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A tragédia de Santa Maria na visão de um perito criminal

31/01/2013 às 18:45
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A utilização de fogos de artifício em ambiente confinado é prática assaz perigosa, que reclama a utilização de artefato com chama “fria” e de menor projeção, assim mesmo, sempre com a presença de bombeiros devidamente instrumentalizados.

1. A VISÃO SISTÊMICA DA OCORRÊNCIA

Os fatos foram integralmente registrados por imagens que fornecem uma visão irretorquível de tudo o que aconteceu naquela madrugada de domingo (27.1.13) em Santa Maria – RS, resultando, até agora, 234 óbitos e 118 pacientes que continuam internados, dos quais 75 pessoas estão em estado crítico, com riscos de morte, conforme noticiou O Povo de 30/1/13.

Os fatos objetivados revelam uma sucessão de erros de natureza pessoal, operacional, material, estrutural, conceptual etc., e de abstração de elementares princípios de segurança que atropelaram o mais elementar bom senso, motivando falhas que poderiam estancar o andamento e a consumação da tragédia.

Pelo que se verifica, estamos diante de uma multiplicidade de causas e de responsabilidades que, na modesta opinião desse perito, são direcionadas para a banda Gurizada Fandangueira e, sobretudo, para a administração da boate Kiss e órgãos públicos, nomeadamente a prefeitura e o corpo de bombeiros.


2. A ORDEM CRONOLÓGICA DA CORRENTE DOS ACONTECIMENTOS

O evento primeiro na corrente dos acontecimentos ocorreu por volta de 2h45min., no início de um show pirotécnico no palco da boate, no qual o vocalista da banda, Marcelo Santos, aparece soltando um artefato pirotécnico de mão – um sinalizador “Sputnik”, vedado para utilização em ambientes confinados, observando-se a emissão de faíscas ígneas com mais de um metro de altura, que se projetam pela extremidade superior do artefato.

Saliente-se que a boate tem forro falso rebaixado, revestido, externamente, por isolamento acústico – manta celular de espuma corrugada de poliuretano –, material de alta combustibilidade que pode sustentar o fogo e permitir o seu aumento, como efetivamente ocorreu. A par disso, o palco é sobrelevado em relação à rés do chão, o vocalista estava em pé e com o braço estirado para cima, minimizando a distância entre a fonte de calor e o forro combustível, de modo que era previsível as faíscas do sinalizador alcançarem o revestimento acústico, criando o foco inicial do fogo.

Verificada a instalação da eclosão do incêndio, momento em que o volume de fogo era incipiente no revestimento acústico do forro e restrito a um setor do palco, o incêndio poderia facilmente ser extinto. De imediato, o vocalista da banda tentou apagar as chamas com um extintor de incêndio, mas, lamentavelmente, o extintor não funcionou, ação esta que teria sido intentada pela segunda vez por um segurança da boate com outro extintor, repetindo-se a cena, descumprindo a função que dele legitimamente se espera, possibilitando a propagação e a generalização do incêndio.

Devido à combustibilidade e à disposição ondulada das mantas do isolamento acústico do forro, aumentando a superfície específica e a sua conseqüente aeração, o fogo se alastrou naturalmente, precipitando material superaquecido, fundido e aglomerado em combustão sobre as pessoas, provocando queimaduras de variados graus. Simultaneamente, como produto da combustão do poliuretano, eram emitidos grandes volumes de massas gasosas superaquecidas, carregadas de monóxido de carbono e cianureto em menor proporção, com efeitos triplamente letais para a vida animal.

Um detalhe importantíssimo: nos primeiros momentos da generalização do fogo, até mesmo quando o fogo já se expandia para além da área do palco, essas massas gasosas somente se acumulavam junto ao forro, formando, horizontalmente, um colchão elevado de fumaças na superfície do forro, e nas partes mais altas das paredes, sem afetar as partes mais inferiores onde estavam as pessoas  – em tese, dando tempo para a evacuação, pelo menos, da maior parte do contingente. Contudo, uma série de fatores obliterou o simples procedimento para a preservação da incolumidade das pessoas, tais como a falta de comunicação entre os seguranças da retaguarda e os da porta de entrada. Esses, demorando a reconhecer a situação ainda restrita à área do palco, impediram a primeira leva de pessoas de se ausentar pela única porta da boate, a qual, por sua vez, turbou a passagem dos que estavam mais atrás. Criou-se então o gatilho para a instalação do caos, devido à superlotação, à falta de portas de emergência, de cortinas aéreas para saída das massas de fumaças, de um plano de fuga, ausência de sinalização e de iluminação de emergência, etc., tudo isso causando pânico, com as pessoas aos gritos de “fogo”, correndo aleatoriamente, trombando umas nas outras, num autêntico salve-se quem puder.


3. DE OUTROS ELEMENTOS

A utilização de fogos de artifício em ambiente confinado é prática assaz perigosa, que reclama a utilização de artefato com chama “fria” e de menor projeção, assim mesmo, sempre com a presença de bombeiros devidamente instrumentalizados.

Na boate Kiss, fizeram tudo ao contrário.

O incêndio, pelo que se depreende, poderia ter sido extinto na sua etapa inicial, caso um dos dois extintores tivesse cumprido a função que deles se esperava.

Afora os fatores estruturais contribuintes aqui declarados, em tese, a tragédia humana não teria ocorrido ou seria minimizada se, inicialmente, não tivesse ocorrido o encurralamento dos frequentadores e a sua liberação somente a posteriori, no “momento sem retorno”, quando a maior parte das vítimas já estava vencida pelos efeitos deletérios do calor e da fumaça tóxica.

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Ao fim, indaga-se qual seria a função do alvará de funcionamento da prefeitura e da licença de funcionamento e prevenção de incêndio do corpo de bombeiros, vez que, um veículo, v.g, só está autorizado a trafegar quando determinadas condições legais são atendidas.

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Sobre o autor
Ranvier Feitosa Aragão

Engenheiro químico em Fortaleza (CE). Perito criminal. Especialista em perícias de incêndios e explosões.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAGÃO, Ranvier Feitosa. A tragédia de Santa Maria na visão de um perito criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3501, 31 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23607. Acesso em: 29 mar. 2024.

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