto, em caso emblemático, onde foi julgado procedente o pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica, por intermédio do voto do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Manoel de Queiroz Pereira Calças, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 33.453/01:

Em face das considerações acima expostas, longamente deduzidas, em virtude da relevância do tema da desconsideração em sentido inverso da personalidade jurídica, bem como das "peculiaridades dos princípios envolvidos e de suas conseqüências sistemáticas peculiares" como ressalta o Prof. Calixto Salomão Filho (obra citada, p. 464), além da projeção econômica do sócio/acionista devedor e do destaque sócio-econômico das sociedades empresárias atingidas, hei por bem de deferir a antecipação da tutela recursal, o que faço com fundamento no artigo 527, inciso III, do Código de Processo Civil e artigo 50 do Código Civil, para os seguintes fins:

Desconsiderar, em sentido inverso, a personalidade jurídica de HYUNDAI CAOA DO BRASIL LTDA., CNPJ-MF nº 03.518.732/0001-66, com sede na Avenida Ibirapuera, nº 2.822, 1º andar, São Paulo e de CAOA MONTADORA DE VEÍCULOS S/A, CNPJ-MF nº 03.471.344/0001-77, atualmente sediada na rua 11, s/n, Fazenda Barreiro Meio, Anápolis, Goiás, para o fim de determinar a penhora virtual (on line) de numerário existente em contas bancárias ou aplicações financeiras de qualquer modalidade em nome das duas sociedades, em execução da dívida judicial no valor de R$ 669.174,27, providenciando-se, posteriormente, o detalhamento e a transferência para conta judicial do Banco Nossa Caixa.

Como se depreende do julgado acima, mesmo sem uma norma expressa no sentido de aplicar o instituto de forma inversa, o judiciário tem reconhecido a sua aplicação nos casos onde há a confusão patrimonial entre o patrimônio do sócio e o da pessoa jurídica por ele controlada.

Vale destacar que no direito de família há uma maior aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, por ser um campo propício para a perpetuação de fraude dessa natureza, uma vez que a confiança entre os consortes facilita a prática de tais abusos.

Corroborando tal entendimento, insta colacionar alguns julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo, nas apelações Cíveis nº 83.620-4, nº 227.662-1 e nº 206787-2 respectivamente, em que decidiram:

EMBARGOS DE TERCEIROS – Dação em pagamento, nos autos de execução, produzindo a extinção desta, a partir de transação homologada, dentro do termo legal de falência, em que a convolada concordata preventiva – Ato da falida, que não se equipara a ato expropriatório, nem opera à guisa de determinar adjudicação do bem, mesmo estando este, antes, penhorado, nos autos da execução – Ineficácia do ato, em relação à massa (artigo 52, II, da Lei de Falências) e não, invalidade em relação às partes nele envolvidas, ou dos atos de transmissão seguintes, na cadeia dominial – Arrecadação subsistente, inclusive no que afeta a meação do marido, não comerciante, favorecido por aval, da mulher, comerciante individual – Não conferência de direito de retenções Desconsideração da hipótese de se tratar de bem de família.

EMBARGOS DE TERCEIROS – Ação civil pública – Admissibilidade – Cautelar de seqüestro – Constrição de bens da empresa da qual o réu é sócio quotista – Teoria da desconsideração da personalidade jurídica – Ausência, porém, de fraude na constituição ou atividade da empresa – Desconsideração apenas aplicável à clausula contratual que impede a alienação de quotas – Recurso parcialmente provido.

SOCIEDADE POR QUOTAS – Ausência absoluta de patrimônio - existência meramente formal – manifesto prejuízo aos credores - presunção de fraude – Aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica – Recurso Provido.

Destarte, em que pese defesa em sentido contrário, pugnando pela não existência de legislação vigente, onde discipline essa modalidade de desconsideração, veem-se, com as leis vigentes, mais precisamente o art. 50 do Código Civil, dentre outras acima tratadas, que é plenamente possível a coibição de fraudes dessa natureza. Cabe ainda, em tempo oportuno, salientar que os julgadores mais conservadores ainda insistem em se agarrar no princípio da autonomia patrimonial que existe entre a empresa e a figura dos seus sócios, deixando de coibirem a perpetração de manobras que claramente causam prejuízos tanto para as partes envolvidas na relação como para a ordem econômica, financeira e jurídica.

No que se refere à eficácia das leis já existente no ordenamento jurídico, conclui-se serem infundadas as alegações que essas não são capazes de disciplinar a aplicação da desconsideração inversa, pois essa vertente é uma variação, uma espécie da desconsideração já há muito aplicada pelo judiciário pátrio. Além disso, o que dificulta, às vezes, a aplicação é o apego excessivo à divisão patrimonial que há entre os figurantes da relação empresarial.

É necessário, portanto, direcionar as atenções não para a criação de leis disciplinadoras, essas já são fartas como demonstrado no tópico retro. É preciso atentar para os operadores do direito que insistem em não enxergar o direito como uma ciência que evolui no tempo, juntamente com a sociedade. Afinal, é para atender aos anseios dessa sociedade que existe a ciência jurídica. Assim, em última análise, se a sociedade muda, o direito, por seu turno, deve adaptar-se às novas necessidades dessa sociedade para a qual existe.


7 CONCLUSÃO

Diante dessas explanações supra transcritas, o presente trabalho buscou demonstrar a importância da desconsideração inversa da personalidade jurídica para o direito contemporâneo.

Buscou demonstrar sua aplicabilidade pela jurisprudência pátria nos casos em que fique evidenciado o uso indevido da sociedade por parte do sócio que transfere para uma sociedade os seus bens, esvaziando todo o seu o patrimônio pessoa, com um único fim, burlar o adimplemento das suas obrigações.

Ver-se cada vez mais o uso desvirtuado da personalidade jurídica por parte dos sócios, para perpetrar "falcatruas", com o objetivo claro de tomar proveito por intermédio da proteção dada ao ente jurídico a qual denominamos de personalidade. Nasce a necessidade da criação de mecanismos capazes de inibir os efeitos devastadores do uso indiscriminado da "couraça" protetiva ou "véu’ jurídico.

Verifica-se que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica abrandou o absolutismo do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, quando a mesma passou à coibição de fraudes ou atos abusivos

Constata-se que a ficção criada para impulsionar o progresso da sociedade, no sentido de crescimento econômico através de investimentos em pessoas jurídicas para a produção de bens e serviços úteis a todos, tem sido desvirtuada, vez que, utilizando da prerrogativa legal, em que separam as personalidades, têm os empreendedores utilizado do manto da pessoa jurídica para "esconder’ fraudes e demais atos inescrupulosos.

Nesse momento, cabe ao nosso poder judiciário lançar mão dos imperativos legais, mesmo que de forma indireta, por analogia, e combater as práticas ora suscitadas, tendo em vista os malefícios que podem ocorrer com a disseminação de tais condutas.

É certo que não tem normas legais positivadas, que disciplinem o instituto de forma inversa, mas como bem exposto, as leis já existentes são suficientes para combater a prática de qualquer ato ilegal que tente fazer uso da personalidade jurídica de forma abusiva.

Outrossim, têm-se vários precedentes como fartamente foi demonstrado no decorrer do trabalho, que norteiam a aplicação do instituto, pondo fim a qualquer celeuma quanto à aplicação dessa nova vertente da disregard of legal entity, ou, desconsideração inversa da personalidade jurídica.


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Sobre o autor
Hélio Marcos de Jesus

Assistente juridico, estudante do 5º ano de direito da Universidade de Uberaba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Hélio Marcos. A desconsideração inversa da personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3023, 11 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20189. Acesso em: 29 mar. 2024.

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