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Lógica jurídica, argumentação e racionalidade

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21/07/2012 às 10:35
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O papel da Lógica Jurídica consiste não só em garantir a possibilidade de que as conclusões silogísticas, quando cabíveis, sejam corretas, mas também, e fundamentalmente, em possibilitar que as escolhas das premissas sejam feitas de forma racional e justificada, garantindo que o Direito possa efetivamente ser qualificado como Ciência e possibilitando que se exerça um controle mais apropriado das decisões jurídicas.

SUMÁRIO: Introdução;  2. A Lógica. 3. Lógica jurídica. 4. Direito e Lógica em Hans Kelsen. 5. Recaséns Siches e a lógica do razoável. 6. A teoria da argumentação de Robert Alexy.  7.Conclusões.  Referências.

RESUMO: O presente artigo trata das relações entre a Lógica e o Direito, partindo da problematização das ideias de que o Direito seria um sistema lógico e de que a aplicação das leis a um caso concreto seria uma simples operação lógico-dedutiva. Defende-se a adoção de um conceito ampliado de lógica, que inclua não só a lógica formal, mas também os raciocínios não-dedutivos, de forma a possibilitar a superação da polêmica acerca da existência de uma lógica jurídica, evidenciando sua existência como um ramo do saber com um objeto mais amplo do que o da lógica formal, abarcando, além dos processos estritamente lógico-formais, como a dedução e a indução, métodos extra-lógicos de justificação das decisões judiciais, como a analogia e a argumentação retórica.  Em seguida, analisa-se o papel dos princípios ou leis da lógica jurídica nos processos de justificação racional das decisões judiciais na teoria pura do Direito de Kelsen, na lógica do razoável de Recaséns Siches e na teoria da argumentação de Robert Alexy.

Palavras-chave: lógica formal, lógica jurídica, lógica do razoável, argumentação.


INTRODUÇÃO

É muito difundida a ideia de que o Direito guarda íntima ligação com a Lógica, e que nas relações estabelecidas entre as diversas normas que formam o ordenamento jurídico-positivo, bem como na aplicação dessas normas aos casos concretos, devem ser obedecidos os princípios da lógica. Lee Lowwvinger afirma que a “lógica, ou razão tem sido reivindicada por filósofos igualmente como propriedade especial e como fundamento principal do Direito, desde pelo menos o tempo de Aristóteles” (apud Kelsen 1986, p. 434).  Para a maioria dos leigos e grande parte dos juristas, assim, o Direito é um fenômeno estritamente lógico, cabendo ao juiz, ao aplicar a lei a um caso concreto, deduzir logicamente a sentença a partir do silogismo entre as leis gerais e os fatos.  Daí ter W. F. Maitland, historiador do Direito inglês, afirmado que os juristas “são os mediadores entre a vida e a lógica” (apud KELSEN, 1965, p. 275).  

Com efeito, é comum os operadores do direito sustentarem a necessidade de uma “aplicação lógica” das leis ou defenderem a “argumentação lógica” na sua atuação diária.  Neste sentido, Aldisert, Clowney e Peterson (2007, p. 100/102) afirmam que:

Logic is the lifeblood of American law. In case after case, prosecutors, defense counsel, civil attorneys and judges call upon the rules of logic to structure their arguments. Law professors, for their part, demand that students defend their comments with coherent, identifiable logic. By now we are all familiar with the great line spoken by Professor Kingsfield in The Paper Chase: “You come in here with a head full of mush and you leave thinking like a lawyer.” (…) Logic anchors the law. The law’s insistence on sound, explicit reasoning keeps lawyers and judges from making arguments based on untethered, unprincipled, and undisciplined hunches.[1]

De acordo com esse modelo lógico-formal, o Direito, ou mais especificamente, o raciocínio jurídico, seria construído a partir de normas que se vinculam por inferência lógica, de sorte que seria possível fazer-se um encadeamento racional das normas, desde uma norma geral e abstrata, de hierarquia superior e na qual se fundam as demais, até a mais concreta e específica, diretamente aplicável ao caso concreto,  formando-se assim uma pirâmide normativa cujo ápice seria ocupado pela Constituição[2].  Além desssa relação entre normas, haveria também uma relação lógica de inferência entre as normas e o fato posto em julgamento, de tal modo que a conclusão, isto é, a sentença, seria o produto de um ato racional de aplicação lógica.

 Neste modelo, que teve suas bases estruturadas a partir do liberalismo do século XVIII, a atividade judicial é tida como meramente declaratória da norma legal aplicável ao caso concreto, cabendo ao juiz unicamente fazer um silogismo lógico-dedutivo em que a premissa maior seria a norma e a premissa menor seria o fato, decorrendo daí uma única solução possível, que deveria ser a adotada.  O papel a ser desempenhado pelo juiz, assim, seria o de mero aplicador da lei, cabendo-lhe tão-somente “dizer a lei do caso concreto”, extraída a partir da lei genérica e abstrata.  Por isso é que Montesquieu (1997, p. 203) afirmava que os juízes “(...) não são mais do que a boca que pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não podem moderar-lhe nem a força nem o rigor”. Em virtude dessa visão, como afirma Kantorowicz (apud Prado, 1995, p. 62),

Imaginava-se o jurista ideal como um funcionário de certa categoria, sentado diante de sua escrivaninha, armado de um código e de uma máquina de pensar da mais fina espécie. Diante de um caso qualquer, podia esse funcionário, com o auxílio da lei e da máquina, chegar à solução pretendida pelo legislador no código, com uma exatidão absoluta.

 No mesmo sentido, tornando explícita a forma como a ligação entre a lógica e o direito era vista, afirmou Beccaria (1995, p.17) que:

O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro.

Ocorre, entretanto, que vários fatores, entre os quais a crescente positivação de direitos fundamentais, não só relacionados aos direitos civis e políticos, mas também aos chamados direitos econômicos, sociais e culturais, além do reconhecimento da Constituição como verdadeira norma impositiva e cogente, e não mais a mera “folha de papel” de Lassalle (HESSE, 1995), geraram um crescimento do grau de jurisdicionalização da vida social e política que redundou numa profunda alteração do papel desempenhado pelo Poder Judiciário nas democracias modernas, onde não mais é possível validamente sustentar-se a correção da concepção liberal-legal clássica. 

   Tais fatores, aliados ao reconhecimento da existência de lacunas e antinomias no ordenamento, bem como do caráter vago e impreciso das normas, tornaram evidente que em muitos casos as decisões judiciais não são meros produtos do raciocínio lógico-dedutivo de aplicação de normas válidas e enunciados empíricos comprovados.  Como afirma Alexy (2001, p. 17), a constatação feita por Larenz de que atualmente ninguém mais pode afirmar seriamente que a aplicação das normas jurídicas nada mais é do que uma subsunção lógica sob premissas maiores formuladas abstratamente “é um dos poucos pontos em que há unanimidade dos juristas na discussão da metodologia contemporânea”.  

Com efeito, a relação entre o direito e a lógica, pelo menos nessa forma estrita defendida pelo modelo formalista, está longe de ser pacífica, como bem demonstra a célebre  frase do Justice Holmes, para quem “a vida do Direito não tem sido lógica, mas experiência”.  No mesmo sentido, afirmou Taine que “as sociedades humanas são um escândalo para a razão pura, pois elas não são obra da Lógica, mas da história” (apud FRANCO MONTORO, 1995, p. 20).


2. A LÓGICA.

Além dos inúmeros pontos de tensão existentes na relação entre o Direito e a Lógica, há ainda uma grande dificuldade decorrente da falta de unidade terminológica.  Não raro nos discursos jurídicos o termo “lógica” é utilizado sem muito rigor, como um adjetivo ligado à coerência do discurso. Mesmo quando os juristas se referem à Lógica enquanto ciência, nem sempre estão se referindo a uma mesma coisa. Como afirmou Chaim Perelman (1973, p. IX),

Cuando el jurista defiende una interpretación lógica del derecho, cuando sus adversarios replican que “la vida del derecho no es la lógica sino la experiencia”; cuando los abogados se acusan mutuamente de no respetar la lógica, la palabra “lógica” no designa, en ninguno de estos casos, la lógica formal, la única practicada por la mayoría de los lógicos profesionales, sino la lógica jurídica, que los lógicos modernos ignoran por completo[3].

Assim, antes de se iniciar uma discussão acerca das relações entre a Lógica e o Direito (e à questão relativa á própria existência de uma Lógica Jurídica), é necessário que se delimite aquilo a que nos referimos quando falamos de lógica.   Neste aspecto, como Fabio Ulhoa Coelho (2009, p. 04), temos que por lógica deve-se entender uma maneira específica de pensar, ou melhor, de organizar o pensamento, ou, como afirma Cezar Mortari “lógica é a ciência que estuda princípios e métodos de inferência, tendo o objetivo principal de determinar em que condições certas coisas se seguem (são conseqüência), ou não, de outras” (apud CARNEIRO, 2010, p. 1).

Por seu turno, a validade do raciocínio lógico é conferida pela obediência a algumas leis ou princípios fundamentais da lógica, que garantem a correção formal do pensamento. Estes princípios ou leis, derivados da forma típica do racionalismo ocidental, que propugnava conhecer algo através da razão, são os princípios da identidade, do terceiro excluído e da não-contradição. 

Pelo princípio da identidade, entende-se que “o que é, é”, ou seja, que todo objeto é idêntico a si mesmo. Como afirma Fábio Ulhoa Coelho (2009, p. 6), “no interior do pensamento lógico, as coisas não podem ser entendidas como um complexo de múltiplos fatores contraditórios. Uma árvore é uma árvore, e não o vir a ser de uma semente”.

Por seu turno, o princípio da não-contradição decorre do princípio da identidade e significa que nenhum objeto pode ser ao mesmo tempo ele e não-ele, ou seja, um determinado objeto A não pode ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, não-A, de modo que se dois enunciados contraditórios sobre o mesmo objeto não podem ser simultaneamente verdadeiros. Decorre daí o princípio do terceiro excluído, pelo qual se afirma que se dois enunciados são contraditórios, um deles será verdadeiro e o outro falso (embora nada se afirme quanto a qual deles é o verdadeiro). Daí que, nos casos de proposições contraditórias, verificada a veracidade de uma delas, a outra será necessariamente falsa, e vice-versa. Por isso é chamado de terceiro excluído, já que não há uma terceira opção, ou seja, ou as proposições são verdadeiras ou falsas. 

De se ressaltar, ainda, que tais princípios da lógica formal não guardam nenhuma relação com a veracidade ou validade do conteúdo da argumentação lógica.  Como afirma Coelho (2009, p. 7),

O argumento pode ser lógico, mas isso não quer dizer que sua conclusão seja necessariamente verdadeira, isto é, corresponda à realidade. Muito pelo contrário, a única garantia que o raciocínio lógico oferece é a de que, sendo verdadeiras as premissas e válida a inferência, a conclusão será verdadeira.  Em outros termos, há duas condições para que o raciocínio lógico nos conduza à verdade: a veracidade das premissas e a correção do próprio raciocínio.  Os lógicos se ocupam dessa segunda condição apenas, já que da veracidade das premissas cuidam os cientistas (biólogos, matemáticos, físicos, sociólogos, psicólogos, etc.).

Ocorre, entretanto, que o termo lógica, como assinalado por Kalinowski (1973, p. 30), é suscetível de pelo menos três sentidos: o mais restrito, segundo o qual a lógica seria apenas a lógica formal dedutiva, a ciência das estruturas formais do pensamento; um sentido amplo, que designa não só a lógica formal, mas também a lógica não dedutiva, que estuda os esquemas e regras dos raciocínios não-dedutivos (como os redutivos e analógicos), e, por fim, um sentido ainda mais ampliado, que incluiria a metalógica, isto é, a parte da lógica que estuda também as propriedades e os componentes dos sistemas lógicos.

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O sentido restrito é o mais utilizado quando se trata da Ciência da Lógica[4].   É neste sentido que, como anotado por Franco Montoro (1995, p. 16), posicionam-se, entre outros, Ulrich Klug (“por Lógica, deve-se entender sempre a lógica formal”),  Carnap (“lógica não-formal é um contradictio in adjeto”) e Lourival Vilanova (“Lógica, tout cort, é lógica formal”). 


2. LÓGICA JURÍDICA.

Apesar do sentido restrito de lógica ser o mais difundido, no presente trabalho adotaremos o segundo dos sentidos supra apontados, opção que, além de ser mais apropriada para lidar com as relações entre lógica e direito, objeto deste estudo, também tem a vantagem de permitir superar a polêmica e complexa questão relativa à existência da lógica jurídica.  É que aqueles que defendem a inexistência de uma lógica especificamente jurídica têm como pressuposto a noção de que a lógica seria unicamente a lógica formal (sentido restrito).

Ora, de fato, ao se entender a lógica unicamente como a lógica formal, que analisa as inferências necessárias entre as proposições, resta evidente que a aplicação da lógica ao direito não configuraria uma nova disciplina, mas seria antes a mera aplicação de postulados universais a um ramo específico do saber, de modo que não seria possível falar-se em lógica jurídica, posto que, como afirma Chaim Perelman (1998, p. 5),  

(...) se identificarmos “lógica pura e simples” com a lógica formal, não apenas esta última expressão se torna pleonástica, mas é ridículo falar de lógica jurídica, como seria ridículo falar de lógica bioquímica ou lógica zoológica quando utilizamos as regras da lógica formal em um tratado de bioquímica ou zoologia

Em contraponto, a adoção de um conceito mais amplo de lógica, que inclua também as operações não dedutivas, como a argumentação retórica e a analogia, faz com que se evidencie a existência autônoma de uma lógica jurídica.  Neste sentido, o lógico polonês Kalinowski (1973, p. 33), que inicialmente combatia a idéia da existência da lógica jurídica, ao justificar sua mudança de entendimento, afirmou que:

(...) la lógica en sentido propio no agota el dominio de lo racional y por otra parte la retórica y la argumentación en derecho (incluyendo también la interpretación jurídica) no están condenadas a lo irracional (pero deben poner atención de no caer en él). En consecuencia, y tomando en cuenta el carácter analógico del concepto de lógica y partiendo del nombre que lo significa, se puede, siguiendo respectivamente el ejemplo de Perelman y de Gregorowicz, extender al nombre de lógica jurídica al estudio de la argumentación jurídica de carácter retórico, y al estudio de las reglas “extra-lógicas” de interpretación del derecho[5].

A lógica jurídica, pois, deve ter reconhecida sua cidadania científica e epistemológica, dotada de um objeto mais amplo que o da lógica formal, posto que inclui também os elementos racionais não dedutivos ou extra-lógicos identificáveis nas decisões judiciais.  Essa visão acentua a íntima relação entre a Lógica jurídica, a teoria da argumentação e a metodologia do Direito, na medida em que a possibilidade de existência de justificações racionais para as decisões jurídicas é um dos mais basilares pressupostos para a qualificação do direito como ciência.  Com razão, portanto, Karl Engish (1965, p. 7-8), quando afirma que:  

A lógica do jurista é uma lógica material que, com fundamento na lógica formal e dentro dos quadros desta, por um lado, e em combinação com a metodologia jurídica especial, por outro lado, deve mostrar como é que nos assuntos jurídicos se alcançam juízos "verdadeiros", ou "justos" (correctos), ou pelo menos "defensáveis". Uma lógica e metódica do jurista assim entendida não é uma "técnica" que ensine artifícios conceituais com cujo auxílio se possam dominar do modo mais expedito possível as tarefas de pensamento que se deparam ao estudioso do direito. Ela também não é psicologia ou sociologia da heurística jurídica, a qual indaga como se conduzem de facto as pessoas na prática quotidiana ao adquirirem pontos de vista jurídicos. Constitui antes reflexão sobre o processo de conhecimento jurídico especificamente correcto, o que não é coisa de fácil penetração. Ela esforça-se por alcançar (nos limites do que ao conhecimento humano é possível) a meta de descobrir a "verdade" e emitir juízos conclusivamente fundados.

A Lógica jurídica, pois, estuda todas as formas racionais de justificação de uma proposição normativa, incluindo-se aí não só aquelas que assumem a forma de raciocínios dedutivos ou indutivos, objeto da lógica formal, mas também aquelas justificações fundadas na analogia, na argumentação e na retórica.  Questão tormentosa daí decorrente é a relativa a saber como as leis e princípios da lógica são (ou devem ser) aplicáveis ao direito[6], ou, em outros termos, quais são as os princípios ou leis da lógica jurídica e qual o seu papel nos processos de justificação racional de uma decisão jurídica. 

Evidentemente não há consenso no âmbito da filosofia jurídica e da teoria do direito sobre o tema.  Ao contrário, neste campo, as divergências doutrinárias são grandes e profundas, até em virtude de sua íntima relação com o conceito de Direito, outro tema também dado a insuperáveis controvérsias.  Por isso, provavelmente a melhor forma de se trabalhar a questão seja fazendo uma incursão sobre algumas das mais influentes teorias acerca da relação entre lógica e direito, a saber, a teoria pura do Direito de Kelsen, a lógica do razoável de Recaséns Siches e a teoria da argumentação de Robert Alexy.  Ressalte-se que a escolha desses autores deveu-se não só ao elevado grau de aceitação que suas teorias tiveram na doutrina e jurisprudência brasileiras, mas também, e fundamentalmente, em razão do fato de que as diferenças entre as abordagens de cada um deles permite analisar de uma perspectiva diferente as relações do Direito e da lógica[7].


3. DIREITO E LÓGICA EM HANS KELSEN.

 Hans Kelsen é provavelmente o mais influente dos teóricos do direito do século XX, a tal ponto do espanhol Luis Legazy Lacambra ter afirmado que o pensamento jurídico do século XX teria de ser um permanente diálogo com Kelsen (apud FERRAZ JÚNIOR, 1995, p. 14). Uma das principais características do pensamento kelseniano é o seu rigor metodológico, fundado na permanente busca pela identificação do objeto e método específicos do Direito, objetivando a construção de uma teoria do direito depurada de elementos extra ou meta-jurídicos, ou seja, “uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto.” (KELSEN, 1999, p. VII).

A Teoria kelseniana parte de um radical corte epistemológico que, mesmo sem desconhecer o caráter transdisciplinar do fenômeno jurídico e a importância dos outros saberes para sua compreensão, aponta como objeto e método precípuo da ciência do direito o estudo das normas. Kelsen, partindo da divisão entre o mundo do ser (próprio das ciências naturais e fundado no princípio da causalidade) e o mundo do dever-ser (próprio das ciências normativas, fundando-se no princípio da imputação), faz uma distinção entre normas e proposições jurídicas.  

As normas seriam os atos de vontade emitidos pela autoridade competente, isto é, o legislador ou o administrador, nos casos das leis e regulamentos gerais, ou o juiz, no caso da sentença (valendo ressaltar que na teoria kelseniana a atividade judicial não é meramente declaratória, mas criadora de norma individual).  Para Kelsen (1986, p. 1/2),

Com o termo [norma] se designa um mandamento, uma prescrição, uma ordem. Mandamento não é, todavia, a única função da norma.Também conferir poderes, permitir, derrogar são funções de normas. [..] “Norma” dá a entender a alguém que alguma coisa deve ser ou acontecer, desde que a palavra “norma” indique uma prescrição, um mandamento. Sua expressão lingüística é um imperativo ou uma proposição de dever-ser.

Por seu turno, as proposições jurídicas, isto é, as proposições da ciência do Direito (doutrina) não configurariam atos de vontade, mas sim atos de pensamento, na medida em que a doutrina não cria normas, mas tão-somente descreve as normas existentes.  As proposições da Ciência do Direito, pois, não seriam prescritivas, mas descritivas.  Assim, para Kelsen,

A Ciência do Direito contém proposições que são enunciados sobre normas jurídicas. Ela expõe normas jurídicas, descreve normas jurídicas.  Essas proposições não são propriamente normas, mas enunciados sobre normas.  Como Ciência, a Ciência do Direito apenas pode conhecer e descrever normas a ela dadas, e não estabelecer normas.

Essa distinção entre as normas e as proposições  feitas pela doutrina sobre as normas é essencial para a compreensão das teses de Kelsen acerca das relações entre a Lógica e o Direito, posto que na teoria kelseniana a Ciência do Direito, assim como qualquer outra ciência, tem como pressuposto o respeito às regras da lógica nas suas proposições.  Por outro lado, no que se refere às normas, que não são atos de pensamento, mas atos de vontade, não haveria qualquer lógica interna, já que as autoridades simplesmente editam as normas, no exercício de suas competências, sem qualquer compromisso com o rigor lógico. Como afirma Fábio Ulhoa Coelho (2009, p. 51), 

(...) em Kelsen, as autoridades, sem qualquer preocupação sistemática ou lógica, editam normas gerais ou individuais, enquanto os cientistas do Direito recuperam esse material bruto (como os astrônomos recolhem do céu o movimento errático das estrelas) e dão-lhe forma lógica indispensável ao seu conhecimento científico.  A ordem jurídica, em Kelsen, não é lógica; a ciência jurídica é que deve descrevê-la como tal.

Tem-se, assim, que na teoria kelseniana cabe à doutrina a obrigação de seguir as regras e leis da lógica na elaboração de suas proposições a partir da ordem jurídica posta, para poder construir a partir dela o sistema jurídico (este sim, de natureza descritiva e sujeito às regras da lógica), uma vez que

A aplicabilidade de princípios lógicos à Ciência do Direito geralmente não é problema porque os princípios da Lógica são aplicáveis a todas as Ciências. [...] Que, se existe algo assim como “legal thinking”, pensamento jurídico, os princípios da lógica são aplicáveis a esse pensamento, ou mais corretamente: ao sentido dos atos de pensamentos jurídicos, é evidente.  Mas o problema é se eles são aplicáveis a normas, que não são sentidos de atos de pensamento, senão o sentido de atos de vontade. (KELSEN,1986, p. 240/315),

Por outro lado, Kelsen contrapõe-se veementemente à possibilidade de aplicação dos princípios lógicos da não contradição e da inferência (conclusão) às normas.  Ele parte da idéia de que a análise lógica pode apenas dizer respeito a enunciados que são verdadeiros ou falsos e verificáveis, e que as normas não são verdadeiras ou falsas, e sim válidas ou inválidas.

 Essa distinção entre uma norma e uma asserção se torna evidente quando se compara, por exemplo, a norma que dispõe que o homicídio deve ser punido com reclusão de 6 a 20 anos, com a asserção de que “todo homem é mortal”.  A asserção tem a estrutura de um ato de conhecimento que, a depender da adequação de seu conteúdo à realidade, pode ser qualificado como verdadeiro ou falso, enquanto na norma verifica-se um ato de vontade editado pelo legislador e dirigido abstratamente à conformação da conduta de todos os cidadãos, que devem se abster de praticar o ato incriminado. A norma não pode ser qualificada como verdadeira ou falsa, mas sim de válida ou inválida. Nas palavras de Kelsen, (1965, p. 276/277)

(...) verdad y falsedad son cualidades o propiedades de una aserción. La validez, sin embargo, no es la cualidad o propiedad de una norma, sino su existencia, su específica existencia, no una existencia material, sino ideal.  Que una norma es valida significa que existe; que una norma es invalida significa que no existe, “existe” en el sentido ideal del término. Una norma inválida, esto es, una norma no existente, no es norma de modo alguno. Pero una aserción que es falsa, es todavía una aserción, tal como lo es una aserción verdadera; existe como una aserción, aun cuando ella sea falsa.[8]

A partir dessa constatação, Kelsen afirma não ser possível aplicar-se às normas o princípio lógico da não contradição, que somente teria sentido quando aplicado a asserções. Isso porque, quando se trabalha com asserções, a existência de duas afirmações contraditórias sobre um mesmo objeto implica que um deles seja falso (princípio da não-contradição).   Assim, se é afirmado que “todo homem é mortal” e que “o homem José é imortal”, uma das asserções é falsa.

Quando se trata de normas, todavia, a existência de um conflito não pode ser resolvido por princípios lógicos, mas unicamente por uma terceira norma que derrogue uma das normas conflitantes. A validade de uma norma não implica necessariamente que outra norma que a ela seja contraditória seja inválida.  As fórmulas tradicionalmente utilizadas para a solução de conflitos normativos, tais como as proposições de que as normas hierarquicamente superiores derrogam as inferiores, que a norma posterior derroga a anterior ou de que a norma especial derroga a norma geral, não configuram aplicação de princípios lógicos, mas aplicação de normas jurídicas existentes no direito positivo, ainda que não prevista expressamente na lei, sendo apenas pressuposta pelo legislador  (KELSEN, 1986, p. 263 e ss.). 

Defende Kelsen, ainda, a tese de que os silogismos não são aplicáveis direta ou indiretamente às normas.  Para ele, o silogismo normativo não pode ser admitido porque as premissas não têm o mesmo caráter lógico, já que a premissa maior é uma norma geral hipotética (ex. aquele que cometer homicídio deve ser punido com reclusão de 6 a 20 anos) e a premissa menor (ex. João cometeu homicídio) é uma asserção, um enunciado sobre um fato, de modo que não há relação lógica possível entre ambas e, portanto, não é possível extrair-se a validade da norma individual (a conclusão do silogismo, a sentença) da norma geral à qual ela corresponde.

Coerente com essa idéia, Kelsen afirma que a decisão judicial de um caso concreto não é produto de uma operação lógica que deduz a norma individual (sentença) a partir da subsunção de uma regra geral aos fatos, mas sim configura “também criação do Direito, a continuação do processo de produção do direito que acontece no processo legislativo (ou no costume). Ela é um ato de individualização das normas jurídicas gerais que devem ser aplicadas” (1986, p. 286). Esse caráter criativo da atividade jurisdicional fica mais evidente quando se percebe que o juiz, ao suprimir as lacunas porventura existentes ou decidir com base na analogia, não estará realizando qualquer operação lógica de dedução, mas sim criando normas dentro do espaço de discricionariedade que lhe foi conferido.  A tradicional ideia de que o juiz, em sua atuação, não teria poder discricionário, pois estaria vinculado ao “espírito da lei”, nada mais é do que uma ficção com fins meramente ideológicos. Para Kelsen (1986, p. 345/347),

(...) na teoria jurídica, procura-se indicar esse arbítrio do juiz como limitado, quando se assevera que o juiz precisa preocupar-se com o espírito da lei, se ele aceita o fato sub judice como semelhante ou de acordo, no essencial, com o fato típico determinado na norma a ser aplicada.

O que é o “espírito da lei”, naturalmente só o juiz mesmo pode definir, e esta definição pode sair muito diferente em diversos litígios a serem definidos por diferentes juízes.  O “espírito da lei” é – no fundo – uma ficção que serve para manter a aparência de que o juiz apenas aplica o direito válido também em casos de decisão analógica, enquanto ele, em verdade, cria Direito novo para o caso concreto. Para isto, porém ele precisa estar autorizado pelo ordenamento jurídico. [...]

O que efetivamente existe quando a ciência do Direito tradicional (jurisprudenz) fala de uma decisão judicial per analogiam, de modo algum é uma conclusão, na qual na validade de uma norma geral positiva logicamente segue-se a validade de uma norma individual da decisão judicial, senão a estatuição de uma norma individual autorizada pelo ordenamento jurídico vigente, a qual não corresponde a nenhuma norma jurídica geral, conteudisticamente determinada. [...]

O que se chama uma conclusão analógica geralmente não representa processo lógico, o que ainda mais procede para a chamada conclusão jurídico-analógica.  

Para Kelsen, portanto, as regras e leis da Lógica formal somente seriam aplicáveis às proposições da Ciência do Direito (ou seja, à doutrina).  Às normas, em especial à sua aplicação judicial (jurisprudência), a leis e regras da lógica formal, especialmente o princípio da não contradição e a regra da conclusão a partir de um silogismo, não seriam aplicáveis.

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Sobre o autor
Marcio Luiz Coelho de Freitas

Juiz Federal titular da 2ª Vara da Seção Judiciária do Amazonas. Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade Estadual do Amazonas. Professor da Escola Superior de Magistratura do Estado do Amazonas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Marcio Luiz Coelho. Lógica jurídica, argumentação e racionalidade . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3307, 21 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22271. Acesso em: 28 mar. 2024.

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