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O direito adquirido e o direito acumulado na previdência complementar

17/12/2013 às 09:25
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Ao enfrentar o tema do direito adquirido e do direito acumulado, investiga-se como se realiza o princípio da segurança jurídica sobre os interesses dos participantes e assistidos no contrato de previdência complementar.

I - Introdução:

O fenômeno jurídico, incluindo as normas e os fatos jurídicos de uma forma geral, possui um caráter dinâmico, por vezes exigindo do aplicador do direito a utilização de métodos de hermenêutica para definir a lei aplicável a determinado fato social.

Como regra de segurança jurídica foi adotado pelo sistema jurídico brasileiro o princípio da irretroatividade das normas jurídicas, em que as normas são criadas para vigorar para o futuro, aplicando-se, como regra, também aos fatos pendentes, preservando os direitos subjetivos constituídos sob a vigência da lei antiga.

Além da utilização do princípio da irretroatividade da lei nova, o conflito intertemporal de leis pode ser solucionado através da previsão de disposições transitórias[1], em que a disciplina das relações sociais ainda pendentes de conclusão recebe um tratamento diferenciado no próprio corpo da lei nova, recebendo um regramento jurídico que contemple a situação especial daqueles sujeitos que não adquiriram o direito, mas estavam próximos de adquiri-lo.

Exemplo bem ilustrativo é o do art. 142 da Lei nº 8.213/91 que disciplina o RGPS, que fixou uma tabela progressiva para cumprimento de período de carência para a concessão dos benefícios de aposentadoria por idade, por tempo de serviço e especial, para os segurados que estavam inscritos na Previdência Social Urbana até 24 de julho de 1991, bem como para o trabalhador e o empregador rural cobertos pela Previdência Social Rural, fixando um prazo de 60 a 180 meses, de acordo com o ano em que o segurado atingisse o requisito etário para a concessão do benefício. Foi uma regra que objetivou exigir períodos de carência mais curtos para a concessão do benefício aos trabalhadores que já eram filiados ao RGPS quando do advento da Lei nº 8.213/91.

O princípio da irretroatividade normativa busca a segurança e o respeito às relações jurídicas consolidadas.

A proteção do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada que, inicialmente, no ordenamento jurídico brasileiro, positivou-se na conhecida Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), tradicionalmente sempre recebeu guarida nos textos constitucionais pátrios[2], atualmente com status de direito fundamental (cláusula pétrea) consoante art. 5º, XXXVI da CF (a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada).

O ordenamento jurídico brasileiro adotou a teoria subjetiva de Gabba[3], para proteger as situações jurídicas consolidadas pela égide da lei anterior, de modo que a lei nova não produza efeitos sobre o ato jurídico perfeito (o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou), o direito adquirido (aquele em que seu titular, ou alguém por ele, possa exercer) e à coisa julgada (a decisão judicial de que já não caiba recurso).


II – A proteção do direito adquirido e do direito acumulado na previdência complementar:

Na previdência complementar, de uma forma peculiar, quando o segurado (participante do plano de benefícios) satisfaz todas as condições para o recebimento da prestação diz-se que ele é elegível ao benefício. Ser elegível significaria, pois, possuir direito adquirido para o recebimento do benefício.

Nesse sentido, o §1º, do art. 68 da LC 109/2001 quando fala que “os benefícios serão considerados direito adquirido do participante quando implementadas todas as condições estabelecidas para elegibilidade consignadas no regulamento do respectivo plano”. No mesmo sentido o parágrafo único, art. 17 da referida lei ao dispor que “ao participante que tenha cumprido os requisitos para obtenção dos benefícios previstos no plano é assegurada a aplicação das disposições regulamentares vigentes na data em que se tornou elegível a um benefício de aposentadoria”.

As normas jurídicas da previdência complementar tem seguido a regra da irretroatividade. Somente em relação às situações jurídicas ainda não consolidadas, quando não preenchidos todos os requisitos para o exercício do direito, é que seria admitida a incidência da nova norma jurídica, já que nestas situações os segurados e os beneficiários apenas teriam expectativa de direito ao gozo do benefício, não integrando ainda o benefício seu patrimônio jurídico.

Essas normas não produziriam efeitos sobre o direito subjetivo do segurado quando editadas após satisfeitos os requisitos para o recebimento do benefício, mesmo que o segurado não tenha exercido, por qualquer motivo, o seu direito, deixando, por exemplo, de requerê-lo formalmente perante a entidade gestora.

Conforme dizer do próprio art. 17 da LC 109/2001, “as alterações processadas nos regulamentos dos planos aplicam-se a todos os participantes das entidades fechadas, a partir de sua aprovação pelo órgão regulador e fiscalizador, observado o direito acumulado de cada participante”.

Situação recorrente no âmbito da previdência complementar é a da edição pelo órgão regulador de atos normativos (Resoluções) que passam a produzir efeitos imediatamente sobre os contratos previdenciários em vigor, exigindo a alteração dos regulamentos dos planos de benefícios.

Podemos citar duas situações em que tal situação ocorre com frequência. A primeira, nas situações de crise econômica dos Estados, quando necessária a revisão das taxas de juros utilizadas nas projeções atuariais do plano de benefícios, diante da forte repercussão dos índices negativos do mercado financeiro em relação aos investimentos realizados pelas entidades gestoras dos planos. Nessas situações, o órgão regulador edita ato normativo fixando parâmetros razoáveis de taxa de juros atuarial, sobre a qual deve a entidade realizar o seu plano de investimentos, pois, caso mantidos os parâmetros iniciais, poderia levar o plano de benefícios a um desequilíbrio financeiro de tal ordem que o conduziria ao descumprimento dos compromissos previdenciários assumidos.

Outra situação recorrente é a da modificação da tábua de mortalidade utilizada no planejamento atuarial. Quando o órgão regulador determina a adoção de uma tábua de mortalidade mais contemporânea, busca uma maior aderência do plano de benefícios às características da massa de participantes e assistidos que integram o plano[4], considerando a constante alteração das hipóteses atuariais (natalidade, mortalidade, expectativa de vida, migração populacional, etc.), permitindo uma correta mensuração dos recursos necessários ao pagamento dos benefícios contratados.

Em ambas as situações devem as normas recém-editadas ser aplicadas imediatamente aos planos de benefícios, com aprovação do órgão fiscalizador das alterações realizadas no regulamento do plano de benefícios e no seu respectivo plano de custeio.

Em matéria de previdência complementar não somente o direito adquirido merece a tutela jurídica, mas também o direito acumulado, que corresponde ao direito de propriedade que os participantes exercem sobre os recursos financeiros vertidos em seu nome, com a atualização monetária prevista contratualmente.

Nas situações de resgate e portabilidade dos recursos financeiros do plano a legislação é cristalina ao proteger, não o direito adquirido à concessão do benefício, mas o direito subjetivo do participante de levantar os valores das contribuições por ele realizadas e vertidas ao plano de benefícios ou de transferir esses recursos para outro plano de benefícios administrado por EPC, respectivamente.

WALD[5], ao tratar de questionamentos levantados sobre a não aplicação das disposições da EC 20/98 em face da até então vigente Lei nº 6.435/77, defendeu a ausência de direito adquirido a regime jurídico enquanto não satisfeitos pelo segurado (participante, assistido, beneficiário) os requisitos de elegibilidade à concessão do benefício contratado:

Tratando-se, pois, do regime juri?dico a ser adotado e aplicado no campo de previde?ncia complementar, a lei nova se aplica imediatamente, na?o se admitindo a chamada retroatividade mi?nima em virtude da qual se consagra, em alguns casos, a ultra-atividade da lei antiga.

Quando ha? modificac?a?o do regime juri?dico, o novo diploma legal so? encontra barreira nos direitos que, efetivamente, ja? entraram no patrimo?nio do titular, sem dependerem de condic?a?o ou termo.

Os tribunais brasileiros têm adotado a tese da ausência de direito adquirido ao regime jurídico da lei anterior revogada, quando não implementados todos os requisitos para a concessão do benefício, como se observa da seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:

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(...) No tocante ao normativo aplicável ao participante do plano de previdência privada para fins de cálculo da renda mensal inicial do benefício previdenciário complementar, a jurisprudência do STJ é no sentido de que o direito adquirido a determinado regime regulamentar somente se perfaz com o preenchimento dos requisitos para sua percepção. Incidência da Súmula 83/STJ. 4. Agravo regimental desprovido. (STJ. AgRg no AREsp 10503/DF. Relator Ministro Marco Buzzi. Órgão Julgador: 4ª turma. Data do Julgamento: 04/12/2012).


III – Conclusões:

A proteção jurídica do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada tem representado importante instrumento contra abusos dos poderes constituídos e dos particulares em benefício do cidadão.

A existência de segurança jurídica nas relações sociais é condição essencial para o desenvolvimento de um Estado Democrático de Direito que, acima de tudo, resguarda os cidadãos de medidas autoritárias, casuísticas e pessoais que pretendam atingir seus direitos subjetivos.

Essa proteção constitucional, como não poderia ser diferente, também é vista na previdência complementar, que além da proteção do direito adquirido, também são tuteladas juridicamente as reservas financeiras que compõem o patrimônio pessoal do participante do plano de benefícios (segurado), correspondência material do seu direito acumulado.


BIBLIOGRAFIA

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume I: parte geral. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

WALD, Arnold. A reforma da previdência privada (a constitucionalidade do Decreto 3.721, de 08.01.2001). São Paulo: Revista dos Tribunais, Vol. 791, p.11. Set / 2001.


Notas

[1] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.179.

[2] §3º, art. 153 da CF/1967; §3º, art. 141 da CF/1946; e item 3, art. 113 da CF/1934.

[3] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume I: parte geral. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p.163.

[4] As características da massa de participantes do plano alteram-se com o passar dos anos, seja por movimentos bruscos de entrada e saída de participantes no plano, seja pela alteração das taxas de natalidade, mortalidade e da expectativa de vida do grupo populacional, o que exigirá ajustes constantes no custeio dos benefícios.

[5] WALD, Arnold. A reforma da previdência privada (a constitucionalidade do Decreto 3.721, de 08.01.2001). São Paulo: Revista dos Tribunais, Vol. 791, p.11. Set / 2001.

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Sobre o autor
Allan Luiz Oliveira Barros

Allan Luiz Oliveira Barros. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Atuou na Procuradoria Federal junto a Superintendência Nacional de Previdência Complementar - Previc. Membro da Câmara de Recursos da Previdência Complementar (CRPC). Mestrando em Direito e Políticas Públicas pela UNICEUB. Máster en Dirección y Gestión de Planes y Fondos de Pensiones pela Universidade de Alcalá, Espanha. Pós-Graduado em Direito Constitucional e Direito Previdenciário. Professor de Cursos de Pós-Graduação em Direito Previdenciário e da Escola da Advocacia-Geral da União. Editor do site www.allanbarros.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Allan Luiz Oliveira. O direito adquirido e o direito acumulado na previdência complementar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3821, 17 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26159. Acesso em: 29 mar. 2024.

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