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Socioafetividade em família e a orientação do STJ

Considerações em torno do REsp 709.608

17/10/2013 às 14:14
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Em diversas decisões recentes, o STJ foi sistematizando os requisitos para a primazia da socioafetividade nas relações de família, notadamente na filiação, em situações em que a origem genética era posta como fundamento para desconstituir parentalidades.

Sumário: 1. A socioafetividade e sua migração para o direito; 2. A afetividade como norma e dever jurídicos; 3. Paternidade e filiação socioafetivas e o Código Civil; 4. A trajetória da socioafetividade no STJ; 5. Giro de Copernico: primazia da socioafetividade no STJ; 6. O REsp 709608: consolidando a socioafetividade.

1. A SOCIOAFETIVIDADE E SUA MIGRAÇÃO PARA O DIREITO

                   A socioafetividade como categoria do direito de família tem sistematização recente no Brasil. Esse fenômeno, que já era objeto de estudo das ciências sociais e humanas, migrou para o direito, como categoria própria, através dos estudos da doutrina jurídica especializada, a partir da segunda metade da década de 1990, principalmente impulsionada pelo surgimento do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM nesse período, que estimulou o intercâmbio de estudos, pesquisas e experiências entre acadêmicos e profissionais nessa matéria. O primeiro volume da Revista Brasileira de Direito de Família, em 1999, incluiu um estudo a ela relacionado, justamente um comentário crítico que redigimos a uma decisão do STJ sobre os efeitos na filiação do exame do DNA[2], onde salientamos que a paternidade é fato cultural e não determinismo biológico.

                   Há muito tempo, obras de antropologia, de outras ciências sociais e de psicanálise, já tinham chamado a atenção para o fato de que é só após a passagem do homem da natureza para a cultura que se torna possível estruturar a família. Para qualquer etnólogo ou antropólogo, a afirmação de que a paternidade social não coincide com a paternidade biológica é de uma vulgaridade gritante. O ser humano é um ser biológico, ao mesmo tempo que um indivíduo social. Como questiona Claude Lévi-Strauss, em As estruturas elementares do parentesco, onde acaba a natureza? Onde começa a cultura? Porque a cultura não pode ser considerada nem simplesmente justaposta nem simplesmente superposta à vida, pois, em certo sentido, substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova ordem[3]. Pode-se dizer que a evolução da família expressa a passagem do fato natural da consangüinidade para o fato cultural da afetividade, principalmente no mundo ocidental contemporâneo.

                   O afeto é um fato social e psicológico. Talvez por essa razão, e pela larga formação normativista dos profissionais do direito no Brasil, houvesse tanta resistência em considerá-lo a partir da perspectiva jurídica. Mas, não é o afeto, enquanto fato anímico ou social, que interessa ao direito. O que interessa, e é seu objeto próprio de conhecimento, são as relações sociais de natureza afetiva que engendram condutas suscetíveis de merecerem a incidência de normas jurídicas. Esse é o mundo da cultura, que é o mundo do direito.

                   O termo “socioafetividade” conquistou as mentes dos juristas brasileiros, justamente porque propicia enlaçar o fenômeno social com o fenômeno normativo. De um lado há o fato social e de outro o fato jurídico, no qual o primeiro se converteu após a incidência da norma jurídica. A norma é o princípio jurídico da afetividade. As relações familiares e de parentesco são socioafetivas, porque congrega o fato social (socio) e a incidência do princípio normativo (afetividade).

                   O despertar do interesse pela socioafetividade no direito de família, no Brasil, especialmente na filiação, deu-se, paradoxalmente, ao mesmo tempo que os juristas se sentiam atraídos pela perspectiva de certeza quase absoluta da origem biológica, assegurada pelos exames de DNA. Alguns ficaram tentados a resolver todas as dúvidas sobre filiação no laboratório. Porém, a complexidade da vida familiar é insuscetível de ser apreendida em um exame laboratorial. Pai, com todas as dimensões culturais, afetivas e jurídicas que o envolvem, não se confunde com genitor biológico; é mais que este.

                   Nenhum direito estrangeiro avançou nessa matéria tanto quanto o direito brasileiro, inicialmente na doutrina e, depois, na jurisprudência, especialmente a do STJ. Na doutrina estrangeira, um dos trabalhos pioneiros foi a tese Critério jurídico da paternidade, de Guilherme de Oliveira, em Portugal[4], mas sem todos os contornos que foram adotados no Brasil; nessa obra, o autor confessa que, quando começou a estudar o direito da filiação, aderiu sem reservas ao mandamento da verdade biológica do parentesco, dele se distanciando à medida que prosseguia seus estudos.

2. A AFETIVIDADE COMO NORMA E DEVER JURÍDICOS

            A afetividade é o princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia em face de considerações de caráter patrimonial ou biológico. Recebeu grande impulso dos valores consagrados na Constituição de 1988 e resultou da evolução da família brasileira, nas últimas décadas do século XX. O princípio da afetividade entrelaça-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família. Essa virada de rumo foi bem apreendida por Orlando Gomes: “O que há de novo é a tendência para fazer da affectio a ratio única do casamento”[5]. Não somente do casamento, mas de todas as entidades familiares e das relações de filiação.   

            A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e irmãos não biológicos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca. É o salto, à frente, da pessoa humana nas relações familiares.

            O princípio da afetividade está implícito na Constituição. Encontram-se na Constituição fundamentos essenciais do princípio, constitutivos dessa aguda evolução social da família brasileira: a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º);   b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º); d) a convivência familiar (e não a origem biológica) é prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente (art. 227); o amparo ao idoso é dever de todos os parentes e familiares (art. 230).

            A afetividade, como dever jurídico, não se confunde com a existência real do afeto, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles. O dever jurídico da afetividade entre pais e filhos apenas deixa de haver com o falecimento de um dos sujeitos ou se houver perda do poder familiar ou autoridade parental. Na relação entre cônjuges e entre companheiros o princípio da afetividade incide enquanto houver afetividade real, pois esta é pressuposto da convivência. Até mesmo a afetividade real, sob o ponto de vista do direito, tem conteúdo conceptual mais estrito (o que une as pessoas com objetivo de constituição de família) do que o empregado nas ciências da psique, na filosofia, nas ciências sociais, que abrange tanto o que une quanto o que desune (amor e ódio, afeição e desafeição, sentimentos de aproximação e de rejeição). Na psicopatologia, por exemplo, a afetividade é o estado psíquico global com que a pessoa se apresenta e vive em relação às outras pessoas e aos objetos, compreendendo “o estado de ânimo ou humor, os sentimentos, as emoções e as paixões e reflete sempre a capacidade de experimentar sentimentos e emoções”[6]. Evidentemente essa compreensão abrangente do fenômeno é inapreensível pelo direito, que opera selecionando os fatos da vida que devem receber a incidência da norma jurídica.

            Por isso, sem qualquer contradição, podemos referir a dever jurídico de afetividade oponível a pais e filhos e aos parentes entre si, em caráter permanente, independentemente dos sentimentos que nutram entre si, e aos cônjuges e companheiros enquanto perdurar a convivência. No caso dos cônjuges e companheiros, o dever de assistência, que é desdobramento do princípio jurídico da afetividade (e do princípio fundamental da solidariedade que perpassa ambos) pode projetar seus efeitos para além da convivência, como a prestação de alimentos e o dever de segredo sobre a intimidade e a vida privada.

            A afetividade familiar é distinta do vínculo de natureza obrigacional, ou patrimonial, ou societário. Na relação familiar não há fim econômico, cujas dimensões são sempre derivadas (por exemplo, dever de alimentos, ou regime matrimonial de bens), nem seus integrantes são sócios ou associados.

3. PATERNIDADE E FILIAÇÃO SOCIOAFETIVAS E O CÓDIGO CIVIL

            A paternidade e a filiação socioafetiva são, fundamentalmente, jurídicas, independentemente da origem biológica.

            Pode-se afirmar que toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não-biológica; em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não-biológica. Tradicionalmente, a situação comum é a presunção legal de que a criança nascida biologicamente dos pais que vivem unidos em casamento adquire o status jurídico de filho. Paternidade biológica aí seria igual a paternidade socioafetiva. Mas há outras hipóteses de paternidade que não derivam do fato biológico, quando este é sobrepujado por outros valores que o direito considera predominantes.

            A chamada verdade biológica nem sempre é adequada, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, especialmente quando esta já tiver sido constituída na convivência duradoura com pais socioafetivos ou quando derivar da adoção. Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos. Nenhuma conclusão da bioética aponta para atribuir a paternidade ao dador anônimo de sêmen. A inseminação artificial heteróloga não permite o questionamento da paternidade dos que a utilizaram, com material genético de terceiros.

            O problema da verdade real, que tem sido manejada de modo equivocado quando se trata de paternidade, é que não há uma única, mas três verdades reais: a) a verdade biológica com fins de parentesco, para determinar paternidade – e as relações de parentesco decorrentes - quando esta não tiver sido constituída por outro modo e for inexistente no registro do nascimento, em virtude da incidência do princípio da paternidade responsável imputada a quem não a assumiu; b) verdade biológica sem fins de parentesco, quando já existir pai socioafetivo, para os fins de identidade genética, com natureza de direitos da personalidade, fora do direito de família (art. 48 do ECA, com a redação da Lei 12.010, de 2009); c) verdade socioafetiva, quando já constituído o estado de filiação e parentalidade, em virtude de adoção, ou de posse de estado de filiação, ou de inseminação artificial heteróloga.

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            A legislação brasileira prevê quatro tipos de estados de filiação, decorrentes das seguintes origens: a) por consangüinidade; b) por adoção; c) por inseminação artificial heteróloga; d) por força de posse de estado de filiação. A consangüinidade, a mais ampla de todas, faz presumir o estado de filiação quando os pais são casados ou vivem em união estável, ou ainda na hipótese de família monoparental. O direito brasileiro não permite que os estados de filiação não consangüíneos, referidos nas alíneas b a d, sejam contraditados por investigação de paternidade, com fundamento na ausência de origem biológica, pois são irreversíveis e invioláveis, no interesse do filho.

            No Código Civil, identificamos as seguintes referências da clara opção pelo paradigma da filiação socioafetiva:

            a) art. 1.593, para o qual o parentesco é natural ou civil, “conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”. A principal relação de parentesco é a que se configura na paternidade (ou maternidade) e na filiação. A norma é inclusiva, pois não atribui a primazia à origem biológica; a paternidade de qualquer origem é dotada de igual dignidade;

            b) art. 1.596, que reproduz a regra constitucional de igualdade dos filhos, havidos ou não da relação de casamento (estes, os antigos legítimos), ou por adoção, com os mesmos direitos e qualificações. O § 6º do art. 227 da Constituição revolucionou o conceito de filiação e inaugurou o paradigma aberto e inclusivo, tendo inovado em todo o mundo;

            c) art. 1597, V, que admite a filiação mediante inseminação artificial heteróloga, ou seja, com utilização de sêmen de outro homem, desde que tenha havido prévia autorização do marido da mãe. A origem do filho, em relação aos pais, é parcialmente biológica, pois o pai é exclusivamente socioafetivo, jamais podendo ser contraditada por investigação de paternidade ulterior;

            d) art. 1.605, consagrador da posse do estado de filiação, quando houver começo de prova proveniente dos pais, ou, “quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos”. As possibilidades abertas com esta segunda hipótese são amplas. As presunções “veementes” são verificadas em cada caso, dispensando-se outras provas da situação de fato. O Código brasileiro não indica, sequer exemplificadamente, as espécies de presunção, ou a duração, o que nos parece a orientação melhor. Na experiência brasileira, incluem-se entre a posse de estado de filiação o filho de criação e a adoção de fato, também chamada “adoção à brasileira”, que é feita sem observância do processo judicial, mediante declaração ao registro público;

            e) art. 1.614, continente de duas normas, ambas demonstrando que o reconhecimento do estado de filiação não é imposição da natureza ou de exame de laboratório, pois admitem a liberdade de rejeitá-lo. A primeira norma faz depender a eficácia do reconhecimento ao consentimento do filho maior; se não consentir, a paternidade, ainda que biológica, não será admitida; a segunda norma faculta ao filho menor impugnar o reconhecimento da paternidade até quatro anos após adquirir a maioridade. Se o filho não quer o pai biológico, que não promoveu o registro após seu nascimento, pode rejeitá-lo no exercício de sua liberdade e autonomia. Assim sendo, permanecerá o registro do nascimento constando apenas o nome da mãe. Claro está que o artigo não se aplica contra o pai registral, se o filho foi concebido na constância do casamento ou da união estável, pois a declaração ao registro público do nascimento é indisponível.

4. A TRAJETÓRIA DA SOCIOAFETIVIDADE NO STJ

            Quando a discussão entre a fundamentação biológica e a fundamentação socioafetiva da filiação chegou ao STJ, parecia que o Tribunal se inclinava para a primeira, também como reflexo pelo fascínio que a simplificação do exame de DNA provocava nos espíritos e até mesmo no inconsciente coletivo, este alimentado por equívocos da mídia.

            Gerou intenso debate a edição da Súmula 301 do STJ, de seguinte enunciado: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”. Parecia que a Súmula sintetizava a opção do Tribunal pela paternidade biológica, em desfavor da paternidade socioafetiva. Publicamos crítica firme à Súmula, principalmente em relação à sua literalidade, por não indicar as ressalvas necessárias[7]. Chamamos a atenção para o que nos pareceu equívocos e suas consequências: “Por outro lado, induz o réu a produzir prova contra si mesmo, invertendo um princípio que resultou da evolução do direito e da emancipação do homem. Confunde investigação da paternidade com o direito da personalidade de conhecimento da origem genética. Cria desnecessariamente mais uma presunção no direito de família: a da confissão ficta ou da paternidade não provada. Não faz referência às demais provas indiciárias, que contribuam para o convencimento do juiz. Não ressalva o estado de filiação já constituído, cuja história de vida será desfeita em razão da presunção de paternidade biológica”. 

            O campo de aplicação da Súmula 301 deve ater-se, exclusivamente, às situações em que não houve paternidade jurídica ou registral, ou exclusivamente socioafetiva. Ou seja, aplica-se para a hipótese recorrente de crianças registradas apenas com a nominação da mãe, porque o genitor biológico recusou-se a fazer a declaração devida. Nessa hipótese, não há conflito com paternidade socioafetiva constituída, sendo correto que a investigação da paternidade recorra à fundamentação biológica, mediante o exame de DNA ou equivalente.

            Logo em seguida à edição da Súmula 301, o STJ passou progressivamente a limitar seu alcance, justamente nos pontos ressaltados pela doutrina: a) a recusa ao exame de DNA não é suficiente, isoladamente, para atribuir a paternidade a alguém, devendo o juiz conjugá-la com outras provas, para firmar seu convencimento; b) a Súmula 301 não pode ser aplicada para desconstituir paternidade socioafetiva já constituída. A necessidade de conjugação da recusa ao exame com outros elementos de prova, o chamado contexto probatório, restou consagrada na legislação, com o advento da Lei 12.004, de 2009.

            Além disso o STJ orientou-se, firmemente, em diversas decisões nos últimos anos, pela primazia da paternidade socioafetiva, precisando o espaço destinado à origem genética, o que coloca o Tribunal na vanguarda da jurisprudência mundial, nessa matéria.

5. GIRO DE COPÉRNICO: PRIMAZIA DA SOCIOAFETIVIDADE NO STJ

            Em diversas decisões recentes, o STJ foi sistematizando os requisitos para a primazia da socioafetividade nas relações de família, notadamente na filiação, em situações em que a origem genética era posta como fundamento para desconstituir paternidades ou maternidades já consolidadas. Nesses pleitos, subjaz o interesse eminentemente patrimonial, máxime em relação à sucessão hereditária do pretendido genitor biológico, às expensas das histórias de vida das pessoas envolvidas e dos estados de filiação consolidados no tempo. Indicamos, a seguir, algumas dessas decisões proferidas no ano de 2009:

            REsp 932692 (DJe 12.02.2009): Argumentos e fundamentos: a) prevalência dos interesses da criança (“possibilidade de uma criança ser desamparada por um ser adulto que a ela não se ligou, verdadeiramente, pelos laços afetivos”); b) preservação do estado de filiação; c) o reconhecimento espontâneo da paternidade pelo registro não pode ser considerado vício de consentimento (“o próprio pai manifestou que sabia perfeitamente não haver vínculo biológico entre ele e o menor e, mesmo assim, reconheceu-o como seu filho”); d) o pai registral, que se volta contra o registro, age com venire contra factum proprium (“utilização da própria torpeza para benefício próprio”).

            REsp 1067438 (DJe 20.05.2009): Argumentos e fundamentos: a) é incabível a ação negatória de paternidade, quando inexiste vício do consentimento no ato registral (“o pai sempre suspeitou a respeito da ausência de tal identidade e, mesmo assim, registrou, de forma voluntária e consciente, a criança como sua filha”); b)  o dever de afetividade não pode ser escusado por dúvidas sobre o vínculo e desafeição posterior (“devem, pois, os laços afetivos entre pais e filhos permanecer incólumes, ainda que os outrora existentes entre os adultos envolvidos hajam soçobrado”).                

            REsp 1088157 (DJe 04.08.2009): Argumentos e fundamentos: a) adoção à brasileira (“a adoção, ainda que à moda brasileira, gera para o registrado a posse do estado de filho”; b) nulidade do registro apenas possível quando não constituído o vínculo de socioafetividade com o adotado. Para o Tribunal,  a própria concepção da adoção à brasileira traz consigo a idéia de que o sujeito tinha conhecimento de que não estava a registrar filho próprio, sendo, portanto, incompatível com a noção de erro. O tribunal de origem decidiu que o registro espontâneo como filho, mesmo sabendo não ser o pai biológico, “tipifica verdadeira adoção, irrevogável”. Nesse caso, a iniciativa de anular o registro foi da viúva do pai registral.

            Nessas decisões, os fundamentos utilizados pelo STJ correspondem aos que se encontram difundidos pela doutrina especializada brasileira. Em primeiro lugar, abandona-se a exclusividade da fundamentação biológica da filiação; em segundo lugar, a verdade socioafetiva tem tanta importância quanto a verdade biológica; em terceiro lugar, não se pode destruir o estado de filiação, constituído na convivência familiar duradoura, em prol da origem biológica; em quarto lugar, não há vício de consentimento em quem registra conscientemente uma pessoa como seu filho, até porque a lei não exige a origem biológica para fins de registro.

6. O REsp 709608: CONSOLIDANDO A SOCIOAFETIVIDADE

           

            O REsp 709608 (DJe de 23.11.2009), sendo relator o Min. João Otávio Noronha, prossegue e consolida a orientação, que já se pode dizer dominante no STJ, da socioafetividade como fundamento da filiação e da paternidade. Há perfeita harmonia com os precedentes acima citados e com a teoria desenvolvida pela doutrina brasileira.

            Nesse caso, com o falecimento do pai registral, que convivera com a mãe do recorrente e o reconhecera com seu filho junto ao registro do nascimento, e diante da habilitação do recorrente, na qualidade de herdeiro, no processo de inventário, a inventariante e filha biológica do de cujus, ingressou com ação de negativa de paternidade, objetivando anular o registro de nascimento, sob a alegação de falsidade ideológica. O juiz deferiu o pedido e determinou a retificação do registro de nascimento, para que se efetivasse a exclusão dos termos de filiação paterna e de avós paternos. O Tribunal estadual confirmou a decisão, por estar caracterizada a falsidade ideológica, pois o registro foi feito “por quem não é verdadeiramente o pai”. A decisão recorrida foi inteiramente reformada pela Quarta Turma do STJ, por unanimidade de seus membros, que acompanharam os fundamentos do Ministro relator.

            Em sua essência, os principais fundamentos da decisão do STJ são as seguintes: a) o erro, referido no art. 1.604 do Código Civil, apenas ocorreria se o declarante tivesse sido “induzido a engano ao proceder o registro da criança”, o que não foi o caso, pois este foi espontâneo e desejado: o pai sabia que o menor não era seu filho biológico; b) não houve falsidade, pois a vontade se materializou, em condições normais de discernimento, movida pelo vínculo socioafetivo e sentimento de nobreza; c) o termo de nascimento é fundado em autêntica posse de estado de filho; d) o termo caracteriza reconhecimento voluntário de filiação, que não pode sequer ser revogado, por força dos arts. 1.609 e 1.610 do Código Civil.

            Ressaltam nessa decisão duas linhas de argumentação, que reforçam a orientação dos precedentes: de um lado, argumenta com a inviolabilidade do registro de nascimento, que só abre exceção ao erro ou à falsidade. Afirma, então, que a vontade espontânea e a inexistência de indução ao engano afastariam o erro; e que não se pode cogitar de falsidade quando se reconhece a paternidade socioafetiva, mediante o termo de registro de nascimento. De outro lado, a declaração ao registro é modalidade de reconhecimento voluntário da paternidade, que é inalterável.

            Essas duas linhas de argumentação desenvolve interpretação sistemática, ao invés de se ater exclusivamente à literalidade das ressalvas do art. 1.604, quanto ao erro e a falsidade. Em primeiro lugar, a regra não é a da invalidade do registro, mas a presunção legal de sua validade. Em segundo lugar, o registro só pode ser invalidado se não configurar reconhecimento voluntário de paternidade. Gostaríamos de sublinhar este ponto.

            O voto do relator, ao relacionar o estado de filiação com o reconhecimento da paternidade, evoca o REsp 878.941, de 2007, da relatoria da Min. Nancy Andrighi, no qual se decidiu que o reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos, e que a ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento.

            A decisão e o precedente referido remetem ao reconhecimento voluntário da paternidade, em razão do registro de nascimento. Com efeito, o art. 1.609, I, estabelece que o reconhecimento dos filhos pode ser feito “no registro do nascimento” e é irrevogável. Faz-se mediante declaração perante o oficial do registro do nascimento, cabendo este recolhê-la e dar-lhe pública forma. O reconhecimento tanto pode ser feito quando já tenha havido registro do nascimento, constando apenas o nome da mãe, quanto simultaneamente com o registro. Quando ainda não há registro do nascimento, a declaração tem dois conteúdos: a comunicação de que nasceu uma criança, em determinada data e determinado lugar, de determinada mãe, e o reconhecimento da paternidade do declarante.

            Essa interpretação do art. 1.609, I, que emerge da decisão do STJ, aponta para mais um caminho de consolidação da socioafetividade. No caso, quando o de cujus foi ao cartório e disse que o recorrente era seu filho, ainda que soubesse não ter com ele vínculo biológico, reconheceu expressamente a paternidade e a filiação socioafetivas. Não se confunde, portanto, com a declaração para fins de registro do nascimento, pois só contra este poderiam ser lançadas as acusações de erro e falsidade. A decisão atribui à declaração espontânea, o efeito específico de reconhecimento voluntário da filiação. Lança mais luz ao que estava delineado nas decisões anteriores do STJ, prosseguindo nessa trajetória virtuosa. Daí a importância que ela reveste para o desenvolvimento da doutrina jurídica da socioafetividade nas relações familiares.              


[1] Doutor em Direito Civil pela USP, Professor Emérito da UFAL, Ex-Membro do Conselho Nacional de Justiça.

[2] LÔBO, Paulo. O exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista brasileira de direito de família. Porto Alegre: Síntese, n. 1, p. 67-78, abr./jun. 1999.

[3] LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Trad. Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 40.

[4] OLIVEIRA, Guilherme de. Critério jurídico da paternidade. Coimbra: Almedina, 2003 (reimpressão).

[5] GOMES, Orlando. O Novo Direito de Família. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1984, p. 26.

[6] http://www.psiqweb.med.br/cursos/afet.html, acesso em 13.12.2006.

[7] LÔBO, Paulo. Paternidade socioafetiva e o retrocesso da súmula 301 do STJ. Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, n. 339, p. 45-56, jan. 2006.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Advogado. Professor Emérito da UFAL. Vice-Presidente do IBDCIVIL. Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Socioafetividade em família e a orientação do STJ: Considerações em torno do REsp 709.608. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3760, 17 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25365. Acesso em: 28 mar. 2024.

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