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Peculato em prol da Administração Pública: contraditio in terminis

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22/03/2013 às 10:22
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Para a configuração do peculato, não basta a vontade de apropriar, desviar, ou furtar. É imperiosa a finalidade de haver proveito próprio ou alheio.

Resumo: Este trabalho tem o escopo de demonstrar a patente contradição quando se afirma que comete o delito de peculato quem utiliza o bem a favor da Administração. Não é uma tese, em verdade, para beneficiar os que amiúde violam os preceitos legais. É, com efeito, uma concretização de justiça, evitando-se que os possíveis infratores da lei civil/administrativa sejam sancionados com os rigores do Código Penal.

Palavras-chaves: Peculato. Administração beneficiada. Contradição.


1. INTRODUÇÃO

Não há dúvidas que a corrupção pública é um indigesto problema que assola o cenário nacional. Tanto pior: as notícias de impunidade causam um misto de revolta e sensação de desamparo à população, mormente porque os “escândalos” alcançam todos os “Poderes”[1]: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Por seu turno, é clarividente a necessidade de respostas enérgicas, pois que a corrupção além de causar o descrédito do País no âmbito internacional, impede (por aumentar a escassez de recursos) que a população exerça os direitos constitucionalmente assegurados, a exemplo da saúde e da educação.

Nesse contexto, alguns juristas, ao se depararem com a letra fria do art. 312 do Código Penal, argumentarão no sentido de que seja qual for o destino dado ao bem móvel, público ou particular, o funcionário público merece ser sancionado com as penas previstas no artigo.

Entretanto, tal asserto merece um pouco mais de reflexões. Com efeito, para que haja a compreensão do sentido de algo é mister a presença de um pré-conhecimento daquilo que se quer compreender.

Ocorre que para o jurista, notadamente o que atua na seara penal, esse “pré-juízo” não deve ser inquinado. Assim, não se pode querer sancionar com a Cártula Penal quaisquer condutas que firam o ordenamento jurídico.

Eis que uma questão se mostra interessante: o funcionário público que age em benefício da própria Administração comete o delito de peculato? A proposta do presente trabalho, pois, é traçar uma análise crítica sobre a questão ora aventada.

É preciso dizer, ainda, por imperioso, que se torna patente uma “inversão de valores”: o common law vem se calcando na positivação do direito pela norma legal. Ao revés, o civil law (forma de sistematização adotada por nós) vem percorrendo a vereda das decisões jurisprudenciais. Isso, então, explica a quantidade de jurisprudência exarada no presente trabalho.


2. ESCORÇO HISTÓRICO

Roma. O uso de moeda cunhada ainda não tinha sido introduzido. O gado (pecus), então, nos primeiros tempos, servia para realizar compras, pagar tributos e multas. Costumava-se, outrossim, oferecer tal espécie de animal em sacrifício aos deuses pagãos[2].

Século V a. c. Sérvio Túllio (Servius Tullius) introduz a utilização da moeda. Nela fora inserida a figura de bois. Assim, seja de forma simbólica ou não, é certo que o gado era uma das formas de expressão de riqueza[3].

É justamente daí, como bem lembra João Vieira de Araújo[4], que vem a origem da palavra “peculato”[5], derivada de pecus, consistente na subtração de coisas que pertenciam ao Estado, sendo reprimida como peculatus ou depeculatus[6]

Assinale-se, en passant, que ao erigir o peculato à figura de delito autônomo, o Direito Penal romano não o caracterizou pela qualidade especial do agente, podendo este ser funcionário público ou particular. O foco principal, todavia, era a qualidade do bem móvel (pública, religiosa ou sacra) sobre o qual recaía a ação, enfocando-o sempre como delito contra o Estado[7]. Só depois de certo tempo é que se tornou o furtum pecuniæ vel fiscalis[8].

Mencione-se, ainda, que malgrado o delito em comento ter pululado com a supracitada denominação entre os romanos, tanto o Código de Hamurabi como o Código de Manu já tratavam das subtrações de bens pertencentes ao rei, apenando o agente com a morte[9].

É de bom alvitre trazer ao lume que o peculato abrangia, além do furto, também a apropriação indébita, alcançando particularmente a quantia devida ao erário pelos funcionários encarregados da contabilidade, na soma resultante da tomada de contas (crimen de residuis): Lege Julia de residuis tenetur qui publicum pecuniam delegatum in usum aliquem retinuit, neque in eum consumpsit[10] (L. 4, §3º, 4, D. ad. leg. Jul. de peculatum).

A maior preocupação, ressalte-se, era impedir que houvesse dano ao erário, chegando-se, então, a considerar peculato toda fraude cometida contra o tesouro público, ainda que não representasse subtração ou desvio de dinheiro[11].

Há inúmeros exemplos dessa conduta delituosa: o fato de autoridades competentes para o recebimento de uma dívida em favor do erário romano perdoarem ilegalmente a referida dívida; a alteração do valor da moeda cunhada nas oficinas do Estado, utilizando-se liga diversa daquela estabelecida em lei; a hipótese de se cunhar moeda pública acima da quantidade autorizada, visando beneficiar os funcionários encarregados de tal função; a manipulação fraudulenta dos livros da contabilidade pública ou o seu desaparecimento[12].

O delito, todavia, é preciso dizer, não se limitou à subtração dos bens pertencidos ao Estado. Anota GALDINO SIQUEIRA que

Pela lex Julia peculatus, o crime passou a comprehender tambem o furto de coisas sagradas, e ainda o desvio de dinheiros privados confiados a depositarios publicos: non solum pecuniam publicam, sed etiam privatum peculatum facere (L. 9, §3º, eod tit.).[13]

A ação penal, no tocante ao peculato, podia ser interposta inclusive em relação aos herdeiros do agente.

O delito em exame foi reprimido inicialmente com a pena capital, ao lado do sacrilégio, passando-se, a posteriori, para a aplicação da interdictio aquæ et ignis[14], a deportação e o confisco.

A pena capital, entretanto, por ocasião do Império, voltou a ser aplicada ao peculato praticado pelos magistrados. Nessa época, as condutas mencionadas quando praticadas contra bens do Imperador também constituíam peculato, já que os bens deste se equiparavam aos do Estado.

Contra os fundos municipais, por seu turno, o peculato era punido com arrimo nos estatutos locais. No entanto, a partir de Trajano e Adriano, o peculato municipal foi equiparado ao público[15].

Também em Atenas os depositários das autoridades públicas que subtraíam dinheiro do Estado eram sancionados com a morte, sendo a pena capital substituída pela pecuniária no caso de o arrecadador incorrer em mora no recolhimento do dinheiro estatal.

Observa-se que a aplicação de penas cruéis aos peculadores fora marcante. Tal posição, aliás, fora mantida na Idade Média. Cite-se o exemplo do Código de Florença, no qual se previa que aquele que empreendesse fuga com dinheiro público deveria ser amarrado à cauda de um burro e arrastado pelas vias públicas da cidade[16].

Em Veneza, os condenados pelo crime de peculato tinham seus nomes esculpidos numa prancha de mármore, como infâmia eterna. Alguns estatutos, no entretanto, aplicavam as mesmas reprimendas destinadas aos ladrões. As reprimendas previstas para o referido delito foram mitigadas apenas com o advento do movimento humanista do século XVIII.

Na Espanha, as Partidas e as Recompiladas puniam rigorosamente o peculato perpetrado pelo tesoureiro, arrecadador e juiz, além dos cúmplices, cujo delito consistia em furtar dinheiro do erário. Os Códigos italianos (o das Duas Sicílias, de 1819; o Toscano, de 1853, e o Sardo, de 1859) também reprimiam com certo rigor o peculatário.

Em França, o delito atingiu índice muito alto e, por consectário, muitos peculatários foram condenados à morte. Os editos baixados em 1530, 1532 e 1540 determinavam que aquele que praticasse fraude nas finanças públicas deveria ser enforcado.

A Ordenança de 1629 disciplinou amplamente as diversas formas de subtração do dinheiro público, utilizando-se freqüentemente da pena de morte. O peculato foi ainda severamente reprimido durante o reinado de Luís XIV, com as Ordenanças de 5 de maio de 1690 e de 2 de junho de 1701.

Posteriormente, como a severidade da reprimenda não conseguiu arrefecer a prática de tal crime, as penas foram mitigadas, sendo inclusive decretada uma anistia geral para os acusados desse crime em 1717.

O Código Penal Francês de 1810, por sua vez, arts. 166 e segs, não deixou de reprimir aqueles que cometiam o crime de peculato. Entretanto, não fora utilizada tal denominação específica. Punia-se, em verdade, os abusos funcionais sob a genérica denominação de forfaiture (prevaricação).

As Ordenações Filipinas tratavam do peculato no Livro V, no Título LXXIV, sob a rubrica “Dos Officiaes del-Rey”, que lhe furtam, ou deixam perder sua Fazenda per malicia[17]. O Código de 1830, por sua vez, previu o aludido crime no Título VI (segunda parte), que tratava dos crimes contra o “thesouro publico e propriedade publica”, mais precisamente no artigo 170[18].

O Código de 1890 inseriu o peculato no Título V, atinente aos crimes contra a boa ordem e administração publica, nos artigos 221 a 223[19]. Os contínuos desfalques promovidos nos cofres públicos levaram o legislador penal a alterar várias vezes a supracitada norma, para clarear o seu conteúdo e majorar as penas, culminando por editar o Decreto 4.780, de 27 de dezembro de 1923, cujos artigos 1.º a 4.º passaram a fazer parte da Consolidação das Leis Penais, como artigos 221, 222 e 223.

O Código de 1940, embora seguisse o diploma italiano como modelo básico, dele se afastou, não distinguindo bens públicos e particulares. Com efeito, o Código italiano denomina peculato tão-somente a conduta que recai sobre um bem público, reservando a denominação de malversação para a ação do agente que lesa um bem particular, quando se encontra este sob a tutela da Administração Pública.


3. OBJETIVIDADE JURÍDICA

No que tange ao delito de peculato, o direito penal quer assegurar a normalidade do desempenho funcional das pessoas que integram a Administração, cujo escopo é fazer com que os fins que lhes são próprios sejam corretamente concretizados, notadamente os que alcançam o bem comum, além de garantir que os bens móveis (públicos ou particulares) não sejam deslocados dos seus destinos.

O escopo é punir, decerto, a disfunção pública[20]. Afasta-se o interesse particular; sobreleva-se o interesse coletivo.

Enfatize-se que mesmo se tratando de bens particulares a Administração é efetivamente afetada, porquanto pode advir uma responsabilidade injusta da Administração frente ao particular[21]. É de bom alvitre gizar, no entanto, que se o bem é utilizado em prol da Administração, essa responsabilidade não será mais injusta, o que faz descaracterizar o delito de peculato.

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Explique-se melhor: o funcionário público (lato sensu) ao empregar os bens em proveito da Administração, age como uma longa manus Desta, única beneficiada. Não há abuso do cargo, emprego ou função, tampouco dano ao erário. Assim, uma eventual responsabilização que o Estado venha sofrer, desse modo, não será mais injusta.

Mais a mais, é imperioso ter em mente que aquele que utiliza um bem em benefício da administração tem uma conduta diametralmente oposta daquele que age com o escopo de beneficiar a si ou a terceiro.

Protege-se a Administração, portanto, em dupla vertente: do ponto de vista patrimonial, pois que se busca zelar pelo erário e, do ponto de vista moral, já que impõe ao funcionário público um dever de lealdade, probidade, honestidade. Por isso, costuma-se dizer que o peculato é um crime pluriofensivo[22].

Em suma, visa-se punir aquele que age exclusivamente contra o interesse coletivo. Quem o homenageia, d’outra banda, não merece os rigores do Código Penal:

Peculato – Não caracterização – Desvio de combustível para levar doente em veículo particular – Hipótese em que a ambulância estava quebrada – Serviço prestado em benefício da coletividade – (...) Ausência, ademais, de dolo ou proveito próprio ainda que irregular a conduta – Recurso não provido[23] (destaque nosso).


4. SUJEITOS DO DELITO

Como bem salienta CLAUS ROXIN, “só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não seja simplesmente pecaminoso ou imoral[24]”. Eis o motivo de a autolesão não ser crime[25].

Para existir algum delito, portanto, é mister que alguém viole o direito de outrem, ou seja, há de haver, no mínimo, um sujeito ativo e um sujeito passivo, sendo que ambos não podem ser confundidos na mesma pessoa. Analisemos, então, cada um dos sujeitos do peculato.

4.1. SUJEITO PASSIVO

Pode-se definir sujeito passivo como sendo aquele que possui a titularidade do interesse cuja ofensa indica a essência do crime.

O sujeito passivo do crime em comento é, sem dúvidas, a Administração Pública, ou seja, a União, o Estado-membro, a autarquia ou a entidade paraestatal. Poderá, também, o particular sofrer o delito quando o seu bem for apropriado, desviado ou furtado. Nesse caso, ele será sujeito passivo secundário.

4.2. SUJEITO ATIVO

O sujeito ativo, a seu turno, é aquele que pratica o fato descrito na norma penal[26].

No caso do peculato, por se tratar de um crime próprio, só pode ser sujeito ativo o funcionário público[27], ou aquele expressamente equiparado para fins penais (art. 327, § 1.º, CP). Entretanto, por se tratar de elementar do crime em balha, comunica-se essa circunstância ao particular que atue como co-autor ou partícipe do delito (art. 30, CP), desde que tenha consciência da qualidade especial do funcionário público.

Assim, se o particular ignora que o sujeito qualificado é funcionário público, não responderá pelo crime de peculato, podendo ser aplicado, no caso, o disposto no artigo 29, § 2.º, do Código Penal (cooperação dolosamente distinta).

4.2.1. QUANDO O PREFEITO É SUJEITO DO CRIME (DL 201/67)

Pelo princípio da especialidade, evitando-se, assim, o conflito de normas, aplica-se o Decreto-Lei 201/67 quando a apropriação ou o desvio forem realizados pelo Prefeito. Eis o teor do art. 1º, I, do diploma legal supracitado:

Art. 1º. São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara de Vereadores:

I – apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio.

Mas esse dispositivo só pode ser aplicado em alguns casos. Isso porque há um detalhe claro que não é lembrado pela doutrina[28]: os bens ou rendas precisam, necessariamente, ser públicos.

Destarte, para que não se chegue ao absurdo de tornar atípico o fato de o prefeito se apropriar ou desviar os bens particulares para benefício próprio ou de terceiro, é mister que se aplique, nesse caso, o Código Penal (art. 312).

Ademais, é imperioso saber se o Prefeito Municipal tem a posse da coisa. Pois do contrário, ele somente poderá cometer o crime de peculato-furto, tendo que antes subtrair ou facilitar que seja subtraída a coisa, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

Aplica-se neste particular, raciocínio análogo ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça concernente à apropriação indébita previdenciária. Ou seja, o Burgomestre não pode cometer peculato-apropriação ou peculato-desvio acaso não seja o responsável direto:

Apropriação indébita. Falta de recolhimento de contribuição previdenciária. Não inclusão do Prefeito como sujeito ativo. O Prefeito não é responsável direto, nem pelo desconto e nem pelo recolhimento das contribuições previdenciárias.[29]


5. TIPO OBJETIVO

É cediço que para se configurar, sob o aspecto do injusto penal, um crime, há, incontestavelmente, necessidade de ocorrer fato típico e antijurídico (para outros, ainda, a culpabilidade; terceiros, averbe-se, acrescem a punibilidade).

O fato típico, por demais conhecido, é o comportamento humano (conduta) que se amolda ao enquadramento previsto no tipo penal (tipicidade), provocando, em regra, um resultado.

Mencione-se, sob tal reflexão, que se tem como necessário punir o funcionário que flexiona o núcleo do tipo de forma consciente e voluntária. É mister, pois, a presença do tipo objetivo e do subjetivo.

O tipo objetivo ou aspecto objetivo do tipo legal é composto por um ou mais núcleos, representado por seus verbos (ação ou omissão) correspondentes, além de elementos secundários (objeto da ação, resultado, nexo causal etc). Configura-se, pois, no aspecto externo do tipo doloso, ou seja, na manifestação de vontade no mundo físico exigida pelo tipo.

Adverte-nos WELZEL que o fundamento material de todo delito é a concretização da vontade num fato externo, pois crime não é somente a vontade má, mas a vontade má concretizada num fato. O fato externo é, assim, a base da construção dogmática do delito[30].

Entende-se imperioso, nesse contexto, por ser mais didático, separar o tipo objetivo do tipo subjetivo, mormente porque, como é cediço, os crimes dolosos se caracterizam pela coincidência entre o que o autor quis e o que ele realizou.

Averbe-se, ainda, que não será possível estudar todos os núcleos do peculato, mormente porque isso alteraria o foco do presente trabalho. Para nós, portanto, só será interessante escarafunchar as espécies contidas no caput e §1º, do art. 312, do Código Penal brasileiro, quais sejam, peculato-apropriação (1ª parte), o peculato-desvio (2ª parte) e o peculato-furto (§1º)

Para isso, então, mister exarar de que forma fora tipificado, pelo legislador pátrio, o delito de peculato:

Art. 312 do CP – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio

Pena – reclusão de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa

§ 1º Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

Tracemos, nesse contexto, uma breve análise de cada uma das espécies já mencionadas.

5.1. PECULATO-APROPRIAÇÃO

O bom vernáculo assim define um dos núcleos do tipo em baila:

Apropriar [do lat. appropriare]: 1. tomar como propriedade, como seu; arrogar-se a posse de; 2. Tomar como próprio ou conveniente; adequar, adaptar, acomodar; 3. tornar próprio, seu; apossar-se de; (...)[31] (destaque nosso).

Nesse tanto, há de se ter como elementos de sua estrutura conceitual a precedente posse (ou detenção)[32]lícita da coisa alheia móvel, a sua conseqüente apropriação por dolo e, implicitamente, o elemento subjetivo especial do tipo.

Com efeito, em sintonia com doutrina e jurisprudência pátria pacífica, para que haja a apropriação é indispensável que haja a inversão da posse, de modo a transformá-la em o domínio, devendo o agente agir como se fosse dono, ou seja, é fundamental que haja a incorporação da res apropriada, ainda que temporariamente, ao patrimônio do réu, sendo este o pressuposto material do crime, além do proveito próprio ou alheio.

Sobre o tema, ANTONIO PAGLIARO e PAULO JOSÉ DA COSTA JR. esclarecem que

Poderá perfazer-se a conduta do peculato dito próprio, previsto no art. 312, caput, de dois modos: mediante apropriação ou desvio.

Apropriar-se é assenhorar-se da coisa móvel, passando a dela dispor como se fosse sua, usufruindo-a como se fosse seu senhor (uti dominus), em proveito próprio ou alheio.[33] (destaque nosso).

Podemos citar como exemplo o carcereiro que recebe os objetos do preso e os toma para si ou mesmo o policial que apreende objeto do bandido e fica com ele.

5.2. PECULATO-DESVIO

Essa segunda modalidade requer que o funcionário público mude a direção do bem a destino diverso daquele que originariamente tinha sido atribuído, com o escopo de ter proveito para si ou para outrem. Vale dizer: se o funcionário público, v. g., emprestar dinheiro público de que tem a guarda para ajudar amigos, estará cometendo o delito em questão.

5.3. PECULATO-FURTO

Enquanto o caput do art. 312 é classificado como peculato próprio, o peculato-furto é tido como peculato impróprio, caracterizando-se pelo animus furandi, ou seja, o funcionário possui vontade consciente de subtrair ou concorrer para que seja subtraída, em proveito próprio ou alheio, a coisa, pública ou privada, sob guarda ou custódia da Administração, valendo-se da facilidade que lhe proporciona o cargo, emprego ou função.

Eis o que preleciona WALDO FAZZIO JÚNIOR acerca do tema:

Subtração é a retirada às escondidas, sub-reptícia. É o furto. O bem móvel fica sujeito a exclusiva titularidade dispositiva do agente público. Este quer a coisa para si, com ânimo definitvo (animus rem sibi habendi) ou para terceiro. Se objetiva, apenas, utilizá-la, transitoriamente, restituindo-a na seqüência ao dono, não há furto (ou qualquer outro ilícito penal). Para o peculato-furto, deve o agente público ter disponibilidade uti dominus da coisa.[34]

Exemplo de tal conduta delituosa é o do funcionário público que abre o cofre da repartição onde trabalha e leva os valores que nele estavam guardados. Ou mesmo do policial que subtrai o cd player de carro apreendido que está no pátio da delegacia.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANÇA, Nadielson. Peculato em prol da Administração Pública: contraditio in terminis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3551, 22 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24026. Acesso em: 29 mar. 2024.

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