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Um estudo comparativo do aborto

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06/06/2013 às 08:20
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Segundo a lei da Alemanha, a mulher que desejar abortar necessita passar obrigatoriamente por um aconselhamento designado para encorajá-la a ter o bebê.

Resumo: Neste artigo, pretendemos apreciar como diversas jurisdições tratam o aborto. Não desejamos entrar na polêmica sobre a legalização do aborto, mas tencionamos, somente, fazer um estudo comparativo com os ordenamentos jurídicos estrangeiros. Não nos restringiremos a um único estilo de sistema legal, mas a todos os tipos principais de ordenamento jurídico existentes no mundo atualmente. São eles: o Direito Romano-Germânico, o Common Law, o Direito Islâmico (Lei da Sharia) e os sistemas jurídicos de caráter misto. Devemos analisar, também, quais os principais motivos de diversos países para a forma como eles tratam o aborto. Por fim, faremos alguns comentários, resumindo todo o assunto tratado neste artigo.

Palavras-chave: Aborto; Direito Comparado; Sistemas Legais Estrangeiros

Sumário: I.  O aborto no direito dos Estados Unidos. II. O aborto e o sistema jurídico alemão. III. A Sharia e o aborto. IV.O aborto no direito indiano. V. Considerações finais. VI.Referências Bibliográficas. 


I.  O aborto no direito dos Estados Unidos

Os Estados Unidos da América possuem um sistema jurídico caracterizado pelo common law. Neste, a principal fonte formal das normas são as decisões dos tribunais. Sempre ao julgar um caso, o juiz deve sempre buscar um precedente, ou seja, uma decisão de uma corte de mesmo nível ou de nível superior sobre um caso parecido com o julgado. Na inexistência deste, ele pode criar um precedente, tornando-se, pois, um agente primário de criação de direito. Apesar de existirem diferenças jurídicas entre os países de common law, iremos nos ater ao direito americano devido à sua maior proeminência econômica e a sua maior influência no ordenamento jurídico brasileiro.

Sendo um país com um grande número de religiosos[1], o debate sobre o aborto sempre causou polêmica no território americano. Inicialmente, a maioria das treze colônias decidiu por proibir qualquer forma de aborto intencional. James Wilson, considerados um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, afirmou alguns anos após a independência americana que “[...] a vida começa quando a criança consegue se mover no útero materno. Pela Lei, a vida é protegida não somente da imediata destruição, mas também de qualquer nível de violência e, em alguns casos, de todo nível de perigo”[2][3].

Esta visão contrária ao aborto continuou dominante no cenário estadunidense até meados da década de 60, quando algumas leis legalizando o aborto em certas situações, como em casos de estupro ou incesto, foram instituídas. Estados como a California, Carolina do Norte, Colorado, Oregon e Texas instauraram leis assim. Este último estado é amplamente importante para o nosso estudo, pois foi nele que surgiu uma disputa judicial entre Jane Roe[4] v. Henry Wade[5]. Explicando a origem factual deste caso emblemático,  a Suprema Corte americana afirmou:

“Uma mulher solteira grávida (Jane Roe) deu entrada com uma ação desafiando a constitucionalidade das leis penais texanas referentes ao aborto, que proíbem a procura ou a tentativa do aborto, exceto quando houver uma  prescrição médica que vise salvar a vida da mãe.”[6][7]

Este julgamento foi importantíssimo, pois, nele, pela primeira vez, a Suprema Corte americana não se omitiu e exprimiu uma opinião a respeito da constitucionalidade ou não das leis de criminalização do aborto. Neste caso, julgado em 1973, a distinta Corte decidiu que tal debate deveria ser observado sob a ótica do direito à privacidade. Este tribunal afirmou que

“o direito à privacidade, seja ele fundado pelo conceito de liberdade e restrição por ação do Estado da 14ª Emenda, como nós achamos que seja, ou, como o tribunal distrital determinou, pela nona Emenda que faz uma reserva de direitos para o povo, é amplo o suficiente para envolver a decisão da mulher se ela deve ou não por fim a sua gravidez.”[8][9]

Como podemos perceber, a Suprema Corte americana deu ganho de causa para Jane Roe, reconhecendo, assim, o direito da mulher de praticar o aborto. Entretanto, a notável Corte colocou um requisito para que esta prática pudesse ser considerada legal. Este foi que o aborto poderia ser feito a qualquer momento antes do período de viabilidade, momento esse em que o bebê já possui um desenvolvimento biológico suficiente para sobreviver fora do útero materno. Segundo a própria Corte, “O período de viabilidade normalmente começa após sete meses de gravidez (28 semanas), mas ele pode começar mais cedo, algumas vezes tão cedo quanto à 24ª semana de gravidez.”[10][11]. Após esse período, somente é permitido o aborto em casos de perigo à saúde da mãe.

Apesar de emblemático, este caso não serviu para mudar completamente a forma como o sistema jurídico americano trata o aborto. É necessário lembrar que, na organização da federação norte-americana, os estados possuem muito mais liberdade para promulgarem leis. Eles têm o dever de seguir as decisões da Suprema Corte americana, mas desfrutam de autonomia para divergir em alguns pontos. No caso do aborto, os estados não podem legislar pela sua proibição, mas podem criar restrições para essa prática. Tais limitações podem ser desde requisitar a autorização dos pais para o aborto de menores de idade até a obrigar o médico a avisar a paciente sobre os riscos deste procedimento. Além disso, muitos estados colocam empecilhos no financiamento público para abortos.[12]

No que discerne a opinião pública norte-americana sobre os aspectos morais do aborto, podemos afirmar que ela encontra-se muito divergente atualmente. Existem várias organizações intituladas pró-vida que defendem a proibição desta prática. Muitas dessas entidades possuem laços estreitos com grupos religiosos, ou, até mesmo, são provenientes dos próprios. Após a decisão da Suprema Corte americana, houve, por meio de plebiscitos em alguns estados, tentativas de transformar o aborto em uma contravenção ou em um delito. Estes esforços ocorriam por meio da tentativa de sancionar emendas às constituições estaduais, mas elas sempre foram rechaçadas com uma diferença considerável de votos.[13] Tal rejeição não se torna uma surpresa se constatarmos os resultados de pesquisas de opinião mais recentes acerca deste assunto. Em uma destas pesquisas, feita em janeiro de 2013 pelo The Wall Street Journal[14] e pelo canal de notícias NBC, mais de 70% das pessoas afirmaram concordar de alguma forma com a decisão dada pela Suprema Corte americana ao caso Roe v. Doe. Este é a percentagem mais alta desde 1989. Entretanto, quando a pergunta é feita focada em saber do pesquisado se ele concorda ou não com a legalidade da prática do aborto, a discrepância entre os números torna-se mais amena. Com a pergunta modificada, os números da pesquisa são os seguintes: 54% da população americana concorda que o aborto deve ser ou sempre legal ou legal na maioria dos casos, enquanto 41% afirmam que esta prática deveria ser ilegal em pelo menos na maioria dos casos.

Enfim, em face do que foi tratado nesta parte do artigo, podemos afirmar que o aborto ocorrido antes do feto chegar ao período de viabilidade é uma prática legal nos Estados Unidos. Todavia, devido ao tipo de federação existente neste país, os estados possuem certa autonomia para restringirem a prática do aborto, apesar de não poderem bani-la completamente. Vimos também que a opinião da população americana está dividida quanto à legalidade do aborto, apesar de claramente mostrar uma leve tendência em favor da legitimidade deste ato.

Trataremos a seguir de um tipo de sistema legal mais parecido com o brasileiro. Este sistema é baseado no sistema romano-germânico, também conhecido como civil law. Na próxima parte deste artigo, nós iremos analisar como o aborto é tratado pelo ordenamento jurídico da Alemanha.


II. O aborto e o sistema jurídico alemão

Por se tratar de um ordenamento jurídico baseado no sistema romano-germânico, o direito alemão e, consequentemente, a forma como o aborto é tratado por este é muito dependente de códigos instituídos pelo poder legislativo. No que discerne ao aborto, a posição tomada pelos códigos instituídos pelo poder legislativo sempre guardou estreitas relações com o momento político vivido por este país. Por exemplo, como veremos mais a frente, durante o nazismo, qualquer tipo de aborto de alemães era duramente punido. Por outro lado, em períodos mais liberais, o aborto, pelo menos em algumas situações, era liberado.

Durante um longo período, não houve um debate consistente no ordenamento jurídico germânico a respeito de como este deveria tratar o aborto. Tal fato justifica-se pela própria inexistência de um ordenamento jurídico alemão único, haja vista existirem, até a unificação alemã no século XIX, vários estados independentes no que é atualmente o território da Alemanha. Como os ilustres estudiosos Ferree, Gamson, Gerhards e Rucht afirmam, “O ponto de partida jurídico foi a formação da Alemanha como Estado em 1871. Em seu código criminal, §218 definia o aborto como um crime punível com cinco anos de prisão.”[15][16] Como podemos perceber, o aborto durante o período do império alemão era proibido de qualquer maneira, sendo motivo, inclusive, de punição na forma da lei.

Esta forma de tratar o aborto sofreu represálias de vários movimentos da sociedade alemã, principalmente do movimento feminista.[17] Com o passar do tempo, os protestos pela eliminação do §218 do código criminal alemão e consequente descriminalização do aborto foram se tornando cada vez maiores e mais organizados. Sobre isto Ferree, Gamson, Gerhards e Rucht afirmam:

“O aborto se transformou em uma questão pública no final do século XIX. Tal fato ocorreu com os esforços de setores essencialmente reformistas da sociedade (v.g. socialistas, feministas e liberais). Estes buscavam colocar o controle de natalidade e questões de controle populacional na agenda política do Estado alemão. Na virada do século, tal empreitada tinha se transformado em um desafio amplo, que incluía desde a tentativa de diminuição e, até mesmo, a tentativa de eliminação das restrições ao aborto.”[18][19]

Em alguns momentos, houve tentativas de eliminar o §218 do ordenamento jurídico alemão, mas todas elas foram barradas pelo parlamento daquele país (Reichstag). Tal pressão, no entanto, ocasionou resultados concretos. Em 1927, a Suprema Corte alemã decidiu que era legal o aborto em caso de risco à vida da grávida.  Esta efervescência crescente quase chegou ao ápice no início da década de 30. Todavia, com a chegada dos nazistas ao poder, o movimento em prol da legalização do aborto perdeu força na Alemanha.

Sobre a visão acerca da prática abortiva implementada pelos nazistas, Ferree, Gamson, Gerhards e Rucht prelecionam: “A lei de aborto dos nazistas nitidamente distinguia a vida ‘digna’ de viver e a vida ‘indigna’ de viver (lebensunwertes Leben), proibindo o aborto no primeiro caso, mas obrigando tal prática no segundo caso.”[20][21] Claramente, as vidas “dignas” de viver seriam aquelas de pessoas da suposta raça ariana, enquanto que as pessoas “indignas” de viver seriam provenientes de, dentre outras minorias, judeus, negros, homossexuais e ciganos.  Com o fim da guerra, as nações invasoras restabeleceram a versão de 1927 do §128 do código criminal alemão, cujo entendimento sobre o aborto era que esta prática deveria ser proibida em todos os casos, exceto naqueles em que a gravidez colocasse em risco a vida da mãe.

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Entretanto, no período do pós-guerra, o território alemão sofreu a sua divisão e, com isso, criaram-se dois ordenamentos jurídicos diferentes. Na parte oriental, o aborto continuou proibido até 1972, quando foi autorizado para casos em que a gravidez ainda estivesse no primeiro trimestre. Na parte ocidental, o aborto seguiu a versão de 1927 do §128. Neste último caso, ocorreram algumas tentativas de abrandar essa lei, apesar de não obterem sucesso. Todavia, o número de mulheres processadas por cometer aborto “diminuiu sensivelmente – de 1033 em 1955 para 276 em 1969. Além disso, a maioria das mulheres processadas recebiam penas leves.”[22][23] Tal fato demonstra o abrandamento gradual do ordenamento jurídico alemão no que discerne à criminalização do aborto. Tal suavização fica ainda mais clara se levarmos em consideração que, em 1974, o governo da Alemanha Ocidental instituiu uma lei que autorizava o aborto até o primeiro trimestre de gravidez. Entretanto, tal lei foi considerada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que considerou esta lei um atentado aos direitos humanos previstos na Constituição Germânica.

Após a reunificação das duas Alemanhas, foi necessário reunificar os dois ordenamentos jurídicos. Logo, era necessário decidir qual das leis sobre aborto iria ser aceita ou se uma nova seria redigida. Essa nova lei afirmava que “a mulher com uma gravidez indesejada pode decidir abortar durante o primeiro trimestre de gravidez”[24][25]  Além disso, “[...] acesso ao aborto é relativamente simples depois de um breve período de espera.”[26][27]. Em 1995, essa lei sofreu uma pequena reforma. Na versão atualizada, a rede pública de saúde da Alemanha passou a ficar proibida de praticar o aborto, salvo em casos de mulheres provenientes de classes mais pobres. Em 2010, uma nova reforma ocorreu nessa lei. Nela, o Estado alemão passou a prelecionar que a mulher que desejar abortar “[...] necessita passar obrigatoriamente por um aconselhamento designado para encorajá-la a ter o bebê.”[28][29]. Fazendo uma análise sobre o atual entendimento do ordenamento jurídico alemão acerca do aborto, percebemos que a reunificação das leis de aborto tendeu para a versão da Alemanha Oriental, haja vista esta visão já ser defendida nesta parte do país desde o início da década de 70. Entretanto, tal inclinação não ocorreu sem algumas reformas.

Por fim, podemos perceber que a visão do ordenamento jurídico alemão acerca do aborto sempre sofreu muita pressão de várias partes da sociedade deste país. Tal fato não se configura coincidência, pois o governo da Alemanha, pelo menos desde sua formação na segunda metade do século XIX, nunca se omitiu de dar um juízo de valor quanto à prática do aborto, mesmo que este juízo tenha sofrido extensivas modificações ao longo dos anos. Essa não omissão do governo alemão contrasta com a forma como o governo americano tratou historicamente o aborto, haja vista ele somente ter tomado um posicionamento uniforme a respeito do aborto em 1973, quase cem anos depois do primeiro juízo de valor acerca deste assunto emitido pelo ordenamento jurídico alemão.

Na próxima parte deste artigo, iremos discutir como a Lei Islâmica, conhecida como a Sharia, trata o aborto. Nós perceberemos que o modo como este tipo de ordenamento jurídico trata esta prática, em alguns momentos, não muito difere da maneira como o aborto é tratado pelo direito dos países ocidentais.


III. A Sharia, o direito iraniano e o aborto

Nesta parte do artigo, nós primeiro iremos analisar como a Lei Islâmica trata a prática abortiva. Após isso, iremos, também, tecer breves comentários sobre a tratativa do aborto dada pelo direito do Irã.[30] Neste país, a visão do direito sobre o aborto, da mesma forma que na Alemanha, tem sido fortemente influenciado pelo contexto histórico-social em que ele se situa. No direito iraniano, houve épocas em que as leis contra o aborto eram mais brandas e tempos em que qualquer tipo de aborto era terminantemente proibido. Tal abrangência de visões será discutida nos parágrafos subsequentes.

Durante um longo período, neste incluído desde a Idade Média iraniana até meados do século XIX, a discussão acerca da prática do aborto era ignorada pelos governantes. Tal fato talvez se devesse a intrínseca relação que o sistema judiciário do então Império Persa possuía com o Islamismo. Ao contrário do que talvez se pudesse pensar, a posição do Corão a respeito do aborto não é nítida em todas as situações. Na Sharia, o feto adquire individualidade, podendo, assim, ser considerado vivo, após um período de cento e vinte dias que passa a transcorrer desde a concepção da criança. Após esse intervalo de tempo, tal questão é pacífica entre os doutos da Lei Islâmica no sentido de proibir a prática do aborto. Com isso, salvo em situações específicas, o aborto após o feto adquirir a sua individualidade é proibido na Lei Islâmica. Dando exemplos destas condições específicas para o aborto após o prazo de cento e vinte dias, Sa'diyya Shaikh, professora de estudos islâmicos da Universidade da Cidade do Cabo, afirma:

“Desta perspectiva, o aborto de um feto formado, (ou seja, após 120 dias) é considerado uma ofensa criminal e proibido pelo Direito Islâmico. Exceções a essa proibição, contudo, incluem situações em que a vida da mãe está em perigo, em que a gravidez está prejudicando uma criança que está sendo amamentada ou quando já se sabe que o feto nascerá deformado.”[31][32]

Apesar de pouco mencionar o aborto em seus versos, o Corão possui algumas partes com declaração claras, apesar de pouco abrangentes, acerca do aborto. Os seguintes versículos do livro sagrado dos mulçumanos são considerados os mais importantes na definição do posicionamento dos eruditos da Lei Islâmica acerca do aborto. Este são os primeiros versículos:

12 - Criamos o homem de essência de barro.

13 - Em seguida, fizemo-lo uma gota de esperma, que inserimos em um lugar seguro.

14 - Então, convertemos a gota de esperma em algo que se agarra, transformamos o coágulo em feto e convertemos o feto em ossos; depois, revestimos os ossos de carne;

então, o desenvolvemos em outra criatura.

 Bendito seja Deus, Criador por excelência.(Corão23:12-14)[33]

Além daqueles, também podemos destacar o versículo a seguir:

 “6 - Ele criou-vos no ventre de vossas mães paulatinamente, um após o outro  entre três trevas.

 Tal é Deus, vosso Senhor; d’Ele é a soberania[...]” (Corão 39:6)[34]

Versículos do Corão como estes são considerados importantíssimos na maneira de como os doutos da Lei Islâmica tratam o aborto. No que diz respeito ao aborto que ocorrer dentro do período de cento e vinte dias, versículos, como os supracitados, mostram-se insuficientes para que os estudiosos mulçumanos tomem uma posição una acerca do aborto nestas condições específicas. Tal fato tem provocado divergências entre os vários estudiosos mulçumanos. Com isso, não seria nenhum absurdo se o leitor imaginasse que se desenvolveram várias linhas de pensamento acerca do aborto na religião islâmica. E esta divisão de fato aconteceu. Na doutrina maometana, surgiram quatro posicionamentos basilares acerca deste tipo de aborto. Explicando cada linha de pensamento, Sa'diyya Shaikh afirma:

“A respeito do aborto praticado antes do prazo de 120 dias, existem quatro posicionamentos diferentes no Islamismo Clássico[...]. O primeiro posicionamento defende a permissão incondicional para pôr fim à gravidez sem necessidade de alguma justificação ou de algum deformidade do feto. Esta visão é adotada pela Escola de Zaydi e por alguns estudiosos da escolas de Hanafi e de Shafi'i. A Escola de Hanbali permite o aborto se feito por métodos orais até 40 dias após a concepção. A segunda linha de pensamento defende a permissão condicional. Esta possui esta característica, pois, neste caso, o aborto somente ocorrerá se houver uma boa justificativa. Para esta linha de pensamento, o aborto injustificado não é proibido, mas, somente, reprovado. Esta é a opinião da maioria dos doutos provenientes das escolas de Hanafi e de Shafi'i. Na terceira linha de pensamento, esta prática é alvo de extrema reprovação. Esta visão é defendida por alguns juristas da Escola de Maliki. Na quarta linha de pensamento, o aborto é terminantemente proibido.  Esta visão é compartilhada pelos outros juristas da Escola de Malike, além de estudiosos provenientes das escolas jurídicas de Ibadiyya e de Imamiyya.”[35][36]

Acerca dos efeitos, nos sistemas jurídicos seguidores da Sharia, de tal indecisão entre os doutos da Lei Islâmica, Sa'diyya Shaikh afirma:

 “Tal diversidade de perspectivas caracteriza o cânone legal Islâmico, que contém posições contrárias onde ambas as posições de proibição e de permissão do aborto são consideradas legítimas. Esta gama de possibilidades sugere uma flexibilidade no tipo de posicionamento que os países mulçumanos tem tomado em relação ao aborto.”[37][38]

Logo, considerando a visão da ilustre autora, podemos perceber que podem existir países com visão completamente opostas quanto ao aborto. Como exemplo de visões completamente opostas, podemos citar a Albânia e o Irã. No primeiro, a prática do aborto é totalmente liberada até os primeiros três meses de gravidez, enquanto que no último o aborto é terminantemente proibido, salvo em casos que a continuação da gravidez acarrete riscos para a vida da mulher.

Nos voltaremos, agora, para o direito iraniano. O atual modo do ordenamento jurídico iraniano analisar a prática abortiva sofreu muita influência da Revolução Iraniana de 1979. “No Irã, o aborto era permitido em certas circunstâncias no início do século 20 e uma lei que permitia o aborto a pedido da grávida foi aprovada em 1977. Todavia, essa lei foi revogada após a Revolução Islâmica de 1979.”[39][40]  Podemos perceber, pois, o quanto os valores conservadores trazidos pela Revolução de 1979 influenciaram o modo deste país tratar a prática abortiva. Outrora liberal acerca deste assunto, a lei iraniana sobre o aborto passou por uma reforma substancial, passando a prática do aborto a ser proibida no território do Irã. Somente era liberado o aborto em casos específicos. Acerca deste assunto, Amir Erfani e Kevin Mcquillan afirmam:

 “Após a Revolução, a lei do aborto foi alterada de novo, e o aborto foi estipulado como uma ofensa criminal, com penalidades para os executores do procedimento. Era permitido, somente, em caso de risco para a vida da mãe e, mesmo assim, somente se a gestãção ainda não tivesse alcançado o quarto mês.”[41][42]

Apesar do Irã ainda ser considerado uma teocracia, a lei contra o aborto foi atenuada no início da década de 1990. Na nova lei, elaborada em 1991, o aborto somente é permitido para salvar a vida e em casos específicos de problemas com o feto. Essa reforma da lei ainda perdura no ordenamento jurídico iraniano. Apesar disso, essa regra não passou todo esse tempo sem nenhum risco de ser modificada. Em 2005, “o Parlamento Iraniano aprovou uma lei permitindo o aborto em caso de deficiência do feto e em caso de risco para a vida da mulher. Esta lei foi posteriormente rejeitada pelo Conselho da Guarda Islâmica”[43][44].

Outro fato digno de ser notado no caso iraniano é que, devido às leis restritivas quanto ao aborto, um grande número de mulheres fazem abortos clandestinos. Como o leitor pode deduzir, estes são feitos muitas vezes sem as devidas condições de higiene, o que causa problemas de saúde sérios para essas mulheres. Ainda sobre este assunto, “no Irã, estas complicações são um significante causa de mortes maternas. Estima-se que os abortos clandestinos são responsáveis por 5% das mortes maternas no Irã (Naghavi, 1996)”[45][46].

Pondo fim ao estudo sobre o aborto na Sharia e no ordenamento jurídico iraniano, analisaremos, na próxima parte deste artigo, o modo como o direito indiano trata o aborto. Da mesma maneira que nos tópicos passado deste trabalho, nós faremos uma investigação minuciosa de toda o contexto histórico-social que resultou na atual maneira da India tratar o aborto.

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Sobre o autor
Daniel Rodrigues Chaves

Estudante de graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Daniel Rodrigues. Um estudo comparativo do aborto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3627, 6 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24642. Acesso em: 28 mar. 2024.

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