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Responsabilidade do Estado por atos lícitos: do modelo liberal ao sistema solidarista

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Diz-se que um sujeito causou um dano após ter havido a decisão de responsabilizá-lo, de modo que o dano não é, em si, como categoria ontológica, ressarcível ou irresarcível, justo ou injusto. A seleção quanto à indenizabilidade do dano apresenta caráter menos jurídico e mais ético, político e filosófico.

Resumo: A partir das transformações no conjunto de fundamentos éticos da responsabilidade do Estado, consolidou-se na doutrina o entendimento de que o Poder Público deve reparar os danos causados a particulares, ainda que a atuação administrativa haja sido lícita e legítima. Contudo, a matéria encontra tratamentos díspares na jurisprudência brasileira, sendo possível encontrar inúmeros julgados que denegam pleitos indenizatórios com base na licitude do comportamento da Administração. Considera-se que, embora a atual expansão das fronteiras da responsabilidade estatal figure como instrumento efetivo de amparo às vítimas de danos injustos, a plausibilidade dos pedidos indenizatórios deve ser aferida com cautela, a fim de evitar o fomento de uma cultura de excessiva litigiosidade e vitimização social. Como resultado do trabalho, amparado na pesquisa bibliográfica, verifica-se a presença de todos os requisitos constitucionais necessários para a responsabilização objetiva do Estado por atos lícitos, com fundamento na teoria do risco administrativo, no princípio da solidariedade e na repartição social dos encargos.

Palavras-chave: Responsabilidade do Estado. Atos lícitos. Responsabilidade civil.

Sumário: Introdução. 1. Responsabilidade do Estado e contemporaneidade. 1.1. Os contornos jurídicos da responsabilidade do estado. 1.2. Da culpa ao risco: fundamentos axiológicos da responsabilidade do Estado. 2. Responsabilização objetiva do Estado por atos lícitos. 2.1. O princípio da legalidade e os atos lícitos: correlações entre legalidade e licitude no âmbito da administração pública. 2.2. A legalidade como parâmetro de controle dos atos administrativos. 2.3. Sacrifício de direito e responsabilidade do estado: a superação da doutrina de Alessi. 2.4. Do modelo liberal à solidariété sociale: a responsabilização do Poder Público por atos lícitos no sistema solidarista. 2.5. A presença dos requisitos suficientes para a responsabilização do estado por atos lícitos. Considerações finais.


INTRODUÇÃO

O modelo contemporâneo de Estado apresenta como uma de suas principais notas distintivas a limitação jurídica de sua atuação, quer pelo direcionamento das suas atividades para a persecução de determinados fins, quer pelo reconhecimento de direitos e garantias dos cidadãos frente ao Poder Público.

No paradigma do Estado Liberal de Direito, enfatizava-se a liberdade de todos, ou seja, todos seriam livres, proprietários e iguais, num sistema alicerçado no império das leis, na separação de poderes e no enunciado dos direitos individuais. Contudo, a conquista do ideal de liberdade em face do Estado reduziu-se ao campo meramente formal. Foi apenas com o surgimento do paradigma do Estado Social que se objetivou a materialização desses direitos anteriormente formais.

A Constituição Brasileira de 1988 consagrou o dirigismo intervencionista do Estado, atribuindo-lhe funções concretizadoras dos princípios constitucionais, tendo em vista a diretriz geral do bem-estar. O direito passou a ser visto como um sistema de regras e princípios que consubstanciam valores fundamentais, em conformidade com a pré-compreensão hermenêutica do Poder Constituinte, sendo também previstos programas e fins realizáveis até o limite do possível, tudo de modo a satisfazer um mínimo material de igualdade.

Em razão da adoção, no ordenamento constitucional brasileiro, do modelo de Estado Democrático de Direito, supera-se uma fase marcadamente declaratória de direitos, afeita aos clamores liberais, e, para além da ênfase garantista do Estado Social, vivencia-se uma época de índole concretizadora, voltada, sobretudo, ao problema da efetividade dos direitos. Nesse contexto, o aparelho estatal experimenta um momento de ampliação extraordinária da sua seara de atuação, máxime pela necessidade de abranger tarefas vinculadas aos novos fins econômicos e sociais que lhes são atribuídos, assumindo presença cada vez maior nos assuntos da coletividade.

Sendo assim, potencializa-se a possibilidade de que o Estado, por conduta comissiva ou omissiva, contrária ao ordenamento jurídico ou nele fundamentada, cause prejuízos patrimoniais a indivíduos determinados, dotados de crescente consciência cidadã de seus direitos e da possibilidade de defendê-los, o que enseja um expressivo aumento dos litígios em matéria de responsabilidade do Poder Público. Cumpre indagar, portanto, sobre a feição dessa responsabilidade extracontratual do Estado por danos causados aos particulares, em decorrência do exercício das atividades públicas constitucionalmente atribuídas ao poder estatal.

O estudo da responsabilidade civil sempre foi permeado por incertezas e polêmicas, ante a uma variedade avassaladora de posições e interpretações inconciliáveis, de modo que, embora de inquestionável importância e utilidade, o instituto carece de estudos sistematizadores. Não é à-toa que a célebre inscrição sobre a porta do Inferno de Dante seria, para Henri De Page[1], a advertência inevitável aos que escolhem analisar os meandros da responsabilidade civil: “Deixai toda esperança, ó vós que entrais”. 

Ante as inúmeras possibilidades de abordagem da matéria, realizou-se um recorte temático para enfocar uma questão específica e relativamente recente. Com efeito, a partir das transformações no conjunto de fundamentos éticos da responsabilidade do Estado, consolidou-se na doutrina o entendimento de que o Poder Público deve reparar os danos causados a particulares, ainda que a atuação administrativa haja sido lícita e legítima.

Contudo, a quaestio iuris encontra tratamentos díspares na jurisprudência brasileira, em afronta à segurança jurídica. Nossos juízes ainda não assimilaram a tese de modo plena, sendo possível encontrar inúmeros julgados que denegam pleitos indenizatórios com base na licitude do comportamento da Administração, em que pese seja reconhecida a existência de um prejuízo causado ao litigante. Configura-se, desse modo, o pernicioso cenário em que a resolução judicial do conflito apresenta expressivo caráter lotérico, diante da indefinição dos tribunais brasileiros quanto à plausibilidade da indenização por ato lícito da Administração Pública.

A importância da temática atinente à responsabilidade do Estado evidencia-se não apenas do ponto de vista individual, considerando que o reconhecimento de danos indenizáveis resguarda situações subjetivas dos cidadãos lesados, mas também do ponto de vista coletivo, já que o regime das indenizações acarreta forte impacto sobre as práticas do Poder Público e sobre as finanças públicas. Ademais, as demandas indenizatórias propostas em face do Estado, consideradas em conjunto, gozam de ampla repercussão social, eis que costumam discutir valores vultosos, podendo constituir um nicho bastante proveitoso para advogados preparados e uma fonte considerável de perda de recursos financeiros por parte do Poder Público.

A estrutura deste trabalho é singela: o capítulo inicial introduz conceitos e ideias mais genéricos a respeito da responsabilidade do Estado, sobre os quais se constrói a argumentação do capítulo seguinte, dedicado ao problema específico da responsabilidade do Estado por atos lícitos.

No primeiro capítulo, enfrenta-se a questão atinente ao conceito da responsabilidade civil, incluindo a responsabilidade estatal, para então apontar as dificuldades referentes à falta de consenso sobre pontos cruciais da matéria. Em seguida, aborda-se a fundamentação axiológica do instituto, o que demanda um exame da sua evolução histórica. Evidencia-se, igualmente, o movimento de objetivização da responsabilidade civil, mostrando-se a atual prevalência da teoria do risco administrativo e da repartição solidária dos encargos sociais.

O segundo capítulo examina a plausibilidade da indenização estatal por atos lícitos. Inicialmente, explica-se como deve ser entendido o conceito de licitude na seara administrativa, a partir da evolução história do conteúdo e dos limites do princípio da legalidade, atualmente compreendido como vinculação da Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo. Ademais, expõe-se que o princípio da legalidade apresenta profunda relevância prática, pois tem funcionado como um dos mais importantes parâmetros de controle da atividade administrativa. Em seguida, demonstra-se que a doutrina italiana de impossibilidade de responsabilização do Poder Público por atuação lícita encontra-se superada, em decorrência da própria transformação no que se refere aos fundamentos da responsabilidade do Estado, embora a experiência pretoriana ainda não acompanhe os jurisconsultos no ritmo desejado, eis que numerosos julgados continuam a denegar pleitos indenizatórios com base na licitude do ato administrativo ensejador do dano. Por fim, examina-se se estão presentes os requisitos constitucionais e doutrinários suficientes para que o Poder Público possa ser responsabilizado por atuação lícita.

A metodologia empregada para a elaboração do trabalho consistiu na pesquisa bibliográfica de doutrina nacional e estrangeira, bem como no exame de decisões judiciais de tribunais brasileiros.


1 RESPONSABILIDADE DO ESTADO E CONTEMPORANEIDADE

Este capítulo objetiva apresentar aspectos gerais do assunto responsabilidade civil, sempre traçando um paralelo entre a responsabilidade civil em geral e a responsabilidade do Estado. As noções aqui expostas possuem caráter propedêutico, alicerçando o entendimento da argumentação desenvolvida ao longo do capítulo seguinte. De início, discorre-se sobre a demarcação do conceito de responsabilidade civil, alertando-se para a equivocidade de alguns termos associados ao instituto. Em seguida, são analisados os fundamentos axiológicos da responsabilidade estatal, examinando-se o movimento direcionado à objetivização do dever de indenizar.  

1.1 Os contornos jurídicos da responsabilidade do Estado

O entendimento do tema deste estudo exige que se delimite o conceito do termo responsabilidade. Em seu sentido etimológico, o vocábulo exprime a ideia de obrigação, encargo, contraprestação.[2] Em sentido jurídico, designa o dever de reparar o prejuízo decorrente da violação da esfera de direitos de outrem, ou seja, a obrigação imposta ao causador de um dano injusto de ressarcir terceiros prejudicados.

De Plácido e Silva[3] ressalta que toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade, fazendo surgir a dificuldade de se estabelecer um conceito para o instituto, que pode ser abordado por diferentes concepções jurídicas. Nas palavras do estudioso, a responsabilidade “revela o dever jurídico, em que se coloca a pessoa, seja em virtude de contrato, seja em face de fato ou omissão, que lhe seja imputado, para satisfazer a prestação convencionada ou para suportar as sanções legais, que lhe são impostas”.

Desse modo, a responsabilidade pode ser considerada abstratamente como um instituto não exclusivamente jurídico, mostrando-se cabível apontar a existência, por exemplo, de uma responsabilidade moral. Nesse diapasão, Cretella Júnior[4] observa: “A responsabilidade jurídica nada mais é do que a própria figura da responsabilidade, in genere, transportada para o campo do direito, situação originada por ação ou omissão de sujeito de direito público ou privado que, contrariando norma objetiva, obriga o infrator a responder com sua pessoa ou bens”.   

Afinal, o principal objetivo da ordem jurídica é proteger o lícito e reprimir o ilícito[5], ao menos no plano do dever-ser, desconsideradas as distorções que os modelos ideais experimentam quando interagem com a falibilidade humana. Assim, ao tempo em que são tuteladas as condutas humanas conforme o direito, também reprimidas as atividades que o contrariam. Para tanto, o ordenamento jurídico estabelece deveres, consistentes em fazer (facere) ou não fazer (non facere), derivados do dever geral de não prejudicar ninguém, expresso pelo Direito Romano na máxima neminem laedere.[6]

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Caio Mário da Silva Pereira[7] expõe que a responsabilidade civil emerge tanto de um sentimento social, pelo qual a ordem jurídica não admite a ofensa ao direito alheio, quanto de um sentimento humano, daí surgindo a ideia de garantia de reparação para a vítima. É esta a conceituação oferecida pelo doutrinador: “A responsabilidade civil consiste na efetivação da responsabilidade abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica que se forma. Reparação e sujeito passivo compõem o binômio da responsabilidade civil, que então se enuncia como o princípio que subordina a reparação à sua incidência na pessoa do causador do dano”.[8]

Nota-se, na transcrição acima, a essencialidade da identificação do sujeito causador do dano para a configuração da responsabilidade civil. Não basta ao direito positivo reconhecer a existência do dano: para além disso, impõe-se a atribuição do evento danoso a um sujeito, constituindo-se a responsabilidade jurídica. A partir daí, como consequência, a ordem jurídica deve impor sanções ao autor do prejuízo e concretizá-las, de modo a resguardar os interesses da vítima.

Sobre a necessidade de se estabelecer o sujeito passivo no mecanismo da responsabilidade, ensina Aguiar Dias[9], alicerçado em G. Marton: ”[...] representa-se exteriormente toda responsabilidade precisamente pelo esquema sugerido pela etimologia, a dizer, na feição de interrogatório. O órgão emissor ou zelador na norma indaga e o violador responde, tal como figura Marton: 'por que faltaste a teu dever, praticando (ou omitindo) tal ato?', ao que responde o interrogado de forma satisfatória, caso em que é desobrigado, ou de maneira irrelevante, e, então, é condenado [...] a responsabilidade, excepcionalmente, surge também em casos em que o agente não responde, ou por impossibilidade de discernir, ou porque não é mesmo admitido a responder, justificando-se”.

A depender da natureza da norma que prevê a sanção ao infrator de um dever, a responsabilidade pode ser penal ou civil. Constitui-se a primeira quando há a tipificação, como crime ou contravenção, do ato danoso praticado, com vistas a restaurar a harmonia social rompida pela ofensa a um bem jurídico penalmente tutelado. Já a segunda tem origem no dever geral de não lesar ninguém, tendo por escopo a salvaguarda de direitos dos cidadãos.

Interessa a este estudo apenas a denominada “responsabilidade civil do Estado”. Advirta-se, contudo, que é redundante o uso do adjetivo civil para qualificar a responsabilidade estatal, considerando que a responsabilização penal do Estado implicaria, contraditoriamente, a cominação de sanção penal à própria sociedade que o compõe e em defesa da qual existe o Direito Penal.[10]

Relevante, igualmente, verificar se a responsabilidade origina-se de um liame contratual, tendo havido o descumprimento de uma das obrigações pactuadas, ou se constitui consequência da infração a um preceito geral de não prejudicar outrem. Delineia-se, na primeira hipótese, a responsabilidade contratual, e, na segunda, a responsabilidade extracontratual ou aquiliana.

 Para que a responsabilidade civil se estabeleça, faz-se necessária a presença de alguns pressupostos, que variam de acordo com a teoria adotada. No entanto, há determinados elementos que são comuns às diversas maneiras de compreender o instituto: a existência de uma ação comissiva ou omissiva, a ocorrência de um dano e o nexo de causalidade entre ação e dano. Ademais, exige-se o elemento culpa nos casos de responsabilização subjetiva, o que é dispensado quando a responsabilidade for objetiva.

Aguiar Dias[11] observa, amparado na doutrina francesa, que houve, desde o início do século XX, uma crescente absorção das regras jurídicas pelo princípio da responsabilidade, fazendo reinar a incerteza diante da impossibilidade do legislador de lidar com tão espantoso desenvolvimento. A solução possível para que as transformações do instituto se operem com a velocidade desejável, em caminhada pari passu com a evolução dos anseios sociais, acaba sendo a elaboração de normas legais suficientemente maleáveis para a atuação do Judiciário. O direito da responsabilidade civil é - e não pode deixar de ser - marcadamente jurisprudencial.

O farto emprego da doutrina civilista da responsabilidade neste trabalho, tanto neste tópico quanto em outras ocasiões, tem em conta que o regime jurídico da responsabilidade do Estado revela-se fortemente influenciado pelos institutos do direito civil, embora não sejam negadas as devidas peculiaridades. Nessa toada, patenteia Charles Debbasch[12]: “O direito civil da responsabilidade foi e continua a ser uma fonte de inspiração para o juiz administrativo. Ela apresenta uma série de soluções-modelo para os problemas surgidos, como as regras relativas à indenização ou à imputação dos danos” [tradução nossa].[13]

Passando ao exame da doutrina administrativista, urge evidenciar que o presente estudo cuida da responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado, entendida como “[...] a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos”.[14]

No Brasil, compreendia-se que o Estado apenas poderia ser responsabilizado subjetivamente, até a positivação da teoria da responsabilidade objetiva do Poder Público na Constituição de 1946, o que se originou do processo de redemocratização do País, com a valorização dos direitos e liberdades individuais. Assim, estabeleceu-se que o Estado seria responsabilizado independentemente da demonstração de culpa na atuação de seus agentes, concepção mantida na Constituição de 1988, conforme previsão do art. 37, §6°: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”.

Desse modo, para configurar a responsabilidade estatal é preciso existir um dano advindo de um fato administrativo. Exige-se, igualmente, o nexo causal, elemento objetivo que indica a relação de causa e efeito entre a ação e o dano, de modo a estabelecer que o fato imputado ao Estado efetivamente causou o dano.

Em que pese a jurisprudência e a doutrina francesas tenham logrado traçar parâmetros fundamentais para a aplicação da responsabilidade civil extracontratual, incluindo a responsabilidade estatal, as peculiaridades dos ordenamentos jurídicos de cada país e o surgimento de novos problemas demandam a investigação contínua acerca das potencialidades e dos limites do instituto em cada realidade jurídico-social. Assim, forçoso reconhecer que muitos pontos ainda não puderam ser devidamente elucidados e, a par disso, novos questionamentos exsurgem, num ambiente de acirradas polêmicas doutrinárias e jurisprudenciais.

A expansão das fronteiras da responsabilidade civil não tem sido acompanhada de um trabalho doutrinário que confira sistematização suficiente à matéria. Enquanto isso, a jurisprudência, ante a premente necessidade de resolver lides, vem levando a cabo a tarefa de aplicar os preceitos de responsabilidade civil de modo pontual, ensejando o surgimento de severas inconsistências e incongruências. Para Schreiber[15], “o diálogo entre a doutrina e a jurisprudência em matéria de responsabilidade civil lembra uma babel de idiomas desconexos, em que não se chega a qualquer resposta por total desacordo sobre as perguntas.”

A ampliação demasiada do conceito de dano ressarcível mostra-se capaz de comprometer a própria razão de ser da responsabilidade civil, fazendo recrudescer perigosamente a litigiosidade e a vitimização no meio social. Diante do topos de que nem todo dano pode ou deve ser reparado, a questão central do direito da responsabilidade civil passou a ser o espinhoso estabelecimento de critérios que justifiquem a imputação a outrem de um prejuízo sofrido.

Nesse contexto, Yussef Cahali[16] aponta, como fator complicador na seara da responsabilidade do Poder Público, a nossa atual estrutura estatal, decomposta em pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, numa realidade híbrida. Em seguida, o autor descreve uma série de questões ainda não satisfatoriamente resolvidas, como a resistência jurisprudencial ao reconhecimento de novos danos acolhidos pela doutrina e a indefinição quanto à possibilidade de que o agente público responsável pelo dano integre a ação indenizatória, para fins de discussão, de logo, a respeito do direito de regresso da Administração Pública.

1.2 Da culpa ao risco: fundamentos axiológicos da responsabilidade do Estado

A responsabilidade deve ser compreendida como um fenômeno dinâmico, que acompanha as transformações da sociedade, o que não se incompatibiliza com o seu escopo de atuar em prol da segurança e da estabilidade das relações sociais.

A teoria clássica da responsabilidade civil tinha por fundamento o elemento culpa, cuja definição sempre se mostrou tormentosa, assim como a ambiguidade do termo faute provocou intensos debates na doutrina francesa.[17]

Após discorrer sobre a divisão em culpa lato sensu (dolo) e culpa stricto sensu (imprudência, negligência e imperícia), Carlos Roberto Gonçalves[18] posiciona-se: “Em qualquer de suas modalidades, entretanto, a culpa implica a violação de um dever de diligência, ou, em outras palavras, a violação de um dever de previsão de certos fatos ilícitos e de adoção das medidas capazes de evitá-los. O critério para aferição da diligência exigível do agente, e, portanto, para caracterização da culpa, é o da comparação de seu comportamento com o homo medius, do homem ideal, que diligentemente prevê o mal e precavidamente evita o perigo”.

Caio Mário[19], tratando da responsabilidade civil em geral, sublinha a tendência histórica no sentido de se estabelecer a responsabilidade objetiva, mudando-se o enfoque do problema: do autor do dano para a vítima, da responsabilidade para a reparação, da culpa para o risco. Invocando Eugène Gaudamet, Ripert e Saleilles, o doutrinador enfatiza o movimento pela resolução dos conflitos atinentes à responsabilidade civil simplesmente com a causalidade, pois a teoria da responsabilidade subjetiva encontra a dificuldade prática de impor à vítima a prova do elemento culpa. Em coro, Carlos Roberto Gonçalves[20] volta a atenção para o retorno ao objetivismo da responsabilidade civil, a partir do entendimento de que o fundamento culpa é insuficiente para regular todos os casos em matéria de responsabilidade.

Sobre o fenômeno, Guilherme Couto de Castro[21] esclarece que, modernamente, a elaboração do conceito de culpa civil como pressuposto do dever de indenizar liga-se ao liberalismo do século XVIII, destacando-se como marco inicial dessa corrente o Código Civil Napoleônico. Contudo, a tendência passou a inverter-se com o avanço da Revolução Industrial e a multiplicação de casos em que a exigência da comprovação de culpa mostrava-se injusta: “Basta apresentar a equação nos seguintes termos: de um lado, o responsável pela conduta sem falha, mas que provocou o dano; de outro, lado, o lesado, a vítima, que, normalmente, também não terá agido com culpa. Se nenhum dos dois é culpado, é socialmente mais justo atribuir o ônus indenizatório àquele que cria o risco (teoria do risco criado) e, outras vezes mais ainda, provoca o risco e daí obtém um proveito (teoria do risco proveito)”.[22]

Assim, abrandou-se, pouco a pouco, o rigor de se exigir a prova da culpa do agente, facilitando-se a prova a partir das circunstâncias do fato, multiplicando-se os casos de presunção absoluta de culpa e admitindo-se um maior número de casos de responsabilidade contratual (como, por exemplo, nos transportes em geral, bastando à vítima provar que houve inadimplemento contratual por não ter chegado incólume ao seu destino). Por fim, adotou-se a teoria do risco, que permitia francamente a responsabilidade com base apenas na relação de causalidade entre conduta e dano.[23]

No âmbito da teoria da responsabilidade da Administração Pública, a evolução do pensamento também se realizou segundo essa orientação: da responsabilidade culposa para a responsabilidade objetiva. Entretanto, é preciso frisar que o processo histórico, tanto na responsabilidade civil como gênero, quanto na responsabilidade estatal, não ocorreu de forma linear, de modo que o surgimento de uma nova fase não implicou, necessariamente, a total superação do paradigma anterior.

Desse modo, ainda convivem, contemporaneamente, os modelos de responsabilidade civil objetiva e subjetiva. À guisa de ilustração, tem-se que a responsabilidade estatal por omissão continua tendo por pressuposto o elemento culpa, para a doutrina amplamente majoritária. 

Numa primeira fase da doutrina da responsabilidade estatal, na época do Estado absolutista, prevalecia a máxima the king can do no wrong. Logo, a irresponsabilidade aparecia como axioma, considerando-se a responsabilização pecuniária do Estado um entrave perigoso à execução de seus serviços.

Numa segunda fase, de cunho civilístico, marcada pelo individualismo liberal, procurou-se solucionar o problema pela aplicação das teorias do Direito Civil. Distinguiam-se, neste momento, os atos do Estado praticados no exercício do seu poder de império e do seu poder de gestão, revelando-se possível a responsabilização apenas quando da realização destes, eis que administrando e administrado figurariam no mesmo plano. Contudo, a dificuldade de se distinguir entre um ato e outro acabou por abrir espaço para a teoria da culpa civil, segundo a qual o Estado seria responsável por atos ilícitos quando se demonstrasse sua culpa in eligendo ou in vigilando. Uma vez mais, a solução mostrou-se insatisfatória, diante das dificuldades práticas de identificar o causador do dano.

Numa terceira fase, ocorre a publicização do dever de indenizar, pretendendo-se a desvinculação da doutrina civilista da culpa. Surge, então, a teoria da culpa administrativa, ou faute du service, responsabilizando-se o Estado pelo funcionamento defeituoso do serviço, independentemente de culpa do agente público. Desabrocha, igualmente, a teoria do risco administrativo, tipicamente objetiva, satisfazendo-se com a existência do dano ressarcível e do nexo de causalidade. O risco administrativo não implica, entretanto, a responsabilização absoluta do Estado, como pretende a teoria do risco integral, abandonada na prática, por não permitir a alegação de excludentes de responsabilidade.

Tal como é hoje compreendida, a responsabilidade objetiva estatal apresenta-se como consectário do reconhecimento do risco administrativo, quer dizer, da prática potencial, por parte do Estado, de condutas danosas aos particulares, em virtude do exercício das funções estatais, facultando-se ao Poder Público a faculdade de alegar excludentes de responsabilidade, como culpa exclusiva da vítima, caso fortuito, força maior e ato-fato de terceiro.

Entende-se atualmente que o Estado, enquanto pessoa jurídica, sujeito de direitos e deveres, tanto quanto as pessoas naturais, revela-se capaz de ocasionar danos aos particulares. O reconhecimento de que o Estado se submete ao Direito, podendo ser sancionado pelas lesões geradas, associa-se à noção de Estado de Direito, a partir da qual ganha força a valorização do cidadão, como observa Norberto Bobbio[24]: “É com o nascimento do Estado de Direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado Despótico, os indivíduos singulares só têm deveres, não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de Direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de Direito é o Estado dos cidadãos”.

Frise-se que o esforço em prol da efetiva aplicação da cláusula constitucional de responsabilização estatal insere-se numa tendência de proteção dos cidadãos em face do poder estatal. Sobre o assunto, Tomás Ramón Fernández[25] patenteia: “A luta pelo controle do poder e por sua sujeição ao direito é uma luta permanente e, permanentemente também, inacabada, porque, de certa forma, é em si mesma uma luta impossível. A essência do poder tem raízes, precisamente, em sua capacidade de impor-se sem limitações. Por isso, justamente, inquieta-se sempre que parece dominado e adota novas formas que o fazem, outra vez, inapreensível [tradução nossa]”.[26]

 Por ser mais poderoso, o Estado deve arcar com o risco decorrente de sua atuação sobre a esfera jurídica dos particulares: a uma maior quantidade de poder há de corresponder um maior risco. Assim, reconhecido o risco administrativo e aceita a ideia de que a conduta é imputável ao Estado, enquanto pessoa jurídica de Direito Público interno, surge a responsabilização objetiva do Poder Público, independentemente da demonstração de culpa, consoante vaticina Amaro Cavalcanti[27]: “[...] assim como a igualdade dos direitos, assim também a igualdade dos encargos é hoje fundamental no direito constitucional dos povos civilizados. Portanto, dado que um indivíduo seja lesado nos seus direitos, como condição ou necessidade do bem comum, segue-se que os efeitos da lesão, ou os encargos de sua reparação, devem ser igualmente repartidos por toda a coletividade”. 

A responsabilização do Estado por danos ocasionados aos cidadãos acaba por implicar a responsabilização da sociedade como um todo, sendo reconhecida a necessidade de que todos suportem os encargos oriundos da atividade estatal. A responsabilidade objetiva do Estado funda-se, pois, em última análise, no princípio da isonomia, proporcionando a distribuição equânime dos encargos públicos, os quais advêm da atuação estatal e têm como razão de ser a busca pelo bem comum.

O acatamento da teoria da responsabilidade objetiva do Estado fundamenta-se especialmente no princípio da solidariedade, insculpido na Constituição Brasileira no art. 3°, inciso I, dispositivo segundo o qual é objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Para adequar-se à complexidade da vida social e atender às exigências de justiça distributiva, o sistema da culpa, marcadamente individualista, evoluiu para o sistema solidarista da reparação do dano. Sobre a solidariedade social, Bodin de Moraes[28] esclarece: “Se a solidariedade fática decorre da necessidade imprescindível da coexistência humana, a solidariedade como valor deriva da consciência racional dos interesses em comum, interesses esses que implicam, para cada membro, a obrigação moral de ‘não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja feito’ [...] É o conceito dialético de ‘reconhecimento’ do outro”. 

Marcio Diniz[29] sublinha que a solidariedade implica a compreensão de que as ações humanas são transcendentes, repercutindo sobre os membros da coletividade, constatação da qual decorre a necessidade de apoio e cuidado dos sujeitos uns para com os outros. O doutrinador aduz, ainda, que a solidariedade social corresponde a uma ideia ligada ao direito público da modernidade política: “Ganha relevo, então, compreendê-la não só como conceito ético, ou virtude essencial à vida em comunidade, mas também como princípio jurídico: de exortações morais de ações solidárias gratuitas e voluntárias (philia, humanitas, ágape, benevolentia, etc.), avança-se para exigências tuteladas e garantidas pelo Direito”.[30]   

Aliás, é interessante notar que a ideia de solidariedade inspira todo o texto constitucional, surgindo também em outras passagens. À guisa de exemplificação, o art. 40, caput, da Carta Magna, prevê a existência de regime de previdência de caráter contributivo e solidário aos servidores públicos, e, por seu turno, o art. 225 trata da solidariedade de forma implícita, ao dispor que incumbe à coletividade o ônus de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

Ressalte-se que a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, consagrada pela Revolução Francesa, prevê o princípio de que uns cidadãos não devem sofrer mais do que outros os encargos impostos pelo interesse comum em razão da atividade estatal, devendo a responsabilidade pelos danos sofridos por certos particulares recair sobre toda a coletividade, mediante a devida indenização.[31]

Responsabilizar o Estado pelos danos causados aos cidadãos atende também ao princípio da moralidade, pois “a atividade dos administradores, além de traduzir a vontade de obter o máximo de eficiência administrativa, terá ainda de corresponder à vontade de viver honestamente, de não prejudicar outrem e de dar a cada um o que lhe pertence”.[32]

O princípio da moralidade diz respeito ao que os cidadãos esperam da Administração Pública. A norma apresenta tanto uma dimensão negativa, impondo limites ao exercício da discricionariedade e permitindo a correção dos atos praticados em desvio de finalidade, quanto uma dimensão positiva, relacionada ao dever de bem gerir a coisa pública, desdobrando-se em deveres que se fundamentam também em outros princípios informadores do Direito Administrativo, como: agir impessoalmente, garantir a ampla publicidade dos atos, pautar-se com razoabilidade, motivar os atos e decisões, agir com eficiência.

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Sobre o autor
Márcio Anderson Silveira Capistrano

Analista Processual do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP); Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Pós-graduado em Direito Administrativo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAPISTRANO, Márcio Anderson Silveira. Responsabilidade do Estado por atos lícitos: do modelo liberal ao sistema solidarista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3530, 1 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23838. Acesso em: 28 mar. 2024.

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