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O combate efetivo à corrupção exige propostas específicas

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02/01/2014 às 17:12
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É necessária a articulação de um amplo movimento da sociedade civil, a exemplo daqueles realizados em torno da proposta da “ficha limpa” e das “eleições limpas”, objetivando a construção de um conjunto consistente de proposições contra os atos de corrupção.

No dia 4 de dezembro de 2011, concluí a elaboração do texto intitulado COMBATENDO A CORRUPÇÃO. Esse escrito, motivado por uma “corrente” de mensagens eletrônicas contra a corrupção veiculando uma “Lei de Reforma do Congresso”, pode ser acessado no seguinte endereço eletrônico: <http://www.aldemario.adv.br/combatendo.pdf>.

Reescrevo, agora, o texto referido com ajustes e acréscimos decorrentes do singularíssimo momento vivido pela sociedade brasileira, literalmente sacudida pelo terremoto político representado pelas dezenas de manifestações populares do mês de junho passado (e prometem continuar ...)([1]).

Parece que a busca pela justiça social foi (e é) o denominador comum das manifestações já realizadas e em curso. A defesa desse estádio superior de desenvolvimento econômico-social pode ser lida nos milhares de cartazes que pugnavam (e pugnam) por transporte público de qualidade, atendimento de saúde adequado, educação no “padrão FIFA”, e os demais direitos sociais inscritos no artigo sexto da Constituição. A sociedade livre, justa e solidária, preconizada no artigo terceiro da Carta Magna, pressupõe a fruição ampla e geral desses direitos.

Cumpre observar que um dos pleitos mais recorrentes nas manifestações populares foi (e é) o combate à corrupção. Identificam os manifestantes, com acerto, a existência de níveis alarmantes das mais diversas formas de malversação da “coisa pública” por certos agentes políticos, determinados servidores públicos e específicos integrantes do empresariado.

Percebe-se, também, que o clamor pela extinção desse deletério e repulsivo fenômeno permanece num indesejável plano de generalidade. Não se identifica um conjunto consistente de propostas específicas contra a corrupção, notadamente proposições que ataquem as causas do problema.

As reduzidas propostas concretas nessa seara estão voltadas, infelizmente, para o tratamento das consequências das várias práticas de corrupção. É possível exemplificar com a caracterização da corrupção como crime hediondo e mesmo a rejeição da PEC n. 37, que trata da investigação das infrações penais já efetivadas. A proposta, sustentada pela OAB e dezenas de entidades da sociedade civil, de financiamento público do processo eleitoral é uma importantíssima exceção (como medida para combater as raízes da corrupção).

Diante desse quadro, sugeri ao Conselho Federal da OAB a articulação de um amplo movimento da sociedade civil, a exemplo daqueles realizados em torno da proposta da “ficha limpa” ([2]) e das “eleições limpas” ([3]), objetivando a construção e apresentação de um conjunto consistente de proposições contra os preocupantes e nefastos atos de corrupção.

Registro que o vocábulo “corrupção” é tomado neste escrito em sentido amplíssimo, tal como referido coloquialmente nos mais variados espaços sociais. Envolve todo tipo de malversação do dinheiro público, dilapidação do patrimônio público, atos de improbidade administrativa e outras figuras com nomenclaturas jurídicas diversas e tratamentos legais específicos ([4]).

Esse (a corrupção ampla e generalizada) é um dos principais problemas na atual quadra histórica da nação brasileira. Nesse sentido, apontam passeatas, correntes na internet, blogs, sites e uma intensa movimentação nas redes sociais mais concorridas. Segundo dados da Revista Veja, a corrupção abocanha cerca de R$ 82 bilhões por ano, algo em torno de 2,3% do PIB ([5]).  

Abro um parêntesis para registrar a opinião pessoal de que temos problemas aparentemente mais graves. Cito, entre eles, o estratosférico pagamento anual de juros e encargos da dívida pública, assunto praticamente esquecido na (grande) imprensa e nos debates políticos e sociais. Dados oficiais apontam para despesas, nesse item, na casa dos R$ 124 bilhões anuais, representando cerca de 3,9% do PIB ([6]). Uma visão alternativa, e mais preocupante, aos números oficiais pode ser verificada no site da Auditoria Cidadã da Dívida ([7]). De todos, creio que o mais relevante dos problemas do Brasil consiste na apropriação profundamente desigual da riqueza produzida, viabilizada por um conjunto de mecanismos políticos, sociais e econômicos cuidadosamente construídos e mantidos pelas elites dirigentes ([8]) ([9]).

Cumpre observar que as mobilizações físicas (como as passeatas) e as mobilizações eletrônicas (nas redes sociais presentes na internet) são providências necessárias, mas insuficientes, no longo e penoso processo de combate à corrupção. São necessárias porque mantêm o assunto na “ordem do dia” e definem o campo social (quero crer amplamente majoritário) contra a corrupção. São insuficientes porque não atacam as condições objetivas viabilizadoras dos atos concretos de corrupção que chegam, e que não chegam, ao noticiário da (grande) imprensa.

Ademais, não é possível alimentar a ilusão de que o combate à corrupção se constitui numa cruzada ética contra os degenerados morais. Em vários casos é possível até cogitar de influências genéticas. Trata-se, é preciso afirmar e reafirmar, de desenvolver uma ação planejada, organizada, enérgica e permanente dos cidadãos e das organizações sociais comprometidas com práticas sociais sadias e de respeito à coisa pública. Somente essa ação firme dos não-corruptos poderá reduzir e (praticamente) eliminar, numa perspectiva de longo prazo, o campo de atuação dos corruptos. 

Não se pode perder de vista, também, que o combate à corrupção envolve um sério (seriíssimo, melhor dizendo) enfrentamento à tolerância histórica com essa prática e outros procedimentos similares. Está enraizada na formação da sociedade brasileira e na própria construção do Estado a ideia de que o “esperto”, aquele que leva todo tipo de vantagem (lícita e ilícita, em espaços públicos e privados), é merecedor de todos os elogios e é sinônimo de sucesso ([10]). Vigora, de forma ampla, a hipocrisia de que “os outros” são corruptos, “os meus” são “espertos”, “competentes”, “desenrolados”, “jeitosos”, “maleáveis”, “flexíveis”, “compreensivos”, “habilidosos” ou coisa que o valha. Até o conhecido “jeitinho brasileiro” em inúmeros casos e situações descamba para justificar as mazelas mais condenáveis no cotidiano da sociedade ([11]). Exemplifico, nessa linha, um conjunto de condutas, “socialmente aceitas”, que merecem profunda reflexão justamente em função dessa “aceitação”: “colar” em provas; copiar obras alheias sem declinar a autoria, “encomendar” a elaboração de trabalhos acadêmicos, responder chamadas escolares por colegas ([12]), subornar autoridades de trânsito, viajar em transportes urbanos sem pagar, estacionar em fila dupla, dirigir sob a influência de bebidas alcoólicas, fabricar atestados médicos, modificar dados em documentos, “capturar” o sinal da tv a cabo, criar e alimentar várias modalidades de “gatos”, jogar (ou mais propriamente, arremessar) toda espécie de lixo nas vias públicas ([13]), etc, etc, etc. 

Alinho algumas ideias e propostas, a serem implementadas pelos não-corruptos, para subtrair o oxigênio da corrupção. Em outras palavras, são algumas importantes providências com um considerável potencial de evitar ou reduzir os atos concretos de corrupção. Segue, sem pretensão de exaustão, um rol de medidas a serem consideradas:

a) criar grupos de acompanhamento da atuação de cada parlamentar, notadamente seus votos, pronunciamentos, projetos aprovados e formas de inserção e relacionamentos com sociedade civil ([14]). Esse monitoramento deve utilizar meios eletrônicos para divulgação e, preferencialmente, envolver pessoas integrantes e não-integrantes da base eleitoral do político ([15]);

b) criar grupos de acompanhamento da atuação de entidades que recebem recursos públicos, independentemente do formato jurídico adotado. Esse monitoramento deve utilizar, assim como mencionado no item anterior, meios eletrônicos para divulgação;

c) organização de comitês ou conselhos de controle social voltados para acompanhar a realização das despesas de órgãos públicos específicos. Esses grupos, compostos por pessoas com formações técnicas distintas, podem funcionar com intenso uso de meios eletrônicos e lançar mão de instrumentos e expedientes jurídicos já existentes, assim como o Portal da Transparência do Governo Federal ([16]), os portais semelhantes em outros níveis estatais,  o pedido de informações e esclarecimentos (art. 5o., incisos XXXIII e XXXIV, da Constituição) e a Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527, de 2011);

d) desenvolver um controle social, nos moldes do item anterior, sobre a atuação dos órgãos de controle interno e externo. Nesse caso, uma preocupação adicional seria verificar se existem condições mínimas em termos de recursos humanos e materiais para o desempenho adequado das atividades dessas unidades de fiscalização;

e) articular a aprovação de projetos de leis definidores de uma radical profissionalização da Administração Pública com a redução extrema dos espaços ocupados por agentes não-detentores de cargos efetivos. É importante incorporar, nessas iniciativas, instrumentos voltados para: e.1) reduzir influências corporativas indevidas; e.2) definição de critérios objetivos para ocupação dos postos de direção por servidores de carreira; e.3) limitação de tempo para o exercício dessas funções de direção por ocupantes de cargos efetivos e e.4) definição de “quarentenas”, sem o exercício de cargos comissionados, depois da ocupação desses espaços por servidores concursados ([17]);

f) promover uma profunda reforma na Constituição eliminando as escolhas com fortes conotações políticas (por intermédio de listas tríplices e sêxtuplas) para composição dos Tribunais (do Poder Judiciário) e dos Tribunais de Contas ([18]);

g) adoção de legislação específica e rígida para os chamados “anfíbios” (aqueles que transitam entre os espaços profissionais públicos e privados, em regra como veículos de informações privilegiadas e contatos das mais variadas naturezas);

h) articular a aprovação de emenda constitucional definidora de profundas restrições na discricionariedade da execução orçamentária por parte do Poder Executivo (“orçamento impositivo”) ([19]). É público e notório que a “liberação de emendas parlamentares” funciona como um escuso balcão de negócios majoritariamente avesso aos interesses públicos;

i) articular a aprovação de uma profunda reforma político-eleitoral, envolvendo: i.1) rígidos mecanismos de fidelidade partidária; i.2) modelos eleitorais que facilitem e aprofundem os vínculos dos eleitos com os eleitores, como a perda de mandato por desempenho insatisfatório ou desviado dos compromissos assumidos; i.3) divulgação ampla, notadamente em meios eletrônicos, de plataformas de atuação e gastos de campanha; i.4) apresentação de candidaturas avulsas (sem vínculo com partidos políticos); i.5) modernização e democratização das eleições para os parlamentos (com a superação do atual sistema proporcional) e i.6) o financiamento público das campanhas ([20])([21])([22]) ;

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j) envolver os cursos de direito, por suas entidades de representação estudantil e por suas direções institucionais, nos movimentos anteriores (identificados como itens “a”, “b”, “c” e “d”). Conforme matéria do prestigiado site CONJUR – Consultor Jurídico (http://www.conjur.com.br), veiculada no dia 3 de junho de 2011, “o Brasil tem mais faculdades de Direito do que todos os países no mundo juntos. São 1.240 cursos ...” e “Atualmente, o curso de Direito é um dos que mais atrai alunos. Conforme o Censo da Educação Superior de 2009, divulgado em janeiro último pelo Ministério da Educação, está em segundo lugar, com 651 mil matrículas, atrás apenas de Administração, com 1,1 milhão de matrículas, seguido de Pedagogia (573 mil) e Engenharia (420 mil)”. Existe aí um enorme potencial de aprimoramento da formação técnica e política dos estudantes por intermédio de ações com profundas e positivas repercussões sociais;

k) fortalecer a Advocacia Pública (instituição e carreiras), notadamente nas áreas de assessoria e consultoria jurídicas, como um importantíssimo (o mais efetivo) instrumento de controle preventivo de desvios e ilícitos das mais variadas naturezas no âmbito da Administração Pública ([23]). Atualmente, nessa linha de ação, é preciso combater o PLP n. 205, de 2012, proposta de alteração da Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União (AGU), que pretende afirmar uma odiosa Advocacia de Governo no seio da instituição com o enfraquecimento da atuação isenta dos advogados públicos federais ([24]);

l) promover um amplo e profundo conjunto de iniciativas voltadas para a formação e a afirmação social de uma pauta de valores e práticas contrárias à corrupção e procedimentos correlatos. Tal movimento precisa combater frontalmente a perversa e disseminada visão de que é positivo levar vantagem em tudo, contra tudo e contra todos, de forma lícita ou ilícita e em todos os espaços e manifestações da vida social;

m) articular a aprovação de diplomas legais específicos relacionados com as denúncias anônimas. É fundamental que as denúncias anônimas não sejam pura e simplesmente descartadas (arquivadas), em função do anonimato da origem. Importa definir procedimentos para instauração, de ofício, de investigações preliminares a partir de notícias minimamente consistentes acerca da prática de ilícitos importantes. Observe-se que os atos de corrupção e assemelhados normalmente integram um conjunto encadeado de providências e passam por inúmeros agentes públicos que não estão comprometidos com os desvios e estão dispostos, resguarda a sua segurança, em sentido amplo, a apontar as ocorrências verificadas;

n) organizar a efetiva aplicação da Lei n. 12.846, de 2013, voltada para a responsabilização objetiva, administrativa e civil, de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública ([25]);

o) definir um tratamento jurídico mais específico e adequado, notadamente para impedir/combater fraudes e viabilizar responsabilidades civis e penais, para as pessoas jurídicas integrantes de grupos econômicos e para as pessoas físicas (ou naturais) que integram os quadros societários dessas empresas;

p) definir um tratamento jurídico mais específico e adequado para a formação de forças-tarefas de servidores e órgãos públicos voltados, por intermédio de esforço conjunto e complementar, para o combate às várias práticas de corrupção;

q) extinção das punições que funcionam como verdadeiros prêmios, tais como as aposentadorias compulsórias;

r) reformar profundamente os sistemas recursais, nos processos civil, penal e disciplinar, mantendo o devido processo legal mas racionalizando os procedimentos, para abreviar a conclusão e a execução/efetividade das decisões/punições;

s) reformar profundamente as definições constitucionais relacionadas com a fixação de foros privilegiados, afastando o instituto nos casos de prática de infrações penais comuns (não vinculadas ao exercício dos mandatos ou cargos que exigem ampla independência funcional, como os de magistrados);

t) constituir um amplo comitê da sociedade civil organizada para acompanhar e garantir em relação à internet: t.1) a neutralidade da rede (ausência de privilégios de tráfego por critérios mercantis ou de outra natureza); t.2) a ampla acessibilidade, notadamente para evitar a exclusão digital; t.3) a ampla liberdade de comunicação e t.4) a ampla liberdade de divulgação/veiculação de ideias, pensamentos e propostas nos mais variados espaços eletrônicos possíveis;

u) constituir um amplo comitê da sociedade civil organizada para, em relação à imprensa tradicional (televisão, rádio e jornal): u.1) buscar a implementação de modelos de democratização (evitando a concentração em grandes grupos) e u.2) implementar mecanismos de crítica e controle social, sem censuras ou expedientes que atentem contra liberdade de expressão jornalística, com especial atenção para os enfoques das notícias de atos de corrupção tanto pela perspectiva passiva quanto ativa;

v) construir e influenciar candidaturas, notadamente para postos legislativos, em bases completamente novas. Nesse sentido, podem ser constituídos grupos de eleitores que indiquem ou recomendem o voto em certos candidatos comprometidos formalmente com determinadas plataformas de atuação e com um padrão de comportamento ético claramente definido e publicizado;

w) alterar a Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a partir de uma ampla discussão multidisciplinar, com o objetivo de construir mecanismos de prevenção e combate aos atos de corrupção nessa seara;

x) organizar e disseminar, em todos os setores da Administração Pública, órgãos colegiados para democratização, especialização, aprimoramento e prevenção de desvios em relação a prática de importantes atos decisórios ([26]);

y) intensificar a utilização das sindicâncias patrimoniais ([27]), notadamente para os agentes públicos em posições sensíveis no processo de realização da despesa pública e na direção de órgãos e entidades da Administração Pública;

z) organizar numa rede, dentro e fora da internet, os vários blogs, sites, organizações, movimentos e iniciativas voltadas para o combate da corrupção e procedimentos correlatos ([28]). Assim, as ações individuais e pontuais podem ser visualizadas com mais facilidade, ampliadas e potencializadas ([29]).

Concluo essas singelas linhas reafirmando a complexidade do processo de combate à corrupção no Brasil. Trata-se de um esforço de longo prazo que precisa mobilizar uma parcela considerável da sociedade brasileira comprometida com ações moralmente aceitáveis. Os resultados dessa dura empreitada dependem de ações planejadas, coordenadas, organizadas e enérgicas voltadas para atacar as condições objetivas e subjetivas de realização e reprodução dos atos concretos de corrupção e assemelhados.

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Sobre o autor
Aldemario Araujo Castro

Advogado Procurador da Fazenda Nacional. Professor da Universidade Católica de Brasília - UCB. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília – UCB. Ex-Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB (pela OAB/DF) Ex-Corregedor-Geral da Advocacia da União (AGU)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Aldemario Araujo. O combate efetivo à corrupção exige propostas específicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3837, 2 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26306. Acesso em: 28 mar. 2024.

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